quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Trotsky Hoje (Org. Ovaldo Coggiola) - Ed. Ensaio

Resenha Livro #39 Trotsky Hoje (Org. Osvaldo Coggiola). Ed. Ensaio



Após 61 anos de sua morte, Leon Trotsky ainda hoje é fonte de controvérsia, mesmo dentro da esquerda revolucionária. Dirigente do partido Bolchevique, líder do exército vermelho, participou ativamente das revoluções de fevereiro e outubro de 1917. Após a morte de Lênin, deparou-se com embates, não só frente à contra-revolução e os assédios do imperialismo diante da primeira experiência exitosa de uma revolução socialista no mundo. Deparou-se igualmente com graves embates com setores políticos dentro do movimento revolucionário. Viveu e morreu denunciando o processo de burocratização do poder político em URSS, que levaria à degeneração do projeto socialista em detrimento de um modelo político caracterizado por alguns como “estado operário degenerado” e por outros como “capitalismo de estado”.

O fato é que não é possível fazer uma crítica séria da experiência socialista no século XX desconsiderando Trotsky, seja no sentido de endossar suas teses, seja no sentido de negá-lo em bloco.

Como teórico, elaborou a idéia da “teoria da revolução permanente”, em contraponto à proposta stalinista da construção do socialismo em um país só. (A teoria da revolução em Trosky é “permanente” do ponto de vista vertical e horizontal: a revolução em Rússia passaria por “transcrescimento”, superando as tarefas democráticas das revoluções burguesas apontando para o socialismo (sentido vertical); a revolução em Rússia (e aqui Trotsky em nada se diferencia de Lênin) só seria vitoriosa com a repercussão e generalização de revoluções pelo mundo – o sentido "internacionalista" da revolução remete ao seu caráter também horizontal).

“Trotsky hoje” é uma coletânea de ensaios, feitos por ocasião do “Simpósio Internacional ‘Trotsky: passado e presendo do Socialismo”, evento realizado pelo departamento de História da USP em 1990. Destacam-se do texto, aliás, algumas projeções de debates dentro da esquerda então em voga naquele momento: o problema do desmoronamento da URSS, do fim do "socialismo real" e da crise do movimento socialista – crise que repercute e assombra a esquerda ainda nos dias de hoje.

Assim, os conferencistas abordam em particular as denúncias de Trotsky ao papel contra-revolucionário que o stalinismo jogou, particularmente no sentido de conter processos revolucionários no leste europeu e em China, articulando as críticas de Trostky aos problemas de então.

Outro ponto polêmico, abordado por alguns ensaístas e ainda hoje em aberto, refere-se ao significado histórico da derrocada do socialismo real – a “restauração capitalista” para alguns, sinalizaria um retrocesso, desde que, mesmo se admitindo os desvios do projeto socialista na URSS, tratar-se-ia ainda de uma experiência pós-capitalista. Salta a vista aqui a importância da análise/interpretação histórica do movimento socialista internacional já que cada perspectiva terá desdobramentos práticos bastante concretos, particularmente num momento de turbulência e confusão dentro da esquerda, como deve ter sido os anos de 1990.

Dentre os articulistas, destacamos o trabalho de Isabel Maria Loureiro, estudiosa de Rosa Luxemburgo e que busca encontrar pontos comuns entre o pensamento da revolucionária alemã e Trotsky. Para o revolucionário russo, os Sovietes correspondem à “organização-tipo” da revolução, enquanto Rosa igualmente destaca o caráter central da auto-organização espontânea das massas, apontando para uma relação entre socialismo e democracia. Outros artigos igualmente importantes foram escritos por intelectuais diferentes entre si como Jacob Gorender ( ex-PCB, aborda o caráter da revolução/golpe de estado na Rússia de 1917), Florestan Fernandes, Michel Löwy (que escreve um interessante ensaio sobre o aspecto da “fé” na revolução) e Esteban Volkov Trotsky (neto de Trotsky e autor de um informativo relato pessoal da vida familiar e íntima de seu avô, das relações entre seu grupo e o governo do México, da tentativa de assassinato e do dia em que o dirigente foi morto por agente de Stálin).

Citação Final


“Trotsky não pode ser compreendido como historiador ascético. Se muitas de suas análises e previsões se mostraram acertadas também para as gerações que puderam ver o desenrolar sucessivo dos acontecimentos, outras não o foram. Mas nenhum sentido teria um balanço de acertos e erros. Trotsky deve ser visto como era e quis ser até que a picareta de Ramón Mercader parou aquele cérebro destacado. Como procuramos destacar, deve ser compreendido como dirigente político revolucionário. Como homem de aão, que queria organizar e educar militantes para agir”.
(Tullo Vigevani – Trotsky: sua análise da segunda guerra mundial).

Não poderia ser melhor dito. Para além da lógica do "fla-flu", Trotsky deve ser visto a partir da sua contribuição teórica e prática confrontada com os movimentos (avanços e retrocessos) do socialismo no mundo – tema pelo qual dedicou sua vida. Isto significa agregar ideias ainda hoje atuais (como a teoria da revolução permanente), não desconsiderando o fato de Trotsky, como um homem de um determinado momento histórico, também estar eivado de contradições. Como todos nós.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

"O Evangelho Segundo São Matheus" - Pier Paolo Pasolini

Resenha Filme #3 “O Evangelho Segundo São Matheus”. Pier Paolo Pasolini





Certamente, o espectador do Evangelho Segundo São Matheus (1964) tem grandes chances de se surpreender, positivamente ou negativamente. Afinal, não se trata de um filme de religião tradicional: o relato da vida de Cristo conforme os textos originais da bíblia poderia simplesmente significar mais uma obra que vai no sentido de exaltar Jesus, reverenciar o cristianismo, fazer proselitismo religioso, etc. O curioso é que, mesmo se valendo exclusivamente de citações do evangelho, o filme interessa menos por suas eventuais implicações religiosas e mais por suas possibilidades políticas, além de sua rara beleza plástica.

Um filme diferenciado acerca da religião não poderia deixar de ser o fruto de um cineasta que em nada parece ter afinidade com o tema que filma. Pasolini (1922-1975) foi homossexual assumido em vida, além de filiado ao Partido Comunista Italiano. Além de diretor de cinema, foi poeta, novelista e professor de literatura. Sua morte trágica em 1975, decorrente de assassinato por meio de atropelamento de carro doloso, até hoje é cercada de mistérios. Foi, finalmente, autor de outras películas importantes: Accatone! (1961, que aborda aspectos da vida do povo italiano, por meio de um herói oportunista que remete ao malandro brasileiro); Teorema (1968, baseado em novela do autor); adaptações no cinema de Medeia (1969) e Decameron (1971); entre outros.

O realismo poético

O Evangelho é todo estruturado de forma a fazer com que nenhuma fala dos personagens escape das passagens textuais da Bíblia. A combinação entre imagens em movimento e os enunciados/aforismos/revelações da Bíblia assumem, no filme, um tom poético: é como se as falas de cristo fossem metáforas que vão se combinando com a história narrada em imagens. Os textos originais nem sempre são ou podem ser percebidos como poesia. Mas a combinação entre as palavras e imagens com forte conteúdo semântico dão expressividade ao ponto de revelar as intencionalidades do diretor.

Assim, Jesus, ao contemplar a ostentação e riqueza desproporcional (fortemente ressaltadas por meio de destaques da câmera nas roupas e na postura de sacerdotes e da aristocracia como se o olhar do espectador fosse o olhar de Jesus) faz menção à ideia de ser mais fácil um camelo passar pela cabeça de uma agulha do que um rico atravessar o reino do céu. A combinação do texto oficial com toda a intencionalidade política das imagens (particularmente a crítica à Igreja, à ostentação das classes abastadas, do ceticismo dos ricos, etc.) tem como resultado um filme de rara beleza estética, que consegue conciliar o realismo do texto com imagens que dão expressividade e sentidos mais amplos a tudo que é falado. Tratar-se-ia, aqui, de uma espécie de realismo poético, ou seja, da possibilidade de tratar de temas religiosos de maneira a convertê-los em obra de arte, em fonte de beleza.

O realismo e a Política

Consta que a escolha dos atores do “Evangelho” foi feita sem participação de qualquer ator profissional. Assim, a personagem principal, um cristo sóbrio, de expressão não sem alguma melancolia, foi interpretada pelo caminhoneiro espanhol Enrique Irazoqui. Muito provavelmente, a escolha dos atores decorre especialmente de suas aparências físicas, da possibilidade de se expressarem visualmente conforme as intenções do diretor. Percebe-se que o filme tira proveito do silêncio, de maneira que as imagens aparecem, certas vezes, como uma sucessão de quadros ou mesmo de fotografias. Mais do que atores, em o “Evangelho” percebemos modelos que, sob a direção de Pasolini, aparecem no filme tal qual pessoas comuns de um documentário. Algumas passagens do filme em que a mãe de Jesus (interpretada pela mãe de Pasolini) assiste às cenas de crucificação têm tamanha carga de expressividade que substituem por completo as palavras.

O realismo de Pasolini diz igualmente respeito à fotografia em preto e branco, aos destaques às expressões faciais sem embelezamentos (mais uma vez, a escolha de não atores para os papeis também reforça o realismo) e a exposição de cenas chocantes e fiéis à violência que perpassa a trajetória de cristo.

Uma implicação importante do realismo em o Evangelho é a percepção de que os fatos narrados transcendem em muito a religião. Ao confrontar os magistrados de então acerca da morte de João Batista, Jesus aparece no filme como uma referência de setores populares que o acompanham, despertando já então os receios da classe dominante. As cenas igualmente realistas e chocantes de soldados assassinando os bebês retirados à força de suas mães igualmente vai além de discussões de tipo teológico, expressando desde já a velha violência oficial.

O fato é que o Evangelho, por ter sido filmado por alguém como Pasolini, é igualmente uma obra política que destaca – sem subterfúgios e por meio de uma linguagem realista e poética – aspectos dos conflitos de classe que perpassam o evangelho. Assim, mais do que implicações práticas dos enunciados religiosos, interessa notar a forma como os enunciados são igualmente o resultado de conflitos sociais entre pobres e ricos, classe dominante e classa dominada.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

"O Jovem Marx" - Celso Frederico

Resenha Livro #38 “O Jovem Marx” – Celso Frederico – Ed. Expressão Popular




A Editora Expressão Popular cumpre o importante papel de disseminar, por meio de livros baratos, publicações teóricas que viabilizam maior conhecimentos teóricos e oferecem relatos históricos das lutas sociais para a militância de esquerda no país.

Trabalhadores, estudantes e ativistas têm acesso não só a livros do marxismo clássico (Marx, Engels, Rosa, Lenin, Tróstsky, etc.), mas à produção intelectual de marxistas brasileiros, eventualmente esquecidos e/ou apenas discutidos no meio universitário. A opção por divulgar obras de Leandro Konder, Florestan Fernandes, Carlos Nelson Coutinho e Celso Frederico (autor de “O Jovem Marx”) é importante não só por contribuir para a difusão e reconhecimento do marxismo no Brasil, como também para incentivar novos trabalhos, novas pesquisas e novas interpretações sobre o legado do marxismo de maneira geral e, particularmente, a história das ideias marxistas do Brasil. (Tarefa encampada, entre outros, por Leandro Konder em seu “Derrota da Dialética”, também lançado pela editora).

Feito esta exposição inicial, caberia aqui uma pequena crítica ao livro publicado pela Expressão Popular: faltaram informações sobre autor e contexto em que o livro foi escrito para os menos familiarizados com a produção teórica marxista nacional. A possibilidade de associar o estudo das obras do jovem Marx com os anseios de toda uma geração de marxistas não dependentes da ortodoxia oficial do marxismo, as influências teóricas dos autores e o momento histórico em que o ensaio foi escrito criariam melhores condições para os leitores entenderem não só a orientação política e metodológica de Celso Frederico e demais, mas mesmo contribuir para a tarefa da reconstituição da história do marxismo no Brasil. Ou seja, perceber melhor as principais preocupações dos autores marxistas brasileiros ao longo do séc. XX, como eles dialogam entre si, as diferenças entre eles, etc.

“O Jovem Marx”

Celso Frederico é formado, pós-graduado e professor de Sociologia USP. Segundo informações do Currículo Lattes extraídas da internet, o professor trabalha temas da formação da consciência política e a consciência operária no Brasil. Tem trabalhos publicados sobre estética e o autor marxista húngaro G. Lukács.

Em “O Jovem Marx”, o autor investiga as ideias do filósofo alemão em sua juventude: para tanto, faz uma análise direta de textos originais, confrontando-os com os interlocutores de Marx naquele período histórico, além da própria evolução do pensamento filósofo frente aos acontecimentos mais importantes do séc. XIX e a vida pessoal de Karl Marx. Assim, àqueles que desejam melhor entender as ideias de Marx, torna-se necessário em primeiro lugar saber localizar os momentos em que cada obra foram escritos e em que ponto, em qual estágio se encontra o pensamento de Marx naquela conjuntura.

O jovem Marx é comumente associado ao grupo de jovens hegelianos de esquerda do qual fizeram parte Bruno Bauer (com quem Marx trava polêmica em “Questão Judaica”) e Ludwig Feuerbach (a quem Marx durante a juventude mantém admiração). E é a partir do que Frederico chama de “dissolução do Hegelianismo” , encampada pelos próprios Jovens hegelianos, que se localiza o ponto de partida da evolução intelectual de Marx.

As críticas à noção de Estado em Hegel (corroborando para a defesa da Monarquia e a consolidação da burocracia estatal) e a noção de uma dialética marcada por mediações de tipo conciliatório são opostas pelo Jovem Marx à exigência da confrontação dos esquemas teóricos com a realidade – preocupação que deriva da influencia empirista de Feuerbach.

Igualmente, a alienação e a crítica à religião são, gradualmente, transferidas do plano das ideias e da cultura para somar-se à atividade humana, à propriedade privada e ao trabalho estranhado. (E posteriormente, às relações de produção...).

Em outras palavras, Marx partindo da crítica da religião feita por Feuerbach, passa a discutir criticamente a sociedade civil (“Questão Judaica”, “Manuscritos de K.”), a propriedade, o trabalho e a atividade econômica (“Crítica da Filosofia de Direito de Hegel” e “Manuscritos Econômico-Filosóficos”,).

A dissolução do hegelianismo, sob outra perspectiva, sinaliza um momento histórico: momento em que as ideias de Hegel (correspondentes às ideias liberais burguesas do séc. XIX) abandonam seu caráter revolucionário para assumir um caráter conservador. Ou seja, a oposição já existente entre teses de Hegel e seus jovens críticos expressam num nível filosófico embates que colocariam em campos opostos o pensamento liberal e o pensamento socialista (marxista) num momento posterior. Daí a atualidade da afirmação do revolucionário russo V. Lênin: “é impossível entender Marx sem entender Hegel”.

Implicações do Jovem Marx na maturidade

Cumpre ressaltar que no período estudado, Marx ainda não havia lançado sua grande obra de maturidade, o Capital (1867). Mesmo o famoso Manifesto do Partido Comunista só foi escrito em 1848, não sendo analisado no ensaio. O autor concentra-se nos estudos de obras em que Marx, ainda ligado à tradição dos jovens hegelianos, trata de assuntos gerais e pontuais de filosofia e política (em geral artigos de jornais e polêmicas), eventualmente sem o uso de termos posteriormente utilizados, como “ideologia” e “práxis”.

Não é possível entender Marx sem levar em consideração as principais influências teóricas que marcaram sua juventude: e é no Jovem Marx que vemos a forma como, intervindo ativamente em discussões por meio de artigos de jornais e publicações, Marx vai gradualmente invertendo a dialética hegeliana, recolocar as tensões e os conflitos sistêmicos dentro de um projeto de transformação societário possível e concreto. A atenção ao que vai além dos enunciados lógico-formais em Marx expressaria em alguma medida inquietações decorrentes da aproximação do autor com o movimento operário em França, além das revoluções por que passa a Europa e a própria emergência do movimento operário. Igualmente, a análise da Economia Política, a centralidade das relações de produção e a descoberta da Mais Valia também são resultado das leituras e da experiência de vida de Marx.

Citação Final

Nesta resenha, buscamos destacar a forma como o pensamento de Marx não pode ser entendido como um todo homogêneo, mas como um processo que expressa, por um lado, as discussões filosóficas e embates do qual o Jovem Marx toma parte, e por outro lado, as próprias circunstâncias históricas e da vida de Marx. Destacamos também que a evolução do pensamento de Marx tem como ponto de partida o grupo dos jovens hegelianos de esquerda, particularmente preocupados com os problemas da ligação entre os enunciados teóricos de Hegel e a situação experimentada pelos homens em sua interação com os outros e com a natureza. Para fazer avançar o movimento socialista no âmbito da batalha das ideias, os textos de Marx na juventude contribuem para melhor entender o marxismo como um todo sem dogmatismo, ou seja, considerando o pensamento de Marx como um processo vivo e dinâmico, que deve igualmente ser analisado historica e criticamente.



"De 1843 a 1844, o fio vermelho da teoria revolucionária de Marx deslocou-se de uma posição basicamente feuerbachiana para um novo patamar, no qual as influências conflitantes de Feuerbach e Hegel coexistem ao lado da nova problemática aberta pelo contato com a Economia Política – a chave da anatomia da sociedade civil, apenas entrevista pelo jovem crítico. Em meio às rápidas mudanças em tão curto espaço de tempo, a teoria crítica do Marx jovem-hegeliano transformou-se numa ontologia materialista incipiente que orientou os posteriores estudos de Economia Política. O materialismo de Feuerbach e a dialética de Hegel passam por uma simbiose crítica, por um processo de síntese original, para servir de fundamento orientador às pesquisas marxianas".

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

"Em torno de Marx" - Leandro Konder

Resenha livro #37 “Em torno de Marx” – Leandro Konder. Ed. Boitempo.




Leandro Konder nasceu em 1935, formou-se em Direito em 1958 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi advogado trabalhista. Com o golpe militar de 1964, foi preso, torturado e exilou-se em 1972, na Alemanha e depois na França. É professor da PUC-RJ e um dos principais intelectuais marxistas do país: junto a Carlos Nelson Coutinho, contribuiu para divulgar as ideias do filósofo húngaro Gyorge Lukács no Brasil.

Tem particular importância seus estudos sobre a recepção das ideias marxistas no Brasil: a obra “A Derrota da Dialética” expõe as dificuldades que houveram na interpretação e generalização dos textos de Marx no Brasil, seja a partir de dificuldades técnicas de tradução, seja pelo pouco acesso a textos (alguns inéditos no Brasil) e seja pela forte presença do pensamento positivista, influência pela qual o marxismo Brasileiro não é imune (Konder chama atenção para o fato de as ideias marxistas terem encontrado melhor terreno na Argentina, já na passagem do séc. XIX para o XX, por meio de Juan Bautista Justo (1865-1965), tradutor pioneiro do primeiro volume do Capital para o Espanhol).

“Em torno de Marx” trata de algumas premissas básicas do marxismo (sua relação com moral, com a religião, a questão da dialética, etc.) para, depois, discutir como as ideias do filósofo alemão tomaram corpo ao longo do séc. XX. A partir da parte II, há uma coletânea de ensaios sobre alguns autores importantes ligados ao marxismo ocidental, como Theodor Adorno e Walter Benjamin. Os autores são apresentados em capítulos curtos e sintéticos, oferecendo ao leitor uma visão panorâmica das principais ideias e obras aqueles que estão “em torno de Marx”.

A escolha por relatar e discutir os legados de Lukács, Gramsci, Sartre, além dos autores da chamada escola de Frankfurt sinaliza uma certa perspectiva sobre o marxismo, presente em todas as demais obras de Leandro Konder.

O marxismo em Konder reivindica a dialética e procura se afastar da chamada “linha-justa”, de orientações metodológicos mecanicistas e ortodoxas. Mesmo o texto do ensaísta carioca flui de forma diferente de manuais ou abordagens dogmáticas e formalistas do marxismo. Os autores analisados possuem particularidades próprias e cada um é apresentado de forma analítica e histórica, buscando relacionar como suas vidas dialogam com suas ideias políticas, como a teoria e a prática política de cada autor se manifestam em torno de uma práxis particular: Lukács, por exemplo, foi um homem de partido, o que, somado aos seus densos estudos teóricos, criou dificuldades pessoais, exercícios reiterados de “auto-críticas”, além de variações em sua linha de pensamento. Já Adorno foi diretor do Instituto de Pesquisa Social ligado à Universidade de Frankfurt: quando o mesmo instituto foi ocupado por estudantes em meio às turbulências do maio de 1968, Adorno solicitou a presença policial para a retirada dos estudantes e foi duramente criticado por Marcuse.

Igualmente, as práticas políticas (analisadas a partir de dados biográficos, correspondências, relatos, etc.) e as ideias teóricas formam um todo a partir do qual é possível lançar luz sobre os demais autores ligados à tradição marxista, levando em consideração as potencialidades das obras, mas igualmente aspectos contraditórios e zonas indefinidas de cada contribuição: uma perspectiva crítica que não faze das ideias dogmas.

“Em torno de Marx”, oferece ainda um capítulo sobre o Marxismo no Brasil e um estudo bastante interessante tratando como a direita, já em fins do séc. XIX, toma partido e denuncia as ideias marxistas: muito provavelmente sem a leitura dos originais, conforme se observa por artigos e livros de padres e bacharéis da elite acerca do “marxismo”, “comunismo” e “bolchevismo russo”. A contribuição de Konder, neste ensaio, é a de oferecer, sempre de forma acessível, elementos gerais para a compreensão de Marx e a forma como o marxismo influenciou e influencia a história das ideias.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

"Lênin e a Revolução Russa" - Christopher Hill

Resenha Livro #36 “Lênin e a Revolução Russa” – Christopher Hill – Ed. Zahar




Como se sabe, Lênin foi um dos dirigentes da Revolução Russa, membro da direção do Partido Operário Social Democrata Russo (fundado em 1898) e, após a cisão ocorrida no seu segundo congresso em 1903, articulador/criador do Partido Bolchevique (Partido da “maioria”).

Os Bolcheviques defendiam, por meio da publicação Iskra (“faísca” em russo), a via revolucionária e a ditadura do proletariado com participação camponesa, enquanto os Mencheviques (“minoria” em russo) atuavam pela aliança com setores da burguesia e pelo desenvolvimento do capitalismo em Rússia, etapa necessária para o desencadear da revolução.

Na verdade, a Rússia, desde o final do séc. XIX, já fora palco de conflitos sociais e políticos de toda a sorte: já antes do século XX há ações de grupos terroristas como Rabocheye Dielo ou a agitação política feita pelo grupo revolucionário e camponês dos narodniks. Grupos políticos tensionavam as relações sociais e produtivas do campo. Nas cidades, a industrialização incipiente e em condições desfavoráveis ao trabalhador ampliavam o descontentamento social e favoreciam a disseminação do marxismo. O pensamento e a cultura da Rússia de fins do séc. XIX envolve desde setores apoiados nas relações feudais do campo, nas ideias da igreja católica ortodoxa e na defesa do czarismo e da tradição russa, até liberais e socialistas moderados e grupos revolucionário.

O irmão mais velho de Lênin participou do grupo Pervomartovtsi, tendo participado de tentativa assassinar o Czar. Foi condenado à morte em 1887, fato que impressionara e faria parte do pensamento político de Lênin. Referencias a romances de Tolstoi (feitas por Christopher Hill) e mesmo outros escritores como Dostoievsky e Tchekhov sinalizam o universo cultural da Rússia, a mística camponesa que envolve a cultura russa (camponeses que teriam participação decisiva na revolução) e as influencias de ideias liberais, socialistas revolucionárias e populistas. É sobre estas condições gerais que se desenvolve o pensamento político de Lênin.

Indivíduos e a História

O objetivo do ensaio de Christopher Hill (publicado em 1947 na Inglaterra e em meados dos anos 1960 no Brasil) não é o de fazer uma biografia de Lênin, nem o de relatar como se deu a Revolução Russa em suas diversas fases, desde os conflitos de 1905, passando por fevereiro e outubro de 1917. O livro de Hill pretende analisar e descrever a forma como as ideias de Lênin evoluem conforme os acontecimentos na Rússia e, por outro lado, a forma como os acontecimentos na Rússia (dentre diversas determinações causais) são influenciados pelas ideias políticas do líder revolucionário. Da relação dialética entre o indivíduo e a história, o autor enseja algumas discussões importantes, particularmente o papel do indivíduo na história, a relação entre direção política e revoluções, além da própria forma como o pensamento político de Lênin não pode ser entendido como um conjunto monolítico e linear de ideias, mas como uma evolução que mantém relações diretas com acontecimentos dos quais não é um expectador, mas alguém que atua, intervem, etc.

Não temos muitas informações sobre autor do livro. Numa rápida busca pela internet, há menção no Wikipédia de que o autor é um historiador britânico marxista cujas posições estão ligadas a outros autores como Eric Hobsbawm (cujo provável livro mais conhecido no país é “A Era dos Extremos”) e Thompson (responsável pelo importante estudo “A Formação da Classe Operária Inglesa”).

Crise Política e a Revolução.

Como se sabe, a Rússia, antes da Revolução, era um país predominantemente agrário, em incipiente processo de industrialização. No país estava vigente o regime feudal e no âmbito político o czarismo apresenta, desde fins do séc. XIX, sinais de degeneração.

Christopher Hill chama atenção para a figura sinistra e bizarra de Rasputim (uma espécie de guru intelectual da czarina Alexandra) como forma de ilustrar as origens de um descontentamento massivo que iria impulsionar a revolução: “Rasputin era notoriamente depravado, visivelmente corrupto, e ao menos provavelmente manobrado pelos agentes alemães. Não obstante, através da czarina, achava meios para fazer seus amigos bispos e arcebispos, e até para canonizar um santo inteiramente novo; por fim, era praticamente quem ditava a formação dos quadros do governo, influindo assim diretamente nos rumos da política e da guerra”.

Destaca-se, portanto, o ambiente de descontentamento político generalizado, ampliado pelo fiasco da guerra entre a Rússia e Japão (1904-1905), durante a qual uma rebelião de marinheiros do couraçado Potemkin já sinalizaria uma situação de revolta.

As enormes baixas da Rússia ao longo da I Guerra Mundial e o despertar da revolução durante o conflito revelam a força das ideias revolucionárias sobrepostas ao chauvinismo da guerra. São válidas as menções feitas por Hill às condições subjetivas e objetivas pelas quais a Rússia passou naqueles anos, de forma a melhor compreender como um país atrasado economicamente foi palco da primeira revolução socialista da história, levando-se em consideração particularmente as dimensões territoriais e as condições adversas daquela luta: cerco do imperialismo, guerra em nível mundial e guerra civil articulada por agentes estrangeiros e a elite econômica local.

Lênin afirmava que, frente às contradições explosivas colocadas na Rússia antes de 1917, seria, naquele país, mais fácil do que na Europa ocidental iniciar a revolução. Entretanto, as mesmas contradições e o atraso econômico do país corroborariam para tornar mais difícil a construção do socialismo na Rússia de forma isolada. Havia, então, a expectativa de que a revolução se generalizasse pela Europa e tomasse um sentido mundial.

Revoluções

O ensaio de Christopher Hill supera obras de biografia que eventualmente lançam excessiva importância aos indivíduos em detrimento do movimento de massas, da situação econômica, social e política de cada conjuntura, etc. Um indivíduo projeta-se na história também por sua liderança dentro de uma luta concreta, mas sua intervenção individual não substitui as reais condições subjetivas/organizativas e objetivas de cada realidade.

Seja como for, a leitura do ensaio ainda nos é útil para compreender o que são conjunturas revolucionárias: num momento de crise estrutural do capitalismo, a saída revolucionária, mesmo reiteradamente deslegitimada pela ideologia dominante, é não só atual mas necessária.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

"Che Guevara - Política" - Ed. Expressão Popular

Resenha Livro #35 “Che Guevara – Política” – Eder Sader (org.)



Ernesto Che Guevara foi e é um dos mais conhecidos dirigente da revolução cubana junto a Fidel Castro e Camilo Centrifuegos.


A imagem de Che foi assimilada por um amplo número de pessoas por meio da disseminação de um certo senso comum que combina o engajamento político revolucionário com uma espécie de “romantismo de juventude”. Estas mediações correspondem não só a relatos e a história das lutas populares do séc. XX narradas em forma de livros e filmes, mas, principalmente, pela Indústria Cultural e publicidade comercial.



A imagem de Che, sua boina, as longas barbas e olhar expressando alguma severidade referenciada pelo comprometimento político “hasta la muerte” pela revolução, nem sempre evidenciam e favorecem o entendimento do sentido e das implicações históricas do movimento rebelde de 26 de Julho, da revolução cubana em seus diversos momentos e da construção do socialismo dentro de condições adversas – isolamento comercial em decorrência do embargo norte-americano e mesmo a própria violência bélica do imperialismo sob o a América Latina durante o séc. XX. Na verdade, os estereótipos afastam-nos de um maior entendimento dos personagens históricos, particularmente quando as caricaturas servem antes para vender camisetas do que para saudar e reivindicar as ideias do dirigente de uma das maiores revoluções populares do século passado. (Maiores em termos tanto de participação popular e camponesa, sem a qual a revolução não sairia vitoriosa, quanto no sentido do seu significado político naquela conjuntura).


O desafio aqui é o de trazer a tona em primeiro lugar o significado político da imagem de “Che” como um “idealista” ou “romântico”: tratar-se-ia de um "romântico" por ser também um inconseqüente ou sem os devidos "pés no chão". Ainda conforme a caricatura, a inspiração de Che apenas serviria de inspiração desde que a ação política seja circunscrita a um quadro domesticado – a “rebeldia” daquele estereótipo teria levado o “romântico revolucionário” à morte, o que, ainda segundo a construção ideológica, sinalizaria a inviabilidade do projeto revolucionário nos dias de hoje.

Poderíamos, finalmente, fazer menção à própria significação dada pela direita à Che Guevara, como um assassino cruel e bárbaro, igualmente sinalizando a forma como a interpretação acerca do passado revela expectativas de futuro.


Seja como for, a assimilação da imagem de Che Guevara por meio da publicidade comercial, por si só, contradita a percepção anti-capitalista que perpassa os textos e a prática política de Che, particularmente atento à construção de novos valores e de um novo homem sob o socialismo. O que gostaríamos de pontuar para introduzir e convidar o leitor a conhecer os textos originais de Che Guevara é que as diversas mediações a partir das quais a imagem de Che e a história da Revolução Cubana foram difundidas (seja para fins comerciais, seja como forma mais ou menos consciente de isolar o conteúdo revolucionário daquele movimento e sua projeção atual) podem ter esvaziado politicamente algumas premissas do pensamento e da prática daqueles que lideraram a Revolução Cubana de 1959.


E é a partir de uma leitura atenta dos escritos originais de Che Guevara que o livro (editado pela Expressão Popular) pode contribuir para uma melhor definição do sentido histórico daquele movimento e da própria participação de Che na Revolução Cubana, fugindo-se dos esteriótipos ou das mediações que buscam isolar a atualidade do projeto revolucionário dentro da perspectiva da construção do socialismo. E, ao mesmo tempo, interpretando aspectos do socialismo em Che que, na nossa opinião, não se mostraram eficazes historicamente, particularmente a tese do "socialismo em um único país".

Leitura dos textos originais de 'Che'

A seleção dos textos coube ao importante ativista político brasileiro Eder Sader – líder estudantil, militante da Liga Socialista Independente (de orientação luxemburguista) e da Polop. A seleção dos textos buscou contemplar em certa medida a própria evolução/amadurecimento político de Che. O livro começa a partir dos relatos da experiência das guerrilhas, o papel do campesinato e a teoria da revolução baseada em focos (o “foquismo”, como estratégia política que, como se sabe, foi igualmente praticada por organizações guerrilheiras da América Latina).

Há, posteriormente, alguns textos interessantes sobre o problema da indústria, da economia e do trabalho na Cuba pós-revolução. Após a tomada do poder político pelo movimento revolucionário e sua posterior adesão ao campo socialista, são relatados, por meio de polêmicas em torno de questões práticas, as enormes tarefas colocadas àquele grupo de dirigentes políticos: a transformação das bases de produção e do sentido do trabalho em Cuba e a construção de um novo homem.

Muitas das respostas dadas pelo movimento, soube-se depois, não lograram obter os resultados esperados. Apenas a vontade individual ou de um punhado de militantes não logra substituir um movimento real de massas ancorados numa transformação em nível mundial da economia, da política e da sociedade. Entretanto, a leitura dos textos de Che ainda nos interessa e muito, seja para assimilar melhor os erros (para não repeti-los), seja para assimilar a mística revolucionária daquela figura pessoal cativante, sem se deixar levar pelo senso comum e pelos mitos criados pela Indústria Cultural.

sábado, 22 de outubro de 2011

"Introdução ao Fascismo" - Leandro Konder

Resenha Livro #34 “Introdução ao Fascismo” – Leandro Konder






“Introdução ao Fascismo” oferece uma interpretação marxista do fenômeno histórico do fascismo: há a proposta de se dar uma definição àquele movimento político e situá-lo dentro de um contexto histórico particular. A tarefa de se delimitar a significação do conceito de fascismo não se limita simplesmente a entender sob quais condições tal tendência política constituiu-se em cada país durante o século XX, mas entender mesmo como, nas condições de implementação do capitalismo monopolista de Estado, alguns elementos mais ou menos comuns ocorreram e ocorrem na história. Ampliar e melhor dominar o conceito de fascismo significa entendê-lo como uma tendência política particular do capitalismo e, portanto, viva, mesmo sob formas ocultas. Por outro lado, a generalização do termo fascista para cada ação autoritária e violenta de governos, polícia ou organizações políticas pode afastar os socialistas de uma análise correta acerca de cada fenômeno concreto, perdendo de vista alguns traços essenciais que diferenciam a mera violência estatal (comum e natural sob a lógica do capitalismo) de um movimento fascista.

Alguns traços essenciais determinaram a ascensão do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. No plano teórico, o fascismo “aproveita elementos das mais variadas linhas de pensamento reacionárias, reunindo-os de maneira eclética e em função de um uso muito claramente pragmático” (Lucácks). O fascismo, ainda, possui um claro caráter de Classe, estando intrinsecamente relacionado com a fase monopolista e imperialista do capitalismo. É politicamente conservador mesmo que eventualmente possa surgir sob uma roupagem “moderna”, como fora o caso do jovem e carismático duce. É um movimento chauvinista e que se serve da mistificação de um passado perdido a ser reconquistado (mitos), além do forte personalismo político, ambos, por suposto, relacionados a um projeto de poder fortemente autoritário, antiliberal e antisocialista.

No plano econômico, pressupõe a fase monopolística do capital a partir de um “certo nível de fusão do capital bancário com o capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro” (Pg. 53).

No que se refere às classes sociais, o fascismo pressupõe a existência do que Konder afirma ser uma “sociedade de massas de consumo dirigido”. O fascismo serviu-se dos métodos então modernos de propaganda, incorporando as técnicas de estímulo ao consumo para a ação política. Assim, “no lugar da imagem dos políticos conservadores tradicionais, com seus fraques e cartolas, muitas vezes apoiados em bengalas seus vultos pálidos e senis, difundiu-se pela Itália inteira a imagem de um Duce cheio de vitalidade, viajando frequentemente de avião e ditando por telefone os artigos diários destinados aos leitores do seu jornal” (Pg. 47).

A interlocução dos líderes políticos com as massas por meio do rádio e da propaganda imagética (ambas facilmente manipuláveis) reforçou o caráter “modernizador” ou mesmo “revolucionário” do fascismo, disfarçando seu conteúdo político conservador e seu caráter social anti-popular.

Classes Sociais e aspectos econômicos

O apelo de massas das novas técnicas de propaganda criadas pela “sociedade de massas de consumo dirigido” sinaliza o conteúdo policlassista do movimento fascista. O apelo à unidade nacional, a criação de “inimigos comuns” e o mito da nação foi endossado a partir de um determinado contexto de desgaste de princípios do liberalismo, da democracia e do socialismo. Havia aquilo que Konder chama de uma “preparação cultural” para o fascismo, que envolve a difusão de preconceitos aristocráticos que influenciam inclusive as forças progressistas (abandonando o trabalho político com as massas e aumentando a confusão política destas).

Além disso, o próprio capitalismo, como sistema econômico que engendra e difunde cultura, teria papel na disseminação do chauvinismo.

“O capitalismo, como sistema, jogara os homens uns contra os outros, numa competição desenfreada onde só uma coisa podia contar: o lucro privado. Desenvolveram-se enormes metrópoles capitalistas, povoadas por multidões de indivíduos solitários, amendrotados, cheios de desconfiança. As condições técnicas da produção industrial aproximavam os seres humanos, socializavam a vida deles, mas as condições privadas, exacerbadamente competitivas, criadas pelo capitalismo para a apropriação da riqueza produzida afastavam-nos uns dos outros” (pg. 44).

Se o terreno cultural – profundamente anti-socialista e com aspectos aristocráticos e individualistas – encontra eco na difusão do fascismo, este, mais uma vez, expressa tendências inerentes ao capitalismo, seja em função das próprias condições técnicas da publicidade assimilada pela política, seja pela criação da “sociedade de massas de consumo dirigido”, seja pela própria condição do homem comum (afastado de práticas solidárias e alienado do trabalho) sob o capitalismo.

Um último e pequeno ponto, eventualmente inconcluso numa obra de Introdução, seria o de uma maior averiguação da participação do proletariado (e as razões para tal) dentro do movimento fascista. Segundo Leandro Konder, a classe operária teria sido menos envolvida pelo fascismo do que a pequeno burguesia, mesmo reconhecendo que parcelas do proletariado em Itália e Alemanha tivessem aderido ao fascismo.

Mauro Iasi, no prefácio do livro, alerta para a lacuna, o que implica, aqui, pensar a respeito dos papeis das classes sociais em momentos de radicalização política: a classe operária alemã e italiana desempenharam qual papel durante os regimes de Hitler e Mussolini? Se o fascismo (como afirma Adorno) é o resultado de uma revolução derrotada, como avalizar o papel das forças socialistas revolucionárias, da social-democracia da II Internacional e da URSS para a ascensão do fascismo?

Quais lições a classe operária pode tirar no sentido de romper o cerco de uma ofensiva cultural fascista promovida pela sociedade do consumo e pelo capitalismo monopolista de Estado?

Para fazer avançar melhor entendimento do fascismo e armar teoricamente aqueles que lutam pela liberdade e emancipação humanas, o desafio colocado por Konder vai além da mera determinação formal do fascismo. Ao discutir, assim, a forma como o fascismo foi interpretado ao longo da história, as relações entre o fenômeno político e sua projeção econômica e as ligações entre o fascismo e a desmobilização do movimento de massas (por meio da força e de derrotas históricas da classe trabalhadora) o leitor de “Introdução ao Fascismo” deverá ter melhores condições para analisar criticamente movimentos que tangenciam ou que se revestem de caráter fascista na atualidade.

“As condições atuais da luta não animam o capital financeiro a correr o risco de apoiar partidos de massa, capazes de empunhar bandeiras com cruzes suásticas nas ruas: é prefirível tentar manipular a maioria silenciosa que fia discretamente em casa, entregue ao consumo da Coca-cola e da televisão. Novos padrões de conduta política passar a ser inculcados sob a capa de atitudes não políticas.
As circunstâncias exigem dos fascistas que eles sejam mais prudentes e mais discretos do que desejariam. Pragmaticamente, adaptam-se às exigências dos novos tempos. Mas continuam a trabalhar, infatigavelmente, preparando-se para tempos “melhores”, que lhes permitam maior desenvoltura” (P. 178).

domingo, 2 de outubro de 2011

"O Idiota" - Fiódor Dostoiévski

Resenha Livro #33 “O Idiota” – Editora 34 – Tradução Paulo Bezerra



“O Idiota” (1868) foi escrito sob determinadas circunstâncias da vida de Dostoiévski, de maneira que a história narrada e, particularmente, a forma como é contada, ecoa a vida pessoal do escritor. Fugindo de credores, em meio a dívidas e crises de convulsão, o volume (682 páginas) parece ter sido escrito com compulsão, acessos de ímpetos e refluxos por parte das personagens, além de um nível de tensão dramática alto e permanente – situações limites desatam as personagens ora a rir e gargalhar, ora a chorar, ora a discutir e humilhar, ora a confraternizar, num pequeno espaço de tempo.

Para quem não está habituado ao texto do escritor, pode haver estranhamentos. Parágrafos com a extensão de páginas, repetições de palavras e reiterações de expressões do tipo “não obstante”, “ainda que”, “quero dizer...”, “por outro lado”, “por exemplo” “etc.”, expressam, aqui, a forma como a palavra sai de forma fugidia (e, nesse sentido, polissêmica) da boca dos personagens.

A despeito de alguns que julgam Dostoiévski um mal escritor, destacamos justamente o texto truncado, as palavras fugidias e polissêmicas das personagens, as longas orações e a falta de objetividade como aspectos que antes tornam “O Idiota” uma obra de arte de valor incomum do que manifestação de prolixidade. Ao longo da leitura, percebe-se certo domínio do narrador/escritor acerca dos fatos e, particularmente, das reações emotivas particulares de cada personagem. O “fugidio” e a “falta de objetividade” parecem antes ser manifestação de certo realismo do autor: o mesmo, de acordo com algumas notas de rodapé do livro, entendia ser o realismo antes produto de situações fantásticas do que de momentos ordinários, relatos objetivos de fatos cotidianos.

Na verdade, a intensidade dramática do texto, combinada com uma linguagem truncada que contempla fluxos de pensamentos e sentimentos irracionais, sugere-nos, antes, um completo domínio do autor sobre sua obra: o “realismo” em Dostoiévsky dá-se antes pela sua capacidade de descrever sentimentos contraditórios e ambíguos (igualmente expressos em palavras e ações “fantásticas”) tal qual eles (sentimentos) surgem-nos, muitas vezes: de forma indefinida, confusa e irracional.

O “realismo” aqui se deve, em sentido análogo, à provável percepção do autor de que a realidade fática antes se assemelha ao “fantástico” do que o que se pode entender como rotina. Mesmo diante daquelas circunstâncias em que o livro fora escrito (em meio a crises de saúde e cobranças financeiras), “O Idiota”, pareceu-nos, tratar-se de um relato fiel (e “realista”) da sociedade burguesa e aristocrática da Rússia do sec. XIX. As situações de elevada carga emocional, em Dostoiévski, parecer servir para criar condições para o leitor perceber e conhecer melhor o mundo descrito. A mesma intensidade dramática resulta tanto em uma forma textual diferente da habitual, quanto, mais importante, numa profunda viagem no coração e mente das personagens que vivenciam aquele momento histórico a partir das respectivas classes sociais (burgueses, pequenos burgueses e aristocratas).

O enigmático Príncipe Míchkin e questões políticas

Ora entendido como um louco, ora como uma criança, ora como um gênio, o protagonista de “O idiota” representa um contraponto às expectativas e aspirações comuns da sociedade russa do séc. XIX. Por meio do Príncipe (que faz lembrar Dom Quixote e Jesus Cristo), Dostoiévsky faz mostrar como na alta e média sociedade russa do séc. XIX um personagem com boas intenções pessoais é, antes de mais nada, um incompreendido.

Há um certo pessimismo aqui, havendo a ideia de que as ações boas e altruístas não encontram espaços em meios onde vigoram os valores burgueses e urbanos importados da Europa, co-existindo, não obstante, com o tradicionalismo Russo. A divisão de opinião acerca da modernização política e cultural da Rússia, pela via “ocidental” (“ocidentalistas”) ou por uma via tipicamente russa (“eslavófilos”) era objeto de debate, então. Não temos elementos suficientes para afirmar com segurança a qual grupo Dostoipevsky se filiava. Segundo informações bibliográficas – contidas na edição da “34” – o escritor era sim um crítico da linha ocidentalista, sem com isso ser um adepto sectário e sem críticas da linha eslavófila.

Seja como for, em “O idiota”, o Príncipe vê-se diante de uma sociedade em transformação, que importa valores e ideias liberais (havendo controvertidos diálogos acerca da “questão feminina”) e, não obstante, conserva entre alguns personagens valores e práticas antigas, como sinaliza as lembranças do general Ívolguin e algumas falas da velha Lisavieta Prokófievna. Excluído daquela sociedade por meios certamente injustos aos olhos do leitor, o Príncipe pode, hoje, retratar de maneira alegórica os limites dos discursos da ética, da justiça e do bem fazer em meio a um mundo movido pela busca incessante do lucro pessoal. O pessimismo dostoiésvkiano dá pistas da política de “O Idiota”.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

"O Mulato" - Aluísio Azevedo

Resenha livro # 32 - "O Mulato" - Aluísio Azevedo - Ed. Martin Claret





"O Mulato" (1881) foi escrito quando Aluízio Azevedo tinha 20 anos de idade. Segundo o prefácio do próprio autor, o livro foi feito e sentido a partir da perspectiva de um jovem escritor. Poderia haver aqui indicação de que a obra corresponderia à certa fase em que um dos inauguradores do naturalismo na literatura ainda não tivesse atingido total maturidade. Entretanto, surpreende, sim, a maturidade política e artística do texto - perceptível a partir das críticas às instituições tradicionais da sociedade patriarcal do Maranhão e de certa sensibilidade capaz de captar sensações bastante íntimas das personagens.

Há, igualmente, certa auto-referência no texto, como se a história do "Mulato" contemplasse as expectativas do jovem Aluísio Azevedo, particularmente quanto às críticas do provincianismo maranhense. Assim como o protagonista Raimundo planeja o quanto antes sair do Maranhão para a corte, Aluísio, ele próprio, sairia do norte para residir no Rio de Janeiro, onde viria a se tornar escritor reconhecido. (Cumpre ressaltar que o lançamento de "O Mulato" foi hostilizado no Maranhão e bem recebido no Rio de Janeiro, conforme constata-se na biografia do autor no wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alu%C3%ADsio_Azevedo)

Enredo

A história descreve a trajetória de Raimundo, filho de um português e uma escrava, enviado muito jovem para estudar na Europa, sem ter conhecimento de sua origem familiar. Ao retornar à província, busca re-construir o seu passado, desde que os seus tutores portugueses nunca revelaram quem foram os seus pais e em que contexto o mulato nasceu.

Raimundo retorna à província para reaver algumas terras herdadas do pai falecido. Instala-se na casa do tio, o potuguês Manuel. Apaixona-se e é correspondido pela prima Ana Rosa, anteriormente prometida a um caixeiro do pai. O relacionamento de ambos é inviável à família de Ana Rosa e à toda sociedade do Maranhão, que ver-se-ia "escandalizada" com um casamento de uma branca com um "mulato que foi forro à pia", referência aos filhos de escravos que tornaram-se livres com a Lei do Ventre Livre.

No que se refere ao relacionamento amoroso dos primos, há aqui todos os ingredientes para o que poderia ser mais uma história típica do romantismo brasileiro em suas primeiras manifestações. Assim como nas histórias de José de Alencar, há certa expectativa de que "o amor vença as barreiras impeditivas da sociedade", consagrando-se o relacionamento do casal, que viveria um final. Felizmente, o romance, comprometido com uma descrição naturalística tento do ambiente quanto das relações humanas, acaba tendo um final nada previsível e que escapa bastante à tradição literária romântica.

Crítica Social

Seja como for, a presença do mulato naquele ambiente social e, particularmente, o relacionamento de Raimundo com Ana Rosa cria condições para o autor fazer críticas sociais. Há a crítica da escravidão como um todo, relatando-se o tratamento bárbaro dado aos escravos. A denúncia do racismo vai mesmo além da escravidão, refletindo-se nas falas das personagens acerca do Mulato, criando os melhores momentos para o leitor perceber como foi se consolidando ideias racistas na sociedade patriarcal brasileira e mesmo localizando certas falas que explicam um pouco a conformação histórica do racismo no âmbito do capitalismo brasileiro. As críticas de Aluísio Azevedo, pela boca do mulato "Raimundo", também incidem sobre a religião e toda forma de mistificação. Conforme as ideias europeias importadas por setores da classe dominante brasileira do final do Séc. XIX, o romance naturalista explicita a defesa do cientificismo e do método positivista como formas de apreensão do real, em oposição à filosofia religiosa.

Religião x Ilustração

A oposição entre modernidade/racionalidade/ ilustração e religiosidade/ tradicionalismo/ mistificação ganha esteira na própria oposição entre espaços geográficos e gerações. O atraso da província do Maranhão, suas superstições, as carolagens ridículas das beatas e as mentiras do padre Diogo encontram lugar na Província onde se passa a história e é reproduzida, particularmente, pelos mais velhos. No aspecto geracional, há muitas menções, particularmente da velha Amância, acerca da liberalização dos costumes sociais, sempre se criticando, por exemplo, o fato de mulheres criarem o hábito da leitura ou de tocar piano, associando o papel da mulher sempre à resignação completa perante o pai, marido e a religião. O Jovem Aluísio de Azevedo, por meio do jovem estudante Raimundo, representa um outro pólo, correspondendo à ilustração racionalista européia, o ceticismo com relação à religião e políticas associadas às teses republicanas do final do séc. XIX. No que se refere ao papel da mulher, não há um rompimento essencial com a tese da subordinação, mas, por meio de algumas falas de Raimundo, identificamos, ao menos, certo reconhecimento de maior autonomia para "uma mulher crescida decidir com quem deve se casar". O fim da trama sinaliza de forma bastante pessimista a quais termos chegam os conflitos decorrentes das oposições geracionais e geográficas.

A leitura de "O Mulato" torna-se peça fundamental para historiadores que eventualmente pesquisem temas relacionados ao racismo no Brasil, ao papel da mulher nas sociedades patriarcais e escravagistas e os conflitos geracionais decorrentes de uma sociedade em rápida transformação, tal qual o Brasil do séc XIX, experimentando o início do regime republicano, a abolição jurídica da escravidão e a disseminação da ideologia positivista.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

"A Rebelião dos Marinheiros" - Avelino Bioen Capitani

Resenha livro #31 “A Rebelião dos Marinheiros” – Avelino Bioen Capitani. Ed. Expressão Popular




"A Rebelião dos Marinheiros" é, na verdade, uma auto-biografia de Avelino Bioen Capitani

Numa rápida busca pela internet encontramos poucas referencias do nome do marinheiro e ativista político. Encontramos e indicamos um artigo escrito pelo historiador Márcio Marquetto Cay (marido de uma prima de Capitani) com dados biográficos, uma fotografia de Capitani e alguns dos personagens descritos em "A Rebelião dos Marinheiros". (Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/resistencias-a-ditadura)

Surpreende negativamente a falta de informação sobre a história de Avelino Capitani. Igualmente, não nos consta haverem muitos relatos da história da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB), importante na história das lutas sociais do país desde a sua fundação, ao resgatar a combatividade legada pela revolta dos marinheiros liderada por João Cândido, pela politização pela esquerda de setores importantes e de base das forças armadas e pela organização de ativistas que combateriam as forças armadas durante a ditadura.

Associação de Marinheiros

A história da associação de marinheiros e de sua Rebelião tem importância decisiva para se compreender como a polarização política do pré-1964 atravessava as forças armadas. O relato de Capitani sobre a história da associação e sua orientação política antes, durante e após o golpe revela como havia setores importantes da marinha (e mesmo do exército) preparadas e com real capacidade de reação ao golpe, disposição e combatividade para lutar por reformas internas das forças armadas no sentido de ampliação de direitos aos oficiais de baixa batente e, após o golpe, resistir à ditadura e lutar pela independência nacional.

A associação dos marinheiros foi a primeira tentativa de organização política pela base de membros do baixo escalão das forças armadas. Tinha um caráter sindical e lutava por direitos mínimos: reivindicava melhores salários à “marujada”, direito à folga e a não obrigatoriedade do uso de uniformes nas folgas. Foram, desde a fundação, reprimidos pela direção e atuavam em semi-clandestinidade. O fato dos associados serem trabalhadores e gente do povo (como o próprio Capitani, filho de camponeses) e a radicalização política da década de 1960 fizeram com que a associação se aproximasse do campo popular. Promove ações junto à UNE, busca apoio junto a sindicatos e movimentos sociais.

Capitani cita um evento ilustrativo e que serve para reflexão, particularmente frente à recente polêmica dentro da esquerda nacional sobre o caráter de classes dos bombeiros durante suas manifestações no RJ. A aproximação da Associação dos Marinheiros com o campo popular implicou em sabotagem de repressão de um acampamento das Ligas Camponesas em Goiás.

"O Local foi detectado pelos serviços de informação e o batalhão de fuzileiros, sediado em Brasília, recebeu ordens de reprimir. A subsede de Brasília informou a diretoria da associação e nós, imediatamente, repassamos o informe para Francisco Julião, líder nato das ligas, que resolveu pedir o nosso apoio. Tínhamos uma grande simpatia pelas Ligas e um bom relacionamento com Julião. Traçamos um plano imediatamente. Enquanto orientávamos a subsede para atrasar ao máximo a operação militar, Julião e seus companheiros deveriam sair do local.”

Igualmente, a forma de mobilização particular dos marinheiros e sua capacidade de combate teriam repercussões no momento pós golpe de 1964. Capitani participa da guerrilha de Caparaó, ajuda no treinamento militar e em ações de resistência à ditadura: fugas de presos políticos, tentativa frustrada de roubo a banco, recolhimento de armas para a guerrilha. Em diversas passagens sinaliza-se o fato de que os grupos guerrilheiros, mesmo contando com militantes treinados em Cuba, cometiam erros grosseiros, decorrentes da falta de conhecimentos técnicos acumulados pelos marinheiros. (Evidentemente, não se afirma aqui que as guerrilhas não lograram derrotar a ditadura por falta de capacidade militar e Capitani em diversas passagens identifica a desconexão entre a guerrilha e o movimento de massas como real origem da derrota. Aliás, já no exílio em Cuba, Capitani convence-se da não aplicação do foquismo à realidade brasileira).

De qualquer forma, o importante aqui é destacar alguns elementos da luta dos marinheiros de maneira a sinalizar possibilidade de ressuscitar movimento parecido no país. A possibilidade de se obter informação privilegiada e sabotar iniciativas de repressão aos movimentos sociais, o caráter popular das bandeiras levantadas pela associação dos marinheiros e o repertório de conhecimentos de práticas militares - indispensáveis para uma revolução que ponha em marcha as massas contra as forças de repressão da ordem - não podem ser desconsideradas em função de caprichos teóricos que, eventualmente, sejam resultados de mera tentativa de diferenciação de posição dentre forças políticas da “vanguarda”.

A Incrível história de Bioen Capitani

Ao final do livro, Capitani afirma ter a sensação de ter vivido 200 anos. A trajetória e toda a vida dedicada à militância política (cuja orientação, ao longo do tempo, aproxima-se das referencias da esquerda latino-americana, Che Guevara e Simon Bolívar) implicaram num livro bastante inspirador, particularmente àqueles que se identificam/atuam com/na luta popular.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

"Jerusalém" - Gonçalo M. Tavares

Resenha Livro #30 - "Jerusalém" Gonçalo M. Tavares - Ed. Companhia das Letras




Julgamos ser muito mais difícil resenhar uma obra de arte do que ensaios políticos, artigos acadêmicos, enfim textos e imagens com objetivos mais específicos e determinados. No caso de "Jerusalém" (2006), a dificuldade é ainda maior, desde que o texto do escritor português Gonçalo Tavares tem tantas possibilidades de implicações e desdobramentos (decorrentes de reações muito pessoais acerca do tipo de história narrada em "Jerusalém"), que ficamos em dúvida no como resenhar uma obra de arte.

É possível falar sobre o autor, o contexto histórico da obra, trazer dados mais ou menos objetivos sobre a relação entre o romance e a situação da literatura/arte contemporânea. É possível narrar em síntese as histórias dos personagens de "Jerusalém", o estilo literário, as opções da linguagem e da forma geral como a história é contada.

Optaremos, todavia, por um outro caminho. Vamos escrever a resenha sem se ater à história e aos personagens, mas tentando estabelecer relações entre o romance como um todo e o discurso político das emoções pessoais intensas. Tentaremos estabelecer vínculos entre obras aparentemente sem qualquer conteúdo político (o caso de "Jerusalém") e as implicações políticas da inviabilidade (presente na trajetória dos personagens da história) da possibilidade da solidariedade social e do amor altruísta, além da reiteração (por meio dos fins trágicos dos personagens em "Jerusalém") do egoísmo e da solidão.

Jerusalém

Os diversos personagens tem seus destinos determinados por uma certa indeterminação causal, de maneira a fazer com que cada história particular se encontre, uma à outra, confluindo todos os personagens a fins trágicos. O médico Theodor Busbeck, por exemplo, deseja pesquisar a história do horror, escreve um tratado sobre o assunto: sua intenção é projetar a sua existência para além da sua morte fazendo uma obra que ajude gerações futuras. Acaba tendo o filho (deficiente) morto, a mulher internada num hospício e, posteriormente, na cadeia. Sua obra de pesquisa a qual dedicou toda a vida é esquecida em pouco tempo: termina sua participação no enredo frente-a-frente com uma prostituta decadente que ofende sua dignidade oferecendo uma genitália castigada pelo uso/tempo. Os outros personagens, igualmente, têm fins semelhantes: um é preso, outros dois são mortos, um terceiro é completamente abandonado pelo mundo. O leitor, ao final de "Jerusalém", deve se sentir solitário e entendendo ser mundo hostil a convivência pacífica, mesmo aos bem intencionados. A sensação é a de que os encontros entre os personagens seguem um descompasso essencial, de maneira a fazer com que toda a barbárie e horror das vidas não se relacionassem em nada com o trabalho, com a história, com a economia, com a política. A barbárie decorre de uma condição humana pautada por conflitos intensos e imprevisíveis, decorrentes daquele descompasso permanente.

O descompasso pode ter a ver com dificuldades de entendimento entre as pessoas: incapacidade de apreender o que o outro sente decorrente de um estranhamento essencial entre os homens.

O acaso também tem um papel importante nos fins de cada personagem de "Jerusalém". O que fica inconcluso em Jerusalém é entender em que medida os destinos trágicos dos personagens são inevitáveis. Neste ponto, imaginamos com toda a humildade de um leigo no assunto teoria literária, ao texto de Gonçalo Tavares falta luta de classes.

Política

Existe espaço para a luta de classes quando tratamos de conflitos emocionais intensos? O problema da política, aqui, dificilmente pode ser relacionado aos conflitos individuais de cada personagem, desde que a experiência política, necessariamente, dá-se socialmente, através de interações sociais. Os conflitos emocionais intensos, caso sejam entendidos como decorrentes de uma descompasso universal e essencial nas relações entre os personagens, não podem ser apreendidos politicamente. Caso, por outro lado, façamos o esforço de relacionar as ações e os pensamentos dos personagens com os problemas do machismo, com a alienação do homem, com o problema da mercadoria dentro da vida dos homens, com os sentidos do trabalho, etc., pensamos ser possível complementar a interpretação de Jerusalém de maneira, entre outros, a dar mais sentido humano às histórias: compreender os limites daquela inevitabilidade e dar mais protagonismo aos personagens, fazê-los mais responsáveis.

Identificar e descrever com bastante beleza e intensidade a barbárie e o horror é o ponto alto de Jerusalém. O descompromisso acerca dos porquês da barbárie (algo típico nos dias de hoje), por outro lado, empobrece a possibilidade de se obter mais empatia pelos homens e mulheres de "Jerusalém".

sexta-feira, 8 de julho de 2011

"Reflexões sobre o Socialismo" - Maurício Tragtenberg

Resenha livro #29 - "Reflexões Sobre o Socialismo" - Maurício Tragtenberg - Ed. Unesp




Maurício Tragtenberg foi professor universitário, ativista e teórico político. Não se definia como anarquista, mas como "socialista libertário": segundo Michel Löwy, o autor promove uma síntese original entre anarquismo e marxismo, "inventando um projeto revolucionário generoso e anti autoritário, um socialismo libertário e coletivista".

Lendo as críticas do autor acerca da burocratização das lutas e a conformação do capitalismo de estado nos países do leste europeu, sinaliza-se o entendimento do autor sobre o que é socialismo.

O socialismo em Tragtenberg se conforma a partir das lutas autônomas e independentes dos trabalhadores e da criação de associações horizontais ancoradas na auto-gestão da produção econômica. Meios e fins estão conectados, os meios são parte viva da própria construção do socialismo. Isto significa que a generalização das lutas autônomas e da auto-gestão da produção são inatas ao socialismo.

"Assim, socialismo é entendido aqui como o regime em que a autogestão operária extingue o Estado como órgão separado e acima da sociedade, elimina o administrador dirigente da empresa em nome do capital e,ao mesmo tempo, elimina o intermediário político, isto é, "o político profissional".

Se existe alguma unidade entre meios e fins, da auto-gestão enquanto parte do socialismo, vale pontuar implicações da concepção de socialismo e instrumentos de luta. Estes não são especificamente discutidos no livro de Tragtenberg: entretanto, como uma decorrência das análises do autor, interpretamos serem aqueles instrumentos reprodutores das práticas e do modelo de organização da auto-gestão.

Alguns princípios, enunciados pelos operários da Fiat Xerém em sua greve histórica de 1980, poderiam perfeitamente ser aplicáveis, aqui, a outros instrumentos de luta anti-capitalista. A história do Comitê de Luta (CL) dos operários de Xerém é relatada por Tragtenberg como forma de demonstrar como os trabalhadores, durante o desenvolvimento das lutas, criam formas mais ou menos espontânea de associação política horizontal.

Aqui, propomos trazer alguns dos princípios do Comitê de Luta (os 4 primeiros princípios de um total de 7) como espécie de "requisitos mínimos" de maneira a (tentar) evitar ao máximo a burocratização.

"Princípios do Comitê de Luta (CL)

1- Democracia Operária: submissão da minoria à maioria, inclusive da "vanguarda". A minoria tem o direito de se manifestar.

2- Autonomia e independência: os comitês de luta atuam no sindicato dirigido por pelegos (agentes patronais vinculados ao Estado), mas em hipótese alguma devem permitir ser atrelados à estrutura do sindicato oficialista. No comitê se manifesta a total autoridade do peão: "Quem manda é o peão". Portanto, o CL é apartidário, sem obedecer a qualquer organismo superior ou a qualquer partido.

3- Direção coletiva e combate às hierarquias: os CL não devem se subordinar a instancias superiores e muito menos criar instancias inferiores. Devem permanentemente lutar para que haja o máximo de divisão de tarefas, de informações para todos. Assim se criam condições para o exercício da direção coletiva. É um risco muito alto um pequeno grupo de ativistas controlar o grupo ou decidir por ele

4- Respeito à individualidade: os CL devem respeitar a capacidade individual de cada ativista. Para um bom desempenho da ação do comitê deve-se utilizar as capacidades individuais daqueles que reúnem melhores condições de levar as posições do comitê e da massa. Porém, isso não pode significar concentração de poder ou de informação nas mãos dessas pessoas. À medida que se democratizam ao máximo as informações, mais condições teremos de exercer a democracia operária.

(...) "


Decorrências políticas do Socialismo em Tragtenberg

Os requisitos mínimos têm como ponto comum esforços em não fazer com que o CL deixasse-se burocratizar, o que, em termos mais amplos e analisando as experiências históricas, significou o começo da contra-revolução. A reação às lutas espontâneas e a auto-organização popular não se resume à violência contra-revolucionária da burguesia. Tem a ver, igualmente, com o momento em que as massas deixam de ter controle sobre os rumos históricos.

Os momentos revolucionários são sempre decisivos e as escolhas políticas, a cada passo dado, terão fortes e definitivas implicações. A tese da "traição das direções", por outro lado, não parece dar respostas completamente satisfatórias para o problema da burocratização. Isto porque, para se apreciar em que medida a "traição" ou erros políticos cometidos incidiram nos desdobramentos subsequentes dos fatos, recorre-se ao exercício contra-factual de se perguntar: "e se", "e se outro caminho tivesse sido tomado?". A história contra-factual nunca nos dará respostas conclusivas: num universo indeterminado de possibilidades de escolhas/rumos históricos, cada opção determinará mudanças em cadeia de forma completamente imprevisível.

O que temos, portanto, é a possibilidade de tentar extrair ao máximo lições sobre o passado. A forma como interpretamos socialismo decorre especialmente da forma como avaliamos as experiências revolucionárias do século XX.

Tragtenberg refere-se à URSS e os países do leste como estados capitalistas decorrentes da burocratização das lutas, contando com participação decisiva para a burocratização, o partido bolchevique. Mais uma vez, parece-nos que a interpretação fica inconclusa. Não se pode garantir, por exemplo, que nem a generalização das lutas revolucionárias via soviets, nem a instauração de um partido centralizado na direção do movimento teriam sido mais ou menos eficazes para se derrotar a contra-revolução, sob o risco de se exercitar a história contra-factual. O que é possível, aqui, é discutir o que é socialismo.

Se o socialismo tem a ver, acreditamos, com os princípios enunciados pelo CL de Xerém, o movimento, o processo para se atingir o socialismo contempla aqueles princípios. Métodos de luta reproduzem de certa forma (particular e transitória) os fins das lutas.


Ativismo político de Tragtenberg

Como ativista, Tragtenberg atuou no PCB, de onde foi expulso. Segundo biografia do Wikipedia, o motivo para a expulsão de Tragtemberg foi o fato de ele infrigir norma que proibe contato com a obra de Leon Trótsky. Atua, posteriormente, no PSR (Partido Socialista Revolucionário) junto a Hermínio Sachetta, primeiro grupo a introduzir as ideias da revolucionária Rosa Luxemburgo no Brasil.

Pessoalmente, sabe-se que Tragtemberg fora um auto-didata e outsider do meio acadêmico. Trabalhou no Departamento das Águas de São Paulo e na Fundação Getúlio Vargas, o que, provavelmente, contribuiu para sua interpretação original sobre o significado da burocracia. Crítico radical das instituições educacionais sob o capitalismo, conta-se que fora um professor controvertido.

Uma história sobre Tragtenberg para finalizar esta resenha. Ouvimos o relato de um camarada cujo pai estudou com Maurício Tragtenberg na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Segundo a história contada por este camarada, Tragtenberg zombava de alunos preocupados com as notas das provas semestrais conforme sua orientação libertária acerca da educação. Costumava, então, jogar as provas dos estudantes ao alto: as provas que caíam no chão tinham nota 8, aquelas que caíam no tablado do professor eram nota 9 e as provas que caíssem sob a mesa tinham nota 10. Não temos conhecimento de melhor método de avaliação já aplicado nas universidades brasileiras.

sábado, 2 de julho de 2011

"A Questão Judaica" - Karl Marx

Resenha Livro #28 – “A Questão Judaica” – Karl Marx - Ed. Moraes





“Sobre a Questão Judaica” é um ensaio do Jovem Marx (1818-1883) que dá respostas às análises de Bruno Bauer acerca das formas de emancipação dos Judeus. O texto, escrito em 1843, aborda temas que seriam, posteriormente, desenvolvidos nas obras mais teóricas de Karl Marx.

Assim, os conceitos de alienação, materialismo dialético e ideologia, senão discutidos especificamente em “Questão Judaica”, são tangenciados e abordados, sempre com outras palavras. Fala-se de alienação quando se discute as relações de complementaridade (e não oposição, tal qual surgem em Bruno Bauer) entre religião, política e histórica. Tangencia-se o tema do materialismo dialético nas análises das especificidades do desenvolvimento histórico alemão em relação à França. E aborda-se (igualmente sem citar os termos) a ideologia, ao discutir-se/criticar-se a tese baueriana de emancipação pela mera via do estado laico político. Neste ensaio, finalmente, encontra-se frase, repetida à exaustão, referente ao papel ideológico da religião: “a religião é o ópio do povo”.

Emancipação Política x Emancipação Humana

Bruno Bauer (jovem hegeliano, como Marx) identifica o estado político leigo como momento da superação da religião. A emancipação política, decorrente da formação dos estados modernos, traria consigo liberdades civis, de maneira que, ainda segundo Bauer, o estado livre implicaria na liberação do homem. Marx parte da ideia de que a emancipação política pode perfeitamente co-existir ou mesmo relacionar-se com as religiões.

“O limite da emancipação política manifesta-se imediatamente no fato de que o Estado pode livrar-se de um limite sem que o homem dele se liberte realmente, no fato de que o Estado pode ser um Estado livre sem que o homem seja um homem livre”.

A consolidação do estado político tem como decorrência mais importante, no que se refere a suposta emancipação religiosa, a separação entre o público e o privado. Duas conseqüências importantes da oposição público x privado: a primeira, já citada, significa a sobrevivência real/material da religião de forma complementar à política (e, ainda neste ponto, Marx traça um paralelo interessante entre aspectos da religião judaica e o desenvolvimento do capitalismo); segundo, a separação do homem à comunidade, a conformação do individualismo burguês e da liberdade desprovida de sentidos humanos.

Concluindo, o homem, no Estado Político de Bauer, apenas emancipa-se politicamente da religião, banindo-a “do direito público ao direito privado” – fica, portanto, a meio caminho da emancipação humana geral. Outrossim, o Estado Político, ainda segundo Marx, ao afastar o homem do homem, e instituir a divisão entre o público e privado, assume, ele próprio, um caráter religioso.

“Os membros do Estado Político são religiosos pelo dualismo existente entre a vida individual e a vida genérica, entre a vida da sociedade burguesa e a vida política; são religiosos, na medida em que o homem se conduz, frente à vida do Estado, - que está muito além de sua individualidade real – como se esta fosse sua verdadeira vida”.

Outras discussões passam pelo breve ensaio de Marx: a noção geral de estado, o significado da liberdade e sua relação com os direitos de propriedade, o sentido ideológico dos direitos humanos inatos à luz de alguns artigos da constituição francesa.

A leitura individual de Marx, todavia, tem os seus problemas. Muitas dúvidas surgiram acerca do significado de algumas passagens, sem que fosse possível discutir e relacionar as interpretações pessoais (pelo diálogo), o que certamente limitam o entendimento. A leitura da “Questão Judaica”, neste sentido, fica inconclusa. Apresentaremos, assim, algumas problematizações, decorrentes da leitura, para serem pensadas/discutidas com o tempo.

Problematizando

1- De que maneira a evolução histórica e política da Alemanha tornou impossível a emancipação política sem uma emancipação real do homem? A história confirmou o prognóstico de Marx?

2- Existe anti-semitismo na interpretação que Marx faz da religião judaica?

3- Como conciliar, nos contextos de luta anticapitalista dentro do movimento popular, a liberdade religiosa (emancipação política) com a emancipação real?

quarta-feira, 29 de junho de 2011

"Reforma ou Revolução" - Rosa Luxemburgo

Resenha Livro #27 - "Reforma ou Revolução" - Rosa Luxemburgo - Ed. Expressão Popular




Antecedentes

“Reforma e Revolução” é na verdade uma compilação de dois artigos escritos por Rosa Luxemburgo entre setembro de 1898 e abril de 1899. Os ensaios são uma resposta política a setores do Partido Social Democrata alemão (SPD), agrupados em torno de Eduardo Bernstein.

O revisionismo era então uma força política ainda em vias de ascensão. A série de textos publicados por Bernstein na revista Neue Zeit do SPD (entre 1897-1898) era, então, o primeiro grande esforço de sistematização teórica de uma nova orientação política. O reformismo seria predominante nas décadas subseqüentes no SPD, na II Internacional e em parcela considerável de partidos de esquerda (inclusive comunistas) em todo o mundo, especialmente após a II Guerra Mundial.

O revisionismo enquanto movimento político tem como principais pontos de partida: a instituição do socialismo a partir de reformas sociais; o controle da produção pelos sindicatos; a supressão da teoria do desmoronamento do capitalismo frente à constatação (meramente impressionista) da capacidade de adaptação do capitalismo frente às crises; a negação da tomada do poder político pelo proletariado como um fim das lutas específicas agrupadas em torno do projeto revolucionário (alega-se, entre outros, a ideia de os operários não estarem “maduros”).

O socialismo, aqui, aparece como uma decorrência de um processo de longuíssimo prazo, baseado no controle jurídico e institucional da economia capitalista, promovido pelo desenvolvimento de cooperativas no plano econômico e pela ocupação gradual do parlamento pelos operários: “os fins não são nada, os meios são tudo” é a frase mais lembrada de Bernstein.

A proposta teórica dos revisionistas é então combatida por Rosa, preocupada, particularmente, com as implicações políticas daquele grupo dentro do movimento operário. Ao confrontar o revisionismo com a realidade do capitalismo mundial, particularmente a emergência do militarismo e da formação de grandes monopólios, Rosa nos mostra como a teoria do grupo de Bernstein tem como implicação política mais importante a negação da alternativa socialista: as reformas atendem exigências do capitalismo e conformam-no de maneira a fazê-lo sobreviver, exclusivamente.

Vale destacar, aqui, que Rosa não cai no erro de opor Reforma e Revolução como dois entes separadas: a revolucionária, por suposto, reconhece o papel das reformas (meios) que educam e conscientizam o movimento operário em torno de um projeto de emancipação pela via revolucionária (fins). Ainda assim, a conclusão teórica a que Rosa chega, em Reforma e Revolução, é que o reformismo, quando desprovido de uma estratégia de ruptura com o capitalista, tem como significado prático a inserção da ideologia burguesa dentro do dentro do SPD e dentro do movimento operário, de forma geral.

O texto é escrito de forma didática: Reforma e Revolução é um manifesto necessário e atual contra as tendências que buscam revisitar o marxismo, incutindo-lhe uma interpretação eclética (“apropriando-se o que há de bom e afastando o que dele há de mau”) cujo fim principal é desarmar a teoria no que se refere a sua ligação com a transformação social (negação da teoria do desmoronamento do capitalismo e tese dos meios sobrepostos aos fins).

O combate ao Revisionismo

A teoria do desmoronamento do capitalismo, em Marx, baseia-se em três elementos fundamentais: a socialização do processo de produção, a “anarquia crescente da economia capitalista” e suas crises cíclicas, e a organização e consciência do proletariado, potencializada pela generalização das relações capitalistas. Bernstein vale-se da análise de supostas formas de adaptação capitalista (sociedades de ações, concessões de créditos, melhoria relativa da classe operária em alguns países) para demonstrar como o desmoronamento do capitalismo é improvável/impossível. Já Rosa destaca a contradição original do revisionismo, a negação da teoria do colapso: “mas se os cartéis, o sistema de crédito, os sindicatos etc., suprimem assim as contradições capitalistas, e se, por conseguinte, salvam da ruína o sistema capitalista, se permitam ao capitalismo conservar-se em vida – é por isso que Bernstein os chama de “meios de adaptação” – como podem eles, ao mesmo tempo, ser ‘condições e mesmo, em parte, germes’ do socialismo?”

Em outras palavras, em que medida qualquer iniciativa cujo resultado prático seja a mera atenuação provisória dos conflitos sociais decorrentes do capitalismo podem (de forma processual, como um “meio”) gerar o socialismo? Salvar capitalismo de suas crises concilia-se de qual forma com a sua superação?

Partindo-se da negação das crises estruturais do sistema, toda a teoria de Berstein é desconstruída por Rosa Luxemburgo. No que se refere, por exemplo, aos sindicatos, Rosa resgata passagens importantes do Capital, lembrando que estes são instrumentos de luta por salário e redução da jornada de trabalho, sem incidir absolutamente sobre as relações de produção dadas.

Os sindicatos operam dentro dos marcos do capitalismo, atuam a partir das tendências de valorização e desvalorização monetária da força de trabalho, não incidem sobre a gestão dos meios de produção, não alteram a natureza exploratória do trabalho (valor de troca) no capitalismo. Já as cooperativas, igualmente criticadas por Rosa, ancorada nas análises de Marx, tem como destino sua dissolução frente aos monopólios capitalistas ou a sua conversão em novas empresas capitalistas (pequenas, médias e grandes).

A partir das críticas em torno do programa revisionista, Rosa extrai algumas conclusões importantes. I- Trata-se de um movimento tipicamente pequeno-burguês, relacionando-se particularmente com as aspirações da aristocracia operária; ii- sua orientação filosófica igualmente tem definição pequeno burguesa já que, ao negar a relação indissociável entre a teoria marxista e o projeto revolucionário, adotando uma orientação “eclética”, acaba dando por “científico” aquilo que é típico interesse de classe; iii- o revisionismo é idealista em suas análises econômicas, não levando em consideração as crises capitalistas como parte de sua própria natureza auto-destrutiva e prendendo-se a interpretações meramente impressionistas e empiristas da realidade (ver significado em Bernstein dos monopólios, do militarismo, do protecionismo alfandegário e das sociedades de ações).

Antecipações de Rosa Luxemburgo

É interessante notar como Rosa, ao contrapor o revisionismo à aplicação do método marxista para análise da realidade alemã, antecipa fatos políticos. Ao discutir o significado do militarismo e sua relação com as disputas imperialistas, Rosa acena, com mais de uma década de antecedência, a ocorrência da 1ª Guerra Mundial. Ao discutir o significado da política de créditos, Rosa, ao contrário de Bernstein, vê no fenômeno não uma forma irremediável de adaptação do capitalismo, mas uma fonte de crises futuras – “assim, em vez de um meio de supressão ou atenuação das crises, o crédito, ao contrário, não é senão um meio particularmente poderoso de formação das crises”. A Crise Mundial de 1929 comprovaria na prática o acerto de Rosa e a fragilidade da tese revisionista.

Há uma previsão que, infelizmente, Rosa não acertou. A revolucionária afirma ser o revisionismo de Bernstein uma teoria natimorta, sem qualquer possibilidade de ascensão. Eventualmente, Rosa referia-se à fraqueza do reformismo mais como forma de mobilizar o movimento operário, fazer com que os operários não se deixassem seduzir pelo discurso fácil do reformismo. Seja como for, as críticas teóricas elencadas como manifesto em Reforma e Revolução são hoje bastante atuais. Resgatar Rosa Luxemburgo, para os revolucionários, é uma exigência do momento.

Citação Final

“As relações de produção da sociedade capitalista aproximam-se cada vez mais das reelações de produção da sociedade socialista, mas, inversamente, as relações políticas e jurídicas estabelecem entre a sociedade capitalista e a sociedade socialista um muro cada vez mais alto. Muro este que não é arrasado, antes, porém, reforçado, consolidando pelo desenvolvimento das reformas sociais e da democracia. Por conseguinte, é somente o martelo da revolução que poderá abatê-lo, isto é, a conquista do poder político pelo proletariado”.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

"As Esquinas Perigosas da História" - Valério Acary

"As Esquinas Perigosas da História" - Valério Acary

Resenha Livro #26 - “As esquinas perigosas da História: situações revolucionárias em perspectiva marxista” – Valério Acary





“Revoluções são, portanto, um fenômeno histórico que tem como característica definidora mais importante a intervenção ativa das massas na arena política, com uma abrupta elevação da intensidade das lutas de classes e aceleradas mudanças nas relações de forças entre as classes. Por mais aguda que seja a crise econômica, por mais severa as seqüelas das catástrofes sociais, por mais dramática que seja a agonia do regime, sem que as massas entrem em cena não se abre uma situação revolucionária”

Nem sempre as melhores contribuições teóricas para a batalha das ideias correspondem ao lançamento de respostas mais ou menos fechadas acerca da realidade, interpretações esquemáticas do passado que se projetam em formas ortodoxas de se intervir no presente para o futuro. Aliás, de uma maneira geral, nem sempre o mais importante são as respostas. As perguntas antecedem as respostas. Eventualmente, perguntas mal formuladas são a fonte dos erros práticos, políticos ou teóricos. Erros políticos costumam ser comuns. Erros políticos em situações revolucionárias mostraram ser fatais.

O trabalho de Valério Acary é bastante oportuno principalmente por ser capaz de abrir a discussão realizando perguntas. O objeto do estudo do autor é interpretar as revoluções por que passa o mundo ao longo do séc. XX. Não se discute isoladamente as experiências revolucionárias da Rússia (1905-1917), Espanha (1937), Iuguslávia (1945), China (1949), Cuba (1959), França (1968), Portugal (1979) ou Nicarágua (1979). O que se faz é, através das experiências históricas, procurar sistematizar, em primeiro lugar, o que todos estes eventos tiveram de comum, quais foram os pré-requisitos para a explosão e aceleração do tempo histórico decorrente dos momentos revolucionários. Pegunta-se qual foi a participação dos sujeitos coletivos/partidos/movimentos e sua relação com os embates de classe nas revoluções.

Pergunta-se enfim: como podemos dar sentido para os diversos momentos revolucionários ao longo do século de forma a pensarmos, num segundo momento, em algo como as diversas experiências (ainda que fracassadas) servem à luta anti-capitalista.

Levantar perguntas acerca da natureza das classe em luta, os seus horizontes políticos e, talvez a pergunta mais instigante, por que (com exceção de Outubro de 1917), nenhuma revolução alcançou aquilo que L. Trótsky chama de “transcrescimento” (a generalização da socialização dos meios de produção e um movimento de transformação societária numa orientação pós-capitalista) é fonte de controvertidas análises que ainda hoje dividem a esquerda.

As muitas perguntas que o livro levanta, parece-nos, corresponderia a um ponto de partida para um objetivo mais geral do livro de Valério Acary: o desenvolvimento de uma Teoria Geral das Revoluções.

O Papel dos Partidos Políticos

“Nunca existiu uma relação simples – de causa e efeito – entre a crise terminal de um regime e seu colapso revolucionário. Governos com bases sociais de sustentação muito minoritárias podem-se manter por muito tempo. Nenhuma ordem econômico-social desmorona sozinha. Não são as organizações revolucionárias, contudo, que fazem revoluções. Revoluções são feitas pelos sujeitos sociais. A qualidade maior ou menor da representação política das classes exploradas pode acelerar ou retardar uma situação revolucionária e, finalmente, decidir a sorte da revolução. Mas nem o partido mais revolucionário pode substituir o movimento prático de milhões de pessoas mobilizadas. A improvisação da liderança demonstrou-se quase uma regra nas revoluções políticas do último quartel do século XX, sem que fosse, todavia, decisiva. A força irreprimível da luta de massas foi suficiente para derrubar governos tirânicos e regimes ditatoriais, mesmo quando não dispuseram de direções temperadas em décadas de perseverante preparação. A debilidade subjetiva de comando foi, no entanto, fatal em todas as revoluções sociais”.

Destacamos a passagem acima por ela ilustrar, eventualmente, certo posicionamento político acerca dos papeis dos partidos no preparo e direção das massas dentro dos momentos revolucionários: neste ponto controverso, a análise histórica é pertinente, mas nem sempre conclusiva.

Interpretamos a orientação de Acary no sentido de, por um lado, reconhecer os episódios de espontaneidade que perpassam as experiências revolucionárias, assim como o fenômeno da própria produção de lideranças ao longo dos momentos de acentuação dos conflitos. Entretanto, ainda segundo o autor, a ausência de uma direção preparada teve papel “fatal”, no sentido de não fazer com que os diversos “Fevereiros”, que se repetiram nas diversas experiências revolucionárias do século XX, não avançassem em “Outubros”, passando de revoluções meramente políticas (derrubada de tiranias e ditaduras) a revoluções econômico-sociais (extinção da hetero-gestão produtiva, abolição do aparato repressivo-ideológico do estado e construção do socialismo).

Uma pergunta decisiva, aqui, é o de se delimitar os papeis dos sujeitos coletivos, o que, deve ser mesmo antecedido pela pergunta acerca das relações entre partidos políticos e classes sociais. O partido político foi uma expressão política das classes e, definitivamente, a dificuldade dos partidos socialistas imprimirem uma orientação anti-capitalistas aos diversos “fevereiros” é parte da explicação para os fracassos das revoluções. Entretanto, e aqui explicamos o fato da experiência histórica não ser sempre conclusiva, pensamos que os fracassos das experiências autônomas de luta, ativa e coletiva, contra o capitalismo, ainda que derrotadas historicamente, não invalidam as possibilidades da auto-organização, da mesma maneira como não entendemos serem as experiências históricas de burocratização dos partidos socialistas/comunistas uma inevitabilidade essencialista que implicam na negação da forma partido. As duas orientações, parece-nos, chegam a conclusões baseadas em interpretações históricas, não se levando em consideração que a história, ainda que dotada de sentidos, sempre está aberta a novas possibilidades (inclusive, o colapso, ao contrário de certa orientação fatalista acerca da realização da revolução a partir da crise objetiva do capitalismo).

Para dar uma conclusão a esta pequena ponderação, acreditamos que o problema da direção dentro dos projetos de revolução se encerram em formas de organização que tenham capilaridade social, que incidam de maneira a potencializar a capacidade política das massas e o seu senso crítico de maneira a inviabilizar cada vez mais a burocratização. Como afirma Tony Cliff, o que corrompe as organizações políticas não é o poder, mas a impotência, a falta de controle (auto-controle) sobre os partidos e organizações (meios).

Uma bela citação para concluir o artigo

Cumpre ressaltar que Valério Acary escreve muito bem. O seu texto é fluente, claro e é muito prazeroso de ler. Vamos citar uma última e pequena passagem, à guiza de conclusão.

“Quando o proletariado perde o medo ancestral de se rebelar, perde até o medo de morrer, toda a sociedade mergulha em um turbilhão e em uma vertigem da qual não poderá emergir sem grandes convulsões e mudanças. E, se esse sentimento for compartilhado por milhões, então essa força social transforma-se em força material, em uma força material terrível, maior que todos os exércitos, do que as polícias, do que as mídias, as igrejas, maior do que tudo, quase imbatível. Esses momentos são as crises revolucionárias. Que a maioria das revoluções do século XX tenha sido derrotada, não demonstra que não venham ocorrer novas vagas revolucionárias no futuro”.