sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

"O Evangelho Segundo São Matheus" - Pier Paolo Pasolini

Resenha Filme #3 “O Evangelho Segundo São Matheus”. Pier Paolo Pasolini





Certamente, o espectador do Evangelho Segundo São Matheus (1964) tem grandes chances de se surpreender, positivamente ou negativamente. Afinal, não se trata de um filme de religião tradicional: o relato da vida de Cristo conforme os textos originais da bíblia poderia simplesmente significar mais uma obra que vai no sentido de exaltar Jesus, reverenciar o cristianismo, fazer proselitismo religioso, etc. O curioso é que, mesmo se valendo exclusivamente de citações do evangelho, o filme interessa menos por suas eventuais implicações religiosas e mais por suas possibilidades políticas, além de sua rara beleza plástica.

Um filme diferenciado acerca da religião não poderia deixar de ser o fruto de um cineasta que em nada parece ter afinidade com o tema que filma. Pasolini (1922-1975) foi homossexual assumido em vida, além de filiado ao Partido Comunista Italiano. Além de diretor de cinema, foi poeta, novelista e professor de literatura. Sua morte trágica em 1975, decorrente de assassinato por meio de atropelamento de carro doloso, até hoje é cercada de mistérios. Foi, finalmente, autor de outras películas importantes: Accatone! (1961, que aborda aspectos da vida do povo italiano, por meio de um herói oportunista que remete ao malandro brasileiro); Teorema (1968, baseado em novela do autor); adaptações no cinema de Medeia (1969) e Decameron (1971); entre outros.

O realismo poético

O Evangelho é todo estruturado de forma a fazer com que nenhuma fala dos personagens escape das passagens textuais da Bíblia. A combinação entre imagens em movimento e os enunciados/aforismos/revelações da Bíblia assumem, no filme, um tom poético: é como se as falas de cristo fossem metáforas que vão se combinando com a história narrada em imagens. Os textos originais nem sempre são ou podem ser percebidos como poesia. Mas a combinação entre as palavras e imagens com forte conteúdo semântico dão expressividade ao ponto de revelar as intencionalidades do diretor.

Assim, Jesus, ao contemplar a ostentação e riqueza desproporcional (fortemente ressaltadas por meio de destaques da câmera nas roupas e na postura de sacerdotes e da aristocracia como se o olhar do espectador fosse o olhar de Jesus) faz menção à ideia de ser mais fácil um camelo passar pela cabeça de uma agulha do que um rico atravessar o reino do céu. A combinação do texto oficial com toda a intencionalidade política das imagens (particularmente a crítica à Igreja, à ostentação das classes abastadas, do ceticismo dos ricos, etc.) tem como resultado um filme de rara beleza estética, que consegue conciliar o realismo do texto com imagens que dão expressividade e sentidos mais amplos a tudo que é falado. Tratar-se-ia, aqui, de uma espécie de realismo poético, ou seja, da possibilidade de tratar de temas religiosos de maneira a convertê-los em obra de arte, em fonte de beleza.

O realismo e a Política

Consta que a escolha dos atores do “Evangelho” foi feita sem participação de qualquer ator profissional. Assim, a personagem principal, um cristo sóbrio, de expressão não sem alguma melancolia, foi interpretada pelo caminhoneiro espanhol Enrique Irazoqui. Muito provavelmente, a escolha dos atores decorre especialmente de suas aparências físicas, da possibilidade de se expressarem visualmente conforme as intenções do diretor. Percebe-se que o filme tira proveito do silêncio, de maneira que as imagens aparecem, certas vezes, como uma sucessão de quadros ou mesmo de fotografias. Mais do que atores, em o “Evangelho” percebemos modelos que, sob a direção de Pasolini, aparecem no filme tal qual pessoas comuns de um documentário. Algumas passagens do filme em que a mãe de Jesus (interpretada pela mãe de Pasolini) assiste às cenas de crucificação têm tamanha carga de expressividade que substituem por completo as palavras.

O realismo de Pasolini diz igualmente respeito à fotografia em preto e branco, aos destaques às expressões faciais sem embelezamentos (mais uma vez, a escolha de não atores para os papeis também reforça o realismo) e a exposição de cenas chocantes e fiéis à violência que perpassa a trajetória de cristo.

Uma implicação importante do realismo em o Evangelho é a percepção de que os fatos narrados transcendem em muito a religião. Ao confrontar os magistrados de então acerca da morte de João Batista, Jesus aparece no filme como uma referência de setores populares que o acompanham, despertando já então os receios da classe dominante. As cenas igualmente realistas e chocantes de soldados assassinando os bebês retirados à força de suas mães igualmente vai além de discussões de tipo teológico, expressando desde já a velha violência oficial.

O fato é que o Evangelho, por ter sido filmado por alguém como Pasolini, é igualmente uma obra política que destaca – sem subterfúgios e por meio de uma linguagem realista e poética – aspectos dos conflitos de classe que perpassam o evangelho. Assim, mais do que implicações práticas dos enunciados religiosos, interessa notar a forma como os enunciados são igualmente o resultado de conflitos sociais entre pobres e ricos, classe dominante e classa dominada.

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