quinta-feira, 18 de julho de 2024

Obrigações Tributárias à Luz do Código Tributário Nacional

 Obrigações Tributárias à Luz do Código Tributário Nacional




 

A obrigação civil consiste num vínculo jurídico envolvendo um credor e um devedor e uma obrigação correlata de dar, de fazer, de não fazer ou de pagar. Está em oposição aos direitos reais, que, ao seu passo, consistem nas relações jurídicas entre pessoas e coisas determinadas ou determináveis, tendo como fundamento principal o conceito de propriedade.

Os direitos obrigacionais veiculam necessariamente relações pessoais (entre credor e devedor), havendo uma relação de crédito e um dever correlato. O credor tem direito ao crédito e o devedor tem o dever de satisfazê-lo.

Já os direitos reais dizem respeito a um poder jurídico direto e imediato de uma pessoa sobre uma coisa, submetendo-se esse poder ao respeito obrigatório de todos (efeito erga omnes).

O exemplo mais lembrado dos direitos obrigacionais são os contratos. Já o direito real por excelência é a propriedade, que consiste na faculdade do seu titular de “usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.”. (artigo 1.228 CC/02).

As obrigações tributárias, assim como as obrigações civis, igualmente instituem uma relação pessoal vinculando um credor e um devedor e uma prestação de dar, de fazer, de não fazer ou de pagar. Pode ser definida como uma relação jurídica pessoal que tem por objeto uma prestação e que nasce quando a situação prevista pela hipótese de incidência da norma tributária ocorre no mundo real.

O crédito tributário nada mais é do que a obrigação tornada líquida e certa, o que se dá através do lançamento tributário.

Assim, a obrigação de pagar o IPTU surge quando ocorre a situação prevista na regra-matriz: ser proprietário de bem imóvel urbano no dia 1º de Janeiro de cada exercício fiscal. O crédito tributário dá-se com o lançamento do tributo, quando a obrigação se torna líquida e certa, o que, via de regra, ocorre pela entrega do carnê ao contribuinte (Súmula 397 STJ).

As obrigações tributárias podem ser classificadas como obrigação principal e obrigação acessória.

A obrigação tributária principal será sempre uma obrigação de pagar, ao passo que a obrigação acessória será sempre uma obrigação de fazer ou de não fazer.

A definição de cada uma dessas espécies de obrigação tributária está prevista no artigo 113 do CTN:

Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória. § 1º A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente. § 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interêsse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. § 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.

A obrigação principal envolve, portanto, o pagamento do tributo ou o pagamento de uma multa pecuniária pelo descumprimento de uma obrigação acessória.

Já a obrigação assessória consiste numa conduta do contribuinte no interesse de facilitar a arrecadação e a fiscalização do pagamento pelo Ente Público.

A  emissão de documentos fiscais para que posteriormente seja realizada a apuração e o recolhimento de tributos pode ser mencionada como um exemplo de obrigação acessória. O seu descumprimento enseja uma sanção pecuniária que se converte então numa obrigação principal (§3º artigo 113 CTN).

Falamos que a obrigação tributária principal ocorre no momento da ocorrência do fato gerador.

O fato gerador descreve um determinado comportamento ou estado de coisas cuja realização faz nascer a relação jurídica de direito tributário.

O fato gerador do IPTU ocorre com o exercício da propriedade, domínio útil ou posse sobre o imóvel urbano contatada no dia 1º de janeiro de cada exercício financeiro. O fato gerador do ICMS pode ser descrito, de maneira geral, como o momento da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte. O fato gerador do ITCMD causa mortis, ocorre no momento da abertura da sucessão hereditária (legítima, testamentária ou provisória), ou seja, na data do óbito.

A noção de fato gerador auxilia a dimensionar o que é a obrigação tributária principal ou acessória.

O fato gerador da obrigação tributária principal é a situação definida em lei necessária e suficiente à sua ocorrência (artigo 114 CTN).

Já o fato gerador da obrigação tributária acessória é qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de um ato (obrigação de fazer ou não fazer) que não configura a obrigação principal (artigo 115 CTN).  

Paulo Marçaioli – OAB/SP 431.751 | Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP (Faculdade de Direito do Largo São Francisco) | Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero | Especialista em Processo Civil pela Escola Paulista de Direito.

Contatos: paulomarcaioli@gmail.com  

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Notas Sobre o Processo Administrativo Federal – Lei nº 9.784/99

 Notas Sobre o Processo Administrativo Federal – Lei nº 9.784/99




O processo é inerente a todas as áreas do Direito. 

Pode-se, neste sentido, falar em “processo legislativo”, “processo constitucional”, “processo do trabalho”, “processo penal”, “processo civil” e, finalmente, o “processo administrativo”, cuja principal fonte normativa consiste na Lei Federal nº 9.784/99.

E em que consiste o Direito Processual?

Trata-se de completo de normas jurídicas que disciplinam a constituição dos órgãos jurisdicionais e sua competência; regula ainda a relação jurídica processual, envolvendo Autor, Réu e Juiz, bem como a sucessão de posições jurídicas por eles assumidas (poderes, deveres, faculdades, direitos, ônus, etc).

Seu objetivo fundamental é a resolução de conflitos através de uma decisão, que poderá ou não resolver o mérito da lide. É um ramo do Direito Público e a edição de suas normas compete privativamente à União, na forma do artigo 22, inciso I, da CF/88.

O procedimento, ao seu passo, consiste na forma de exteriorização do processo.

Em outras palavras, é a forma pela qual os atos processuais são praticados. É a série coordenada de atos tendentes à produção de um efeito jurídico final, que, no caso do processo jurisdicional, é a decisão judicial e a sua eventual execução.

O processo administrativo consiste na expressão do processo no âmbito da administração pública.

Pode ser conceituado como uma relação jurídica marcada por uma série de atos administrativos concatenados, que observam uma ordem estabelecida em lei (ou seja, um procedimento) e, assim como o processo jurisdicional, também tem como escopo uma decisão, no caso uma decisão administrativa, que irá pacificar um conflito.

O processo administrativo federal está regulamentado pela Lei nº 9.784/99 que trata das “normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração.” (artigo 1º).

Não se trata de uma Lei nacional, mas de uma lei federal. Ou seja, sua aplicação se aplica aos processos da Administração Federal (Poder Executivo) e aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário da União, quando no desempenho de função administrativa.

A Lei nº 9.784/99 não obriga os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, que devem editar as suas próprias regras de processo administrativo. Anote-se que a constituição estabelece a competência exclusiva da União para legislar sobre processo, ao passo que o ordenamento jurídico autoriza os demais entes administrativos a editarem leis sobre processo administrativo.

Em todo o caso, o Superior Tribunal de Justiça admite a aplicação subsidiária da Lei nº 9784/1999 aos Estados e Municípios quando inexistente norma legislativa própria das unidades subnacionais.

É o que dispõe a Súmula 633 do STJ:

"Súmula 633 STJ - A Lei nº 9.784/1999, especialmente no que diz respeito ao prazo decadencial para a revisão de atos administrativos no âmbito da Administração Pública federal, pode ser aplicada, de forma subsidiária, aos estados e municípios, se inexistente norma local e específica que regule a matéria."

Dentre os princípios que regem o processo administrativo, podemos citar: (i) a informalidade e instrumentalidade das formas; (ii) a gratuidade; e a (iii) a busca pela verdade material. Dentre os princípios, também consta o dever de fundamentação das decisões, devendo-se ressalvar que o dever de motivação rege toda a atividade administrativa, e não só o processo administrativo.

Algumas diferentes entre o processo administrativo e o processo jurisdicional são dignas de nota.

Pelo princípio da inércia da jurisdição, o início do processo civil de natureza jurisdicional decorre de iniciativa da parte interessada. Não cabe ao Judiciário a iniciativa da ação (artigo 2º do Código de Processo Civil).

Já o processo administrativo, ao seu turno, pode ter início a requerimento do particular ou de ofício, ou seja, por iniciativa da própria administração pública (artigo 5º Lei nº 9.784/1999).

Enquanto a regra geral do processo jurisdicional é a da representação processual da parte por advogado devidamente habilitado pela OAB, no âmbito do processo administrativo, entende-se que a ausência de defesa técnica por advogado não gera nulidade do processo:

Súmula vinculante 5 – STF - A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.

Por fim, outra diferença importante diz respeito à ideia de busca pela verdade real inerente ao processo administrativo que afasta algumas regras aplicáveis ao processo civil.

Não há revelia no processo administrativo.

Justamente em decorrência do princípio da verdade material, o desatendimento de uma intimação (ou que poderíamos dizer entre aspas “citação”) não importa o reconhecimento da verdade dos fatos, nem a renúncia ao direito pelo administrado faltante.

Ainda que seja desatendida a intimação, o interessado continuará tendo a garantia de ampla defesa no processo, podendo se manifestar livremente.

Paulo Marçaioli – OAB/SP 431.751 | Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da USP (Faculdade de Direito do Largo São Francisco) | Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero | Especialista em Processo Civil pela Escola Paulista de Direito.

Contatos: paulomarcaioli@gmail.com  

segunda-feira, 8 de julho de 2024

O Teatro Popular de Ariano Suassuna

 O Teatro Popular de Ariano Suassuna





SIMÃO PEDRO

Há um ócio criador;

Há outro ócio danado,

Há uma preguiça com asas,

Outra com chifres e rabo!

MIGUEL ARCANJO

Há uma preguiça de Deus,

E outra do Diabo!

MANUEL CARPINTEIRO

E então, a moral é essa,

Que mostremos à porfia!

SIMÃO PEDRO

Viva a preguiça de Deus

Que criou a harmonia,

Que criou o mundo e a vida,

Que criou tudo o que cria!

MANUEL CARPINTEIRO

Viva o ócio dos Poetas

Que tece a beleza e fia!

 

No próximo dia 23 de Julho vai completar dez anos da morte do romancista,  dramaturgo e artista plástico Ariano Vilar Suassuna (1927/2014). Morreu aos oitenta e sete anos de idade, pouco depois de concluir um romance ao qual havia se dedicado havia mais de vinte anos, chamado “O Romance de Dom Panteiro no Palco dos Pescadores”.  

Transitou pela literatura e pelas artes plásticas. Foi professor da Universidade do Recife (atual Universidade Federal de Pernambuco) onde lecionou diversas disciplinas ligadas à arte e cultura. Mas foi certamente no teatro, reproduzindo jogos de cena dos espetáculos populares nordestinos e temas da dramaturgia universal, que se tornou conhecido do público e consagrou-se como um dos principais artistas da história do teatro do Brasil.

A primeira peça teatral escrita por Ariano Suassuna foi uma tragédia chamada “Uma Mulher Vestida de Sol” (1947) redigida quando o autor tinha 20 anos e ainda era estudante de Direito da Faculdade de Recife.

Depois de formado, Suassuna retornou à cidade de Taperoá para cuidar de um problema no pulmão. Era uma pequena comarca situada no sertão da Paraíba onde passara a infância: lá retoma o contato com a cultura popular, o que iria marcar a sua produção literária subsequente.

Deixando de lado a tragédia, o escritor dedicar-se-ia às comédias que o deixaram famoso. E dentre elas a mais famosa sem sobra de dúvidas foi o “Auto da Compadecida” (1955).

As aventuras de João Grilo e Chicó são conhecidas e amadas pelo povo brasileiro, não só por conta das três versões cinematográficas produzidas no país, mas especialmente pela capacidade do escritor de muito bem captar aspectos da psicologia do brasileiro.

O humor com que encaramos os problemas da vida. A esperteza e sagacidade que orientam a ação dos personagens quando confrontados com situações extremas. Um sentimento religioso mestiço, envolvendo santos da igreja católica que nos aparecem em sua forma mais íntima e humana, conversando como gente, inclusive apresentando um Jesus Cristo negro de pele. A não presença de heróis, mas de homens com as suas fragilidades e pecados, apenas compreensíveis e perdoáveis pela misericórdia divina.

Estas características seriam posteriormente sintetizadas pelo Movimento Armorial (1970) idealizado pelo escritor para propor realização de uma arte erudita brasileira a partir da cultura popular, ou mais especificamente a cultura nordestina, com a sua literatura de cordel, o seu teatro de mamelungos (aqueles conhecidos fantoches de pano que servem de atores e são conduzidos por varas e barbantes por pessoas que dão voz e movimento aos bonecos) e ilustrações de xilografia.

Os folhetos populares de literatura nordestina já congregavam em si diferentes expressões artísticas. Deles constam a poesia, o teatro e as imagens de xilografia que ilustram as suas capas. Também agregam dentro de si a música, já que encerram espetáculos populares, encenados ao ar livre, com acompanhamento musical - o musical dos cantos e músicas que acompanham a leitura ou a recitação do texto.

Também estavam relacionados à história oral e às primeiras formas de sedimentação e divulgação dessas histórias do povo, contadas pela primeira vez na forma impressa em pequenos folhetos, expostos para venda pendurados em cordas, barbantes ou “cordéis”, atraindo o nome “Literatura de cordel”.

A Farsa da Boa Preguiça

Quando perguntado qual era a sua peça de teatro favorita, Suassuna respondia sem pestanejar: “A Farsa da Boa Preguiça”. Trata—se de uma comédia encenada pela primeira vez em 1961, no Recife, quando o escritor já havia se consagrado nacionalmente com o seu “Auto da Compadecida” (1955). Ambas as peças retomam o tema do trovadorismo português representado pelo “Auto da Barca do Inferno” (1517) de Gil Vicente.

Nessas obras, as ações humanas são acompanhadas pelo escrutínio de Deus e do Diabo, e seu séquitos de anjos, que irão, ao final, dar à cada personagem o fim a que fizeram jus pelos seus atos em vida. O conhecido “Julgamento Final” que irá levar os bons ao céu e os maus ao inferno segue uma convenção que advém do teatro antigo conhecida como “licença” ou “moralidade”. Por essa convenção, no fim da história, o autor podia dar a sua opinião sobre o que acontecera no palco, o que poderíamos chamar de “lição da história” ou “moral da história”.

A “Farsa da Boa Preguiça” foi acusada ao seu tempo pelos intelectuais de esquerda como uma apologia reacionária à preguiça.

A peça data dos anos 1960, momento em que o pensamento de esquerda era majoritário nos meios intelectuais e artísticos do país. De acordo com esses intelectuais, o autor de peça estaria aconselhando o povo ao conformismo, à renúncia ao trabalho duro, e, supostamente, fazendo com isso o jogo daqueles que desejavam entravar a luta de emancipação dos trabalhadores e camponeses.

No prefácio da obra, o escritor desmonta esta interpretação artificial, típica da forma unilateral do militante ver a arte, seja na década de 1960, seja hoje através do identitarismo.

Diz Suassuna:

“Na verdade, o elogio que eu queria fazer na peça era, em primeiro lugar, o do ócio criador do Poeta. (...) Em segundo lugar, o que eu desejava ressaltar, na peça, era a diferença da visão inicial que nós, povos morenos e magros, temos do Mundo e da vida, em face da tal “cosmovisão” dos povos nórdicos. Não escondo que tenho um certo ‘preconceito de raça ao contrário’. Sempre olhei, meio desconfiado, para essa galegada que, de vez em quando, nos aparece por aqui, como quem não quer nada, que entra sem cerimônia e vai mandando para fora amostras de nossa terras, de nossas pedras, do subsolo, da água e até do ar, sem que os generosos Brasileiros estranhem nada. (...) Ora, na minha arbitrária e talvez torcida opinião de brasileiro que nunca saiu de sua terra, esses Povos nórdicos são raça com mais vocação para burro de carga que conheço. Nós, Povos castanhos do mundo, sabemos, ao contrário, que o único verdadeiro objetivo do Trabalho é a Preguiça que ele proporciona depois, e na qual podemos nos entregar à alegria do único trabalho verdadeiramente digno, o trabalho criador, livre e gratuito”.

Esta oposição entre a visão social de mundo dos “povos mestiços” e dos “povos nórdicos” é representada na peça pelo poeta popular Joaquim Simão e o ricaço Aderaldo. O primeiro de coração bom, mas que rejeita sempre que pode o trabalho duro para se dedicar ao descanso e ao fazer poesia, ao ócio criador. E o segundo, dedicado ao trabalho predatório de explorar os outros e acumular riquezas.

Dentro deste embate, participam como coadjuvantes anjos e demônios que irão tentar os personagens para o bem e para o mal.

Joaquim Simão, predisposto ao bem, acaba sendo seduzido por Clarabela, esposa infiel de Aderaldo; comete uma falta, mas se arrepende sinceramente depois. Já Aderaldo e sua mulher Clarabela, ambos convertidos ao ateísmo materialista, são ao final da peça confrontados pelos demônios que irão cobrar o preço por suas más condutas em vida.

Através do “trabalho”, acumularam o dinheiro. Desprezaram os pobres e miseráveis que lhes pediram esmola ou um pedaço de pão.

E ao final, são desafiados pelos anjos do mau: irão para o inferno se dentro de sete horas não encontrarem alguém que rezasse por suas almas o “pai nosso” e o “ave maria”.

Neste momento, todo o dinheiro que conquistaram não lhes serviu para a salvação da alma. Apenas a caridade do bom Simão e sua mulher Neivinha, através de um ato puro de amor, sem busca de benefícios, salvam os ricos. Ambos conseguem fazer a  reza dentro do tempo estipulado pelo Diabo, e garantem que os vilões passem do inferno ao purgatório.

Talvez poderíamos aqui incluir um novo ponto de diferenciação entre nós, “povos mestiços” e “povos nórdicos”, agora, no que diz respeito ao problema de Deus. Na tradição estrangeira, de tipo puritana, prevalece o castigo sem a possibilidade do perdão divino. E, na nossa tradição, que é o que vemos na peça, prevalece a justiça não dissociada do amor e da infinita misericórdia de Deus.  

domingo, 23 de junho de 2024

“Helena” – Machado de Assis

                                                “Helena” – Machado de Assis




Resenha Livro - “Helena” – Machado de Assis – Iba Mendes Editor Digital

Existe uma forma tradicional de se deliminar a obra de Machado de Assis em duas grandes fases.

Num primeiro momento, de acordo com essa teoria, seus romances estiveram circunscritos ao romantismo literário. E, com a publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), teria havido o grande salto qualitativo do escritor, quando foram estabelecidas as bases do realismo-naturalismo  literário em terras brasileiras.

Essa forma tradicional de caracterizar a obra do escritor deve ser vista com alguma ressalva.

Vistos todos os livros, de conjunto, é possível de se perceber todas as tendências intelectuais e artísticas do seu próprio tempo. Tanto na condição e escritor, como em seu trabalho como crítico literário, deu contribuições para o romantismo, realismo, naturalismo, impressionismo, parnasianismo e simbolismo, sem se filiar a nenhuma destas escolas em particular, delas, por outro lado, extraindo elementos para a criação de um estilo próprio[1].  

Válido ainda mencionar que a forma tradicional de delimitar uma fase romântica e outra realista em Machado de Assis acaba desconsiderando que o escritor transitou por outros gêneros literários que não só o romance. Publicou poemas, peças de teatro, crítica literária e crônicas jornalísticas.

Em todo o caso, também não parecer haver dúvidas de que a literatura de Machado de Assis passa por duas etapas bem diferenciadas.

Poderíamos falar de uma “fase de aprendizagem”, quando de fato predominam os elementos românticos e sua obra tem um caráter mais convencional.

Dessa primeira fase fazem parte os quatro primeiros romances do escritor fluminense: “Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva”   (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1876).

O divisor de águas entre a fase de maturação e o pleno vigor intelectual do artista deu—se, como dito, a partir do “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881).

A partir daqui vemos aquele desencanto pessimista misturado com o humor e a ironia que se opõem às tendências de idealização da vida e do amor, que por sua vez marcaram as obras de juventude.

A pouco verossímil qualidade atribuída aos personagens românticos, que constantemente renunciam aos seus interesses individuais em detrimento de convicções morais ou exigências sociais, como se dá com a personagem Helena em seu romance homônimo, é substituída agora pelo desnudamento do homem dotado de fraqueza, incoerência e oportunismo, como evidenciado no protagonista Brás Cubas do Memórias Póstumas.   

Em ambas as fases, contudo, verifica-se um denominador comum: a arte deve exprimir a vida e em particular o universo moral dos indivíduos.

A arte exprimindo a vida seja para idealizá-la, como ocorre na dita “fase romântica” como para copiá-la na chamada fase “realista”.

Num primeiro momento, a descrição da vida tem fins nitidamente moralizantes, sem pretensão de desafiar as regras sociais vigentes e, de certa maneira, dentro de um conformismo político.

Num segundo momento,  essa descrição da vida terá fins mais filosóficos, ao buscar desnudar as contradições do indivíduo e criticá-lo impiedosamente, autorizando, com isso, o questionamento das regras sociais vigentes.  

Neste marco, também se escuta bastante daqueles que estudam a obra de Machado de Assis um certo “apoliticismo” do escritor, que inclusive pode ser visto de uma forma negativa, especialmente nos romances da primeira etapa, que remontam ao universo burguês citadino, e, frequentemente,  desconsideram as desigualdades sociais e a principal chaga social da época: a escravidão.

Esse ponto de vista também é discutível.

Mesmo em “Helena” (1876), um livro tipicamente romântico, voltado um público feminino da classe dominante do Brasil do II Império, tanto o tema da escravidão como o da pobreza estão presentes na obra, ainda que de forma tangencial.  

Pode-se dizer que a história social está presente na narrativa machadiana mas via de regra é apenas captada como um reflexo do universo moral das individualidades – há, neste sentido, uma descrição incidental do Brasil do II Império e sua transição para a República, inclusive na sua chamada “fase romântica”. Mas, evidentemente, o romance de Machado de Assis pode ser caracterizado de diversas formas, menos como arte voltada ao proselitismo político.  

Sobre o Romance Helena.

“Helena” foi publicado em folhetins entre agosto e setembro de 1876 pelo jornal “O Globo”. Foi reunido naquele mesmo ano num volume único pelo editor Baptiste-Louis Garnier.

Consta ter sido um sucesso de público: foi, aliás, escrito quando o escritor já era conhecido e consagrado pelo pequeno público leitor da época.

A história se passa em meados do século XIX na cidade do Rio de Janeiro.

Após a morte por apoplexia do Conselheiro Vale, um rico potentado do Rio de Janeiro, seu filho e herdeiro Estácio recebe através do testamento a informação de que seu pai, conhecido em vida pela infidelidade conjugal, deixara uma filha oriunda de relacionamento ilícito. Como última disposição, o morto manifestou a vontade de que essa descendente fosse acolhida como filha legítima e parte da família.

Esta filha é Helena, a protagonista da história.

Ao chegar à casa do falecido Conselheiro, aos dezessete anos de idade, é vista com reservas, não tanto pelo seu meio irmão, mas por D. Úrsula, senhora de idade, beata e irmã do Conselheiro. Contudo, as qualidades morais de Helena e mesmo a sua beleza vão aos poucos desconstituindo todas as reservas, inclusive da severa tia de Estácio:   

Helena tinha os predicados próprios a captar a confiança e a afeição da família. Era dócio, afável, inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava superior e lhe dava probabilidade de triunfo, era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e toda a casta de espíritos, arte preciosa, que faz hábeis os homens e estimáveis as mulheres”.

A afeição entre a protagonista e o seu meio irmão vão se acentuando ao ponto de sugerir cada vez mais ao leitor a existência de um amor proibido, posto que incestuoso.

Helena e Estácio cresceram em famílias separadas: não aprenderam a falar pelos lábios da mesma mãe. Quis a fortuna que entre os dois não houvesse a imagem da infância comum e a comunhão dos primeiros anos. Em plena mocidade, passaram, do total desconhecimento um do outro para a intimidade de todos os dias no lar comum. Circunstâncias que fizeram brotar um amor impossível, que, aliás, não era sequer percebido de forma consciente por Estácio.

Posteriormente, este sentimento terá outros desdobramentos diante da impactante notícia de que o Conselheiro Vale não fora efetivamente o pai biológico de Helena.

Essa descoberta se deu após Estácio confrontar Salvador, um homem em situação de miséria que morava numa chácara próxima da residência do Conselheiro.

Helena de forma clandestina diariamente visitava aquela casa, até quando seu irmão, voltando de uma caçada, viu a protagonista se despedindo daquele homem velho,  naquela palhoça em situação de abandono. Num primeiro momento, pensa se tratar de um enlace amoroso que levaria à desgraça e desmoralização de Helena, até então vista como a mais cândida das criaturas. De uma forma previsível, ao melhor estilo romântico, a pureza de intenções da protagonista será depois confirmada: Salvador era de fato o pai de Helena e não o seu amante. Já a mãe de Helena abandonou Salvador para viver em melhores condições na companhia do Conselheiro Vale, ainda que na forma de uma relação extraconjugal e clandestina. Àquele momento, Helena era uma criança: Salvador aceita o triste destino, com a esperança, depois confirmada, de que o Conselheiro premiaria sua filha pobre com um bom legado.  

Após a descoberta do segredo envolvendo o passado da protagonista, fica também evidenciada a possibilidade do amor entre Estácio e Helena: ambos não são irmãos. Mas, mesmo deixando de ser um amor incestuoso, ainda havia a barreira social, esta tão intransponível quanto a barreira moral. Reconhecida até então como filha do Conselheiro, passaria a ser identificada como descendente de um simples artesão.

Ao término da história, Helena falece após a forte comoção oriunda da revelação da do seu passado.  O amor impossível entre ela e Estácio apenas poderia se resolver através desta forma.

Machado de Assis no prefácio do livro reforça aquilo que expusemos anteriormente: Helena é uma obra de juventude, parte da fase de maturação artística.

Ainda assim, demonstrou alguma satisfação com o resultado do livro:

Esta nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras, que não alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me foi depois, correspondendo assim ao capítulo da história do meu espírito, naquele ano de 1876.

Não me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco da mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo.



[1] de Moraes, V. L. A. (2008). Helena: Construções e contradições. Revista Da Anpoll, 1(24). https://doi.org/10.18309/anp.v1i24.16

sábado, 1 de junho de 2024

A Poesia de Patativa do Assaré: o trovador nordestino

 A Poesia de Patativa do Assaré: o trovador nordestino.





Resenha Livro – “Cante lá que eu canto cá: filosofia de um trovador nordestino” – Patativa do Assaré – Ed. Vozes.

“Arguém diz que o mundo presta,

Grita mermo em arto som,

Mas é tolo e nada sabe

Quem diz que este mundo é bom.

Como é que ele tem bondade

Se a nossa felicidade

Voa como pensamento

E da praça inté no campo

O gozo é cumo relampo

Que abre e fecha num momento

Dêrne do primero dia,

Que Adão mais Eva pecou,

A rosa criou espinho,

Tudo se desmantelou.

E Deus vendo que a desgraça

De Adão, o chefe da raça,

Precisava sê comum,

Depressa sentenciou,

E uma pacela de dô,

Reservou para cada um.

(A Menina e a Cajazera)

Patativa é uma pequena ave cujo canto é fino e melodioso, imitando em alguns casos os sons do bem-te-vi. O seu nome científico é Sporophila plúmbea, que dignifica (Ave) cor de chumbo que gosta de sementes.

Foi a ave que batizou o poeta sertanejo Antônio Gonçalves da Silva (1909/2002) nascido na cidade de Assaré, situada no sertão do estado do Ceará.

A relação do poeta com o passarinho decorre da forma e do conteúdo dos seus versos.

 Na forma, pelo fato de Patativa do Assaré exprimir a sua poesia através da oralidade: desde criança, cantava em verso as histórias de sua terá natal.  Sua obra em livros na verdade são coletâneas de poemas que cantava e sabia de memória, recitando-os de cabeça até os noventa anos de idade.

No conteúdo pelo fato de sua poesia ser uma afirmação dos sentimentos da terra: a percepção direta da natureza e da sociedade rural do sertão são os fatos geradores da arte. Nela nada há de cerebrino: há uma espécie de filosofia telúrica cujas ideias estão intimamente relacionadas à experiência e a vivência com a terra. Neste último ponto, foi uma espécie de versão brasileira de Alberto Caeiro, heterônimo do poeta português Fernando Pessoa: são poetas ligados à natureza, captada através da simplicidade das palavras e de uma profunda emotividade.

A poesia exurge de forma tão natural quanto o canto da ave.

Veja neste sentido “Aos Poetas Clássicos”

“Poetas niversitário,

Poetas de Cademia,

De rico vocabularo

Cheio de mitologia;

Se a gente canta o que pensa,

Eu quero pedir licença,

Pois mesmo sem português

Neste livrinho apresento

O prazê e o sofrimento

De um poeta camponês.

(...)

Na minha pobre linguage

A minha lira servage

Canto o que minha arma sente

E o meu coração incerra,

As coisa de minha terra

E a vida de minha gente.

(“Aos poetas clássicos”).  

 De outro lado, a percepção do imediato não se limita à contemplação da natureza mas à crítica social: a denúncia do latifúndio, a exposição da miséria do retirante, o problema da manipulação política dos coronéis. Porém, o sofrimento do homem do sertão não estimula o poeta ao rompimento com os seus laços da terra. Com todos os problemas, ainda afirma que sua felicidade repousa no canto da terra onde nasceu.

Sobre a infância do poeta, válido citar a “autobiografia” tratada pelo poeta no prefácio do livro “Cante Cá que eu Canto Lá”:

“Eu, Antônio Gonçalves da Silva, filho de Pedro Gonçalves da Silva, e de Maria Pereira da Silva, nasci aqui, no Sítio denominado Serra de Santana, a três léguas da cidade do Assaré. Meu pai, agricultor muito pobre, era possuidor de uma pequena parte da terra, a qual depois de sua morte foi dividida entre cinco filhos que ficaram, quatro homens e uma mulher. Eu sou o segundo filho. Quando completei oito anos fiquei órfão de pai e tive que trabalhar muito, ao lado de meu irmão mais velho, para sustentar os mais novos pois ficamos em completa pobreza”

Apenas frequentou a escola aos doze anos e nela ficou por quatro meses, sem interromper o trabalho na roça. Apenas aprendeu a ler, e depois nunca frequentou um banco escolar. Ainda,  perdeu a visão de um olho na infância por conta de sarampo.

Aos 16 anos, comprou o violão e começou a fazer repentes e a cantar de improviso. Fazia apresentações em festas populares. E a poesia continuou a fazer parte de sua vida junto com o trabalho no campo: morreu aos 93 anos na mesma cidade de Assaré, a despeito de ter sido reconhecido como o grande poeta popular brasileiro já em vida. Basta dizer que foi agraciado ainda em vida como Doutor Honoris Causa em mais de uma universidade, além de ter sido criada uma universidade naquele estado que leva o seu nome e funciona até os dias e hoje.

O leitor que tem contato com a poesia de Patativa do Assaré é levado à conclusão de que nem sempre a afirmação da tradição está em contradição com a crítica social que sugere grandes transformações do mundo.

Sua ideologia cabocla, em oposição à modernidade, aspira a justiça social. A forma visionária e lúdica com que descreve o mundo sertanejo nos faz lembrar de um mundo rural em vias de extinção com  a troca do engenho de pau pelo engenho de ferro e depois pela Usina capitalista. Os filhos dos camponeses que se aventuram na cidade, tornam-se vítimas da exploração do patrão da indústria e estão sujeitos à desgraça do crime e da prostituição. O crescimento da cidade vai fazendo evaporar aquele mundo rural secular.

Curiosamente, essas ideias o tornariam hoje um “dissidente” em oposição à fragmentação e desmantelamento dos laços comunitários típicos da modernidade e da sociabilidade liberal e capitalista.

 

domingo, 5 de maio de 2024

“Morte e Vida Severina” – João Cabral de Melo Neto

 “Morte e Vida Severina” – João Cabral de Melo Neto



Resenha Livro – “Morte e vida severina e outros poemas para vozes” – João Cabral de Melo Neto – Ed. Nova Fronteira

“E se somos Severinos

Iguais em tudo na vida,

Morremos de morte igual,

Mesma morte severina:

Que é a morte de que se morre

De velhice antes dos trinta,

De emboscada antes dos vinte,

De fome um pouco por dia

(de fraqueza e de doença

É que a morte severina

ataca em qualquer idade

e até gente não nascida.)”.

O primeiro livro de poesias publicado pelo escritor pernambucano João Cabral de Melo Neto data de 1942, quando o artista acabara de se transferir do Nordeste ao Rio de Janeiro. Na cidade que era então o centro político e cultural do país,  entrou em contato com um círculo intelectual do qual participavam Manuel Bandeira, Vinícius de Morais e Carlos Drummond de Andrade, este último considerado por Cabral de Melo como o maior poeta brasileiro de todos os tempos. Consta ter sido convencido acerca de sua vocação de poeta após ter lido “Alguma Poesia” (1930), que reúne os mais conhecidos versos do poeta de Itabira.

Contudo, certamente o trabalho mais conhecido de Cabral de Melo Neto foi “Morte e Vida Severina” (1954/1955) escrito treze anos depois do início da sua trajetória literária.

O poema foi elaborado com a finalidade de encenação, mas por razões financeiras, sua exibição no teatro se deu apenas no ano de 1966, numa apresentação no TUCA onde se situa a PUC/SP: era um importante centro político-cultural,  que agrupava o movimento estudantil para realização de atividades como exibições de filmes, debates, assembleias, encenações teatrais e apresentações musicais. O teatro se notabilizaria com os eventos de 22.09.1977 quando uma assembleia de cerca de dois mil estudantes, convocada para a reconstrução da UNE, foi dissolvida por uma ação policial violenta, envolvendo três mil soldados, ensejando pela repressão uma nova onda de protestos estudantis que seria um dos eixos do movimento de redemocratização do Brasil.

Certamente, “Morte  e Vida Severina” tinha um claro conteúdo político, de denúncia da miséria social nordestina através do personagem Severino, representativo do retirante que abandona o Sertão, passa pelo agreste e chega ao Recife, fugindo da morte em direção ao mar tal qual as águas do Rio Capiberibe, que segue o mesmo itinerário no poema “O Rio”.

Contudo, não é propriamente a denúncia social ou a crítica política do latifúndio e da miséria da população camponesa o que dá o tom da poesia cabralina.

O que nela há de comum é o elemento telúrico, a descrição da terra natal através da memória da infância. A história da terra tratada nos poemas envolve inclusive a memória do grande líder da Confederação do Equador, Frei Caneca, novamente denotando a forte relação do poeta com as suas raízes pernambucanas, como exposto no poema “Auto do Frade” (1984).

E, além desse elemento telúrico, outro aspecto representativo da poesia de Melo Neto é a morte: no caso do seu mais conhecido poema, “a morte em vida”, e “a vida em morte”: o retirante que morre aos poucos, já envelhecido aos trinta anos de idade (“morte em vida”); e a cova para onde o retirante inexoravelmente marcha, e que corresponde à uma parte da terra que em vida queria ver dividida (“vida em morte”):

“- Essa cova em que estás,

com palmos medida,

é a conta menor que tiraste em vida.

- É de bom tamanho, nem largo nem fundo,

é a parte que te cabe neste latifúndio.

- Não é cova grande,

é cova medida,

é a terra que querias

ver dividida.”

Esses dois elementos essenciais da poesia cabralina, a morte e a descrição da sua terra natal, remontam ambas à origem do escritor.

Nascido no Recife em 09 de janeiro de 1920, passou a infância no engenho do Poço do Aleixo, em São Lourenço da Mata, interior de Pernambuco, às margens do Rio Capiberibe, que é reiteradamente mencionado nos versos. Estudou num colégio religioso, que lhe incutiu o pavor da morte.  

Válido pontuar que a maior parte dos poemas foram escritor quando o escritor residia fora do país, exercendo a função de diplomata em Espanha, Paraguai e Senegal. Foi através das suas memórias de menino que elaborou poesias carregadas de imagens, plenamente adaptáveis ao teatro e ao cinema.

A mesma arte telúrica rememorativa da infância de José Lins do Rego na sua descrição da decadência dos velhos engenhos de açúcar, e sua substituição, através da reestruturação produtiva do capitalismo tardio, em Usinas que desertificam as vilas, expulsam seus moradores da cidade e tornam todo o seu arredor, até o alcançar da vista, em plantações de cana.

Cite-se o mencionado poema “O Rio” de Cabral de Melo Neto:

“A usina possui sempre

uma moenda de nome inglês;

o engenho, só a terra

conhecida como massapê”.   

No que toca à morte, trata-se do fio condutor de pelo menos três dos seus poemas mais conhecidos: “Morte e Vida Severina”; “Auto do Frade”; e “O Rio”.  

Em Morte e Vida Severina, o retirante se depara com diferentes espécies de morte.

No seu caminho do sertão ao mar, se depara com homens carregando um defunto numa rede. Tratava-se da “morte matada”: o defunto foi assassinado à bala por conta de disputas de terra.

Depois, ao chegar em Recife e próximo ao cemitério, ao escutar o diálogo de dois coveiros, se depara com a “morte morrida”: são as mortes em alta escala dos retirantes, que morrem dia a dia, aos poucos, chegando à velhice antes dos trinta. Trata-se de uma morte não dissociada das desigualdades sociais: o coveiro prefere trabalhar no cemitério dos ricos onde o volume de trabalho é menor e há a possibilidade de se ganhar gorjetas.

A vida segue através de um fio condutor que a leva até a morte.

Este trajeto de repete no poema “O Rio” em que o Capiberibe parte do sertão para desaguar e se diluir no infinito do mar. Através dessa viagem, o poeta vai traçando as vilas, o povo e os sertanejos que se servem dos trajetos dos rios para conduzi-los até o Recife em fuga da seca. Neste itinerário, também se depara com a morte e miséria dos retirantes.

O mesmo fio desde a vida até a morte se revela por fim no poema épico “Auto do Frade” (1984). Nele se descreve o cortejo popular que acompanha o líder da revolta separatista conhecida como “Confederação do Equador”, desde a prisão até a praça pública onde será executado.

Ainda que todos os caminhos levem à morte, seja a do rio em direção ao mar, seja do retirante em direção à cidade, seja o mártir em direção à forca, ainda há um balanço positivo.

Ao final de “Morte Vida Severina”, quando Severino testemunha o nascimento de uma criança filha da miséria, o leitor é levado à conclusão de que essa vida miserável do retirante, essa “vida severina”, ainda assim é digna de ser vivida:

“E não há melhor resposta

que o espetáculo da vida:

vê-la desfiar seu fio,

que também se chama vida,

ver a fábrica que ela mesma

teimosamente, se fabrica,

vê-la bbrotar como há pouco

em nova vida explodida;

mesmo quando é assim pequena

a explosão, como a ocorrida;

mesmo quando é uma explosão

como a de há pouco, franzina;

mesmo quando é a explosão

de uma vida severina.

mesmo quando é uma explosão

como a de há pouco, franzina;  

 

Bibliografia: COIMBRA, Glayce Rocha Santos. A Morte Severina em Cândido Portinari e em João Cabral de Melo Neto. 2012. 155 f. Dissertação (Mestrado em Processos e Sistemas Visuais, Educação e Visualidade) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2012.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

“O Conde d’Abranhos” – Eça de Queiroz

 “O Conde d’Abranhos” – Eça de Queiroz





Resenha Livro - “O Conde d’Abranhos” – Eça de Queiroz – Ed Iba Mendes

 

José Maria de Eça de Queirós nasceu em 25 de novembro de 1845 na Póvoa de Varzim em Portugal. Seu pai fora magistrado, formado em Direito em Coimbra e amigo pessoal de Camilo Castelo Branco, expoente do romancismo português.

Aos dezesseis anos Eça de Queirós também ingressou no curso de Direito em Coimbra, quando publicou seus primeiros trabalhos literários. Posteriormente, o escritor exerceria a advocacia e o jornalismo, até o ano de 1870, quando ingressou na administração pública na condição de gestor da vereança de Leiria. O fato é de destaque desde que Leiria é o local onde se passa a maior parte dos eventos de um dos seus livros mais conhecidos, “Crime do Padre Amaro”. (1875)

Em 1873, Eça de Queirós ingressa na carreira diplomática, exercendo cargos oficiais em Havana, Newcastle e Bristol. É a partir deste período que escreve os seus principais romances: “O Primo Basílio” (1878), “Os Maias” (1888), além do mencionado “Crime” de 1875.

Não seria exagero dizer que foi um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos, sendo certamente o ponto mais alto do romance em língua portuguesa do século XIX.

Foi precursor do realismo literário em língua portuguesa, movimento que propunha a superação da tradição romântica, a ela se opondo especialmente no que toca à idealização da realidade: a proposta no realismo é descrevê-la de forma objetiva, com a intenção crítica, o que em Eça de Queiroz se dá através da caricatura, ou seja, do humor.

O marco inicial do realismo em Portugal se deu em torno da Questão Coimbrã.

Trata-se de uma batalha intelectual em torno da literatura que opôs de um lado a tradição romântica, com o seu conservadorismo, formalismo e academicismo e de outro lado jovens estudantes de Coimbra que salientavam a falsidade na forma romântica de percepção da realidade e propunham não só a mera descrição objetiva do mundo mas uma crítica que ensejasse transformações sociais.

Fala-se em batalha intelectual por se tratar efetivamente de um conflito cuja dimensão ia além do problema literário: tratava-se de uma lide envolvendo o tradicionalismo/conservadorismo em oposição à modernização/liberalismo.

Ainda sob o impacto da Revolução Francesa e das revoluções burguesas subsequentes, os jovens escritores, particularmente Eça de Queiroz, tinham intenção de ridicularizar e demolir velhas tradições: desde o casamento e a fidelidade conjugal em Primo Basílio, passando ao falso moralismo do clero e a beatice carola de mulheres desocupadas em O Crime do Padre Amaro. 

A arte realista é a expressão literária do liberalismo burguês num momento histórico ainda impactado pela Revolução de 1879 e as revoluções burguesas europas subsequentes. Trata-se de uma época muito anterior ao completo estado de composição do liberalismo hoje visto.

 De uma certa maneira, a própria evolução histórica de Portugal, país pioneiro na Europa na sua constituição de Estado Nacional desde a Revolução de Avis (1383), mas país retardatário no que diz respeito ao desenvolvimento do capitalismo industrial, especialmente se comparado a países como Inglaterra, França e Alemanha: este desenvolvimento histórico suis generis faria muito provavelmente com que a disseminação de ideias liberais e republicanas em Portugal ensejasse maiores conflitos diante da sobrevivência e resquício do misticismo religioso. Lá o peso da tradição fez com que a monarquia acabasse em 1910, mais de vinte anos depois do Brasil e mais de um século depois da França.

Dentre as principais características do realismo literário podemos citar a objetividade em oposição ao subjetivismo que informam as narrativas românticas; a crítica social com um intuito reformador, podendo se dizer que a proposta realista coincide com a visão social de mundo burguesa no contexto do capitalismo em sua fase industrial. Ênfase na descrição da vida cotidiana, de modo que os cenários passam também a remeter ao ambiente urbano, local onde se encontram os tipos sociais, desnudando especialmente os interesses pessoais que informam a conduta de padres, beatas, bacharéis, jornalistas, comerciantes etc. Esta forma descritiva foge bastante da tendência da idealização romântica, dando uma feição mais humana e verdadeira aos personagens em suas relações. Por vezes, esse realismo está contaminado da visão de mundo liberal e o seu consectário mais evidente: o individualismo, sugerindo a percepção de que os personagens não se mobilizam para nada que não seja o seu interesse imediato.

Neste marco, o Conde D’abranhos (1925 – póstumo) é talvez o livro em que Eça de Queiroz levou mais ao extremo a sua capacidade de traçar caricaturas para realizar a crítica e o deboche, neste livro em particular, centrando sua munição na classe política portuguesa.

O protagonista é um nome fictício de um político absolutamente inescrupuloso, que segue numa escala ascendente de poder sempre através da esperteza e da sorte, e nunca através do merecimento.

Quando estudante de Direito em Coimbra, já no primeiro ano, se notabiliza por dedurar um colega rebelde, que gracejava com o professor, acarretando de um lado a expulsão do estudante infrator e de outro o seu bom relacionamento com o professor ofendido. A bajulação fez como que fosse aprovado com notas de louvor, a despeito da sua mediocridade intelectual.

Filho de um simples alfaiate, desde cedo tem pavor à pobreza e se beneficia de uma tia rica, com quem passa a viver e é quem banca os seus estudos.  Posteriormente, quando esta tia velha se decide a se casar com um belo jovem, vê-se horrorizado pela concorrência em torno do espólio da parente rica.

Inicia sua trajetória no jornalismo, escrevendo matérias em benefício de um político que sustenta a imprensa. Casa-se com uma filha de desembargador, herdeira de 12 mil contos. E através destes contatos vai galgando cargos de poder até se tornar ministro de estado.

O ponto culminante da carreira política se dá após a sua nomeação como Ministro da Marinha. Curiosamente, o Conde nunca vira o mar, e mal sabia distinguir onde se localizavam no mapa as colônias portuguesas.

Obviamente, a sua nomeação se deu após lance de sorte (a morte de um concorrente) e a traição ao partido da ocasião, para passar ao lado do campo político oposicionista que se projetava no poder. Na política portuguesa, a disputa não se centra em torno do horizonte ideológico ou da visão social de mundo, mas nos meios pelos quais se garante a manutenção no poder. Afinal, nas palavras do Conde, seria um horror e uma humilhação sair-se derrotado com os governistas e ser obrigado ao retorno doméstico para cuidar da mulher e do filho. Mais desejável foi bandear-se no momento oportuno para a oposição.

O efeito humorístico fica acentuado na forma como a história é contada: ela é narrada por um secretário particular do Conde, favorecido em vida e bajulador do Conde mesmo após a sua morte. Decide escrever a biografia e sempre busca justificar e tergiversar as trapaças do falecido. Precisa forçar tanto a barra para limpar a imagem do Conde que só acentua nas suas considerações o tom engraçado com que descreve  desvio de caráter do político.

A caricatura se estende aos demais personagens.

Numa passagem do Conde D’abranhos, o escritor descreve aquilo que seria um discurso no parlamento português e assim traça a fisionomia de um parlamentar:

“Este personagem, com efeito, pela face redondinha e jovial, de óculos de ouro, por todo o seu serzinho barrigudo, pela untuosidade vaga das suas palavras, pela plácida polidez, assemelhava-se ao amável filantropo, cheio de provérbios e de virtude, de que o livro querido onde aprendemos a soletrar. O seu discurso foi a repetição das mesmas injúrias, mas em uma voz suave e chorosa”. 

Veja-se que a noção da caricatura se relaciona diretamente à proposta de crítica demolidora da sociedade portuguesa: nela se traça com um certo exagero algumas qualidades e caracteres físicos mais salientes da personagem, com um claro efeito humorístico e um juízo crítico subjacente.  

No prefácio do romance, escrito em 1925 por José Maria D’eça de Queiroz, filho do escritor, há menção ao forte animus jocandi do livro.

Consta que que a obra em questão, ao seu tempo, foi escrita com uma intenção excessivamente burlesca, exagerando na caricatura ao traçar o perfil dos políticos portugueses. Tanto o foi, que o livro foi rejeitado pelo editor, obrigando o escritor a deixa-lo arquivado na gaveta até ser encontrado pelo seu filho, que o publicaria em 1925.

Curiosamente, já ao tempo do filho José Maria, a ficção se aproximou da realidade:

“Hoje, porém, os tempos mudaram, e a leitura do Conde d’Abranhos sugere-nos esta observação paradoxal: com o passar dos anos – o livro ganhou atualidade! Os tempos e os homens parecem querer encarregar-se de transformar em realidade flagrante o que não passava de exagero burlesco”.

Considerações que poderíamos estender ao Brasil de hoje: a comparação cabe como uma luva.