quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

“Otelo” – William Shakespeare

 “Otelo” – William Shakespeare



Resenha Livro - “Otelo” – William Shakespeare – Ed. L&PM Pocket

Não seria exagero dizer que William Shakespeare foi o maior dramaturgo da história das artes cênicas, desde as primeiras experiências do teatro grego, por volta do século VI a.C. É, em todo o caso, indene de dúvidas que as suas peças foram a que mais tiveram encenações por todos os cantos do mundo, com traduções para todas línguas modernas e as mais diversas adaptações na literatura e no cinema.

“Hamlet”, “Romeu e Julieta”, “Rei Lear” e “Otelo” foram não só exaustivamente encenadas mas serviram de ponto de partida para a criação e o desenvolvimento do Teatro Moderno. Ou seja, encontram-se ecos das tragédias e comédias shakespearianas em toda a produção cênica subsequente.

Para pegarmos o exemplo de “Otelo”, cuja tragédia teve como esteio a intervenção diabólica do personagem “Iago”, pode-se encontrar reverberações dessa história em peças teatrais de José de Alencar a Nelson Rodrigues, respectivamente através das peças “Demônio Familiar” e “Toda Nudez Será Castigada”, cada uma com os seus respectivos “Iagos”. Em Alencar, na figura de “Pedro”, um escravo que se utiliza de vivacidade e malícia para tumultuar a vida doméstica e satisfazer os seus interesses pessoais; e em Nelson Rodrigues pela na figura de “Patrício”, outro manipulador que corrompe tudo e todos que gravitam ao seu redor. Obviamente, os dois exemplos do teatro nacional se estendem a todo o resto do mundo.

A despeito da ampla repercussão das obras de Shakespeare, há muitas lacunas na biografia do artista, o que talvez se justifique por se tratar de um homem que viveu e atuou no século XVI, há mais de quinhentos anos, portanto. Quando escreveu a maior parte de suas peças, havia pouco mais de um século que os Europeus atingiram a América pela primeira vez; há noventa anos de diferença entre as principais peças do escritor inglês e a descoberta do Brasil, para se ter uma dimensão.

As primeiras alusões ao nome de Shakspeare em documentos históricos datam de 1592 quando foi publicada na imprensa londrina uma crítica (desfavorável) de uma de suas peças. No início do século subsequente, poucos anos após a sua morte, houve a primeira compilação de suas peças.

Sabe-se que o grosso da atividade intelectual do dramaturgo deu-se entre 1590-1613. Há até hoje o registro de 38 peças de Shakespeare, além de poemas e sonetos. Àquele tempo, não havia uma divisão de tarefas envolvendo o autor do roteiro, o diretor, o ator, o empresário e a equipe técnica. As companhias de teatro da época eram formadas por dez a quinze membros e funcionavam como cooperativa. Todos recebiam e participavam dos lucros. Além de escrever as peças, Shakespeare atuava como ator  e o que poderíamos dizer, não sem algum,  anacronismo como “empresário” que articulava e comercializava as encenações.

Os teatros da era elisabetana eram feitos de madeira, a céu aberto, com um palco que se projetava à frente, em volta do qual se punha a plateia de pé. Ao fundo havia duas portas, pelas quais os atores entravam e saíam. Não havia cenário, de tal forma que a peça começava com a entrada do primeiro ator e terminava à saída do último. Como havia uma grande proximidade do público – mormente se considerando inexistir microfone ou aparelhos amplificadores de som – trejeitos e expressões faciais dos atores eram bem percebidas. Em nenhuma hipótese havia atriz: mesmo as personagens femininas eram desempenhadas por homens.

Estima-se que milhares de pessoas assistiram as encenações de Shakespeare.

As peças foram já àquele tempo reunidas e comercializadas em livro. (O advento da imprensa através do trabalho de Johann Gutenberg deu-se cerca de 150 anos antes do nascimento do dramaturgo). As informações disponíveis indicam que o Shakespeare terminou a vida em boas condições financeiras, o que se deu através do êxito de seu trabalho como dramaturgo. Contudo, ao final da vida, as encenações foram prejudicadas por conta da disseminação na peste negra na Inglaterra.

“Otelo” pertence ao rol das maiores tragédias de Shakespeare. Há nela todos os elementos da tragédia grega e o protagonista Otelo reúne as qualidades do herói trágico grego: um homem de ação, dotado de força e iniciativa, sem a introspecção e atividade reflexiva que o desmobilizasse.

A história se passa em Veneza e na ilha de Chipre, dentro do contexto da guerra travada entre o Império Otomano e a República de Veneza (1499–1503). O protagonista que dá nome à peça é um dirigente militar, respeitado por suas habilidades de guerras e pelo seu histórico em defesa do povo de Veneza. Mas, por outro lado, era um mouro, identificado com a cor negra dos povos do norte da África e por isso não aceito como parte da nobreza da República.

Otelo apaixona-se e casa-se secretamente com Desdêmona, filha de um senador de Veneza chamado Brabâncio, que rejeita a filha após ter ciência do casamento, acreditando ter sido ela  enfeitiçada para aceitar o relacionamento com um homem de cor. O amor de Desdêmona, como se demonstrará na peça, é sincero e puro: o que lhe atrai em Otelo é o histórico de aventuras, lutas e guerras travadas pelo Mouro.

Iago, um alferes de Otelo, é preterido para um cargo de militar de Tenente, despertando o ódio que levará à vingança. Toda a atividade diabólica desse personagem tem como ponto de partida o ressentimento pela rejeição ao posto militar e a pretensão de destituir o escolhido ao cargo (Cássio) através da manipulação sub-reptícia e do estimulo sorrateiro aquilo que há de pior no homem.

Num primeiro momento, estimula Cássio a se embriagar, sabendo que o nobre tenente não tinha experiência prévia com a bebida. Em paralelo, articula com Rodrigo, um jovem que ama Desdêmona, a forjar uma briga com Cássio para desmoralizar o tenente perante o Mouro.

Depois de conseguir a destituição de Cássio ao cargo, Iago passa a fazer ilações sobre a fidelidade de Desdêmona. Paulatinamente, vai despertando a desconfiança do Mouro em relação a sua mulher, dizendo ter avistado conversas e trocas de intimidade entre Desdêmona e Cássio.

Otelo, cuja nobreza foi testada através da sua atividade militar em defesa de Veneza, vai tendo a sua moral minada pelo sentimento de ciúmes. Por ser negro, sente-se inferior a Cássio e sua mulher, e a sua desconfiança vai sendo estimulada pelas insinuações de seu alferes. Os ciúmes é um sentimento mal que brota do homem, dentro de si mesmo. Iago constitui a força do mal que luta contra o bem pela posse da alma humana.

O fim trágico da peça, em que Otelo mata Desdêmona para na sequência descobrir a inocência de sua mulher, revela a capacidade de Iago (que consubstancia o Mal) de corromper tudo a sua volta e utilizar-se da boa índole de alguns para manipular e destruir outros.  

Ao deixar-se sucumbir pelos ciúmes, Otelo permitiu que a parcela do mal que reside em sua alma prevalecesse sobre os demais aspectos nobres de seu caráter. É condenado ao inferno e como meio de redimir ao seu erro trágico, tira a sua própria vida, na passagem final da peça.

domingo, 24 de novembro de 2024

“Toda Nudez Será Castigada” – Nelson Rodrigues

 “Toda Nudez Será Castigada” – Nelson Rodrigues





Resenha Livro - “Toda Nudez Será Castigada” – Nelson Rodrigues – Ed. Nova Fronteira

“Toda Nudez Será Castigada” foi encenada pela primeira vez no Teatro Serrador do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1965. Teve como diretor Ziembiński, um ator e diretor polonês naturalizado no Brasil, com quem Nelson Rodrigues trabalhou em diversas outras peças.

Talvez a mais importante delas foi “Vestido de Noiva” (1943) pelo seu caráter pioneiro e experimental, quando pela primeira vez propôs a constituição de cenário em que se intercala de forma concomitante o plano da realidade, o plano da alucinação e o plano da memória. A composição não tem um caráter linear e cada plano vai sucedendo o outro sem uma ordem cronológica, como se o espectador  estivesse diante de um quadro, com a realidade e o imaginário justapostos, e não propriamente uma história com começo, meio e fim.   

Neste sentido, pode-se dizer que o diretor polonês deu a sua contribuição, em conjunto com Nelson Rodrigues, para a inauguração do Teatro Moderno no Brasil, porquanto, até então, a atividade cênica era restrita ao recreativo e ao folhetinesco, sem a pretensão de esmiuçar a alma humana e suas contradições, enfrentar temas tabus e/ou propor novas experimentações formais; o teatro até então tinha como horizonte o entretenimento.   

“Toda Nudez Será Castigada” serve-se da mesma experimentação formal, ao estabelecer em paralelo ao plano da realidade as memórias da prostituta Geni, gravadas numa fita cassete, pouco antes da sua morte por suicídio.  A mensagem é endereçada a um amante da falecida, chamado Herculano e, na medida em que a fita enuncia as recordações do passado, a realidade emerge através de outro plano cênico, ilustrando e dando um fio condutor à história, inicialmente enunciada no registro em fita cassete das recordações de uma suicida.  

O erotismo explícito é um dos traços que caracteriza a dramaturgia de Nelson Rodrigues.

Nesta peça em particular, a obscenidade surge como uma força oculta por de trás de um disfarce de castidade. A proposta é a de demonstrar a hipocrisia por detrás do moralismo vigente. A ideia subjacente é a de que os mais impuros são aqueles que se imaginam castos.

Herculano foi um homem dedicado inteiramente à família, sem vícios e vivendo num  ascetismo fora do comum. Em toda a sua vida, teve relação sexual apenas com sua mulher, até tornar-se viúvo. Cogita o suicídio, ao ponto de familiares esconderem o seu revolver, já imaginando a tragédia. Ao descobrir a arma, Herculano aponta o cano na boca mas não segue adiante com o seu propósito de ceifar a própria vida. Numa conversa com o médico da família, revela posteriormente ter interrompido o plano ao associar o cano do revolver em sua boca com uma atividade sexual. Até naquele momento extremo, é traído por sua própria castidade.

 Em todo o caso, o viúvo faz uma promessa solene ao seu filho Serginho, dizendo que jamais tocaria em nenhuma outra mulher em respeito à memória da falecida esposa.

O irmão de Herculano, chamado Patrício, é movido pelo mesmo ódio bíblico de Caim e Abel. Tem o desejo de vingança desde quando se tornou um pária na família por não adotar a mesma higidez moral de seu irmão. Quando criança, Patrício foi flagrado pelas tias travando suas primeiras relações com uma cabra, tornando-se, e reconhecendo-se desde então, como alguém abertamente obsceno. Seu propósito de vingança é corromper o irmão e desmoralizá-lo perante as tias e o sobrinho Serginho.

Para tanto, convence o irmão a travar relações com Geni, uma prostituta.

HERCULANO (com a voz estrangulada para si mesmo) — Me convidar, ter essa coragem — pra ir à zona!

PATRÍCIO — Não é zona. Rendez-vous de gabarito. E a Geni não é o que você pensa!

HERCULANO — Uma prostituta!

PATRÍCIO — Não vamos fazer um bicho de sete cabeças. Não é, não é como as outras!

HERCULANO (desesperado) — Vagabunda é vagabunda!

patrício — Fez o científico. Com Geni, se pode conversar. Humana, entende? E vou te dizer mais! Não conheci, até hoje, uma mulher mais humana.

HERCULANO (febril) — E está lá por quê?

PATRÍCIO — Sei lá. Azar.

HERCULANO (triunfante) — Vírgula! Assim como se nasce poeta, ou judeu, ou bombeiro — se nasce prostituta!

Através da malícia e da manipulação de Patrício, Herculano capitula. Entrega-se de forma compulsiva ao desejo sexual. Passa 72 horas na casa da prostituta embriagando-se do álcool e saciando toda a lasciva acumulada. Quando dá conta de si e do que aconteceu, revolta-se contra todos e contra si mesmo. Quer enxotar Geni e vingar-se do irmão. Mas depois dessa primeira experiência, não mais consegue conter a concupiscência sexual reprimida. No redemoinho dos seus desejos sexuais, vai abandonando suas crenças, preconceitos e medos. Não consegue se desligar da prostituta conquanto não pode também assumi-la perante a sociedade e a família.

Serginho, ainda mais ligado à mãe falecida do que o pai, descobre o caso envolvendo Geni e fica fora de si. Novamente, a tragédia tem o dedo de Patrício, que é quem revela o segredo sórdido do irmão ao sobrinho. Numa explosão de angústia, Serginho embebeda-se, arranja uma confusão e é preso. Na cadeia, tem a sua virgindade violada após ser estuprado por um “ladrão boliviano”. Revolta-se com o pai, a quem culpa pela sua desgraça e pela desonra da memória da mãe falecida. Posteriormente, tal qual o pai, essa mesma castidade do filho é subvertida na mais completa falta de pudor: a violência sexual que sofreu vira fonte de desejo, ao ponto de buscar o homem que o estuprou para com ele fugir e viver o amor homossexual.

Nessa trama em que ódios ocultos explodem em vinganças terríveis e a castidade é a maior fonte do obsceno, é justamente a prostituta suicida aquela que aponta uma pálida referência de um amor desinteressado. Se num primeiro momento, aproximou-se de Herculano estimulada pelo interesse financeiro, desenvolve por ele um amor sincero. Em relação a Serginho, manifesta uma compaixão incomum, de caráter maternal, por sua tragédia, inobstante o ódio que o adolescente lhe devota. Ao lado da desagregação da castidade de Herculano e Serginho, brota a ternura desinteressada da prostituta.

O trágico da peça se revela pelo efeito desagregador das tensões sexuais, especialmente àqueles que se pretendem puros. E, àquela prostituta difamada, cujo corpo pertenceu a tantos homens, não lhe restou um só coração com que compartilhasse o seu amor, sobrando-lhe a morte pelo suicídio.

E assim, termina a peça, com as últimas palavras enunciadas por Geni antes da morte:

   (Voz gravada de Geni.)

GENI — Teu filho fugiu, sim, com o ladrão boliviano. Foram no mesmo avião, no mesmo avião. Estou só, vou morrer só. (num rompante de ódio) Não quero nome no meu túmulo! Não ponham nada! (exultante e feroz) E você, velho corno! Maldito você! Maldito o teu filho, e essa família só de tias. (num riso de louca) Lembranças à tia machona! (num último grito) Malditos também os meus seios! (A voz de Geni se quebra num soluço. Acaba a gravação. Sons de fita invertida. Iluminada apenas a cama vazia.)

CAI O PANO, LENTAMENTE, SOBRE O FINAL DO TERCEIRO E ÚLTIMO ATO

 Brasil e Teatro Moderno

Como mencionado, a importância do escritor Nelson Rodrigues no Teatro Brasileiro reside no fato de ter inaugurado e consolidado o modernismo na dramaturgia nacional. Até então, o teatro brasileiro se baseava na comédia de costumes, nos dramalhões e o no teatro musicado herdado do século XIX. Com a nova dramaturgia do escritor carioca, temos uma expressão mais consistente da psicologia humana, das contradições entre o desejo erótico e as regras sociais, e das frequentes transgressões morais de personagens que deixam de ser caricaturas superficiais para terem uma feição radical do homem comum, com todas as suas contradições.

A partir de “A Mulher Sem Pecado” (1942) e principalmente “Vestido de Noiva” (1943), temos um novo tipo de arte, com enfoque nos conflitos psicológicos, sem prejuízo do sarcasmo e da ironia, em que os personagens são frequentemente levados a transgredir os limites da ordem e da moral, particularmente no campo do erotismo. Enquanto antes o teatro era basicamente uma fonte de divertimento, agora passa a ter uma intencionalidade muito mais ampla, para expressar, na forma de arte, os desejos e perversões humanas ocultas e mascaradas pelas conveniências sociais. Abre-se também espaço para a experimentação formal, para o irreal e o  fantástico dentro das peças, e para a exploração de novos temas, inclusive temas tabus, particularmente o da tragédia humana decorrente do impulso sexual que leva à degradação moral.

Os elementos essenciais da dramaturgia de Nelson Rodrigues podem ser resumidos, de fato, na expressão “a vida como ela é”. Temas como a virgindade violada, os ciúmes, o incesto, a prostituição, a corrupção política e a canalhice humana denotam uma arte que busca de forma exacerbada a veracidade: a verdade se revela em situações limite, como na descoberta da traição, nos instantes que antecedem a morte ou nos pactos de mortes entre amantes, neste último caso, respondendo ao reconhecimento de que em vida não é possível manter a real  autenticidade, ante as proibições convencionadas socialmente. Há sempre nas peças certos momentos de explosão dos desejos reprimidos como o evento culminante de revelação das razões subjacentes às atitudes de cada personagem.  A verdade oculta se revela nas situações mais dramáticas.

Outro aspecto característico das peças de teatro do nosso escritor é a sua vinculação com o período histórico do Brasil de meados do século XX. Suas principais peças foram escritas entre a década de 1940/1960, momento em que o país vivia um rápido processo de urbanização, industrialização, transição demográfica do campo para a cidade e, de forma correspondente, uma veloz mudança de padrões comportamentais. O jornalismo de massas, o rádio popular, a expansão do futebol, a criação de Brasília e a nova faceta mais urbana da sociedade brasileira encontram densa  expressão do teatro de Nelson Rodrigues, nitidamente pelo fato de o próprio autor ter atuado com destaque na imprensa carioca, de onde retira inspiração para consecução de suas “tragédias cariocas”. 

Na conjuntura internacional, as peças estão situadas no contexto do pós II Guerra Mundial e da Guerra Fria, quando exsurge um sentimento de urgência relacionado aos riscos de um conflito nuclear generalizado que colocasse o mundo a baixo. Essa percepção de que o mundo poderia acabar dentro de quinze minutos é explorada como justificativa para a exposição das paixões sexuais, dentro da lógica de que “tudo é permitido” quando “tudo está prestes a acabar”.

sábado, 16 de novembro de 2024

“Bonitinha, mas ordinária” – Nelson Rodrigues

 “Bonitinha, mas ordinária” – Nelson Rodrigues



Resenha – “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária” – Nelson Rodrigues (org. Sábato Magaldi) – Ed. Nova Fronteira

A importância do escritor Nelson Rodrigues no Teatro Brasileiro reside no fato de ter inaugurado e consolidado o modernismo na dramaturgia nacional. Até então, o teatro brasileiro se baseava na comédia de costumes, nos dramalhões e o no teatro musicado herdado do século XIX. Com a nova dramaturgia do escritor carioca, temos uma expressão mais consistente da psicologia humana, das contradições entre o desejo erótico e as regras sociais, e das frequentes transgressões morais de personagens que deixam de ser caricaturas superficiais para terem uma feição radical do homem comum, com todas as suas contradições.

A partir de “A Mulher Sem Pecado” (1942) e principalmente “Vestido de Noiva” (1943), temos um novo tipo de arte, com enfoque nos conflitos psicológicos, sem prejuízo do sarcasmo e da ironia, em que os personagens são frequentemente levados a transgredir os limites da ordem e da moral, particularmente no campo do erotismo. Enquanto antes o teatro era basicamente uma fonte de divertimento, agora passa a ter uma intencionalidade muito mais ampla, para expressar, na forma de arte, os desejos e perversões humanas ocultas e mascaradas pelas conveniências sociais. Abre-se também espaço para a experimentação formal, para o irreal e o  fantástico dentro das peças, e para a exploração de novos temas, inclusive temas tabus, particularmente o da tragédia humana decorrente do impulso sexual que leva à degradação moral.

Os elementos essenciais da dramaturgia de Nelson Rodrigues podem ser resumidos, de fato, na expressão “a vida como ela é”. Temas como a virgindade violada, os ciúmes, o incesto, a prostituição, a corrupção política e a canalhice humana denotam uma arte que busca de forma exacerbada a veracidade: a verdade se revela em situações limite, como na descoberta da traição, nos instantes que antecedem a morte ou nos pactos de mortes entre amantes, neste último caso, respondendo ao reconhecimento de que em vida não é possível manter a real  autenticidade, ante as proibições convencionadas socialmente. Há sempre nas peças certos momentos de explosão dos desejos reprimidos como o evento culminante de revelação das razões subjacentes às atitudes de cada personagem.  A verdade oculta se revela nas situações mais dramáticas.

Outro aspecto característico das peças de teatro do nosso escritor é a sua vinculação com o período histórico do Brasil de meados do século XX. Suas principais peças foram escritas entre a década de 1940/1960, momento em que o país vivia um rápido processo de urbanização, industrialização, transição demográfica do campo para a cidade e, de forma correspondente, uma veloz mudança de padrões comportamentais. O jornalismo de massas, o rádio popular, a expansão do futebol, a criação de Brasília e a nova faceta mais urbana da sociedade brasileira encontram densa  expressão do teatro de Nelson Rodrigues, nitidamente pelo fato de o próprio autor ter atuado com destaque na imprensa carioca, de onde retira inspiração para consecução de suas “tragédias cariocas”.  

Na conjuntura internacional, as peças estão situadas no contexto do pós II Guerra Mundial e da Guerra Fria, quando exsurge um sentimento de urgência relacionado aos riscos de um conflito nuclear generalizado que colocasse o mundo a baixo. Essa percepção de que o mundo poderia acabar dentro de quinze minutos é explorada como justificativa para a exposição das paixões sexuais, dentro da lógica de que “tudo é permitido” quando “tudo está prestes a acabar”.

“Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária” foi representada pela primeira vez em 28 de novembro de 1962 no Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro. Está situada dentro de um grupo maior de peças teatrais qualificados pelo crítico Sábato Magaldi, com o consentimento do próprio Nelson, como “Tragédias Cariocas”.

Dentro dessa divisão, haveria ainda as chamadas “peças psicológicas” e as “peças míticas”, cada qual predominando a tragédia, a análise psicológica e a fantasia. Tal proposta de divisão das peças tem uma finalidade mais didática, sem inclusive observar a ordem cronológica das obras, já que existe uma certa coesão em todo o trabalho de Nelson Rodrigues. Nas tragédias, também há a presença do mítico e o estudo da psique. Nas peças psicológicas, estão presentes o mito e a tragédia. E nas histórias fantásticas, também se observa a tragédia e a exposição obscena das contradições do inconsciente humano.

O nome dado à peça foi uma homenagem ao escritor Otto Lara Resende, amigo pessoal de Nelson Rodrigues, e autor de uma frase repetida dezenas vezes na história: “O mineiro só é solidário no câncer”.

A reiteração da frase tem um sentido enigmático na peça: ao proferi-la, os personagens parecem tirar a conclusão de que os seres humanos em geral (e não apenas os mineiros) estão autorizados a adotar uma conduta corrupta e canalha, sem remorsos, excetos em situações excepcionais, como “na hora do câncer”.

Logo no início da peça, no primeiro diálogo entre Dr. Peixoto, um médico imoral, e Edgar, um jovem office boy, a frase vem a tona, já como uma primeira justificativa para a transgressão ética:

 PEIXOTO — Você está alto, eu estou alto. É a hora de rasgar o jogo. De tirar todas as máscaras. Primeira pergunta: — você é o que se chama de mau-caráter?

EDGARD — Por quê?

PEIXOTO(vacilante) — Pelo seguinte.

EDGARD — Fala.

PEIXOTO — Estou precisando de um mau-caráter. Entende? De um mau-caráter.

EDGARD — Quem sabe?

PEIXOTO — Espera. Outra pergunta. Você quer subir na vida? É ambicioso?

EDGARD — Se sou ambicioso? Pra burro! Você conhece o Otto? O Otto Lara Resende? O Otto!

PEIXOTO — Um que é ourives?

EDGARD — Ourives? Onde? O Otto escreve. O Otto! O mineiro, jornalista! Tem um livro. Não me lembro o nome. Um livro!

PEIXOTO — Não conheço, mas. Bola pra fora! Bola pra fora!

EDGAR — O Otto é de arder! É de lascar! E o Otto disse uma que eu considero o fino! O fino! Disse. Ouve essa que é. Disse: “O mineiro só é solidário no câncer.” Que tal?

PEIXOTO (repetindo) — “O mineiro só é solidário no câncer.” Uma piada.

EDGARD (inflamado) — Aí é que está: — não é piada. Escuta, dr. Peixoto. A princípio eu também achei graça. Ri. Mas depois veio a reação. Aquilo ficou dentro de mim. E eu não penso noutra coisa. Palavra de honra!

Peixoto propõe a Edgard o enriquecimento fácil a partir de um casamento arranjado. Maria Cecília, uma garota de 17 anos, filha de um grande empresário do RJ, é vítima de um estupro  durante um passeio de carro. O veículo para de funcionar num lugar ermo,  a vítima é cercado por cinco crioulos que atacam-na impiedosamente. Após o evento, Dr. Werneck, pai de Maria Clara, procura um homem para casar a sua filha e salvá-la da humilhação, porquanto àquela época não se admitia socialmente o sexo antes do casamento.

Edgar trabalha na firma de Werneck como ex contínuo, o que poderíamos hoje chamar de office boy. É escolhido justamente por ser pobre e mais vulnerável a se sujeitar ao suborno. O jovem mantém a recalcitrância em aceitar a proposta já que ama Ritinha, uma vizinha sua, também pobre, que mora com três filhas menores e uma mãe louca.

Os personagens transitam entre a negação constrangida e a afirmação aberta de sua própria canalhice. De forma simbólica, Dr. Werneck, mantém um desejo sádico de humilhar os outros, e presenteia o seu futuro genro com um cheque num valor milionário e o desafia: se ele realmente afirmasse a sua ética em detrimento da proposta corruptiva do casamento com Maria Cecília, deveria ser coerente e rasgar a cédula.

Edgard segue todo o resto da peça, com o cheque no bolso, vacilando entre o bem e o mal, preso no seu inconsciente a frase de Otto Lara Resende que o estimula a aceitar o pacto diabólico: “o mineiro só é solidário no câncer”. O seu orgulho (e não o sentimento de um deve ético) o impede de rasgar o cheque e desfazer o casamento.

A revelação das perversões sexuais inconscientes é estimulada pelo cínico Dr. Weneck num jogo realizado numa festa de grãos finos em sua casa, por ele chamado de “brincadeira da psicanálise”. Cada convidado, ou mais especialmente a mulher grã fina de cada convidado, é estimulada a se sentar num divã e revelar a todos o que passa no seu inconsciente.

E numa das entrevistas, vemos que a ausência da “solidariedade” vai além mesmo do que previsto por Otto Lara Resende: 

“VELHA (como uma louca) – Meu marido estava morrendo. Eu era mocinha. E adorava o meu marido. Foi meu único amor. Estava morrendo. De câncer. Câncer no sangue. No quarto,  eu caí com ataque. Meu primo, que aprendia judô, me carregou no colo. Meu marido já estava com cheiro de morte. Eu chorava, gritava. Meu primo me levou para o quarto do lado. E, de repente, eu tive vontade de trair. Trair o homem que eu amava. Trair antes que ele morresse. Fui eu que beijei meu primo na boca! Eu! Enquanto meu marido morria, eu mesmo puxava com as duas mãos o decote! Abria assim, o decote”.

A interpretação das falas é feita por Werneck na condição de psicanalista. Conforme afirma Nelson Rodrigues num dos diálogos, apenas os cínicos enxergam o óbvio.

A revelação da verdade de Maria Cecília é ainda mais chocante. Antes do casamento forjado, Edgard descobre que não houve estupro criminoso. A adolescente vira numa matéria de jornal a história de uma mulher que passara pela exata situação vexaminosa envolvendo os tais cinco crioulos. A notícia estimula o apetite sexual da adolescente que recorre ao seu cunhado para que ele contratasse cinco homens pretos para currá-la em cima do carro, num lugar ermo.

PEIXOTO – Eu me apaixonei por ela. E ela me dizia – Eu queria uma curra como aquela no jornal’. Então eu catei cinco sujeitos. Paguei os cinco. Custeou cinquenta contos. Ela queria que eu ficasse olhando. Compreendeu Edgard? Foi ela! Ela que pediu para ser violada!

EDGARD – É verdade? Responde! É verdade?

MARIA CECÍLIA – Está me machucando!

EDGARD (furioso) – E você me chamou de ‘cadelão’ – por que?

MARIA CECÍLIA (desprendendo-se com violência e recuando. Desfigurada pelo ódio) – Ex-contínuo!

PEIXOTO – Tem 17 anos e é mais puta que. E só sabe ser assim.

Inobstante a prevalência absoluta do mal no enredo, consubstanciado na tese de que o homem só é solidário no câncer (ou em alguns casos, nem na doença!), o término da peça sugere um horizonte de esperança.

Edgard resolve-se por rasgar o cheque e com isso aniquilar a frase de Otto. Renuncia com o ato simbólico a todos os benefícios que a riqueza iria lhe proporcionar para viver o seu verdadeiro amor com Ritinha. É o momento final de redenção e renascimento do homem, que desponta e deixa para trás as trevas do mal, da perversão sexual e do egoísmo: 

EDGARD – Vamos começar sem um tostão. Sem um tostão. E se for preciso, um dia, você beberá água da sarjeta. Comigo. Nós apanharemos água com as duas mãos. Assim. E beberemos água da sarjeta. E beberemos água da sarjeta. Entendeu? Agora olha.

(Edgard acende o isqueiro e queima o cheque até o fim.)

EDGARD — Está morrendo! Morreu! A frase do Otto!

(Os dois caminham de mãos dadas, em silêncio. Na tela, o amanhecer no mar.)

RITINHA — Olha o sol!

EDGARD — O sol! Eu não sabia que o sol era assim! O sol!

FIM DO TERCEIRO E ÚLTIMO ATO

terça-feira, 12 de novembro de 2024

“O Eterno Marido” – Fiódor Dostoiévski

 “O Eterno Marido” – Fiódor Dostoiévski



Resenha Livro - “O Eterno Marido” – Fiódor Dostoiévski – Editora 34 (Tradução Boris Schnaiderman)

A novela “O Eterno Marido” (1870) do Fiódor Dostoiévski (1821/1881) faz parte daquilo que poderíamos dizer ser parte da fase de plena maturidade escritor russo. Foi lançada alguns anos após o seu conhecido “Crime e Castigo” (1866) e “O Idiota” (1869) e pouco antes daquele que foi o seu maior empreendimento literário “Os Irmãos Karamázovi" (1881), este último trabalho qualificado por Sigmund Freud como o mais importante romance de todos os tempos.
Essas obras dizem respeito ao período posterior à sua prisão na Sibéria, desde quando alterou a percepção de mundo que orientou os seus primeiros trabalhos.
Em Janeiro de 1850, Dostoiévski, aos 29 anos e com dois livros já publicados, ingressou na chamada Casa dos Mortos, presídio de regime especial na cidade siberiana de Omsk, município “sujo, militarizado e depravado no mais alto grau”, nas palavras do escritor.
Consta que desde 1847 Dostoiévski frequentava as reuniões de um grêmio socialista liderado por Mikhail Petrachévski, um político e filósofo russo que intentava implantar no seu país as ideias do socialista utópico francês Charles Fourier. O contexto histórico é o da Rússia dos czares, ou, mais especificamente, do reinado de Nikolai I (1825/1855), um período particularmente difícil para aqueles que tencionavam a reconstrução liberal do Império Russo.
O grêmio foi considerado subversivo e foi desmantelado em 23/04/1849. O processo judicial contra o grupo de Petrachévski foi concluído em novembro de 1949, com a condenação de Dostoiévski e outros na pena de morte. Nos últimos instantes antes da execução da pena capital, recebeu um indulto do Czar para atenuar sua punição para a cassação dos seus direitos civis e oito anos de trabalhos forçados em presídios siberianos.
Essa experiência impactante de quase morte e desterro na Sibéria foi posteriormente narrada no livro “Memórias da Casa dos Mortos” (1862) que foi um sucesso ao seu tempo.
Outro aspecto da vida pessoal do escritor que teve alguma repercussão no seu trabalho literário diz respeito ao seu vício por jogos.
No ano de 1862, durante uma viagem à Europa, teve contato com os cassinos que o levaram ao vício. As constantes dívidas obrigaram-no a fugir da Rússia no ano de 1867 para escapar dos seus credores. Foi durante este período de seu segundo exílio, entre 1867/1871, que escreveu “O Eterno Marido”; como no caso de diversas outras publicações, o livro foi encomendado pelos seus editores e escrito portanto por razões estritamente financeiras.
Ainda assim, temos nessa composição todos os elementos que credenciam Fiódor Dostoiévski ao mais alto ponto da literatura universal. Os temas tradicionais do escritor lá estão expressos, como o caos e a dissolução familiar, os sentimentos persecutórios, a humilhação gratuita, o sadismo, a ganância, a loucura e a doença. Há no romance as cenas febris e dramáticas, a atmosfera explosiva, os diálogos socráticos e, acima de tudo, o estudo da psique. Se o psicólogo, mais do que é um mero terapeuta, é literalmente “o estudioso da psique”, então Dostoiévski, talvez mais do que um escritor, foi um psicólogo.
O Eterno Marido
A história versa sobre o reencontro entre o marido traído e o homem responsável pela traição, nove anos após seu último contato e alguns meses após o falecimento da mulher com quem se relacionaram.
Vieltchâninov, o amante, é um belo homem de 39 anos que está de passagem em São Petersburgo para cuidar de assuntos pessoais relacionados a uma das três grandes heranças que receberia em vida.
Ao rodar pelas ruas da cidade, percebe estar sendo seguido por pessoa que lhe causa desde o início uma irritação, ainda que não pôde distinguir de quem se tratava. A recordação do passado vai sendo enunciada aos poucos, sua memória é fragmentada pelos traços daquela pessoa que encontrava na rua sem poder se lembrar de imediato de quem se tratava. Há a busca pelo fio condutor do passado que atribuísse explicação ao sentimento de irritação em ver o “eterno marido”:
“Algo pareceu começar a mover-se em suas recordações – algo assim como uma palavra conhecida que, por algum motivo, de repente esquecemos, mas que buscamos lembrar com todas as forças: conhecemos essa palavra muito bem, e sabemos que a conhecemos; sabemos o que significa e tateamos ao redor; mas a palavra não quer de modo algum vir-nos à memória, por mais que lutemos!”.
Finalmente Páviel Pávlovitch (esse é o nome do “eterno marido”) apresenta-se à Vieltchâninov e passa a travar relações, inicialmente amistosas, com o desafeto, sugerindo ao leitor o desconhecimento da infidelidade conjugal.
No decorrer da história, descobrimos que Páviel sabia de toda a verdade, desde quando descobrira nos arquivos de sua ex mulher uma carta endereçada a Vieltchâninov.
Páviel apresenta todos os sintomas de um tipo de personagem comum nos romances de Dostoiévski e mais bem representado no “homem do subsolo”: um eterno sofredor, que, inobstante a sua busca por ser amado, é esmagado pela indiferença dos outros.
O “eterno marido” vive com uma filha pequena chamada Lisa, ensejando de imediato a suspeita de Vieltchâninov de que a menina fosse a sua filha. Páviel, viciado em bebida, vive numa num apartamento em estado deplorável, fazendo com que Vieltchâninov se mobilize para retirar a criança da situação de risco e para levá-la aos cuidados de uma família de confiança.
Lisa aguarda em vão uma visita de Pável que, para todos os efeitos, era quem reconhecia como pai, inobstante os maus tratos. Ao sentir-se abandonada, cai numa enfermidade e falece, causando a fúria de Vieltchâninov que atribuiu a morte à negligência (ou talvez o dolo) do “eterno marido.”.
A relação entre o marido traído e o amante segue de uma forma parecida com a dos personagens do romance “O Duplo”, em que conselheiro Golyádkin é acossado pela corporificação de seu duplo, o senhor Golyádkin segundo, uma espécie de uma réplica sua que lhe vai transtornando a vida.
Ao longo da narrativa, o “eterno marido” vai causando no seu rival sentimentos que vão do mais puro ódio a mais desinteressada compaixão. Como no romance “O Duplo”, há uma relação persecutória entre ambos, cada qual despertando no outro todos os sentimentos relacionados ao ato originário da traição. Tal qual no romance “O Duplo”, pode-se dizer que o “eterno marido” constitui uma espécie de desdobramento do próprio amante infiel, tendo como eixo que os unifica o relacionamento amoroso com a falecida Natália Vassílienva. Páviel é uma sobra de um passado que atormenta Vieltchâninov, aparecendo como uma lembrança permanente da deslealdade e egoísmo do amante que ensejou a tragédia familiar do eterno marido. É a corporificação de sentimentos que estão no inconsciente de Vieltchâninov. O “eterno marido” é, nesse sentido, senão uma parte do amante infiel, ao menos um fantasma que o acompanha.
O “eterno marido” pode ser definido como aquele que é incapaz de viver fora da condição marital. Na sua incessante busca em ser amado, revela e expõe publicamente as suas fraquezas, torna-se ridículo e é constantemente humilhado. E, nos momentos em que constata não ser correspondido na sua busca amorosa, torna-se sádico.
A novela é a forma mais bem sucedida que conheço na literatura universal de descrição da psicologia daqueles envolvidos na infidelidade conjugal.

sábado, 2 de novembro de 2024

“A Metamorfose” – Franz Kafka

 “A Metamorfose” – Franz Kafka



 Resenha Livro - “A Metamorfose” – Franz Kafka – Ed. L&PM

Franz Kafka faleceu na data de 03 de junho de 1924, quando tinha quarenta anos de idade.

Sua morte foi particularmente dolorosa. Sete anos antes do óbito, foi diagnosticado com tuberculose, numa época em que ainda não havia tratamento para a doença. A infecção se estendeu à laringe, impossibilitando-o de se alimentar, também numa época em que não existia nutrição parenteral. Por não haver meios de alimentá-lo, sua vida foi lentamente se extinguindo até morrer de fome. Foi desmilinguindo aos poucos, tal qual o protagonista Gregor Samsa, de “A Metamorfose” (1912).

Ao tempo do falecimento, Kafka era um escritor desconhecido. Seus contos, até então, só tinham sido publicados em algumas revistas literárias, para um público bastante restrito. Hoje é considerado um dos mais importantes escritores do século XX, com uma vasta crítica em torno da sua obra, através de estudos de intelectuais do porte de Albert Camus, Jean-Paul Sartre, Gilles Deleuze, Walter Benjain e Theodor W. Adorno. Tornou-se tão importante que o seu nome se converteu num adjetivo. Hoje quando se diz que certa situação é “kafkaniana”, estamos querendo falar de algo que é estranho, labiríntico, ininteligível e surreal.  

E isto só se tornou possível graças ao seu amigo e testamenteiro Max Brod que publicou os seus textos entre 1925 e 1935.

O mais interessante é que esse colega, com quem Kafka manteve amizade desde a Faculdade de Direito de Praga, descumpriu a ordem de lançar toda a sua obra no fogo. Felizmente, Max Brod ignorou o pedido do amigo e reuniu os escritos e anotações de Kafka para lançá-los, ainda que de forma incompleta e fragmentada.  

De fato, Franz Kafka não chegou a terminar nenhum romance. Livros conhecidos como “O Processo” e “O Castelo” são, na verdade, obras inacabadas. A maior parte foram os contos. O mais conhecido deles, certamente, foi “A Metamorfose”, escrito em 1912 e publicado em 1915 numa revista literária alemã.

Nascido em Praga, à época parte do Império Austro Húngaro, Franz Kafka adveio de uma família judaica de classe média. Seu pai foi um negociante, um homem descrito como egoísta, forte e arrogante, e a sua figura intimidadora se projeta em contos como “A Metamorfose” e particularmente em “O Veredicto”. Um aspecto comum, nesses dois casos, é a figura paterna que desperta o medo, o ódio e a culpa. Trata-se de um sentimento de hostilidade que remete à tragédia de Édipo. Tanto em “A Metamorfose”, quanto em “O Veredito”, o conflito se resolve pelo sacrifício do filho através da morte como um meio de aliviamento da culpa. Gregor Samsa, tornado um inseto repugnante em “A Metamorfose”, desaparece como se desistisse de viver, enquanto o protagonista de “O Veredicto” resolve o complexo edipiano, após uma briga com o pai que não concorda com o casamento do filho, através do suicídio.

O que se percebe, no caso da literatura de Franz Kafka, é um forte conteúdo autobiográfico.  

A percepção depreciativa de si mesmo, ao que consta, era algo presente no escritor, que alimentava a crença que as pessoas em geral lhe devotavam repulsa física e moral.

Não é uma rejeição por algo que foi feito de errado mas por aquilo que o sujeito é, sem a existência do dolo ou da culpa. Essa realidade incontornável da rejeição é elevada até o ponto mais dramático na figura de Gregor Samsa, quando num certo dia, depois de acordar de sonos intranquilos, viu-se transformado num inseto repulsivo.

“Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava sobre suas costas duras como couraça e, quando levantou um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido em segmentos arqueados, sobre o qual a coberta, prestes a deslizar de vez, apenas se mantinha com dificuldades. Suas muitas pernas, lamentavelmente finas em comparação com o volume de resto de seu corpo, vibravam desamparadas ante seus olhos. ‘O que terá acontecido comigo’? Não era um sonho.”.   

Assim começa o conto.

O protagonista é um caixeiro viajante de uma firma de tecidos. Vive num apartamento simples com o pai, a mãe e a irmã mais nova, que são por ele sustentados, desde quando a firma comercial do chefe de família entrou em falência.

Após a metamorfose, aquele grupo familiar, até então numa situação cômoda de ser sustentada por Gregor, rejeita o filho e basicamente o mantém no quarto, longe dos olhos do mundo, como se fosse motivo de vergonha. Até então, Gregor nunca havia faltado ao trabalho, nem mesmo por conta de uma doença. No dia fatídico, sua primeira preocupação é a explicação que daria por estar atrasado no serviço. Um supervisor do escritório em que trabalha comparece na residência para averiguar a razão do seu atraso e sai de lá repugnado.

Samsa, antes e depois da sua transformação, aparenta ter uma obediência incondicional à família, ao pai e ao chefe da firma. Sua vida, até o dia em que se transformou num inseto, é orientada pelo cumprimento incondicional de um dever: trabalhar e sustentar a família. Sonhava, ainda, em matricular sua irmã adolescente num conservatório para estudar violino. Mas o dever não parece estar relacionado a uma relação de afeto e amor no seio familiar. Parece antes uma sujeição passiva da realidade, não muito diferente da alienação a que o trabalhador está sujeito na sociedade capitalista.   

Depois de se transformar num inseto monstruoso, a sua preocupação segue sendo a família e o trabalho, mas agora se manifestando na forma de culpa. Na medida em que a sua figura causa vergonha e nojo aos familiares, opta por permanecer escondido dentro do quarto, de baixo de um canapé, sem permitir ser visto.  De lá, apenas escuta as conversas da sala, feitas em voz baixa, na qual se evidencia progressivamente o abandono e a desumanização de Gregor. Não se sabe o que dizem, mas se presume que fazem planos para se livrar da melhor forma possível daquele problema.

A morte física de Gregor é apenas o coroamento final de sua morte moral, esta última ocorrendo de forma paulatina. Ao final da história, quando uma faxineira da casa o encontra morto, a novidade dá ensejo ao renascimento da família. Depois da morte de Gregor, os pais e a irmã saem daquela posição passiva para ter alguma iniciativa diante da vida. O pai parece querer retomar o trabalho produtivo e a irmã mais nova é encaminhada a um casamento com olhos para um futuro mais feliz. No mesmo dia da morte de Samsa, aliviados, os familiares saem a um passeio e fazem planos para o amanhã. É tempo da primavera, que expressa de uma mesma forma, o renascer, mas da natureza.  

 O mais famoso conto de Franz Kafka agrega o realismo e o fantástico. O absurdo emerge subitamente da realidade banal e se impõe como a nova normalidade. A história, também, parece seguir o mesmo itinerário dos  nossos sonhos, que frequentemente descrevem detalhes realistas precisos da nossa vida convivendo com coisas absurdas. A transformação do homem num inseto, que representa o sobrenatural e o fantástico, exsurge da banalidade do cotidiano familiar e da rotina do trabalho. Tal qual nos sonhos, em que vemos também detalhes da realidade interagindo com o absurdo.

E, ao fim, o desaparecimento de Gregor, além do despertar da família, e o desabrochar da primavera, é o coroamento da realidade definitivamente se impondo à fantasia. O livro começa quando Samsa acorda para um mundo fantástico e termia com a sua morte, que representa o despertar da realidade.

 

Bibliografia:

MERÇON, Francisco Elias Simão. “Uma Leitura Analítica da Novela A Metamorfose de Franz Kafka”. Dissertação de Mestrado. FFLCH/USP.

A Metamorfose – Franz Kafka

O Veredito – Franz Kafka

sábado, 26 de outubro de 2024

“A Hora dos Ruminantes” – José J. Veiga

 “A Hora dos Ruminantes” – José J. Veiga


 

Resenha Livro - “A Hora dos Ruminantes” – José J. Veiga – Editora Três

 

O realismo fantástico ou mágico foi uma forma com que se qualificou uma série de obras literárias latino-americanas produzidas entre as décadas de 1960 e 1970.

 

Diante do impacto dos golpes militares que instituíram regimes de exceção em praticamente todos os países da América Latina, criou-se um estilo de narrativa em que o absurdo emerge da realidade cotidiana e banaliza-se na percepção dos personagens.

 

Os elementos mágicos e fantásticos são concebidos como parte de uma nova “normalidade”, e assim também são percebidas pelos personagens. Há uma convergência entre aquilo que é comum e banal com aquilo que é sobrenatural. A conjuntura política daquele período, marcado por regimes de exceção que se eternizaram por anos a fio, se comunica com essa proposta de criação de uma expressão literária na qual a fantasia e o sobrenatural exsurgem da realidade, para elas próprias tornarem-se um novo estado de normalidade, apenas contestada por alguns espíritos isolados, dotados de alguma rebeldia.  

 

As ditaduras militares que apareceram como um regime de exceção provisório para contornar o risco da revolução impõem um novo estado de normalidade, em que o que era absurdo deixa de ser percebido como tal.

 

O romance “A Hora dos Ruminantes” (1966) do escritor goiano  José J. Veiga é talvez a versão mais bem acabada do realismo fantástico na literatura brasileira.

 

Escrito dois anos após o golpe de 1964, o romance trata de um pequeno vilarejo fictício chamado Manarairema, onde uma população de simples camponeses e artesãos é surpreendida pelo aparecimento de um povo estrangeiro, que desde o horizonte, num certo dia, surge e constitui um acampamento. Aqueles estranhos despertam num primeiro momento a curiosidade do povo de Manarairema, isolados que sempre estiveram de qualquer novidade vida de fora:

“No dia seguinte a cidade amanheceu ainda sem toucinho, mas com uma novidade: um grande acampamento fumegando e pulsando do outro lado do rio, coisa repentina, de se esfregar os olhos. As pessoas acordavam, chegavam à janela para olhar o tempo antes de lavar o rosto e davam com a cena nova. Uns chamavam outros, mostravam, indagavam, ninguém sabia. Em todas as casas era gente se vestindo às pressas, embaraçando a mão em mangas de paletó, saindo sem tomar café, pisando em cachorros lerdos, cachorros ganindo, gente dando peitada em gente, derrubando chapéu, a algazarra, a correria. Todos deviam ter visto ao mesmo tempo a parte alta do largo, as janelas dos sobrados, os barrancos estavam tomados de gente olhando, apontando, discutindo”.

 

Os forasteiros não têm nome e não têm rosto. Um ou outro cruza com os habitantes de Manarairema pelas estradas e não cumprimentam, passam-se por ofensivos e grosseiros. Contudo, aquelas pessoas tão estranhas, chamados pelo povo de “homens da tapera”, vão misteriosamente se impondo e ganhando uma preponderância moral sobre o povo do vilarejo.

 

Num primeiro momento, os homens da tapera contratam os serviços de Germiniano, um preto que aluga carroça de burro para o transporte de mercadorias. Não foi bem uma contratação, mas uma intimação para obrigá-lo a transportar areia, sem que o leitor saiba com clareza quais os mecanismos com que constrangem, compelem e ameaçam o trabalhador a prestar os serviços.

 

Germiniano num primeiro momento recusa o trabalho com indignação, pela forma com que é abordado e por desconhecer a natureza daqueles homens. Depois de ser convocado a ir pessoalmente ao acampamento, transforma-se completamente, assume estar vivendo um novo estado de coisas, executa as ordens dos homens como se fosse uma sentença inapelável de um juiz, e o seu medo vai se disseminando aos demais cidadãos de Manarairema. Faz um eterno transporte de areias, sem coragem de explicar aos demais o porquê de sua capitulação. Segue um eterno ir e vir, transportando a areia, tal qual o mito de Sisifo da mitologia grega, que conta a história de um homem que foi condenado a empurrar uma pedra até o topo de uma montanha para sempre, repetindo o processo quando a pedra caísse.   

 

E assim, sucessivamente, os homens da tapera vão convocando, sem possibilidade de recursos, um ou outro habitante para lhe prestar serviços.

 

Constituem um novo regime de medo e terror: aqueles que se recusam a comparecer aos chamados são alertados às graves consequências da sua rebeldia. As ameaças não são ditas de forma expressa por aqueles estrangeiros (eles quase não se manifestam na história), mas são repercutidas pelos cidadãos que voltam transtornados do acampamento vizinho. A coação é velada e não se sabe bem quais seriam as consequências da transgressão da nova ordem; há, por outro lado, uma convicção crescente no coração do povo do dever de respeitar e atender todos os chamados dos homens da tapera. Os forasteiros se projetam quase como uma força divina, capaz de aplicar os mais cruéis castigos às ovelhas que se desviassem da trilha por eles traçadas ao rebanho.

 

A invasão dos homens da tapera é seguida de outros eventos fantásticos.

 

Há uma segunda invasão de cachorros, que tomam as ruas e casas de Manarairema sem que os habitantes tenham força moral e iniciativa para rechaçá-los. Aceitam-nos entrando nas suas casas e fazendo sujeira, como se fosse uma mera fatalidade da natureza. Segue-se depois uma segunda invasão de bois, esta ainda mais catastrófica, com os animais tomando todo o espaço da cidade, entupindo as ruas de esterco, tornando o ar podre e obrigando os moradores a queimar fumo e casca de laranja para aturar o odor.

 

O elemento fantástico, na história, emerge gradualmente da realidade banal e comezinha de Manarairema. Ao longo da história, a fantasia mais se avolumando, até resvalar o absurdo. De uma invasão de forasteiros, à invasão de cachorros e por fim à invasão de bois.

 

Por fim,  num certo dia, os bois, os cachorros e os homens da tapera regressam de onde vieram e a pacata cidade retorna à normalidade. O livro termina com a imagem do tempo, que se interrompeu durante o período da fantasia, quando se impôs a ditadura dos homens da tapera, para retornar ao seu trabalho de cronometrar a vida. E assim termina o livro:  

 

“O relógio da igreja rangeu as engrenagens, bateu horas, lerdo desregulado. Já estavam erguendo o peso, acertando os ponteiros. As horas voltavam, todas elas, as boas, as más, como deve ser”.

 

Sobre o Autor

 

José Jacinto Veiga nasceu em 02 de fevereiro de 1915 numa cidade do interior de Goiás chamada “Corumbá de Goiás”. A sua infância, naquele vilarejo, provavelmente serviu de referência para construir Manarairema, que é um lugar fictício onde se passa não só “A Hora dos Ruminantes” (1966) mas também é o cenário do livro “Os Cavalinhos de Platiplanto” (1959).

 

Iniciou-se na literatura relativamente tarde, aos 45 anos de idade. Formado em Direito pela Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, acabou abraçando o jornalismo, tendo colaborado na imprensa carioca e na BBC Londres. Faleceu em 1999, alguns anos depois de receber o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, como forma de reconhecimento final do conjunto de sua obra literária.