quarta-feira, 12 de novembro de 2025

“O Povo Brasileiro” – Darcy Ribeiro

 “O Povo Brasileiro” – Darcy Ribeiro


 

Resenha Livro - “O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil” – Darcy Ribeiro – Ed. Global

“Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil já é a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua curiosidade artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso autossustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da terra”.

No prefácio do livro “O Povo Brasileiro” (1995), Darcy Ribeiro revela ter demorado trinta anos para concluir a obra, escrevendo-a e reescrevendo-a ao longo de todo esse tempo, a medida que foi amadurecendo suas pesquisas e experiências na vida pública.   

No ano de 1995, quando estava internado na UTI para tratar de um câncer de pulmão, o autor tomou a insólita decisão de fugir do hospital para uma casa de praia em Maricá/RJ, onde pôde ter a tranquilidade necessária para concluir o ensaio.

Felizmente, teve a oportunidade de terminar a obra, certamente a mais importante que produziu. Morreu dois anos depois da fuga do hospital, deixando atrás de si uma trajetória política e acadêmica que envolveu a chefia da Casa Civil no governo João Goulart (1963), foi vice governador do Rio de Janeiro na chapa de Leonel Brizola (1982)  e foi fundador da Universidade de Brasília (1962).  

O livro tem o propósito de construir uma teoria do povo brasileiro. Entendendo esse povo como uma nova etnia, configurada através das três grandes matrizes raciais – o índio originário da terra, o negro africano e o branco português. E mais do que uma nova etnia, uma nova civilização, consistente na encarnação ultramarina e tropical da civilização latina, naquilo que denomina ao final do livro como a “Nova Roma”.

Baseando-se na premissa em torno da especificidade brasileira, Darcy Ribeiro irá traçar um relato da evolução histórica da conformação do povo e o seu desmembramento em quatro grandes matrizes: o “Brasil Crioulo” constituído através dos engenhos de açúcar, do latifúndio, da monocultura agrário exportadora e do trabalho escravo; o “Brasil Sertanejo”, relacionado à interiorização da ocupação territorial no nordeste através da pecuária, com as suas figuras messiânicas e o banditismo social dos cangaceiros; o “Brasil Caipira” que remonta aos bandeirantes paulistas, passando pela economia da mineração e despontando na economia do café e na imigração italiana; e o “Brasil Sulista”, temperado nas guerras e na animosidade bélica de gaúchos e caudilhos, que se entrincheiram em suas fazendas, disputando terras na bala com os espanhóis.

A origem mais remota do povo brasileiro, o seu nascimento, dá-se através do mameluco, também qualificado pelo autor como “brasilíndio”.

No Brasil, ao contrário do que ocorreu nas colônias de povoamento da América do Norte, foram constituídas aquilo que Caio Prado Júnior muito bem descreve como “colônias de exportação”, empreendimentos agrário exportadores, por meio dos quais o branco europeu lançou-se aos trabalhos de escambo com os índios e posteriormente à economia do açúcar, sem a intenção de constituir um  povoamentos ao estilo europeu.

Diferentemente do que ocorreu na América do Norte, onde famílias europeias eram transplantadas para reconstruírem no novo mundo a velha sociedade europeia, no Brasil houve a necessidade de construir algo novo. O português aqui chegou sem trazer a mulher branca, dando vazão à concupiscência sexual na sua relação com as índias e depois com as negras e mulatas.

E daí exsurge os primeiros brasileiros:

“O primeiro brasileiro consciente de si foi, talvez, o mameluco, esse brasileiro mestiço na carne e no espírito, que não podendo identificar-se com os que foram seus ancestrais americanos – que ele desprezava -, nem com os europeus – que o desprezavam -, e sendo objeto de mofa dos reinóis e dos lusonativos, via-se condenado à pretensão de ser o que não era nem existia: o brasileiro”.

O brasileiro nasce portanto dentro dessa dupla dinâmica de exclusão: rejeita a mãe de origem indígena e é rejeitado pelo pai de origem europeia.

Existe muita controvérsia hoje em dia em torno do papel da mestiçagem na formação do nosso povo e do conceito da democracia racial, teses representativas do pensamento de Gilberto Freire.

Darcy Ribeiro reconhece o racismo do Brasil, mas ressalva que aqui o nosso preconceito predominante é o de classe.

Nossa situação não se confunde com o segregacionismo racial dos norte americanos. Lá existe um preconceito de raça, ao passo que no Brasil existe um preconceito de cor, sempre temperado pelo preconceito de classe. Enquanto no norte se trata de um problema de sangue, aqui se trata de preconceitos em torno de fenótipo.

“O preconceito de raça, de padrão anglo saxônico, incidindo indiscriminadamente sobre cada pessoa de cor, qualquer que seja a proporção de sangue negro que detenha, conduz necessariamente ao apartamento, à segregação e à violência, pela hostilidade a qualquer forma de convício. O preconceito de cor dos brasileiros, incidindo, diferencialmente, segundo o matriz de pele, tendendo a identificar como branco o mulato claro, conduz antes a uma expectativa de miscigenação. Expectativa, na verdade discriminatória, porquanto aspirante a que os negros clareiem, em lugar de aceita-los tal qual são, mas impulsora da integração.”.

A própria ideia de miscigenação é levada num novo patamar na obra. Ela está diretamente relacionada, no caso brasileiro, com a “deculturação” do português, do africano e do índio pré colombiano.

Na gênese do povo brasileiro – diferenciação de um povo dotado de especificidade –  o  índio é “destribalizado”, negro é “desafricanizado” e português é “deseuropeizado”  - cada um deles para se constituir como Brasileiro.

Não foi portanto a mestiçagem uma mera mistura de raças mas a reconfiguração de cada uma dessas matizes étnicas para a criação de um novo povo.

No caso do índio, a sua “destribalização” se seu através da intervenção dos missionários, particularmente os jesuítas, que através dos seus aldeamentos, disciplinaram-nos ao trabalho, tentando-lhes incutir alguns valores cristãos e buscando conter a poligamia, a antropofagia e outros excessos.  

A intervenção dos colonos, ou mais especificamente dos sertanistas paulistas, que capturam os índios para escravizá-los, inclusive destruindo as missões jesuíticas, aproveitando que os índios já estavam agrupados e prontos ao trabalho, também foi uma forma de “destribalização”.

A deculturação dos africanos decorreu de uma estratégia dos latifundiários: no tráfico de escravos, buscou-se misturar as diferentes nações africanos dentro das mesmas frentes de trabalho. Evitava-se assim criar um sentimento de coesão tribal que pudesse desafiar o regime escravocrata. Interessante notar que esse fato fazia com que os escravos, de diferentes etnias, sequer conseguissem comunicar-se entre si. Cada tribo diferente da África tinha os seus próprios dialetos. Nos locais onde grassava a escravidão negra, os africanos logo aprendiam o português, por ser a língua que os unificava enquanto trabalhadores do engenho.

E a deseuropização do português deu-se na exata medida em que aqui tiveram de consolidar um novo estilo de vida, sem a pretensão de transplantar famílias e modos de viver do velho continente, tal como se deu na América do Norte.

Essa originalidade do processo histórico cria as bases de uma nova civilização, de um povo original cuja data de nascimento é bastante recente, em termos históricos, se cotejada por exemplo com os árabes, eslavos ou chineses. As nossas potencialidades, neste sentido, são enormes e estão longe de se exaurirem.

“O Povo Brasileiro”, sem perder de vista a crítica impiedosa às mazelas da escravidão do negro e à destruição da cultura indígena, é um chamado à defesa do Brasil.

Nas palavras do escritor, no prefácio, “este é um livro que quer ser participante, que aspira influir sobre as pessoas, que aspira ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo”.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Uma História da Amazônia

 Uma História da Amazônia





Resenha Livro – “História do Brasil Geral e Regional – 1º Volume – Amazônia (Acre – Amazonas – Pará e Territórios)” – Ernani Silva Bruno – Ed. Cultrix

“Revelada à Europa a existência da América e descoberto o Brasil, a costa do extremo-norte brasileiro e as margens do baixo Rio Amazonas passaram a ser de longe e longe abicadas pelas caravelas de um ou de outro navegante castelhano ou português mais atrevido. Era a madrugada do século dezesseis, e o mistério das terras e das ilhas de aquém-Atlântico devia envolver ainda em um clima incomum e quase fantástico de aventura a jornada de veleiros que se botavam para o Novo Mundo. Mas permaneceu ainda por alguns decênios desconhecido pelo homem branco – e ignorado pela cultura do “mundo civilizado” da época – o segredo bárbaro das florestas, dos rios, das ilhas e dos nativos da região amazônica”.

Missionário franciscano e governador do Bispado da Bahia, Frei Vicente do Salvador (1564/1639) foi o primeiro cronista da História do Brasil. Escreveu sobre o território que então pertencia à colônia portuguesa em dezembro de 1627, pouco mais do que um século após a chegada de Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro.

Ficou famosa a imagem com que Frei Vicente descreveu do processo de ocupação do território do Brasil nos primeiros anos da colônia: por negligência dos portugueses, mesmo sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitaram delas, contentando-se em “andar arranhando ao longo do mar como caranguejos”.

De fato, no primeiro século da colonização do Brasil, a ocupação do território limitou-se às regiões litorâneas, do norte ao sul – daí a conhecida analogia com a forma como se movem os caranguejos.

Essa situação se explica por razões econômicas: num primeiro momento, estabeleceram-se feitorias na costa, onde os navegadores transacionavam o pau brasil e especiarias. E a partir do século XVI houve a constituição dos engenhos de açúcar, também situados na costa, dada a proximidade dos mercados europeus. Há também as razões políticas:  a constituição das capitanias hereditárias em 1534 em núcleos portuários de norte ao sul teve como causa primordial resguardar o território em face dos assédios dos franceses, ingleses e holandeses. Ou mesmo antes, por meio do Tratado de Tordesilhas  (1494), quando foi atribuído à Portugal a parcela ao leste de um meridiano traçado a 400 léguas do arquipélago de Cabo Verde.  

O processo de interiorização da ocupação territorial do Brasil se daria de forma paulatina, a partir do 1600, seja através das expedições dos sertanistas paulistas na caça de índios para a escravidão, iniciando com a destruição de missões jesuíticas ao sul, ampliando as fronteiras do país; deu-se através da pecuária, especialmente na região do nordeste, servindo como mercado abastecedor das regiões portuárias; e finalmente através do ciclo da mineração, que também mobilizou os bandeirantes através de frentes pioneiras em direção ao centro oeste e norte – em 1651, tendo partido de São Paulo e transposto os Andes, a bandeira de Antônio Raposo Tavares desceu pelo Rio Amazonas.  

Quando falamos da região da Amazônia, o processo de ocupação populacional daquele vasto território, que abrange os estados do Acre, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima e Amapá, foi certamente o que encontrou maiores dificuldades.

Ainda hoje, a baixa densidade populacional é o traço mais característico da região.

A distância com os mercados europeus fez com que no período colonial houvesse pouco desenvolvimento da agricultura de exportação na Amazônia. Os índios, ao seu passo, além de frequentemente trucidarem os poucos colonos que tentaram ocupar a área, quando pacificados, também não se revelavam aptos e disciplinados ao trabalho do campo.

As grandes distâncias, na escala de milhões de km², aliada à vegetação fechada, com rios caudalosos, chuvas e alagamentos, onças, saúvas e morcegos, tornaram o ambiente inóspito para a formação de núcleos populacionais em torno de alguma atividade agrícola. Dada a inadaptação do índio ao trabalho na lavoura, prevaleceu a economia extrativista – e os poucos engenhos de açúcar da região, distantes dos centros consumidores, explicam a baixa presença da população africana (escrava) na Amazônia.

Dado interessante é que a abolição da escravidão na província do Amazonas ocorreu em 1884, quatro anos antes da Lei Áurea. O que se explica não por algum bom senso da classe dominante daquela província, mas pela pouca importância do trabalho escravo na região.

Do ano de 1500 quando surgiram as primeiras viagens de reconhecimento até meados do século XIX quando se abriu a etapa do ciclo da borracha, a economia da região Amazônia centrou-se em atividades coletoras e na agricultura de subsistência. A fonte de alimentação, seguindo a tradição do índio e do caboclo (“tapuia”) se dava através da caça, da pesca. Houve o desenvolvimento de alguns poucos engenhos de cana de açúcar, a produção do algodão, do cacau mas a predominância deu-se em torno da atividade coletora dos produtos das florestas, designadas “drogas do sertão” (castanha, anil, urucum e salsaparrilha).

Essa economia do tipo coletora e extrativista foi um fator de dispersão do povoamento e estabeleceu uma dificuldade crônica de criação de cidades ou vilas com alguma duração no tempo: encerrando-se determinado ciclo produtivo, as áreas eram logo abandonadas, o que se evidenciou de maneira dramática durante o período do ciclo da borracha, quando muitos tapuios abandonaram as suas fazendas para se lançar à extração da seringueira. 

Desde o período colonial até o século XX o principal e em muitos casos o único meio de transporte se dava através da navegação fluvial. Para se ter uma ideia, até meados do século XIX, uma viagem da província de Belém até a capitania de Rio Negro (hoje Estado do Amazonas) levava 40 dias de viagem a barco. Essa situação melhoraria em 1853 com a criação da navegação a vapor:  durante os primeiros 300 anos da colonização as viagens eram feitas em barcos movido à vela ou através do remo puxado pelos bugres.

É possível dividir a História da Amazônia em algumas grandes fases: (i) de 1500 e 1640 quando o território esteve em disputa aberta e as fronteiras indefinidas entre as coroas de Portugal, Espanha, Inglaterra e Holanda; (ii) de 1640 quando há a consolidação do domínio português até o declínio econômico e social causado pelos cinco anos de guerra civil, até o término da revolta da cabanagem em 1840; e (iii) a partir de 1850 com o advento da navegação à vapor e do ciclo da borracha – a produção dos seringueiros inicia-se em 1860 e sofre um impulso 1895 com a criação do pneumático que seguiu à vulgarização do carro. Data de 1911 o apogeu e início do declínio da borracha, que só teria depois um pequeno surto de recuperação durante a II Guerra para atender às demandas dos aliados.

Os primeiros registros históricos de expedições do colonizador europeu na região amazônica remetem às primeiras décadas do 1500. O Tratado de Tordesilhas (1494) era bastante vago na delimitação das fronteiras da região norte do Brasil, tornando difusa a presença de portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses.

Inclusive, as primeiras expedições oficiais de reconhecimento do território partiram da Espanha – tendo como ponto de partida o Vice Reinado do Peru, em 1541 partiu de Quito o espanhol Francisco Orellana com cinquenta e sete companheiros, descendo o Rio Amazonas até sair no Atlântico.

A partir de fins do século XVI, aventureiros ingleses e holandeses fazem viagens de reconhecimento e instalam feitorias e pontos de negócio. E em 1616 partiu a expedição portuguesa sob a chefia de Francisco Caldeira Castelo Branco, saindo do Maranhão, tendo como objetivo tomar posse das terras do Grão Pará; foi assim fundada a povoação de Nossa Senhora da Graça – núcleo da atual cidade de Belém.

Foi nesta primeira fase que se criaram alguns mitos em torno do El Dorado amazônico: as expedições respondiam a alguns mitos e histórias contadas pelos índios sobre terras povoadas de ouro. Falava-se de terras longínguas na América onde o ouro e a prata eram tão abundantes que os próprios indígenas não compreendiam a importância dada a essa riqueza pelos europeus. Foi nessa primeira etapa das expedições de reconhecimento do território amazônico que surgiram também alguns mitos fundadores da região: na embocadura do Rio Jamundá (Nhamundá) começava a boa terra e senhoria das Amazonas, mulheres lendárias e guerreiras que viviam isoladas do seu senhorio, “eram alvas e altas”, apenas coabitavam de tempos a tempos com os homens e só conservavam os filhos quando pertenciam ao seu próprio sexo.

Seria a partir de 1640 que se consolidaria o domínio português na região do extremo norte brasileiro. Desde meados do século XVII até meados do século XIX, a região passou por uma fase de conquista e povoamento. Já em 1621 houve a criação do Estado do Maranhão e Grão Pará, com jurisdição separada do resto do Brasil e no ano de 1755 houve a criação da Capitania de Rio Negro, futuro estado do Amazonas.

A conquista do Acre é mais recente – ela foi produto de conflito de interesses entre a Bolívia e seringueiros brasileiros que atuavam na região, passando a integrar o território brasileiro após negociações diplomáticas conduzidas pelo Barão de Rio Branco consolidada no Tratado de Petrópolis, firmado em 17.11.1903.

Papel fundamental dentro desse processo de conquista e povoamento se deu através da atividade das missões jesuíticas. Foram justamente nos aldeamentos onde se pode desenvolver alguma atividade agrária mais duradoura, servindo-se do trabalho dos índios. E após as reformas pombalinas que acarretaram a expulsão dos missionários, os aldeamentos subsistiram através da criação de Diretórios – na prática, foi colocado fim ao poder temporal dos padres, mas mantida a mesma situação precária do índio.

A guerra da cabanagem (1835/1840) colocou em oposição os tapuios (caboclos, filhos do branco e do índio que falavam a língua tupi) e os reinóis – foram cinco anos de guerra civil que causaram 40 mil mortos e o retrocesso da economia, ao abandono e destruição das fazendas.

O ciclo da borracha remonta à terceira e última grande onda de desenvolvimento da Amazônia.

Essa fase criou uma nova composição populacional do território com a vinda massiva de emigrantes do nordeste, fugidos da seca, que se lançavam nos mais desconhecidos pontos da selva para exploração do ouro negro.

A revolução da borracha foi acompanhada da utilização da navegação à vapor, um sistema de transporte que facilitou o desenvolvimento da indústria, como ainda serviu como meio difusor de ideias. Em seu apogeu, o ciclo da borracha levou ao enriquecimento de uma elite local e ao desenvolvimento urbano de Belém e Manaus: ficou conhecido como exemplo o suntuoso edifício do Teatro Amazonas inaugurado em 1897 em Manaus.

Nos dias de hoje, a Amazônia ainda carrega traços marcantes do seu passado.

Baixa densidade populacional, composição étnica da população na figura dos tapuios e índios, baixo desenvolvimento industrial, comunicações terrestres dificultadas pelas longas distâncias e forte presença da economia coletora e extrativista, contando agora com a expansão do agronegócio e da pecuária – ainda que no caso da pecuária, o seu desenvolvimento na Ilha de Marajó remonta aos anos de 1600.

Muito de sua riqueza ainda é desconhecida e um novo ciclo de desenvolvimento prescinde de um combate político intransigente em face de Ongs financiadas pelo imperialismo europeu e norte americano; são os interesses exógenos que remontam historicamente aos assédios de contrabandistas holandeses, franceses e ingleses desde 1590/1640. Hoje, os grupos estrangeiros e os seus prepostos brasileiro visam paralisar qualquer iniciativa oficial de exploração das riquezas naturais da Amazônia, incluindo o Petróleo – sob a propaganda de defesa do meio ambiente e do índio, o objetivo é manter a biopirataria e as formas clandestinas de espoliação, sem prejuízo da criação de uma “reserva natural” que possa depois servir aos países estrangeiros seja através de movimentos separatistas ou da campanha em torno da “internacionalização da Amazônia”.  

 

sábado, 11 de outubro de 2025

“Diogo Álvares – O Caramuru”

 “Diogo Álvares – O Caramuru”


 

Resenha Livro – “O Caramuru – Aventuras prodigiosas dum português colonizador do Brasil” – João Ribeiro – Livraria Sá da Costa – Editora Largo do Poço Novo – Lisboa – 1935

 

Diogo Álvares (1475-1557), mais conhecido como o “Caramuru”, foi o primeiro desbravador das terras onde hoje se situa o Estado da Bahia. Sua importância reside no fato de ter preparado o terreno para a ocupação portuguesa do território recém descoberto, trazendo ao convívio dos portugueses os índios tapuias disposto ao convívio pacífico, que o viam como uma liderança com feições sobre humanas.

Esse português que foi alçado à condição de fundador da nacionalidade brasileira aportou no Brasil nos primeiros instantes da chamada “descoberta” em 1500.

Muitos historiadores, a começar por Afrânio Peixoto, muito propriamente dizem ser mais apropriado falar em “achamento” e não “descobrimento” do Brasil. O verbo “achar” remete à ideia de algo que sabemos existir, mas não sabemos exatamente onde a coisa está. E todas as evidências documentais revelam que antes de 1500 ao menos já se desconfiava da existência do território onde hoje se situa o Brasil.

A própria data da assinatura do Tratado de Tordesilhas, que se deu em 1494, reforça a tese. O tratado não só dividiu entre Portugal e Espanha as terras recém descobertas como “terras a se descobrir”. Fato curioso, e pouco ensinado na escola, é que a própria linha de demarcação, feita seis anos antes da expedição de Cabral, já envolve parte do território brasileiro: se o tratado é anterior à 1500, presume-se que já se tinha noção da existência das terras de Santa Cruz, depois batizada de Brasil.

Outra forte evidência do conhecimento do território antes da chegada de Cabral dá-se quando da expedição de Martim Afonso de 1530 para reconhecimento, exploração e defesa do território em face do assédio das demais potências marítimas, especialmente os franceses. Na expedição de reconhecimento foram localizados portugueses degredados que provavelmente já aqui estavam antes de Pedro Álvares Cabral. Os mais conhecidos são João Ramalho, patriarca de São Paulo e Caramuru, o seu equivalente baiano, além do bacharel de Cananeia, todos eles possivelmente já estabelecidos aqui antes de 1500.

Muito provavelmente, a expedição de Cabral seria o ato de consumação formal da tomada do território: é a certidão de nascimento ou o momento em que nasceu o Brasil oficialmente. Já se tinha alguma noção da existência desse território – por questões geopolíticas, eram informações tratadas como segredo de estado entre as duas principais potências marítimas, Espanha e Portugal. Degredados eram despejados no litoral para travarem as primeiras relações com os índios bárbaros, pavimentando o caminho da colonização. A grande expedição dirigida por Cabral que aportou em 1500 foi apenas, neste sentido, um ato oficial de consumação das descobertas.

Diogo Álvares, ou o Caramuru, aportou nas praias da Bahia após um acidente que levou ao naufrágio e a morte a maior parte dos tripulantes. Sobreviveram apenas 7, que foram acossados pelos índios e tornados prisioneiros. Conforme a prática daqueles povos, alimentavam e engordavam os prisioneiros para depois comê-los. Todos os navegantes foram vítimas no ritual antropofágico, exceto Diogo, que consegue escapar num momento em que os tapuias se vêm obrigados a enfrentar o ataque de uma tribo rival.

Sozinho e doente, Diogo consegue resgatar da embarcação que naufragou algumas armas que lhe garantiriam a sobrevivência. Encontrou escudos de guerra, capacetes, pólvora, espingarda e balas. Ao manejar a arma de fogo e dar tiros ao ar, apavora os índios que o vêm como um ente sobrenatural capaz de provocar raios e trovões. Relacionado às crenças mitológicas dos indígenas, o português é temido e adorado por manifestar poderes sobre humanos através das armas de fogo e dos recursos da pólvora. À noite, na escuridão, utilizando a pólvora, Diogo magicamente acende o fogo que ilumina, assombrando os índios que só sabiam fazer a luz com muito esforço, esfregando pedações de madeira uns com os outros.

Conforme conta o historiador João Ribeiro, os índios “por isso ficam atônitos ao ver a chama nascer tão rapidamente do fuzil de ferro. Julgam que ela vem do céu ou que nasce das mãos de Diogo. E mais se persuadem do poder sobrenatural que nele creem existir”.

Utilizando mais a astúcia e a inteligência do que a força física, o Caramuru consegue exercer prestígio e influência sobre os indígenas.  

O nome Caramuru vem do espanto dos índios com o barulho da arma de fogo. Existe alguma controvérsia em torno da origem da palavra no idioma do índio, mas a versão mais conhecida é que se trata do nome de um peixe violento que ao atacar faz um som parecido com os tiros de pólvora.

Alçado à condição de um líder com poderes sobrenaturais, o Caramuru se envolve nas guerras dos tapuias contra os caités. Diante da superioridade das armas de fogo, impõe a derrota aos inimigos dos tapuias.  

A ele é dada a mão da filha do chefe Gupeva, a bela e desejada Paraguaçú. Trata-se da primeira família brasileira e da mais antiga linha genealógica do nosso país.

Residindo no litoral da Bahia, o Caramuru trava relações com os navegantes portugueses, espanhóis e franceses que aqui transitam em busca do pau brasil. Ele exerce o papel de articulador e mediador daqueles dois povos.

Dentro da mitologia criada em torno da sua figura, ele é descrito como o agente que leva os índios selvagens à salvação pela fé e aos hábitos da civilização europeia. Usando da ameaça de suas armas, proíbe os índios de praticarem a antropofagia. Leva aos índios os ensinamentos do cristianismo e os mobiliza para defender os interesses da Monarquia Portuguesa e do Rei.

Escolhe Paraguaçú como esposa e, após travar relações com navegantes franceses, consegue fazer uma viagem levando consigo sua companheira à França, onde é recebido pela Corte. A bela índia é batizada e recebe o nome de Catarina. O casal fica três anos na Europa e retorna à Bahia, onde o Caramuru segue exercendo o papel de proeminência perante os índios do litoral.

Essa importância conferida ao Caramuru se evidencia quando o próprio Rei de Portugal recomenda Diogo Álvares a Tomé de Souza, o primeiro governador geral do Brasil. Após o insucesso da maioria das capitanias hereditárias, foi instituído o Governo Geral (1548) como uma primeira tentativa de centralização política administrativa com a constituição de cargos e funções para assuntos de natureza judicial, financeira e militar.

O primeiro governo geral teve como sede a Bahia, onde Tomé de Souza fundou a cidade de Salvador, chamada “São Salvador da Bahia de Todos os Santos”. O primeiro governador geral desembarcou na colônia em 29 de março de 1549 e contou com a colaboração decisiva do Caramuru para fundar a primeira capital do Brasil.  

Deixando de lado o mito, a figura de Caramuru evidencia aquilo que Darcy Ribeiro, no seu livro “O Povo Brasileiro” (1995), caracteriza como a instituição social que pavimentou a formação do povo brasileiro. A essa instituição ele atribui o nome de “cunhadismo”. Trata-se de um velho uso indígena “de incorporar estranhos à sua comunidade. Consistia em lhe dar uma moça índia como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laços que o aparentavam com todos os membros do grupo”.

A mestiçagem que caracteriza a gênese do povo brasileiro se inicia através das relações sexuais abertas e desregradas dos portugueses com as índias – ao contrário das colônias de ocupação ao norte, quando as famílias entram transplantadas para o novo mundo, no Brasil, uma colônia de exportação, sem a presença da mulher branca, as primeiras famílias eram aqui constituídas pela relação do português com a índia, formando os mamelucos, ou seja, os primeiros brasileiros.

A criação de laços de parentesco amplo, com europeus travando relações poligâmicas com as índias, a despeito da censura dos jesuítas, foi o que Darcy Ribeiro chamou de cunhadismo, prática sem a qual era impraticável a crianção do Brasil.

Os primeiros povoadores, como o Caramuru, consistiam em alguns poucos náufragos ou degredados, além de marinheiros fugidos para aventurar vida nova entre os nativos. Em pouco número, por si sós, teriam passado desapercebido se não tivessem sido assimilados pelos grupos indígenas e inseridos como parte de uma mesma família.  

Bibliografia:

BARROS, João. “O Caramuru: aventuras prodigiosas dum português colonizador do Brasil”.

RIBEIRO, Darcy. “Formação do Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

“Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira” - Oliveira Lima

 “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira”  - Oliveira Lima



Resenha – “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira”  - Manuel de Oliveira Lima – Coleção “Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro” – Folha de São Paulo

 

“Os portugueses, misturando-se com os índios, produziram uma raça igualmente valente e fundamentalmente empreendedora, à qual é sobretudo devida a conquista do interior do Brasil (...) O Brasil é, pois, a obra nacional – geográfica tanto quanto política – dos seus próprios filhos. Isto nos garantiu uma tradição no passado e nos representa uma garantia para o futuro. Foram com efeito os bandeirantes, a saber, os aventureiros votados à pesquisa do ouro e dos escravos que recuaram as nossas fronteiras, dilataram nosso Império, e emprestaram ao Brasil essa maravilhosa uniformidade social que lhe é tão particular e que se destaca tão bem sobre o fundo constituído pela diversidade dos efeitos pitorescos e pelo variegado das três raças misturadas: branca, vermelha e negra”. 

 

Manoel de Oliveira Lima foi diplomata, jornalista e historiador, tendo cumprido papel intelectual proeminente entre os fins do século XIX e inícios do século XX.

Basta dizer que foi membro do IHGB e assumiu a cadeira de Francisco Varnhagen na Academia Brasileira de Letras. Além disso, participou intimamente da convivência com figuras como D. Pedro II, José Martiniano de Alencar, Rui Barbosa, Afonso Celso e Machado de Assis (com quem trocou cartas), havendo em seus livros a percepção efetiva de quem vivenciou diretamente os fatos políticos e institucionais do Brasil do II Império.

O historiador nasceu em Recife/PE no dia do natal em 1868, sendo o último filho de Luiz de Oliveira Lima, um rico comerciante português que fez fortuna e garantiu a sua família prosperidade. Contudo, consta que o pai do de Oliveira Lima foi de origem simples, tendo alcançado com o seu esforço a riqueza, sem que, com isso, fosse parte da tradicional elite pernambucana.

Logo na infância, aos seis anos de idade, o historiador mudou—se para Portugal. Matriculou-se na Universidade de Lisboa, onde estudou e se formou no Curso Superior de Letras.

Aqui já existe algo que irá particularizar o futuro historiador.

Até então, os grandes estudiosos da História do Brasil eram em certo sentido “auto-didatas” – os primeiros cursos superiores de História só foram criados no país no ano de 1930. Parte desses estudiosos sem formação específica vinha da diplomacia, a começar pelo pioneiro e fundador do estudo da disciplina no país, Francisco Adolfo Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro. Outros tinham formação em Direito, como Joaquim Nabuco e Caio Prado Júnior. Já Capistrano de Abreu, o discípulo de Varhagen e um dos nossos melhores historiadores de todos os tempos, sequer estudou em instituição de Ensino Superior. Euclides da Cunha, outro grande historiador daquela época, era militar. Já Oliveira Lima, graduado em Portugal, num momento em que não existiam cursos de Letras e História no Brasil, foi um dos primeiros pesquisadores do nossa passado com uma formação mais especializada.

Quando jovem estudante de Letras em Lisboa, Oliveira Lima era simpática ao republicanismo. Posteriormente, mudaria o seu posicionamento, tanto que em 1913 (14 anos após a proclamação da república) o senado votou contra a sua entrada na embaixada de Londres alegando que o candidato era monarquista.

Pode-se dizer que os seus trabalhos historiográficos evidenciam que o escritor parecia mesmo ser um saudosista da Monarquia – com certeza, foi um descrente da República, que viu ser alçada como regime político oficial no Brasil quando tinha 20 anos de idade.   

Nas suas conferências sobre a História do Brasil reunidas no livro “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira” (1911),  descreve D. Pedro II como o rei filósofo, incentivador  da cultura e da ciência, ele próprio criador do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) e frequentador de suas reuniões.

O Imperador de fato, era bastante liberal em relação às críticas incendiárias da imprensa então nascente, de natureza bastante panfletária, especialmente a partir de 1870, com a criação do Partido Republicano. Cioso, portanto, da liberdade de imprensa e de pensamento, o Imperador não desencadeou perseguições políticas de maior importância aos seus detratores de imprensa, tinha um posicionamento tolerante e pendente à conciliação, o que garantiu a estabilidade do II Império, que perdurou por mais de meio século. Oliveira Lima descreve D. Pedro II como um homem cioso da moralidade pública, mais interessados em travar relações com intelectuais do que com gente da aristocracia, e indulgente para com os inimigos políticos, mas ainda intransigente em seu patriotismo, conduzindo o país à vitória na Guerra do Paraguai.

O posicionamento francamente favorável à monarquia também se revela no peso que o historiador atribuiu aos eventos que vão da chegada da Corte Portuguesa em 1808 e ao Reinado de Dom. João VI como os momentos precursores de maior importância para o advento da independência e para a formação histórica da nacionalidade brasileira.

Dentro da historiografia, Oliveira Lima é mais frequentemente estudado pelos historiadores que pesquisam o nosso processo de independência; e o intelectual pernambucano atribui um peso decisivo ao processo de emancipação ao arranjo institucional muito particular em que se deu a nossa emancipação, considerando a manutenção da dinastia dos Brangança e o transplante do regime político português ao Brasil desde a chamada “fuga” da corte portuguesa em 1808, sob a mira do exército napoleônico.

Oliveira Lima quebra alguns preconceitos em torno dos eventos do ano de 1808 e da própria figura de D. João VI, frequentemente ridicularizado como um rei fraco e pusilânime, além de exposto ao ridículo pelas notórias traições extraconjugais por parte de Carlota Joaquina, a Imperatriz.

Não se tratou de uma “fuga”, mas de uma decisão assertiva de D. João VI que conseguiu manter a existência do Império Português, transplantando a sua sede ao Rio de Janeiro – se tivesse optado por ficar em Portugal, acabaria como os espanhóis, que capitularam ao exército napoleônico e consequentemente perderam não só o país mas também suas colônias na América para a França.

Ao chegar ao Brasil, Dom João VI afirmou que sua intenção era formar um novo Império. O Rio de Janeiro foi elevado à condição de capital da monarquia portuguesa. O Brasil, até então uma mera colônia de exploração dos portugueses, foi alçado à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves (1815), um ato com efeito revolucionário, pois colocou ao menos juridicamente o Brasil em condições de igualdade a Portugal.

Toda essa situação conferiu a originalidade da independência brasileira ressaltada pelo monarquista Oliveira Lima, já que ela se deu por meio da manutenção da Casa e Bragança, quando D. Pedro I se opõe às pretensões recolonizadoras das Cortes de Lisboa, se recusa a atender a sua convocatória para retornar à Portugal e grita no 7 de Setembro seu famoso brado: independência ou morte. Ela foi precedida pela literal “transplantação” do regime político português ao Brasil, o que serviu de base à formação de um regime monárquico constitucional que perduraria até 1889.

O transplante da corte portuguesa e essa particularidade acarretaram num caso singular: o país que saiu do movimento de independência manteve o regime monárquico, com a constituição do I Império, diferentemente da experiência dos países da América Espanhola que se fracionaram em diversas repúblicas, criadas a base de guerras de maior proporção do que os conflitos ocorridos no Brasil.

Em certo momento, Oliveira Lima afirma que a independência do Brasil foi conquistada com “luvas de pelica” o que resultou em críticas de s historiadores que corretamente afirmam que a nossa independência também foi marcada por guerras – certamente não foi um movimento pacífico, mas certamente menos conturbado que a experiência da América Espanhola, com acréscimo da manutenção da integridade do território, mantida sua dimensão continental estabelecida desde o Tratado de Madrid (1750). Se tivéssemos trilhado o mesmo caminho dos espanhóis, o Brasil hoje estaria fracionado em diversos estados menores – a manutenção da grandeza territorial, mesmo após os episódios de turbulência, bastante graves na época da regência – sem dúvida é uma conquista do Império, ou seja, do Estado Brasileiro dentro do regime monárquico.   

VIDA E OBRA DO HISTORIADOR/DIPLOMATA

Oliveira Lima Iniciou sua carreira diplomática como segundo secretário da legação de Lisboa (1891). Naquela época, o ingresso nesta carreira não se dava por concurso público, mas por indicação. Sua seleção deu-se, entre outros, após estabelecer relações com Quintino Bocaiuva e o Visconde de Cabo Frio, bem como diante da influência de sua esposa Flora Cavalcanti de Albuquerque que, como o sobrenome indica, pertencia a família firmemente estabelecida entre os proprietários de engenho e tinha boas credenciais junto à sociedade pernambucana.

Na diplomacia, ocupou cargos em Lisboa, Alemanha, Venezuela, Bruxelas e Suécia, além de ter sido professor de Direito Internacional da Universidade Católica da América em Washington, para quem doou sua biblioteca sobre a História do Brasil, que conta com 56 mil volumes, além de peças de arte, incluindo os famosos quadros de Frans Post, que retratou em pinturas a história do um quarto de século da ocupação holandesa no Brasil.

Esta biblioteca é hoje a terceira maior do mundo no que toca à História do Brasil, perdendo apenas para a Biblioteca Nacional do Brasil e para a biblioteca da Universidade de São Paulo.

José Verissimo no prefácio do livro “Formação Histórica da Nacionalidade Brasileira” ressalta como o escritor não só serviu o Brasil através da atividade de diplomata como foi um verdadeiro embaixador da cultura e história do Brasil pelo estrangeiro.

A forma como escreveu a nossa história também teve como fundamento a preocupação em realizar uma boa propaganda das nossas potencialidades aos estrangeiros. O escritor acredita que o Brasil através da sua História tem lições à ensinar aos demais países do mundo, incluindo os ditos “civilizados”.

O próprio livro em questão, “Formação da Nacionalidade Brasileira”, corresponde a 12 conferências do escritor na Faculdade de Letras de Sorbonne, onde se propôs apresentar uma grande síntese da evolução histórica do país a um publico estrangeiro, francamente interessado em conhecer a trajetória das nações latino americanas.

Logo na sequência, Oliveira Lima é convidado a lecionar História do Brasil e da América do Sul em Standford nos EUA e fazer uma série de conferências em universidades americanas. Verissimo ainda cita um congresso científico em Viena de música clássica,  quando Oliveira Lima conseguiu que as composições do brasileiro Padre José Maurício figurassem ao lado de Mozard e Haydyn.

E mais do que tudo isso, a própria forma como Oliveira Lima relata a História do Brasil para um público estrangeiro tem algo que remonta a esse papel de “embaixador cultural” – sem fazer uma apologia injusta da História Nacional, não deixa também de evidenciar a todo mundo as contribuições brasileiras à civilização geral, aquilo que de mais duradouro e significativo legou os três séculos de colonização até a independência.

Essa contribuição particular do Brasil como exemplo de alternativa institucional aparece especialmente quando fala da particularidade como estruturou a sua independência e formou o seu regime político, uma experiência que soaria como um exemplo a seguir, especialmente se cotejada com as demais repúblicas da América.

 Bibliografia

LIMA, Oliveira, "Formação da Nacionalidade Brasileira". 

LIMA, Oliveira. O Império Brasileiro (1822/1889) 

domingo, 14 de setembro de 2025

“Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu

 “Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu


Resenha Livro - “Capítulos de História Colonial” – Capistrano de Abreu - Edições Senado Federal 

Quando João Capistrano de Abreu escreveu os artigos que foram depois reunidos sob o nome “Capítulos de História Colonial”, o estudo da História do Brasil ainda estava em suas primeiras fases de desenvolvimento. A obra data de 1907, quando  não havia Faculdades de História no país e ainda estavam para ser criados os estudos mais sistemáticos em torno da identidade nacional.

Os primeiros esforços acerca do estudo da História Nacional ocorreram em meados do século XIX, durante o II Império, através da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), um centro de estudos planejado por Dom Pedro II, este último, como se sabe, um incentivador militante da arte e da cultura. Naquele contexto, aquele que pode ser considerado como o patrono dos estudos da História do Brasil foi Francisco Adolfo de Varhagen, um diplomata brasileiro que através de suas viagens à Europa teve contato com fontes e documentos preciosos,  que serviram de base para a criação de uma História Oficial.

É comum qualificar esse primeiro momento dos estudos da História do Brasil como Positivista. Trata-se de uma História oficial, que ressalta a evolução política e das instituições do país – e não dá grande ênfase a outros aspectos da questão nacional, como a cultura, as relações sociais, o desenvolvimento econômico, etc. Está centrada nos grandes eventos – as datas comemorativas e os feriados nacionais são formas de expressão dessa orientação Positivista, na qual o estudo da História se desenvolve através de uma sequência cronológica dos principais eventos políticos: a descoberta (ou melhor diríamos o achamento) do Brasil em 1500; a criação das capitanias hereditárias em 1534; a instituição do governo geral através da expedição de Thomé de Souza (1549/1553); o sete de setembro de 1822; etc.  

É necessário relacionar este primeiro momento do estudo da História do Brasil com o contexto político em que esteve inserido: a independência política conquistada em 1822 era um evento político recente e, no Brasil, a constituição do Estado Nacional precedeu a existência de um espírito de nacionalidade – diferentemente das nações europeias como Alemanha e Itália, que já existiam como nação, mas que se tornaram Estado Nacional, posteriormente, apenas em meados do século XIX.

No Brasil, ao contrário daqueles países europeus, o Estado precedeu a Nação.

Quando o Brasil tornou-se independente em relação à Portugal, nosso país era antes de tudo uma reunião de províncias desarticuladas entre si, sem um sentimento coeso de nacionalidade. Alguém do norte se via mais como pernambucano ou baiano do que como brasileiro, o mesmo valendo-se aos paulistas, ao sul. A necessidade da constituição de uma História Nacional, de caráter oficial, era uma exigência do Estado, tal qual a criação de ministérios, forças armadas e demais instituições políticas. Daí a criação do IHGB e a importância da obra de Varnhagen, que remontam ao esforço da própria construção do país.  

E ainda assim, demoraria alguns anos até haver condições para se desenvolver estudos mais sistemáticos em torno da seguinte questão: o que caracteriza o povo brasileiro?

Seria só partir da década de 1930, através dos trabalhos de Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior que se desenvolveria um estudo mais sistemático sobre os traços distintivos que caracterizam a formação do povo Brasileiro. Essa geração modernista no âmbito da historiografia da década de 30 traria como novidade a ampliação do estudo da História para além da mera análise de documentos e fontes oficiais. A História em conexão com as demais ciências sociais. No caso de Gilberto Freire, com ênfase nos estudos da cultura e da antropologia. Em Sérgio Buarque de Holanda, na análise da sociedade e da psicologia do brasileiro, através de uma orientação weberiana. E em Caio Prado Júnior, prevalecendo as preocupações econômicas, dentro de um viés marxista.

Capistrano de Abreu está situado no período intermediário entre a primeira etapa positivista da historiografia brasileira e a geração modernista de 1930. Na verdade, ele de certa forma antecipou preocupações e orientações metodológicas que apareceriam depois.

Até Capistrano de Abreu, a História de tipo Positivista centrava-se nos grandes eventos políticos, como se a História do Brasil fosse a História do Estado Brasileiro e das suas Instituições. Capistrano pioneiramente traz elementos interdisciplinares ao estudo da História – tinha particular predileção pela Geografia. Também trouxe na sua obra preocupações em torno do desenvolvimento da sociedade, da cultura, da composição étnica do país e da mestiçagem, o que obviamente escapa à orientação puramente institucional dos Positivistas. Ao seu lado, figuram nessa mesma geração autores que poderíamos chamar de “pré modernistas”, como Euclides da Cunha e Sílvio Romero.

João Capistrano de Abreu nasceu em 23 de outubro de 1853 no Município de Maraguape, no Ceará. Daquela província era o grande escritor romântico José de Alencar, que ajudou a introduzir Capistrano de Abreu no movimento intelectual da época. Em 1875, o futuro historiador transfere-se ao Rio de Janeiro e candidata-se à vaga de professor de História do Brasil no renomado Colégio Dom Pedro II.

O título da dissertação que apresentou para se habilitar no concurso foi “O descobrimento do Brasil e o seu desenvolvimento no século XVI”. Foi aprovado com louvor em 1883 e reconhecido que o seu trabalho superava até mesmo as produções dos seus examinadores. Antes disso, Capistrano já havia sido aprovado em concurso para a Biblioteca Nacional. Reunindo o trabalho como professor e pesquisador, teve acesso às fontes documentais que subsidiaram o seu trabalho como historiador – a ênfase no estudo documental, a História criada através das fontes primárias, é um traço que evidencia como Capistrano é um dos nossos primeiros “historiadores profissionais”.

“Capítulos de História Colonial” consiste num conjunto de ensaios escritos pelo escritor que descreve em linhas rápidas a evolução histórica brasileira, desde o descobrimento até o século XIX.

No primeiro capítulo, denominado “Antecedentes Indígenas”, inicia tratando do palco onde se desenrolará a história que será contada. Aqui ele fala do cenário onde irá surgir o Brasil – a geografia, o clima, os rios, a fauna e a flora, além dos índios, que aparecem nesse primeiro momento como um elemento paisagístico, que se confunde com os animais selvagens e a natureza inexplorada:

“As guerras ferviam contínuas; a cunhã prisioneira agregava-se à tribo vitoriosa, pois vigorava a ideia da nulidade da fêmea na procriação, exatamente como a da terra no processo vegetativo; os homens eram comidos em muitas tribos no meio de festas rituais. A antropofagia não despertava repugnância e parece ter sido muito vulgarizada; algumas tribos comiam inimigos, outras os parentes e amigos, eis a diferença.

Viviam em pequenas comunidades. Pouco trabalho dava fincar uns paus e estender folhas por cima, carregar algumas cabaças e panelas; por isso andavam em contínuas mudanças, já necessitadas pela escassez dos animais próprios à alimentação”.

Obviamente, essa inclusão do índio dentro de uma figuração paisagística não significava diminuir o papel daqueles povos originários na formação do povo brasileiro. Aliás, Capistrano foi um pioneiro dos estudos das línguas indígenas e consta que nos seus estudos sobre o assunto, chegou a trazer índios bravios para a sua residência a fim de estudá-los.

O que se evidencia nesse capítulo é que a existência prévia daqueles povos pré colombianos não significa dizer que o Brasil já existia antes de 1500 – por isso são tratados como parte da paisagem onde se desenrolará a história. Se entendermos que a nação Brasileira constituiu-se e teve como ponto de partida a grande epopeia das navegações, dentro de um movimento de confluência das raças branca, ameríndia e negra, por meio de uma colônia de exploração, não restam dúvidas que aqueles povos que aqui habitavam antes dos portugueses não poderiam ser considerados “brasileiros”.

O capítulo mais extenso e mais importante do livro certamente o nono chamado “Sertão”. O tema da ocupação territorial do país é talvez o eixo condutor e a principal preocupação de Capistrano de Abreu, o que explica também o seu interesse pela geografia, dado que o nosso povoamento se deu através das confluências dos rios, sob a influência favorável ou desfavorável do relevo, e nas trilhas abertas pelos indígenas.

Ganha evidência, dentro do movimento de expansão territorial, a atividade da mineração e da pecuária, que promovem a interiorização da ocupação do país.

O bandeirantismo é reconhecido pelo escritor como um fator decisivo neste movimento. Num primeiro momento, os sertanistas paulistas agem como fator de desagregação social e até mesmo esvaziamento populacional, quando desenvolvem a sua atividade de captura dos índios. Os bandeirantes logo dirigem a sua atividade bandoleira sobre as missões dos jesuítas, o que é fácil de explicar: mais simples do que capturar índios selvagens dispersos na mata seria sequestrá-los nas missões jesuíticas, quando os índios já estão agrupados, habituados ao trabalho organizado, relativamente civilizados e até mesmo com algumas noções da língua geral.

Já num segundo momento, os bandeirantes deixam de ser um fator de desagregação para assumir a posição desbravadores do hinterland brasileiro; numa primeira etapa, a preocupação era a captura de escravos e depois será a busca do ouro e do diamante, o que criará as bases de ocupação do território onde hoje se situa o Brasil, já delineado através do Tratado de Madrid (1750) por meio da uti possedetis – o território pertence àqueles que o ocupam. Devemos aos bandeirantes a expansão de nossas fronteiras, inicialmente circunscritas ao litoral dentro do Tratado de Tordesilhas, para seguir em direção ao sertão. Nossa unidade linguística e coesão social também são tributárias dos sertanistas, que eram em geral mamelucos, andavam descalços e falavam a língua geral. Se a mineração expandiu o território, a pecuária serviu como meio de povoamento e consolidação do homem na terra, sendo o segundo fator decisivo descrito no capítulo “Sertão”.  

A síntese dos três séculos de colonização portuguesa é descrita no último capítulo do livro.

Assim conclui Capistrano de Abreu  a sua obra, tecendo em um parágrafo uma síntese dos três séculos de evolução histórica do Brasil:

“Cinco grupos etnográficos, ligados pela comunidade ativa da língua e passiva da religião, moldados pelas condições ambientes de cinco regiões diversas, tendo pelas riquezas naturais da terra um entusiasmo estrepitoso, sentido pelo português aversão ou desprezo, não se prezando, porém, uns aos outros de modo particular – eis em suma ao que se reduziu a obra de três séculos”.

 

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

“Banana Brava” - José Mauro de Vasconcelos

 “Banana Brava” - José Mauro de Vasconcelos



Resenha Livro - “Banana Brava” - José Mauro de Vasconcelos – Ed. Melhoramentos

“Um dia, saí pelo sertão adentro à procura de uma vida diferente. Deixei o meu coração parado à sombra de uma árvore, aguardando ansioso a minha volta e caminhei. Caminhei sem parar.  O sol tostou-me o rosto e as mãos.  Percorri muitas estradas empoeiradas, silenciosas e longas.  Esqueci-me do que se chama tempo e espaço, para perder-me na realidade da distância. Só havia distância...”. 

 

O livro mais conhecido do escritor fluminense José Mauro Vasconcelos certamente é “Meu Pé de Laranja Lima” (1968), espécie de relato autobiográfico da infância do escritor, vivenciada na pobreza de um bairro de subúrbio de Bangu/RJ.

As fantasias de uma criança que cultiva amizade com uma árvore de laranjeira do seu quintal, o encanto produzido pela imaginação dos menores, que conseguem abstrair as dificuldades da vida e encará-la com ternura e alegria, certamente cativou leitores de todas as idades e fez de Vasconcelos um dos poucos escritores brasileiros que pôde viver exclusivamente dos direitos autorais de sua obra. 

Façanha que encontra poucos paralelos no Brasil: Érico Verissimo, Jorge Amado e Monteiro Lobato são outros poucos exemplos de escritores de uma literatura ao mesmo tempo popular, acessível a todos e de rara qualidade estética.

“Meu Pé de Laranja Lima” vendeu mais de dois milhões de exemplares, tendo sido publicada em 15 países. “Rosinha Minha Canoa” (1962) foi a primeira obra de sucesso do nosso escritor, que igualmente relata um mundo encantado e fantástico, em que o pescador mantém dialogo e afeto com sua canoa, cuja origem advém de uma árvore capaz de sentir e de se comunicar. E esta pequena novela “Coração de Vidro” teve mais de 650.000 exemplares vendidos, publicações em 10 países, traduções em três idiomas e mais de 70 edições no Brasil.

A popularidade de Vasconcelos, por diferentes razões, não se traduziu em reconhecimento na academia. Aliás, a própria figura do escritor representa a mas completa oposição a tudo o que se posse considerar acadêmico.

De família pobre, nascido no estado do Rio de Janeiro, aos nove anos mudou-se para a casa dos tios em Natal/RN. Chegou a frequentar dois anos do curso de medicina naquele estado, mas a sua personalidade irrequieta e aventureira o faria abandonar o curso e retornar ao Rio de Janeiro a bordo de um navio cargueiro, levando uma simples maleta de papelão como bagagem.

Nesta peregrinação pelo país a fora, trabalhou como treinador de boxe, carregador de bananas na capital do Rio de Janeiro, pescador do litoral fluminense, professor primário num núcleo de pescadores no Recife, garçom em São Paulo. Além de escritor, foi ator de cinema e modelo.

Em dado momento de sua vida, se junto aos irmãos Villas Bôas, sertanistas e indigenistas, enveredando-se pelo sertão da região do Araguaia, contando povos indígenas desconhecidos e cartografando terras. O contato direto com aqueles povos sertanejos e indígenas criaria as condições para o escritor fazer relatos minuciosos (ainda que sua arte realista enveredasse para o fantástico, com animais e árvores falantes) dos povos do Araguaia, no seu já mencionado “Rosinha Minha Canoa” e no romance “O Garanhão das Praias” – ambos tratando de missões “civilizatórias” junto aos povos sertanejos e indígenas dos rincões do país.

BANANA BRAVA

“Banana Brava” foi o primeiro romance de José Mauro de Vasconcelos, escrito quando tinha apenas 22 anos de idade. Também nesta história existe um elemento autobiográfico representado na figura do protagonista do enredo. 

Joel também abandona a vida na cidade para lançar-se ao mundo – renuncia aos valores de sua origem urbana e o conforto do lar familiar para se aventurar no centro oeste, coração do Brasil, para o trabalho no garimpo.

Trata-se de uma história de estilo regionalista que descreve a vida dos sertanejos ligados ao trabalho da caça de diamantes. O realismo que marca as obras do escritor não permite qualquer tipo de idealização em torno da figura dos garimpeiros. São descritos como pessoas brutais e o que mais os caracteriza é a ausência da capacidade de sentir compaixão. Lançam-se à busca dos diamantes nos sertões, desbravando a selva, enfrentando a fúria das onças das matas e das piranhas dos rios. A cobiça e a luxúria são qualidades que informam a psicologia daqueles que se aventuram à busca pela riqueza imediata – qualidades que o historiador paulista Paulo Prado em seu “Retrato do Brasil” (1922) estende a própria psicologia do povo brasileiro.

São homens temperados dentro de uma realidade brutal com o objetivo do enriquecimento rápido – de certa forma, o sonho do El Dorado remete mesmo aos tempos do Brasil colônia, já desde o bandeirantismo, particularmente em sua fase tardia, quando os sertanistas de São Paulo abandonam a atividade da captura dos índios para se voltar à busca do ouro e do diamante.  

Joel, um garoto de coração puro, com mãos delicadas de um pianista, tem a sua fisionomia moral radicalmente alterada através do trabalho no garimpo.

A lhaneza do seu coração é revelada nos primeiros capítulos do livro, na sua relação com Gregorão, um homem bruto que o acompanha nos trabalhos do garimpo. Frequentemente, é obrigado a resgatar o seu amigo da prisão, quando Gregorão passa a noite envolvido em bebedeira e brigas – são as pequenas tragédias que ocorrem nos domingos, dia de folga dos garimpeiros:

“Domingo. Ninguém trabalha no garimpo. É o dia de Deus. Somente o comércio abre as portas. Os garimpeiros metem sua melhor calça. Calçam botas ou sandálias. Batem pernas pela rua, levantando uma poeira ininterrupta. Vão de boteco em boteco. Comem doce de gergelim. Bebem pinga de todo o jeito, convidam todo mundo e aceitam todo o convite. É o dia de Deus, ninguém trabalha. Dia de Deus e da polícia. O melhor dia para a pensão da cadeia melhorar dos seus hóspedes e alugar os seus quartos de janelas cruzadas...”.

A amizade e o cuidado de Joel e Gregorão se assemelham ao afeto de um filho em relação ao pai. Entretanto, o primeiro, cansado de estar sempre arrastando o segundo das confusões causadas pela bebida, decide se mover para outro destino. Deixa o pouco de dinheiro que lhe resta para pagar a fiança de Gregorão e parte para Banana Brava, uma terra distante, no Araguaia, onde afirmam estar situada a mais promissora fonte de riqueza rápida.

Nessa jornada até Banana Brava, o coração puro de Joel vai sendo paulatinamente corrompido.

O garimpo é fonte de destruição da natureza e dos campos onde se cultivam as fontes de subsistência. A terra que serve de fonte de alimento é queimada e destruída na busca desenfreada pelo ouro. São as queimadas que preparam a abertura das catras. Mas o garimpo também destrói e aniquila a alma do homem.

Joel se envolve com um grupo de pessoas que se dirigem à Banana Brava. O trajeto é feito atravessando léguas a fio dentro da mata, numa selva infernal, cercadas de animais selvagens e insetos. Há escassez de água e de alimentos. Cardumes de piranhas impedem o acesso aos rios. Nas caminhadas, topam com “uma infinidade de espinhos de toda a espécie. A macambira não perdoava, com as suas garras de espinho. Lembrava um polvo, cujos tentáculos eram cheios de espinhos. Havia também o capim tiririca, que grudava nos braços e nas pernas, rasgando as carnes, como giletes. O bambu cipó era outro suplício, porque quando aparecia, enchia os campos em massa compacta”.

Não habituado àquele ambiente hostil, Joel é deixado para trás e perde a trilha dos demais companheiros – e, como dito, a compaixão é um sentimento ignorado por aqueles garimpeiros, que não hesitam e deixar o rapaz para trás.

Joel fica nove dias isolado e perdido na selva, sem comida e sujeito ao ataque de animais selvagens. Chega a desfalecer de sede e de fome, até o ponto de urubus estarem-no cercando, aguardando o momento certo para lhe comer a carniça. Nesses últimos instantes de vida, é resgatado por Seu Diolino, um camponês que vive naquelas matas com a sua família. Leva para casa e cuida dos ferimentos.

Recuperado, Joel jura vingança. O ódio àqueles que o abandonaram o leva a planejar uma revanche desleal – promove uma falsa denúncia às autoridades locais de que aqueles garimpeiros que o abandonaram, na verdade, tentaram-no assassinar para lhe tomar o dinheiro. Por sua culpa, os homens são açoitados a mando da autoridade local e todo o dinheiro do grupo é dado de volta a Joel, como se fosse a título de “restituição.”.

Esse ato desleal de vingança é o ponto de partida da desagregação moral do protagonista – e é agravada ainda pela adesão ao hábito de beber pinga. A história de Joel é a expressão da brutalização do homem quando confrontado com as circunstâncias do meio.

Não propriamente através de uma orientação determinista – o meio hostil é um elemento de desagregação da moral do protagonista, mas ainda há esperanças. Ao fim da história, Joel recupera a consciência e o discernimento entre o certo e o errado. O seu reencontro comovente com Gregorão ao final da história revela que ainda existe ternura no seu coração, a despeito da violência e barbárie do ambiente a que esteve submetido.

As tragédias que remontam a orientação realista de José Mauro de Vasconcelos não implicam a desilusão em relação ao ser humano. Ao lado da violência gratuita e dos assassinatos, há espaço também para atos de amor e altruísmo, revelados na parte final da história, quando Gregorão dá a sua vida para salvar Joel.

A brutalidade do sertanejo convive com uma certa dose de inocência. O garimpeiro também pode ter um coração cândido. Não são movidos por uma maldade inata, mas parecem antes serem crianças em corpo de adulto. A origem do mal está nas condições sociais do Garimpo e não na natureza selvagem.

domingo, 10 de agosto de 2025

“Mar Morto” – Jorge Amado

"Mar Morto" - Jorge Amado


  

Resenha Livro - “Mar Morto” – Jorge Amado – Ed. Record

“... Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia. Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do Mercado, nas feiras, nos pequenos portos do Recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus. O povo de Iemanjá tem muito que contar”.

 É bastante extensa a produção literária do escritor baiano Jorge Amado (1912/2001). Em vida o escritor publicou 49 livros, entre romances, novelas, peças de teatro e biografias. Seus trabalhos foram traduzidos em cerca de 50 idiomas, além de adaptações das obras no teatro, no cinema e na televisão.

Jorge Amado é também um dos escritores brasileiros mais conhecido e lidos fora do país – no ano de 1971, por exemplo, o autor é convidado para acompanhar um curso sobre sua obra na Universidade de Pensilvânia nos EUA. O que é notável, neste caso, é a forma como o autor consegue suscitar obras tanto reconhecidas pela crítica especializada quanto pelo público: em que pese as nuanças que marcam a evolução de sua obra, há sempre uma abordagem de pessoas e ambientes que realçam aspectos da cultura popular.

Convencionou-se dividir a literatura de Jorge Amado em dois grandes períodos.

Uma fase de cunho nitidamente político ideológico perpassa sua produção dos anos 1930/1940. É deste período romances como “Cacau” (1932) que descreve a opressão dos trabalhadores rurais nos latifúndios do sul da Bahia, região na qual o escritor nasceu. É também nesta primeira fase que o escritor publica o seu famoso  “Capitães de Areia” (1937) relato da vida de menores abandonados que sobrevivem de pequenos atos de bandidagem nas ruas da Bahia, convivem e descobrem o amor, o sexo e a solidariedade dos oprimidos desde um trapiche onde se refugiam.

Estes livros se situam num movimento literário conhecido como segunda fase do modernismo, de cunho nitidamente regionalista e com um forte acento na denúncia das iniquidades sociais. Andam num sentido semelhante aos romances de Graciliano Ramos, Rachel de Queirós e José Lins do Rego. No caso de Jorge Amado, especificamente, os mais humildes e oprimidos são erigidos na condição de heróis, seja os trabalhadores rurais do cacau, seja os “bandidos sociais” do trapiche, para usar a terminologia do historiador Eric Hobsbawm. 

A segunda fase da produção literária do escritor baiano se relaciona com uma reorientação política. Teve como eixo a ruptura de muitos intelectuais com o movimento comunista no contexto do XX Congresso do PCUS no ano de 1956, quando Nikita Kruschev denunciou aquilo que caracterizava como os “crimes do stalinismo” – na prática, tratava-se do marco inicial da restauração capitalista da União Soviética.  São desta segunda fase romances não tão abertamente ideológicos como “Gabriela Cravo e Canela” (1958) e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1966).

Apesar de “Mar Morto” (1936) ser uma obra da juventude de Jorge Amado, foi por ele considerado o seu melhor romance.

A história dos homens que vivem no mar, transportando mercadorias nos seus barcos a vela (saveiros), em condições de extrema pobreza e sujeitos ao risco de uma tempestade leva-los à morte, remonta à preocupação  do escritor com a vida e a luta do povo e dos trabalhadores. Mas, o componente político não compromete a qualidade literária da obra.

A grandeza do escritor reside justamente nessa capacidade de expressar a luta de classes sem o fazê-lo por meio de proselitismo partidário ou até mesmo com uma intenção de agitação e propaganda em torno de determinada ideologia. Com esse arranjo, suas histórias são factíveis, a conduta dos personagens, ainda que heroica em determinados momentos, não se revela como algo não plausível.  

O protagonista da história chama-se Guma, mais um daqueles muitos homens do cais. O seu pai sofrera o destino irremediável daqueles marinheiros: morrera num naufrágio do seu Saveiro para o encontro inevitável com Iemanjá, a divindade protetora dos marinheiros. Sua mãe foi uma prostituta que, sem condições de cuidar do filho, deixou-o aos cuidados de um Tio, também marinheiro, que ensinou à Guma desde menino a pilotar o barco de vela,  chamado simbolicamente de “Valente”.

O que caracteriza aqueles homens do mar é a coragem.  E a experiência de viver o amor e a vida em geral de forma intensa.

A coragem reside na formação para um trabalho em que estarão sempre cercados pelo risco da morte. São as tempestades repentinas e os ventos que destroem os saveiros e levam seus condutores ao encontro de Iemanjá. Além disso, Guma e os demais são desde criança levados ao trabalho no mar. Apenas frequentam poucos anos de escola para apenas aprender de forma rudimentar a escrever o seu próprio nome. Já aos 10 ou 11 anos de idade, abandonam o estudo para cumprir o seu destino. Reproduzem um ciclo que vem dos seus pais e avós. Tornam-se por isso homens antes do tempo.

Além disso, os homens do cais vivem o amor de forma intensa. Passam temporadas em viagens e quando retornam à família, amam suas mulheres como se não houvesse amanhã. Afinal, nunca saberão o dia em que não retornarão.

Não encaram essa fatalidade com revolta, nem tão pouco com resignação. Trata-se de predestinação, vista por eles em seu caráter heroico. Todos aqueles homens sabem que o seu destino é perecer nas águas do mar. O tio de Guma, uma exceção à regra, envelhece até esgotar suas forças para conduzir o saveiro. Perecer de velhice, sem cumprir o seu destino de marinheiro, é motivo de tristeza àqueles homens.

A dimensão política da obra se revela na exposição das condições de vida dos trabalhadores do mar. Os marinheiros quando naufragam obrigam suas esposas a sobreviver da prostituição ou do trabalho precário nas fábricas. O baixo preço pago pelas viagens levam-nos em determinado momento a cogitar a greve geral. Há ainda na história dois personagens oriundos de uma pequena burguesia que aderem e defendem os interesses dos trabalhadores. São os intelectuais que gravitam em torno da luta social.

Dona Dulce é uma professora de escola primária, ensina os meninos que dentro de pouco tempo abandonarão ao estudo para o trabalho. Acredita que haverá no futuro um grande milagre que trará a redenção do povo: sem atribuir nome a esse milagre, o leitor facilmente compreende essa esperança com o advento do socialismo. Outro intelectual é o Dr. Rodrigo, um médico que renuncia a riqueza e a vida confortável do trabalho na cidade para viver no cais, lado a lado com os trabalhadores, ajudando-nos com dinheiro e medicando o povo de forma gratuita.

“Mar Morto” é também uma história de amor.

As mulheres dos marinheiros vivem um triste destino: esperam a cada noite de tempestade a notícia da morte dos seus maridos.

Lívia, a companheira de Guma, é uma delas. Contra a vontade da família, casa-se por amor sincero. Em toda a história, passa pela não aceitação do destino que leva os trabalhadores ao encontro inevitável com Iemanjá. No início do casamento, busca até mesmo acompanhar Guma nas suas viagens no navio. E o amor de ambos enseja pela primeira vez um sentimento de medo em Guma: nas viagens em que está acompanhado de Lívia, experimenta um novo sentimento de temor de um naufrágio, que agora arrastaria consigo a sua companheira.

A morte heroica do protagonista no final da história traz-nos a revelação de que Lívia não fora simplesmente uma companheira de Guma. Na busca pelo corpo do marido, a história termina com a sugestão de que Lívia nada mais fora do que uma materialização de Iemanjá, também conhecida pelo povo como Janaína. A vida no mar os uniu e a morte no naufrágio do barco “Valente” os reuniu.