domingo, 9 de janeiro de 2022

“O Matuto” – Franklin Távora

 “O Matuto” – Franklin Távora




 

Resenha Livro - “O Matuto” – Franklin Távora – Iba Mendes Editor Digital

 

“Só uma vista curta não verá na guerra dos mascates, antes uma luta travada por dois grandes princípios, do que uma revolta filha de preconceitos ridículos e costumes atrasados. Certo concorreram não pouco para essa luta o costume e o capricho antigo, inflexíveis ambos; mas o seu papel nessa grande representação foi mais secundário do que principal. A parte essencial e verdadeiramente dramática da ação, essa pertencia a dois grandes interesses, assim das sociedades modernas, como das antigas – ao comércio e a agricultura, princípios que, quando acordes em seu desenvolvimento, trazem a propriedade e riqueza dos povos, e, quando divergentes, o seu atraso senão o seu aniquilamento”.

 

Já foi dito que a literatura é um retrato da sociedade. Também não são poucos os romances que sevem de preciosa fonte histórica àqueles que desejam conhecer o passado de uma nação. No caso de “O Matuto” (1878) publicado pelo escritório cearense João Franklin da Silveira Távora, verificamos se tratar de uma epopeia descrevendo a Guerra dos Mascates (1710/1711) na região a Zona da Mata Pernambucana, então designada Goiânia.

 

Os eventos principais da Guerra dos Mascates ocorreram no Recife. O segundo palco principal da guerra foi esta região mais ao interior, onde se passa os eventos deste romance.  

 

O enredo se passa mais especificamente em Pasmado, uma velha povoação situada entre Goiânia e Olinda, outrora aldeia de índios, local onde se produzia facas, região onde houve cerca de 8 motins desencadeados pelos rebeldes de Recife contra os nobres da terra, designados como “mazombos” e “pés rapados.”.

 

Mais do que uma história épica da Guerra dos Mascates, temos neste romance uma descrição da fisionomia física e moral do “matuto” que é o sertanejo agricultor, o lavrador, o almocreve, bem como da sua estrutura familiar, dos costumes, do folclore, das festas populares, do papel da religião, dos enlaces conjugais. Mais do que um romance histórico, temos a partir da leitura deste romance regionalista uma fonte preciosa do sertanista brasileiro:

 

“No tocante ao traje, ver um dos matutos era o mesmo que ver os demais. Camisa por cima de ceroulas de algodão – eis em que ele consistia.

 

Todos tinham os pés nu, e quase todos por cima do cós das ceroulas o longo cinto de fio, cofre portátil onde traziam o dinheiro, terminando em cordões com bolotas nas pontas, os quais serviam para dar muitas voltas em torno da cintura antes do laço final. Metida entre o cinto e o cós guardava cada um sua faca de ponta presa pela orelha da bainha. Da arma só aparecia o cabo, figurando a cabeça de uma serpente que tinha o restante do corpo oculto.”.

 

Há divergência nas análises desta obra sobre o seu enquadramento literário. Parte da obra do nosso escritório se situaria no romantismo, outra parte seria precursora do realismo. Para alguns, seria mesmo um precursor do naturalismo.  

 

O certo é que Franklin Távora suscitou a proposta de criação de uma “Literatura do Norte” ou “Romance Histórico” a partir da trilogia: “O Cabelereira” (1876), “O Matuto” (1878) e “Lourenço” (1878).

 

Seria importante salientar que a produção literária de Távora se situa num contexto de fim do ciclo da cana de açúcar e redirecionamento do centro econômico do país para o eixo centro-sul, iniciado com a mineração e concluído com o ciclo do café.

 

Outro ponto a ser destacado: nosso escritor matriculou-se na Faculdade de Direito de Recife em 1859, teve contatos pessoais com a chamada Escola de Recife e seus expoentes Tobias Barreto e Sílvio Romero.

 

Diante destas premissas, justificaria o escritor a criação de uma literatura do norte em oposição e com autonomia em relação ao sul, ou se quisermos, ao Rio de Janeiro.    

 

Ficaram conhecidas, neste sentido, as críticas de Franklin Távora ao escritor romântico José de Alencar, que seria um “escritor de gabinete”, em oposição à proposta literária parcialmente romântica do autor de Matuto, cujo enredo está lastreado em fatos e na pesquisa da história. Certamente, uma história parcial da Guerra dos Mascates, simpática aos senhores de engenho, e antipática à demagogia dos comerciantes portugueses, mas ainda assim, um romance com algum compromisso de narrar o passado, explicar quem foram os protagonistas dos eventos e, não menos importante, explicar as origens do país.

 

A Guerra dos Mascates iniciou-se a partir da proposta de elevação de Recife à condição de Vila, criando animosidade e oposição à nobreza de Olinda. Mais do que uma oposição geográfica, tratava-se de um conflito entre a nobreza da terra, ligada à agricultura, e tida como brasileira, e comerciantes citadinos do recife, designados mascates, boa parte deles portugueses. O controle dos preços do açúcar pelos comerciantes, a existência de empréstimos de dinheiro a juros abusivos, que levaram alguns proprietários de terra ao colapso, criaram as condições econômicas para a animosidade entre os dois grupos.

 

Os mascates diziam representar os interesses do povo e combater os privilégios da nobreza. Na prática, desenvolviam motins, praticavam saques, operavam como bandoleiros, matavam os fidalgos e estupravam suas mulheres, inclusive arregimentando o que poderíamos chamar de “lumpesinato” dentro de seu movimento. Este ódio contra os nobres era explorado por meio de ressentimentos prévios, sendo comum os mascates corromperem os escravos dos senhores de engenho para que eles sabotassem internamente à reação aos motins.

 

Se por um lado, os mascates apresentavam um discurso de representantes dos interesses populares, os rebeldes eram dirigidos por comerciantes portugueses, cujos interesses efetivos não era o igualitarismo político ou mesmo a abolição da escravatura, mas os desígnios pecuniários dos comerciantes. Comerciantes estrangeiros....

 

Ao menos no que se refere à interpretação da história por Franklin Távora, a efetiva defesa dos interesses nacionais estava do lado oposto da trincheira, dentro da resistência do matuto, dos senhores de engenho e dos trabalhadores do campo. Dos brasileiros....

 

“Em nome da lei, mascate! Gritou Cosme em tom de quem impunha silêncio. Sois apontado como perturbador da ordem, protetor dos rebeldes, e um deles. À frente de todos os motins que há dois meses perturbam o sossego desta vila, todos vos veem comprando os venais, desencabeçando os ignorantes, encaminhando para o mal, que é o vosso alvo, os desordeiros por hábito e condição. Os homens bons já estão cansados de aturar as vossas provocações, a autoridade de ser desrespeitada, as famílias fracas de receber insultos e violências dos malfeitores a que estendeis a mão cheia de ouro. (...)”