sábado, 24 de julho de 2021

“O Meu Pé de Laranja Lima” – José Mauro de Vasconcelos

 “O Meu Pé de Laranja Lima” – José Mauro de Vasconcelos




 

“Na nossa rua havia tempo de tudo. Tempo de bola de gude. Tempo de pião. Tempo de colecionar figurinhas de artistas de cinema. Tempo de papagaio, o mais bonito de todos os tempos. Os céus ficavam por todos os lados repletos de papagaios de todas as cores. Papagaios lindos de todos os feitios. Era a guerra no ar. As cabeçadas, as lutas, as laçadas e os cortes.

 

As giletes cortavam as linhas e lá vinha um papagaio rodopiando no espaço embaraçando a linha do cabresto com a cauda sem equilíbrio; era lindo tudo aquilo. O mundo se tornava só das crianças da rua. De todas as ruas de Bangu. Depois era um tal de caveirinha enrolada nos fios; era um tal de correr do caminhão da Light. Os homens vinham furiosos arrancar os papagaios mortos, atrapalhando os fios. O vento... o vento...”.

 

Quando o escritor carioca José Mauro de Vasconcelos publicou este livro, no ano de 1968, já era um romancista experiente. Seu primeiro livro, chamado “Banana Brava”, foi publicado em 1942, quando o artista tinha apenas 22 anos de idade. Neste romance se retrata o homem embrutecido nos garimpos dos sertões do Centro-oeste brasileiro. O livro “Rosinha, Minha Canoa” de 1962 foi o seu primeiro sucesso de público: a obra de certa forma antecipa o tema do fantástico, contando a história de Zé Orocó que conversa com sua canoa, tanto quanto Zezé que conversa com seu Pé de Laranja Lima.  

 

Este certamente é o mais conhecido romance de Vasconcelos. Foi inequivocamente um sucesso de público: dois milhões de exemplares vendidos e edições que se espraiaram por 15 países, entre Estados Unidos, Holanda, Itália, Hungria, Áustria, Argentina e Alemanha. No Brasil foram produzidas 150 edições, houve duas adaptações para o cinema, três adaptações para telenovelas e uma adaptação para o teatro, com texto de Luciano Luppi e direção de Tereza Quintino.

 

A despeito do sucesso de público, na opinião do escritor Luiz Antônio Aguiar, não houve o mesmo reconhecimento da obra  pela crítica e pela estudiosos da literatura.

 

A saber:

 

“A critica erudita não aceitou bem O Meu Pé de Laranja Lima e o enternecimento que a obra, seja em livro, seja na adaptação para a TV e o cinema (que você deveria conferir), causou ao público. Em consequência, não se deu o devido valor a esse importante autor, o que aconteceu também a outros que conquistaram os leitores e a audiência da mídia, mas não a crítica especializada”.

 

Esta situação se relaciona mesmo com a trajetória de vida do escritor: uma vida de viagens pelo interior do país, sem formação na universidade, trazendo a realidade conhecida pelas aventuras pelo Brasil e combinando-a com uma fértil imaginação.

 

Sobre o Autor

 

José Mauro de Vasconcelos nasceu em 26 de fevereiro de 1920, em Bangu, no Rio de Janeiro. De família muito pobre, ainda aos nove anos de idade, chegou a morar com os tios em Natal/RN. Desde cedo, gostava de ler Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Paulo Setúbal. Certamente, seu livro também é tributário de um certo regionalismo associado aos escritores do modernismo literário. Além do estudo, desde cedo praticava esportes e manteve espírito de aventura. Chegou a cursar dois anos de Medicina na Faculdade de Natal, mas sua mente inquieta o fez abandonar a graduação e mudar-se ao Rio de Janeiro a bordo de um navio cargueiro. A partir da então capital do país, iniciou sua peregrinação pelo Brasil. Foi treinador de boxe, carregador de banana, pescador no litoral fluminense, professor primário num núcleo de pescadores em Recife, garçom em São Paulo e até ator.

 

Sobre a Obra

 

“Meu Pé de Laranja Lima” é um livro autobiográfico e relata a história da infância do escritor. A história se passa no bairro de Bangu, zona norte do Rio de Janeiro, e o narrador é a própria criança de 6 anos. Ou melhor, criança de 5 anos mas que diz a todos que tem 6 anos: assim poderia ter idade para frequentar a escola e desligar-se do lar, onde recebe castigos físicos por conta de suas travessuras. A pobreza da família é retratada logo no início, quando do natal de 1925: o pai de Zezé (apelido de José) está desempregado e as crianças são as únicas do bairro a não ganharam presentes. A pobreza é percebida pela criança através do reflexo da experiência dramática dos adultos, nitidamente de Seu Paulo, pai de família e desempregado.

 

“Eu resolvera ficar perto de Papai, porque assim não faria arte alguma. Ele se sentara na cadeira de balanço e olhava perdidamente para a parede. Seu rosto sempre com a barba por fazer. Sua camisa nem sempre muito limpa. Quer ver que não saíra para jogar manilha com os amigos porque não tinha dinheiro. Pobre Papai, devia ser triste saber que Mamãe trabalhava para ajudar a sustentar a casa. Lalá já entrara para a Fábrica. Devia ser duro ir procurar uma porção de empregos e voltar desanimado sempre com aquela resposta: ‘Precisamos de uma pessoa mais moça”.

 

O livro retrata um período em que a infância não tinha ainda a mesma atenção dada pelo legislador e pela sociedade, como a noção de proteção integral e prioridade absoluta no asseguramento dos direitos (artigo 4º da Lei 8069/90). A história se passa nos anos 1920, setenta anos antes da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente. As cenas de brutalização e violência em face de Zezé, pelo pai e pela irmã Jandira, indicam um período histórico diferente do atual, a despeito da permanência ainda hoje dos abusos, inclusive sexuais.

 

Em todo o caso, mais do que um livro sobre a infância, “Meu Pé de Laranja Lima” é um livro sobre o “tornar-se”, o deixar de ser criança e passar a ser adulto, o que, no caso de Zezé, aconteceu muito cedo.

 

O advento da “idade da razão” aparece no romance em diferentes  etapas: a criança tem dentro de si um passarinho com quem conversa e dialoga. Ao deixar de ser criança, o passarinho desaparece e é trocado pelo “pensamento” – quando perde este passarinho, se sente um vazio por dentro que não acaba mais.

 

As surras injustas levadas por Zezé levam-no rapidamente a romper com os laços familiares: seu único amigo, Portuga, morre tragicamente num acidente de carro.

 

O pé de laranja lima deverá ser removido por ordens da prefeitura.

 

Envelhecer é sair do mundo da fantasia e entrar no mundo da realidade e da dor. O mais provável é que o no passado, este processo ocorria mais cedo, formando adultos diferentes do que os que estamos formando nos dias de hoje.

quinta-feira, 15 de julho de 2021

“Caçadas de Pedrinho – Hans Staden” – Monteiro Lobado

“Caçadas de Pedrinho – Hans Staden” – Monteiro Lobado




 

Resenha Livro - “Caçadas de Pedrinho – Hans Staden” – Monteiro Lobado – Ed. Círculo do Livro

 

“Esse fato causou o maior rebuliço no Brasil inteiro. Os jornais não tratavam de outra coisa. Até uma revolução, que estava marcada para aquela semana, foi adiada, porque os conspiradores acharam mais interessante acompanhar o caso do rinoceronte do que dar tiros nos adversários” (“Caçadas de Pedrinho” – Monteiro Lobato).

 

No ano de 2010 ganhou repercussão na mídia nacional o ajuizamento de um mandado de segurança pelo “Instituto de Advocacia Racial” junto ao Supremo Tribunal Federal demandando a retirada do livro “Caçadas de Pedrinho” (1933) da lista de leitura obrigatória do ensino oficial, sob a alegação de que as crianças estariam supostamente expostas a conteúdo racista.

 

Desde então, vem sendo ventilado pela por grupos identitários a ideia de que o escritor paulista seria racista ou até mesmo eugenista.

 

Esta não seria a primeira vez que as obras de Monteiro Lobato seriam objeto de ataques injustos e infundados.

 

Meses depois da publicação do livro infantil “História do Mundo Para Crianças” (1933), a obra passou a sofrer perseguição e censura da Igreja Católica. Naquela época era ainda uma novidade a existência de obras literárias direcionadas ao público infantil, que suscitavam a imaginação por meio de personagens fantásticos como o Visconde de Sabugosa, um nobre fidalgo feito de espiga de milho que traz a voz da razão e da ponderação; ou o Marquês de Rabicó, um porquinho medroso que conversa com as crianças; ou Emília, uma boneca de pano que se distingue por sua bravura, autoconfiança e uma certa esperteza. Consta  mesmo que um grupo de freiras chegou a organizar fogueiras para destruir exemplares de livros no ano de 1942. No exterior, o Governo Português também chegou a proibir os livros infantis em seu país tanto porque os livros indicam que o Brasil teria sido achado ‘por acaso’ pelos portugueses, quanto por “ter registrado das 1600 orelhas cortadas à marinhangem árabe por Vasco da Gama”. [1]  

 

Tanto no passado quanto no presente, são injustos estes julgamentos sobre a obra do escritor de Taubaté.

 

Não é correto dizer que Monteiro Lobato era racista, mesmo porque o escritor não teve uma única opinião com relação ao tema racial. Já nos ano de 1920, quando inicia seu trabalho de literatura infantil, já havia feito uma autocrítica acerca do seu personagem Jeca Tatu. Os vícios do caipira não decorriam de questões raciais, da miscigenação do branco, do índio e do negro. O atraso de Jeca decorria da falta de salubridade, de higiene e de saúde. Nas palavras do escritor: “Jeca não é assim. Está assim”. Vale dizer que esta mudança de orientação se deu ainda em 1918, nada menos do que 15 anos antes do lançamento de “Casa Grande e Senzala”, quando o grande sociólogo pernambucano chegaria às mesmas conclusões que Monteiro Lobato.

 

Há outros indícios de que Monteiro Lobato não mantinha a mentalidade racista propalada pelo identitarismo.

 

No conto “Negrinha” (1920), por exemplo, faz uma das mais contundentes denúncias dos resquícios da mentalidade escravocrata nas fazendas de café após a abolição de 1888. A perversidade com que Dona Inácia, “excelente senhora, gorda, rica, animada dos padres”, brutaliza Negrinha, uma órfã de sete anos, contando com o beneplácito de um padre, é o que há de melhor de literatura social escrita no Brasil:

 

“A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos – e daqueles ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se fizera ao regime novo – essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! (...) O 13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis”.

 

Há uma carta do escritor de data de 01/10/1916 endereçada à Godofredo Rangel em que Lobato tece fortes elogios ao escritor negro Lima Barreto, na época solenemente ignorado pela elite intelectual do país por puro preconceito racial.

 

A leitura das obras infantis de Monteiro Lobato encanta tanto os jovens como os adultos e algumas de suas lições de história oriundos do “Hans Staden” revelavam uma leitura progressista da História do Brasil.

 

Por exemplo, sobre as razões de Portugal não se desenvolver economicamente a despeito de ter saqueado todo o ouro do Brasil:

 

"- Por que, então, não se tornaram esses países os mais ricos do mundo? – Perguntou Pedrinho.

 

- Porque não souberam guarda-lo – respondeu Dona Benda. – Não basta ganhar, é preciso conservar, coisa muito mais difícil. Todo o ouro que Portugal tirou do Brasil foi se passando aos poucos para os países industriosos, sobretudo para a Inglaterra, em troca dos produtos das suas fábricas. Quando os portugueses abriram os olhos, era tarde – o ouro do Brasil estava todo em mãos de gente mais esperta.”. (Hans Staden)

 

O mandado de segurança que pretende censurar “Caçadas de Pedrinho” seguiu em trâmite no STF até maio de 2020. O STF declarou-se incompetente para analisar ação mandamental que tem como ato coator parecer do Conselho Nacional de Educação. O mandado de segurança, contudo, prossegue. É dever dos comunistas e dos patriotas defender a obra de Monteiro Lobato como parte indissolúvel da cultura popular, motivo de orgulho da população brasileira e obra literária que deve ser defendida em face dos devaneios do identitarismo.



[1] Zöler, Zöler (2018). «3.7.2.4 história». Lobato Letrador. 3º passo 1 ed. [S.l.]: Tagore Editora. p. 357. 408 páginas. In: https://pt.wikipedia.org/wiki/Monteiro_Lobato - Acesso em 15 de Julho de 2021

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Contos de Machado de Assis

 Contos de Machado de Assis

 



Quando se analise a trajetória de vida de Machado de Assis, chama atenção a ascensão vertiginosa e pouco usual de um artista mulato, oriundo do morro do Livramento (RJ), que chegaria ao fim do século XIX reconhecido por unanimidade como o maior escritor do Brasil.

 

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 1839: seu pai era neto de escravos e sua família vivia como agregados, sob a proteção de uma viúva rica, que se tornou madrinha do futuro escritor.

 

Na infância trabalha como baleiro. Na adolescência sai da chácara e muda-se para a cidade, tornando-se aprendiz de tipógrafo. Autodidata, nunca teve formação escolar formal. Das suas primeiras publicações na imprensa fluminense nos de 1860, até a sua plena maturidade artística nos anos de 1880/90, obteve o reconhecimento do seus méritos literários, culminando na sua eleição como presidente da recém fundada Academia Brasileira de Letras, em 1897, função que ocuparia até a sua morte, em 29 de setembro de 1908.

 

Parece haver um consenso entre os estudiosos acerca de uma periodização da obra de Machado de Assis.

 

Os romances da chamada 1ª Fase como Ressurreição (1872), a Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878) se situam ainda dentro da 3ª Geração do Romantismo. São obras folhetinescas, destinadas ao público feminino urbano, que suscitam uma análise condescendente e conciliadora quanto às relações sociais vigentes e os problemas do amor. Ainda que haja de fato uma mudança substancial nos seus romances subsequentes, que inauguram no país o realismo literário, estas primeiras obras não perdem o interesse do leitor de hoje. Em muitos momentos antecipam a crítica social, o humor sutil e a ironia refinada dos trabalhos posteriores.

 

Sobre esta mudança de orientação na obra, opina Ivan Marques:

 

“Na juventude, Machado de Assis colaborou fartamente em periódicos como o ‘Jornal das Famílias’ e ‘A Estação’. Nessa época escreveu narrativas folhetinescas voltadas para o público feminino – segundo ele ‘as páginas mais desambiciosas do mundo’. As obras-primas do conto machadiano só viriam à tona após a ‘crise dos quarenta anos’ e o seu famoso renascimento como escritor. A mudança de fase, no começo da década de 1880, foi explicada por Machado com a afirmação de que ‘perdera todas as ilusões sobre os homens’. É a época dos contos-teorias, em que o autor analisa de modo crítico e pessimista temas como o egoísmo, o interesse que a tudo devora, os limites da razão e da loucura, a crueldade e o triunfo da aparência sobre a essência”.

 

De fato, em obras como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Dom Casmurro (1899) e Quincas Borba (1891), o romance folhetinesco é abandonado, ganhando maior espaço o humor, a ironia  ou o patético, palavra de origem francesa que descrevo o que é ao mesmo tempo engraçado e triste.

 

O realismo revela o cinismo e a hipocrisia nas relações sociais: a realidade é feita de aparências e jogos de cena. No conto “Teoria do Medalhão” (Papeis Avulsos -  1882) um pai educa seu filho para que vença na vida, devendo seguir o conselho de não se afastar jamais das convenções sociais e sempre esconder o rosto que existe por trás da máscara.

 

O escritor fluminense escreveu e publicou cerca de 200 contos, que acabam também se diferenciando conforme as fases romântica e realista supracitadas.

 

O tema dos dilemas da consciência e a crítica dos costumes são antecipados em contos como “O Relógio de Ouro” (1873) em que um marido ciumento, ao descobrir um objeto desconhecido dentro de casa, acaba por ser desmentido pela realidade, já que o relógio fora entregue por um portador que portava o bilhete de uma Iaiá, e a traição fora descoberta por sua mulher.

 

Já no conto “A Carteira” (1884) os dilemas de consciência são retratados na hesitação do homem entre o agir ou não de forma correta. O dilema começa logo no início da história, quando o protagonista, endividado, encontra uma carteira na rua cheia de dinheiro:

 

“.... De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, em o conhecer, lhe disse rindo:

 

- Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.

 

- É verdade, concordou Honório envergonhado”.

 

O protagonista faz a coisa certa e devolve a carteira ao seu dono, que por sinal é um amigo que frequenta sua casa. Mal sabia Honório que dentro da carteira havia um bilhetinho de amor deste seu amigo destinado à sua esposa, D. Amélia.

 

Bibliografia

 

“Contos de Machado e Assis” – Difusão Cultual do Livro

 

Imagem: Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Francisco Pereira Passos reunidos durante almoço oferecido pelo general colombiano Rafael Uribe no Rio de Janeiro, 1906. Fotografia de Augusto Malta

quinta-feira, 8 de julho de 2021

“As Três Marias” – Rachel de Queiroz

Resenha Livro - “As Três Marias” – Rachel de Queiroz – Coleção literatura Brasileira Contemporânea 6 – José Olimpio Editora 




 

“A noite ficávamos no pátio, olhando nossas estrelas, identificando-nos com elas. Glória era a primeira, rutilante e próxima. Maria José escolheu a da outra ponta, pequenina e tremente. E a mim coube a do meio, a melhor delas, talvez; uma estrela serena de luz azulada, que seria decerto algum tranquilo sol aquecendo mundos distantes, mundos felizes, que eu só imaginava noturnos e lunares”.

 

Rachel de Queiroz nasceu em Fortaleza em 17 de novembro de 1910. Começou na literatura ainda muito jovem: com apenas 19 anos publicou por conta própria 1000 exemplares do romance “O Quinze” (1930), trabalho prontamente reconhecido pela crítica, recebendo elogios de Graciliano Ramos, Augusto Frederico Schmidt, Graça Aranha e Agrippino Grieco.

 

Boa parte de sua obra pode ser situada naquilo que ficou conhecida como 2ª Geração Modernista da literatura Brasileira, com histórias de cunho regionalista, mas, ao mesmo tempo, suscitando no particular aquilo que é o universal. Histórias que se passam nos sertões nordestinos, nas pequenas cidades e vilas, mas remetem às questões de consciência que ainda tocam o leitor, independentemente do tempo e do local. Neste sentido, o regional é também nacional, razão pela qual obras como “Vidas Secas” (1933), “O Quinze” (1930) e “A Bagaceira” (1928) são irmãs mais velhas da arte nacionalista oriunda do movimento modernista de 1922.

 

Já no naturalismo literário do século XIX e dentro da literatura de alguns pré modernos como Lima Barreto, já se verifica uma maior atenção das narrativas aos extratos mais baixos da população brasileira. N’o “Cortiço” (1890), Aluísio de Azevedo retrata os tipos populares ainda dentro de uma perspectiva pitoresca, bem como situando as populações suburbanas do Rio de Janeiro dentro das orientações cientificistas tão em voga no século XIX. O determinismo (social, do meio e da raça) acabava servindo como um impeditivo para esta literatura superar uma compreensão meramente exterior da vida e da realidade dos extratos populares.

 

 

A grande novidade desta geração regionalista, já no modernismo, foi justamente superar esta artificialidade no trato dos extratos mais baixos da população, reivindicando uma literatura realista, objetiva e que não se furta de tratar os mais íntimos dilemas de consciência de retirantes, camponeses e trabalhadores urbanos.

 

“As Três Marias” é o quarto livro escrito por Rachel de Queiroz, publicado em 1939. O livro se diferencia das obras anteriores, já que o regionalismo presente em “O Quinze” (1930), “João Miguel” (1932) e em certo sentido no politizado “Caminho de Pedras” (1937), é substituído por uma história de ambientação urbana, inicialmente se passando num colégio e orfanato de freiras.

 

A história é narrada em primeira pessoa, por Maria Augusta, que irá descrevendo sua experiência de vida e de certa forma a condição das mulheres no Brasil do início do século XX:

 

“O colégio era grande como uma cidadela, todo fechado em muros altos. Por dentro, pátios quadrados, varandas brancas entre pitangueiras, numa quietude mourisca de claustro.

 

De um lado vivíamos nós, as pensionistas, ruidosas, senhoras da casa, estudando com doutores de fora, tocando piano, vestindo uniforme de seda e flaneta branca”.

 

A disciplina na escola era rígida: as regras exigiam das alunas a modéstia, a humildade e o silêncio. Os namoros proibidos se davam por trocas de cartas, ou trocas de olhares com transeuntes da rua. Eventualmente, o escândalo rompe a monotonia: uma normalista fugia com um namorado, resultando na sua desgraça pessoal.

 

A medida que a história avança, Maria Augusta (narradora) forma-se do colégio e passa a trabalhar na cidade como datilógrafa. Neste ponto, parece que a narrativa perde o interesse do leitor: o romance cai para o puro sentimentalismo feminino. Um jovem se apaixona por Maria Augusta: num rompante de desespero e embriaguez, tira a própria vida, e Maria Augusta não sente sequer compaixão do rapaz. Queixa-se do suicídio de Aluísio, como se a vítima fosse ela própria. Posteriormente, se envolve de forma sentimental com um intelectual carioca chamado Isaac, permite o sexo sem o casamento e engravida. No penúltimo capítulo revela ter abortado a criança e não demonstra muitos problemas de consciência com a sua conduta – no parque um bêbado ao acaso gritava “assassina”, o que aparece como uma mera coincidência. Maria Augusta se posiciona como vítima, chora a todo momento, o seu sentimentalismo irrita o leitor.

 

Sintomaticamente, este que deve ter sido o ponto mais baixo da produção literária de Rachel de Queiroz, passou a ser editado e lido por mulheres simpáticas ao movimento feminista moderno, buscando demonstrar como este romance de 1939 já seria uma pioneira defesa política do sexo frágil. Sintomático.  

sexta-feira, 2 de julho de 2021

“O Quinze” – Rachel de Queiroz

 “O Quinze” – Rachel de Queiroz




 

Resenha Livro - “O Quinze” – Rachel de Queiroz – Editora José Olympio – Rio de Janeiro 2020.

 

“A novidade de O Quinze depende da conversão da personagem feminina em sujeito, e não em objeto da narrativa. O modo como o consegue é a questão. Trata-se de uma virada de perspectiva literária, coadunada a uma profunda mudança histórica: tem a ver com o horizonte brasileiro no raiar da década de 1930, mas não se reduz a isso e tampouco é mera ilustração do processo histórico.

 

O que se tem aqui é a forma artística, particular e concreta, de uma experiência humana complexa, encerrada num meio primitivo, aparentemente afastado de toda a civilização (o que não é verdade), no momento da catástrofe climática. Tudo experimentado viva e expressivamente na prática pela artista: um universo transposto com precisão e coerência no plano literário” (“O Sertão Em Surdina” – Davi Arrigucci Júnior)

 

O Quinze é o romance de estreia da escritora cearense Rachel e Queiroz. Quando escreveu o livro tinha apenas 19 anos de idade. A primeira edição foi publicada em Junho de 1930 em 1000 exemplares, custados pelo pai da escritora. O livro despertou o interesse e suscitou elogios imediatos de Mário de Andrade, Augusto Frederico Schmidt e Graciliano Ramos. Este último duvidou mesmo que o romance teria sido escrito por uma jovem professora. Incrédulo, o autor de Vidas Secas afirmaria: “não há ninguém com este nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado.”.  

 

De fato, a novidade de O Quinze não era de pouca monta, se considerando o papel da mulher brasileira no Brasil dos anos 1930.

 

A título de referência o voto feminino no Brasil só seria permitido oficialmente a partir do Código Eleitoral de 1932 decretado durante o Governo Vargas. Ainda em junho de 1958, após recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra, o discurso de homenagem à escritora proferido pelo presidente da casa afirmava que aquela instituição era reservada para os homens. Apenas em 1977, por 23 votos a 15, Rachel de Queiroz vence o jurista Pontes de Miranda, tornando-se a primeira mulher a ser eleita para a Academia Brasileira de Letras. Ou seja, quarente e sete anos após o seu romance de estreia!

 

Neste livro de estreia a escritora, que já atuava no jornalismo do Ceará, além de ser professora de história da Escola Normal Pedro II, trata da grande seca nordestina de 1915.

 

O livro se situa dentro do que ficou conhecido como a 2ª Fase do Modernismo Literário, de caráter regionalista, do qual se filiam “A bagaceira” (1928) de José Américo de Almeida e “Vidas Secas” (1938) de Graciliano Ramos.

 

Já no naturalismo literário do século XIX e dentro da literatura de alguns pré modernos como Lima Barreto, já se verifica uma maior atenção das narrativas aos extratos mais baixos da população brasileira. N’o “Cortiço” (1890), Aluísio de Azevedo retrata os tipos populares ainda dentro de uma perspectiva pitoresca, bem como situando as populações suburbanas do Rio de janeiro dentro das orientações cientificistas tão em voga no século XIX. O determinismo (social, do meio e da raça) acabava servindo como um impeditivo para esta literatura superar uma compreensão meramente exterior da vida e da realidade dos extratos populares.

 

A grande novidade desta geração regionalista, já no modernismo, foi justamente superar esta artificialidade no trato dos extratos mais baixos da população, reivindicando uma literatura realista, objetiva e que não se furta a tratar os mais íntimos dilemas de consciência de retirantes, camponeses e trabalhadores urbanos.

 

A história se passa no sertão de Quixandá e envolve personagens que experimentam a preocupação, o medo e finalmente a tragédia da seca nordestina.

 

Conceição, normalista e ávida leitora de livros, e sua avó, Dona Inácia, vivem na Fazenda do Logradouro. Conceição mantém uma relação de afeto com seu primo Vicente, um primo que se dedica com afinco no cuidado da fazenda e do gado, lutando e resistindo em face da desagregação da produção diante da seca. Desencontros, acasos e continências da vida fazem com que o previsível casamento entre os primos não se realize. Assim como a tragédia climática surge pela força da natureza, o desencontro amoroso aparece como resultado das circunstancias.

 

A solidariedade das personagens traz alguma luz de esperança ante a tragédia da seca.

 

Conceição se engaja no trabalho voluntário junto ao “Campo de Concentração” onde se agrupam retirantes morrendo de fome. Pequenas crianças falecem no colo de mães que buscam alguma esmola para ter o que comer. Há promessas de possibilidade de sobrevivência na Amazônia, na economia da borracha, mas são grandes a chance da morte na viagem desde o Ceará.

 

O personagem Chico Bento é vaqueiro que foi dispensado da fazenda por conta da seca. A tragédia que envolve ele e sua família de retirantes suscita aqueles retratos humanizados dos tipos populares que são típicos do modernismo regionalista. Com sua família sofrendo com a fome, Chico Bento encontra em seu destino uma cabra e, como que encontrando o eldorado, mata o animal para fornecer o alimento à mulher e aos filhos. O dono do animal o encontra, o acuso de ladrão e o humilha: Chico Bento não reage, envergonha-se de sua condição, acredita ser de fato um ladrão, apenas ensaia algumas cogitações de revolta. Pensa: “deus só nasceu para os ricos”.

 

A linguagem do livro é enxuta e rejeita qualquer tipo de adorno.

 

É certo que todo modernismo se opõe à eloquência do parnasianismo.

 

A paisagem sertaneja da seca remete à cinza e ao fogo. A tragédia da seca surge como uma fatalidade, a despeito de injustiças humanas inequívocas. A solidariedade entre as personagens estimula a compaixão do leitor. Finalmente, a chuva finalmente chega, tornando o ambiente verde de esperança.