terça-feira, 27 de dezembro de 2022

“História do Brasil – Volume I” – Robert Southey

 “História do Brasil – Volume I” – Robert Southey




 

Resenha Livro - “História do Brasil – Volume I” – Robert Southey – Edições do Senado Federal – Volume 133-A.

 

Robert Southey (1774 – 1943) foi historiador e poeta inglês, ligado ao movimento literário romântico britânico.

 

Entre 1810 e 1819 o escritor lançou a sua “História do Brasil” em três volumes, que contêm cerca de 2000 páginas e que tratam dos primeiros contatos dos colonizadores na costa do Brasil (Séc. XV) até a chegada da Família Real Portuguesa à América, no ano de 1808.

 

Trata-se do primeiro livro de História do Brasil escrito de acordo com formas e técnicas modernas de pesquisa, ou seja, conforme análise de documentação primária, cartas e crônicas de viagem, obtidas especialmente entre 1800 e 1801, quando Southy esteve viajando em Portugal.

 

Para se ter uma ideia do pioneirismo do escritor britânico e sua importância para a cultura nacional, basta dizer que a obra de Varnhagen, considerada quase consensualmente como o ponto de partida da historiografia brasileira, data de 1854, quando do lançamento de “História Geral do Brasil”. Quase cinco décadas após o lançamento da História do Brasil de Southey, portanto.

 

A importância da intervenção britânica no desenvolvimento da história do Brasil ao longo do século XIX explica em certa medida o interesse dos ingleses no estudo da evolução histórica brasileira, nossa trajetória, nossas instituições políticas e nossa estrutura econômica. Foi no contexto das Guerras Napoleônicas que uma esquadra militar britânica viabilizou a transferência da sede do Império Português para o Rio de Janeiro. O fim do exclusivismo comercial, com a abertura dos portos no ano de 1808, favoreceu particularmente a Inglaterra, que passou a ser a principal credora e fiadora dos negócios portugueses (e brasileiros) até a nossa independência em 1822. E após a independência política, pouca dúvida há sobre a dependência econômica brasileira em relação aos ingleses, bem como a intervenção britânica em torno de questões internas brasileiras, como as medidas para compelir o fim do tráfico de escravos, com objeto de viabilizar um mercado de consumo para produtos britânicos. É neste contexto de maior participação inglesa nas questões brasileiras que surge a obra em análise.

 

Para escrever a sua história, Southey contava com um acervo de 14.000 livros e documentos relacionados à Portugal, Espanha e a América luso-hispânica. Sua pretensão seria, na verdade, compor uma grande História de Portugal, envolvendo volumes específicos tratando das colônias em Ásia, África e América. Nunca chegou a concluir a tarefa, mas legou aos brasileiros a sua primeira História escrita de acordo com métodos de pesquisa modernos.

 

De sua própria obra, diz o historiador:

 

“Seria faltar à sinceridade que vos devo, esconder que minha obra, daqui a longos tempos, se encontrará entre as que não são destinadas a perecer; que me assegurará ser lembrado em outros países que não o meu; que será lida no coração da América do Sul e transmitirá aos brasileiros, quando eles se tiverem tornado uma nação poderosa, muito da sua história que de outra forma teria desaparecido ficando para eles o que é para a Europa a obra de Heródoto”.

 

Não deixa de ser curioso ler uma história rica de detalhes acerca das condições de vida dos primeiros colonizadores, confrontados com tribos indígenas antropofágicas, suas guerras e suas alianças militares, seus hábitos alimentares e suas crenças religiosas, tendo em vista se tratar de um escritor que nunca colocou os seus pés no Brasil.

 

Em todo o caso, pelo fato de pioneiramente ter tido acesso a uma série de fontes primárias,  como as crônicas dos escrivãos das primeiras expedições da América, Southey, um historiador romântico, nos apresenta uma história profundamente realista. Ou, ao menos, mais realista do que muitos livros escritos por pesquisadores contemporâneos, que, sob o pretexto de se “criticar” tais fontes primárias como parte de uma história “oficial”, criam em contrapartida uma história ideológica, cheia de maniqueísmos, baseada em preconceitos que dizem ser a civilização brasileira o fruto do estupro e da violência pura e simples de brancos contra pretos e índios.

 

Ao se confrontar estas narrativas mais recentes com os documentos primários, cartas e crônicas do século XV e XVI, verificamos se tratar o empreendimento colonial de situação muito mais complexa e contraditória do que a mera dominação de um povo pelo outro. A superioridade militar dos europeus pelo uso da pólvora não raro era suplantada pelo conhecimento geográfico e melhor adaptação dos índios às condições locais, incluindo alimentação, clima e recursos da natureza para subsistência e cuidados com saúde. Houve igualmente momentos em que conflitos foram substituídos por alianças, sem prejuízo do desenvolvimento de um comércio que era promovido mesmo em tempos de guerra.  Não se tratou, obviamente, de um “genocídio indígena” perpetrado por europeus imbuídos de má fé, mas de um longo processo histórico de assimilação, diálogo e conflito, tendo como eixo a intervenção de elementos mediadores das duas civilizações representados na figuras de degredados e náufragos que se alinhavam às tribos locais e delas aprendia a língua e o costume para posterior auxílio dos colonizadores. Foi de particular destaque no empreendimento colonial não o genocídio mas a  miscigenação e a conformação de um novo povo mameluco, que andava descalço, falava tupi, dormia em redes e se configurada como ponto de partido daquilo que hoje se entende como povo brasileiro.

 

OS PRIMEIROS CONTATOS

 

“1502 - Belo era o país e abundante de quanto podia desejar o coração humano: a brilhante plumagem das aves deleitava os olhos dos europeus; exalavam as árvores inexprimíveis fragrâncias, destilando todas as virtudes destas plantas, nada impediria o homem de gozar de vigorosa saúde até à extrema velhice. Se o paraíso terrestre existe em algum lugar, não podia ser longe dali”

 

O ponto de partida desta História do Brasil dá-se através da descrição dos primeiros contatos da costa do Brasil na expedição de Yanez Pizon, que já acompanhara Colombo na sua primeira viagem à América, como Comandante e Capitão. Desta viagem chegaram-nos os relatos das primeiras entrevistas de europeus com os indígenas, na região de Cabrália, ao sul do estado da Bahia.

 

À meia légua da praia, os viajantes europeus puderam observar cerca de vinte indígenas que se haviam reunidos armados de arco e flecha, apercebidos para a defesa, mas sem intenção de procederem como inimigos, salvo vendo-se em perigo.

 

Efetuou-se amigável troca de presentes: os europeus ofereceram uma carapuça vermelha, um capuz de linho e um chapéu preto recebendo a seu turno dois adornos de cabeça feitos de pena, e um enorme fio de continhas, que pareciam pérolas de inferior qualidade. Os europeus, por acharem que estavam nas índias do oriente, tentaram se comunicar de acordo com a língua daquelas paragens, razão pela qual não foram compreendidos.

 

 

Desde os fins do século XIV, os portugueses lançavam-se do expediente de remeter degredados para a costa da África, Ásia e, posteriormente, América, com a finalidade de viabilizar o empreendimento colonial. Lançados à praia, estes degredados, quando tinham a sorte de sobreviver, aprendiam a língua dos nativos e conheciam a geografia local, servindo posteriormente como guias em favor de futuras embarcações.

 

Decisivo foi a intervenção destes pioneiros: não seria possível à Martim Afonso de Souza viabilizar a fundação da colônia de São Vicente sem os auxílios de João Ramalho, um degredado português que em terras paulistas casou-se com a filha do chefe indígena Tibiriçá e tornou-se ele próprio uma das lideranças tupis. Dos muitos filhos mestiços de João Ramalho e a índia Bartira conformou-se as primeiras populações do futuro Estado de São Paulo.

 

Papel semelhante foi desempenhado na Bahia pelo Caramuru ou Diogo Álvares Correia. Consta que era um náufrago de embarcação francesa que se envolveu com tribos tupinambás ao ponto de se tornar um chefe indígena, tal qual João Ramalho. Conhecedor dos costumes, da língua e da geografia local, facilitou o contato entre os primeiros missionários e colonizadores europeus e os povos indígenas da Bahia.

 

“O primeiro, que na Bahia se estabeleceu, foi Diogo Álvares, natural de Vianna, mancebo e fidalgo, que com o espírito empreendedor, que então caracterizava os seus conterrâneos, embarcara, buscando fortuna em terras estrangeiras. Naufragara ele nos baixos do banco da Bahia, que os naturais chamam Mairagiqui. Parte da gente se perdera, e o resto só escapara àquela morte, para sofrer outra, mais horrível: os selvagens os comeram. Viu Diogo que outra esperança não lhe restava se salvar a vida, senão tornando-se para estes selvagens o mais útil que pudesse. Trabalhou pois em salvar coisas do casco naufragado, e com elas lhes granjeou as boas graças. Entre outros objetos teve a felicidade de trazer para a terra alguns barris de pólvora e um mosquete, que ele na primeira ocasião que teve, pôs em estado de servir, depois que seus senhores voltaram à aldeia, e um dia, que se lhe ofereceu favorável oportunidade, na presença deles matou uma ave. Mulheres e crianças clamariam: Caramuru, Caramuru! que seria dizer homem de fogo (...)”.  

 

Por óbvio, as tribos indígenas variavam entre alguma hospitalidade e a mais decidida oposição violenta ao empreendimento colonial europeu. A conquista do novo território encontrava a oposição de tribos ciosas de manter íntegro o seu território e suas fontes de subsistência, especialmente quando os europeus demandavam por abastecimento de água e alimentos, se não por meio do escambo, por intermédio da violência e destruição.

 

A antropofagia é tema reiterado nos documentos, variando a forma como era praticada de tribo para tribo. Quando da chegada dos Jesuítas, junto com o primeiro governador geral o Brasil Thomé de Souza (1549), puderam os missionários apurarem que os índios não se opunham tanto a mudar suas convicções religiosas pagãs tanto quanto os hábitos de comer gente. Em geral, a antropofagia era associada a rituais festivos, associados à guerra entre as tribos e era promovida dentro de um espírito de vingança:

 

“Tinham os selvagens aprendido a olhar a carne humana como a mais preciosa das iguarias. Por mais delicioso porém que se reputassem estes banquetes, o maior sabor vinha-lhes sempre da vingança satisfeita; era este sentimento, e o pundonor a ele ligado, que os jesuítas acharam mais difícil de extirpar. Da vingança tinham os indígenas brasileiros feito sua paixão predominante, exercendo-a pelo mais mesquinho motivo, para com os que davam pasti e força a uma propensão já por si assaz forte. Comiam o réptil que os molestava, não brincando, como o macaco, mas confessadamente pelo gosto de vingança. Se um dava uma topada em uma pedra, enfurecia-se contra ela, e mordia-lhe como um cão; se uma seta o vinha ferir, arrancava-a e trocava-lhe a haste”.

 

Outros aspectos da vida dos índios são mencionados de forma pormenorizada no livro: os hábitos alimentares predominando a mandioca dentre os índios da américa portuguesa e o milho dentro os da américa espanhola; a divisão sexual do trabalho e o papel das mulheres, em geral relacionados ao cultivo da terra e cuidados domésticos enquanto a caça, a pesca e a guerra eram atividades masculinas; os mitos e as crenças religiosas, que eram muito frequentemente relacionadas a superstições que justificavam práticas bárbaras, como o assassinato de parentes de caciques e pessoas importantes, sob o entendimento de que estes entes fariam companhia ao falecido na dimensão dos mortos.

 

Neste primeiro Volume da História do Brasil, Robert Southey trata dos primeiros contatos dos europeus com a costa brasileira até a expulsão dos holandeses de Pernambuco em meados do Século XVII.

 

Trataremos numa próxima resenha dos demais volumes da obra do historiador britânico.

sábado, 12 de novembro de 2022

“Oscarina” – Marques Rebelo

 “Oscarina” – Marques Rebelo




 

Resenha Livro - “Oscarina” – Marques Rebelo – Ed. José Olympio

 

“Na ficção de Marques Rebelo cumpre-se uma promessa que o Modernismo de 22 apenas começara a realizar: a da prosa urbana moderna. Com a diferença notável de que o escritor carioca não rompeu os liames com a tradição do nosso melhor realismo citadino. A sua obra insere-se, pelos temas e por alguns traços de estilo, na linha de Manuel Antônio de Almeida (de quem escreveu uma viva biografia), de Machado de Assis e Lima Barreto. Com eles, o autor de Oscarina aprendeu a manejar os processos difíceis do distanciamento, o que lhe permitirá contar os seus casos da infância e do cotidiano com uma objetividade tal que a ironia e a pena difusas não o arrastariam ao transbordo romântico.” (BOSI, Alfredo.)

 

Marques Rebelo (1907/1973) é o pseudônimo do escritor carioca Eddy Dias da Cruz. Nasceu no bairro de Vila Isabel, no subúrbio do Rio de Janeiro, mudando-se ainda criança para Barbacena/MG, onde fez o curso primário.

 

Terminado o preparatório, matriculou-se na Faculdade de Medicina no Rio de Janeiro, sem, contudo, concluir o curso, partindo para o trabalho no comércio.

 

Os seus romances e contos mais importantes foram escritos entre 1930/1940, tendo sido eleito, em 1964, para a Academia Brasileira de Letras.

 

“Oscarina” é o seu primeiro livro, publicado no ano de 1931 e saudado positivamente pela crítica.

 

Trata-se de um livro de contos, cuja maior ênfase é a da descrição do mundo suburbano do Rio do Janeiro do início do século XX: da realidade de donas de casa, trabalhadores de empregos modestos, pequenos funcionários públicos, professoras, estudantes, moças solteiras atrás de casamento, crianças brincando na rua. Ainda que seja visível a modernização da cidade com seus bondes, jornais e comércio, o Rio de Janeiro, e especialmente o subúrbio, ainda tinhas aspectos rurais, parecidos com as cidades do interior. A revolução industrial e o frenesi imobiliário atacaram diretamente a orla das praias e a região central, mas só lentamente foram alterando a fisionomia da zona dos morros. Consta que Rebelo fora um nostálgico deste Rio de Janeiro ainda não fulminado pela modernidade, da qual ele retrata conforme suas lembranças da infância.

 

Ainda que tenha tido contato com modernistas de São Paulo e Minas Gerais, Rebelo parecer seguir uma trilha à parte do movimento de 1922. Há, antes, uma linha de continuidade de nosso autor e escritores como Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto. Poder-se-ia, todavia, situá-lo como escritor mais próximo da chamada Geração de 1930 da 2ª Fase do Modernismo Brasileiro. De uma certa forma, as descrições que Graciliano Ramos fazia dos elementos médios citadinos de Alagoas ou que Jorge Amado fazia do povo baiano  é parecida com as histórias do subúrbio carioca de Marques Rebelo. Ambas superam uma descrição estereotipada dos tipos populares da cidade.

 

No caso específico de Rabelo, os personagens são tratados de forma intimista, ainda que com uma certa objetividade e equidistância, segundo as quais o nosso escritor poderia ser caracterizado como um neorealista.

 

A reprodução da linguagem popular e a clareza da exposição se combinam com sondagens psicológicas dos personagens, cujos retratos já remetem à superação da forma com que a literatura do século XIX tratava os tipos do povo. Dentro da nova perspectiva modernista, o povo é retratado captando-se suas complexidades e contradições, nem sempre estando adaptados ao meio social em que estão inseridos. Há, aqui, uma superação da forma como os escritores naturalista tratavam os elementos oriundos do povo, qual seja, de uma forma ainda superficial, previsível,   às vezes caricatural e eventualmente pouco distinguindo as pessoais (e suas individualidades) e o meio social. Em livros como “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo, as personagens do subúrbio parecem formar uma unidade. Já no Rio de Janeiro de Rabelo, se verifica certamente uma harmonia entre as personagens e o meio carioca, com o acréscimo de retratar as cogitações íntimas de personagens, que aparecem mais humanos, ao se revelar  mais nitidamente suas contradições. E, por esta razão, é uma literatura mais realista.

 

 

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

A DRAMATURGIA DE DIAS GOMES

 A DRAMATURGIA DE DIAS GOMES




 

“Em primeiro lugar, devemos levar em conta o caráter de ato político-social inerente a toda representação teatral. A convocação de um grupo de pessoas para assistir a outro grupo de pessoas na recriação de um aspecto da vida humana, do tema apresentado, leva o autor a uma tomada de posição. Mesmo quando ele não tem consciência disso. Claro que podemos generalizar, em qualquer arte o artista escolhe o seu tema. E, no mundo de hoje, escolher é participar. Toda escolha importa em tomar um partido, mesmo quando se pretende uma posição neutra, abstratamente fora dos problemas em jogo, já que o apoliticismo é uma forma de participação pela omissão, pois favorece o mais forte, ajudando a manter o status quo. Toda arte é, portanto, política. A diferença é que, no teatro, esse ato político é praticado diante do publico. Essa a característica essencial da função dramática: ela acontece. É presente, não passado. Ao contrário da pintura, da escultura, da literatura, ou mesmo do cinema, que já aconteceram quando são oferecidos ao público, o teatro possibilita a este testemunhar não a obra realizada, mas em realização” (Dias Gomes). 

 

Uma característica marcante da literatura do escritor baiano Dias Gomes é a denúncia política e social. A sua obra mais consagrada pelo público e pela crítica certamente foi “O Pagador de Promessas” (1962), que relata a história de Zé do Burro que, para cumprir sua promessa religiosa, entra em confronto com os poderes constituídos, incluindo a Igreja, mas não se limitando a ela, e granjeia a simpatia e apoio dos setores populares igualmente oprimida pela polícia e desprezada pelo bispo: uma multidão ao final da peça carrega o caixão de Zé do Burro tal qual empunhassem uma bandeira de luta!

 

A denúncia social não envolve, aqui, uma literatura meramente panfletária, e, por isso, superficial. Personagens como “Zé do Burro” ou o político pilantra “Odorico” (O “Bem-Amado” da novela) dizem respeito a personagens tratados conforme suas complexidades, sem maniqueísmos. Certamente esta análise psicológica é mais apurada no personagem Zé do Burro, uma expressão de uma consciência política embrionária do trabalhador rural brasileiro, que vacila entre cumprir o seu dever religioso e aceitar os desmandos dos poderes constituídos – Estado, polícia, igreja e imprensa.

 

Já o político Odorico remete antes a uma caricatura, a expressão patética (triste e engraçada ao mesmo tempo) do típico político do interior do Brasil que grassa no país desde a República Velha até os dias de hoje: sem princípios, buscam o poder sem considerações acerca de projeto ou horizonte político que não seja os interesses do seu clã. Ou, nas palavras de Odorico: “Em política os finalmentes justificam os não obstantes.”. Ainda que o prefeito de Sucupira seja uma espécie de caricatura, ainda assim não se trata de uma literatura puramente panfletária: nesta peça o efeito predominante é o cômico, com inclusive passagens que engendram alguma compaixão ao vilão, sem prejuízo da mencionada crítica social e política.

 

O “Bem Amado” foi escrito em 1962, mas só teve a sua estreia nos palcos no ano de 1969, no teatro Santa Isabel, no Recife. Em 1972 foi transmitida a adaptação em novela desta peça – consta, inclusive, que “O Bem Amado” foi a primeira telenovela transmitida a cores no Brasil.

 

A história, como mencionado, trata da vida política de Sucupira, cidade litorânea do interior da Bahia, onde o Prefeito Odorico, então candidato, prometia construir um cemitério na cidade, evitando que os moradores tivessem que andar léguas e léguas carregando os defuntos para o cemitério do povoado mais próximo.

 

ODORICO – Mas eu vou fazer. Os que votaram em mim para vereador sabem que cumpro o que prometo. Prometi acabar com o futebol no largo da igreja e acabei. Prometi acabar com o namorismo e o sem-vergonhismo atrás do forte e acabei. Agora prometo acabar com a humilhação para a nossa cidade, que é ter que pedir a outro município licença para enterrar lá quem morre aqui. E vou cumprir.

 

Após ganhar as eleições, o prefeito promete inaugurar o Cemitério em grande evento patrocinado pelo município assim que um cidadão falecesse. Ocorre que, por azar, na cidade ninguém morre durante um, dois anos, fazendo com que o prefeito aspirasse a morte de qualquer um para garantir o seu prestígio.

 

Alfredo de Freitas Dias Gomes, mais conhecido como Dias Gomes, foi romancista, contista e teatrólogo. Teve uma participação decisiva nas novelas e histórias transmitidas pelo rádio o nas telenovelas. O escritor baiano foi eleito para a Cadeira 21 da Academia Brasileira de Letras em 1991. Faleceu em 1999, em um acidente de trânsito em São Paulo, aos 76 anos de idade.

 

 

Bibliografia:

 

“O Bem Amado” – Dias Gomes – Ed. Betrand Brasil – 2021

 

“As Primícias” - Dias Gomes – Ed. Betrand Brasil – 2022


"O Pagador de Promessas" - Dias Gomes - Ed. Betrand Brasil - 2021

terça-feira, 18 de outubro de 2022

“A Descoberta da América Pelos Turcos” – Jorge Amado

 “A Descoberta da América Pelos Turcos” – Jorge Amado


 

Resenha Livro - “A Descoberta da América Pelos Turcos” – Jorge Amado – Ed. Record.

 

“A referência à descoberta da América vai por conta das comemorações atuais, onipresentes: hoje em dia não pode o pacato cidadão dar o menor passo, soltar o menor peido sem que lhe tombe sobre a cabeça o Quinto Centenário. Da Descoberta, como dizem os descendentes dos impávidos que descobriram o outro lado do mar, da Conquista exclamam os descendentes dos índios massacrados, dos negros escravizados, das culturas arrasadas à passagem de mercenários e missionários conduzindo a Cruz de Cristo e a pia batismal”.

 

Este pequeno romance (ou “romancinho” como o chamava Jorge Amado) foi escrito entre julho e outubro de 1991. A publicação partiu de um diretor de agência de relações públicas de uma estatal italiana que decidira comemorar o Quinto Centenário da Descoberta da América publicando um livro com três histórias de autoria de escritores do continente americano: um de língua inglesa, com o norte americano Norman Mailer; um de língua espanhola, com o mexicano Carlos Fuentes; e um de língua portuguesa, de autoria do escritor baiano.

 

O projeto consistia na edição do livro em quatro idiomas: italiano, inglês, espanhol e português, totalizando trezentos mil exemplares que seriam distribuídos gratuitamente aos viajantes das diversas companhias aéreas, entre abril e setembro de 1992, ano do Quinto Centenário, em todos os vôos entre a Itália e as três Américas.

 

É possível dividir a obra de Jorge Amado em duas grandes fases.

 

Os seus romances dos anos 1930/40 têm um caráter político partidário, expressando os tipos populares da Bahia em sua oposição às elites econômicas e aos poderes constituídos. É representativa desta fase o romance “Capitães de Areia” (1937), que retrata a vida de crianças moradoras de rua da cidade de Salvador, que sobrevivem de pequenos furtos e assaltos,  vivem em um trapiche na região portuária e experimentam logo cedo às vicissitudes da vida adulta, a descoberta da sexualidade, o embate com as forças policiais, a doença e a morte.

 

Jorge Amado aproximou-se da militância esquerdista no ano de 1932, por influência de Rachel de Queiroz e após ter contato com o grupo modernista da Bahia, denominado “Academia dos Rebeldes”, do qual fizeram parte o poeta Sosígenes Costa e o historiador Édson Carneiro, autor de uma das principais obras sobre o Quilombo dos Palmares. Por conta de sua literatura de protesto social, envolve-se na oposição ao Estado Novo, sendo preso no ano de 1942. Foi eleito deputado constituinte pelo PCB em 1946, até a proscrição do partido pelo governo Dutra, quando resolve exilar-se.

 

A segunda fase das obras de Jorge Amado perde o conteúdo proletário para, em troca, tratar dos costumes e da vida social da Bahia – da literatura ideológica passa ao pitoresco e ao regionalismo em obras como “Gabriela, Cravo e Canela” e “Dona Flor e Seus Dois Maridos”.

 

A “Descoberta da América Pelos Turcos” se situa claramente neste segundo conjunto de obras. O livro aborda a vinda de imigrantes tidos como “turcos” (na verdade árabes, sírios e libaneses) na região do sul da Bahia, quando se iniciava o ciclo do cacau, no início do século XX:

 

“Coronéis e jagunços em armas se matavam na disputa da terra, a melhor do mundo para a agricultura do cacau. Vindos de distintas plagas, sertanejos, sergipanos, judeus, turcos – dizia-se  turcos, eram árabes, sírios e libaneses -, todos eles brasileiros”.

 

Ibrahim Jafet, um turco dono de um bazar, após o falecimento de sua esposa Sálua, vê-se obrigado a arranjar alguém que conduzisse os negócios, até então presididos por sua mulher. Sua filha Adma, particularmente feia e antipática, assume a empresa da família, além de implicar insistentemente com Jafet, que, ao invés de trabalhar, prefere dedicar seu tempo no jogo de gamão, na pesca, no botequim e na casa de prostituição.

 

Dada a beligerância de Adma, Ibrahim Jafet se engaja em encontrar um marido para sua filha.

 

Pensava-se (com razão) que a rispidez da solteirona decorria da falta de um homem e da insatisfação sexual. A história, assim, gira em torno dos esforços dos turcos em angariarem um marido à Adma, possibilitando, assim, a paz a tranquilidade familiar:

 

“E por que não? Adma era parada dura, indigesta. Enfrentá-la exigia decisão, coragem  estômago de camelo. Alto, seco de corpo, musculoso, lanzudo, Adib assemelhava—se a um dromedário. A juventude e a cobiça, faziam-no capaz de mastigar palha e achar gostoso, de enfrentar solteirona velhusca e avinagrada, arrombar-lhe os tampos com deleite, levá-la ao desvario, à beatitude, à paz com a vida. Bem fodida, Adma deixaria de aporrinhar a humanidade.”.

 

O “romancinho” é representativo do Brasil, ao abarcar dentro da nacionalidade além de pretos, brancos e multados, os imigrantes, representados pelos turcos, que, aqui, logo assimilam hábitos típicos da região. Entre bares e casas de prostituição, entre o jogo e o ócio, entre o trabalho do comércio e nas fazendas de cacau, a história do povo de Itabuna (terra natal de Jorge Amado) é igualmente representativa de todo o Brasil. Dentro da perspectiva do modernismo, o regional remete ao universal e descreve a nação, de modo que a vida dos moradores do sul da Bahia diz respeito à hospitalidade geral com que o estrangeiro é assimilado ao Brasil e à facilidade com que o elemento exógeno abraça a cultura e os hábitos dos nacionais.

domingo, 16 de outubro de 2022

“HISTÓRIA DE UM PESCADOR” – INGLÊS DE SOUSA

 “HISTÓRIA DE UM PESCADOR” – INGLÊS DE SOUSA


 

Resenha Livro -  “História de Um Pescador” (Cenas da Vida do Amazonas) – Inglês de Sousa – Ed. UFPA

 

“A natureza toda tinha porém esse aspecto triste e sombrio que desperta a simpatia nas almas dominadas por uma grande dor. A vegetação luxuriante, grandiosa, mas monótona e triste do Amazonas, tinha um aspecto desolador.

 

As águas do rio corriam tranquilas e de quando em quando boiavam os botos com um ruído surdo.

 

O rumor cadenciado do remo redondo do pescador batendo contra as bordas da montaria não destruía o contristador silêncio que o cercava, antes contribuía para aumentá-lo.

 

Tudo em redor de José lhe agravava a imensa tristeza”

 

“História de um Pescador” é o segundo livro publicado pelo escritor paraense Herculano Marcos Inglês de Souza.

 

O romance data de 1896 e foi escrito quando o escritor cursava o último ano do curso de Direito da Faculdade do Largo de São Francisco em São Paulo. O livro foi lançado na forma de folhetim, tendo sido publicado no Jornal Tribuna Liberal.

 

Talvez por ser pouco conhecido do público e até mesmo da crítica, poucos sabem que Inglês de Souza é o verdadeiro precursor do naturalismo literário no Brasil.

 

O movimento naturalista consiste num desdobramento e numa espécie de radicalização do objetivismo e impessoalismo que marca o realismo literário. Diferencia-se deste último movimento já que a análise psicológica dos personagens e os seus destinos são, no naturalismo, condicionados pelo meio social e por caracteres hereditários. Enquanto no realismo ainda se cogita de algum livre arbítrio, as personagens descritas pelos romances naturalistas têm o seu destino condicionado pelo meio social e pelos caracteres raciais, em consonância com as teorias cientificistas típicas do fim do século XIX. Ademais, há no naturalismo uma pretensão da descrição de pessoas e enredos de maneira parecida com que o cientista descreve fenômenos da natureza.

 

Costuma-se identificar o início do naturalismo no Brasil com os romances de Aluísio de Azevedo. O escritor maranhense produziu obras mais experimentais dentro do naturalismo (Casa de Pensão, O Cortiço, O Mulato) e obras mais convencionais como a comédia Filomena Borges e O Coruja: foi efetivamente um dos primeiros escritores brasileiros que sobreviveu das suas publicações, motivo pelo qual transitou entre diversos estilos e escolas literárias. Ocorre que que sua primeira obra naturalista que foi “O Mulato” data de 1881, enquanto a produção literária de Inglês de Souza data de 1875!

 

Nascido em Óbidos no Pará em 1853, aos 14 anos Inglês de Souza é internado no Colégio Perseverança no Rio de Janeiro. No ano de 1872, matricula-se no curso de Direito de Recife, tendo completado a graduação em São Paulo.

 

Ainda que tenha passado a maior parte da vida na região sudeste do Brasil, os livros de Inglês de Souza primam por uma descrição rica em detalhes das condições sociais e culturais do caboclo do norte – também chamado de tapuio. A minúcia com que relata histórias de pescadores e trabalhadores em regime de escravidão por dívidas, a exuberante natureza amazônica, a melancolia do caboclo, os requintes de crueldade dos latifundiários e a opressão das forças políticas que presidem as instituições decorreu de histórias que escutou de seu pai, que foi juiz municipal de Óbidos e de um tio paterno, que fora professor de filosofia do Liceu de Manaus.

 

“História de um Pescador” relata a trajetória do tapuio José, filho de um pescador chamado Anselmo, que morreu afogado enquanto trabalhava para Capitão Fabrício, o latifundiário que dominava e oprimia a população do Igarapé do Alenquer, no norte do Pará.

 

Quando criança, José por brincadeira ateou fogo na fazenda do coronal Fabrício que, furioso, o obrigou a se matricular num seminário em Óbidos. Lá ficou José durante quatro anos, vivendo uma vida melancólica, já que inexistente em seu espírito a vocação do estudo e da religião. Quatro anos após ter sido internado, ao saber da morte do pai, José foge do seminário, retorna para o Igarapé do Alenquer, onde o Capitão Fabrício o admite em sua fazenda e o obriga a trabalhar para quitar as dívidas do pai.

 

O regime de exploração do trabalho dos tapuios na Amazônia se dava pela escravidão dos negros e pela escravidão por dívidas dos tapuios. Muitos agregados trabalhavam a vida toda para quitar os débitos junto aos coronéis, que além de proprietários das terras comandavam o comércio da região e forneciam mercadorias em troca dos serviços. O latifundiário ainda se servia da Guarda Nacional e da ameaça do recrutamento, para manipular e oprimir esta população mais simples: aqueles que manifestavam algum sinal de rebeldia eram prontamente recrutados para a Guarda Nacional, causa de terror do homem simples, que se viam obrigados a abandonar família e filhos.

 

O estilo naturalista da obra, com sua obsessão em descrever personagens e fatos de forma objetiva, cria as condições para que o leitor conheça em detalhes os aspectos da vida do caboclo da Amazônia.

 

Da leitura da obra, se conhece as condições de miséria dos tapuios:

 

“Em casa eles só faziam as despesas indispensáveis. Em lugar de café bebiam o chá feito de folhas de uns cafeeiros abandonados das terras do capitão. Por alimento o pirarucu seco, e quando este recurso dos pobres faltava, comiam papagaios e macacos que José caçava.

 

Farinha nem sempre a tinham, e supriam o uso dela com bananas verdes assadas na brasa. Dias havia em que nada mais tendo alimentavam-se do vinho de cacau puro e simples.”.

 

José se apaixona por uma bela rapariga chamada Joaninha, com quem ajusta o casamento. Contudo, Capitão Fabrício interessa-se pela mulher, e arregimenta capangas que a sequestram, para satisfação da luxúria do latifundiário. O final trágico da história já indica uma literatura que se diferencia das tramas convencionais que se situam nos marcos do romantismo, que se caracterizam pelo “final feliz”, ou pela prevalência do “bem contra o mal”. Dentro da ótica naturalista, prevalece o determinismo social, a força dos brancos sobre os tapuios e a tragédia social.

 

A despeito do pioneirismo e da riqueza artística das “Cenas da vida do Amazonas”, a obra de Inglês de Souza ainda aguarda publicações por intermédio de grandes editoras. As últimas publicações dos livros do escritor foram promovidas dentro da “Coleção Amazônida” pela Universidade Federal do Pará.  

domingo, 25 de setembro de 2022

“Perdoa-me por me traíres” – Nelson Rodrigues

 Perdoa-me por me traíres” – Nelson Rodrigues



 


Resenha Livro - “Perdoa-me por me traíres” – Nelson Rodrigues – Ed. Nova Fronteira

 

A importância do escritor Nelson Rodrigues no Teatro Brasileiro reside no fato de ter inaugurado e consolidado o modernismo na dramaturgia nacional. Até então, o teatro brasileiro se baseava na comédia de costumes, nos dramalhões e o no teatro musicado herdado do século XIX. Com  a nova dramaturgia do escritor carioca, temos uma expressão mais consistente da psicologia humana, das contradições entre o desejo erótico e as regras sociais, e das frequentes transgressões morais de personagens que deixam de ser caricaturas superficiais para terem uma feição radical do homem comum, com todas as suas contradições.

 

A partir de “A Mulher Sem Pecado” (1942) e principalmente “Vestido de Noiva” 1943, temos um novo tipo de arte, com enfoque nos conflitos psicológicos, sem prejuízo do sarcasmo e da ironia, em que os personagens são frequentemente levados a transgredir os limites da ordem e da moral, particularmente no campo do erotismo.

 

Os elementos essenciais da dramaturgia de Nelson Rodrigues podem ser resumidos, de fato, na expressão “a vida como ela é”. Temas como a virgindade violada, os ciúmes, o incesto, a prostituição, a corrupção política e a canalhice humana denotam uma arte que busca de forma exacerbada a veracidade: a verdade se revela em situações limite, como na descoberta da traição, nos instantes que antecedem a morte ou nos pactos de mortes entre amantes, neste último caso, respondendo ao reconhecimento de que em vida não é possível manter a real  autenticidade, ante as proibições convencionadas socialmente.

 

Outro aspecto característico das peças de teatro do nosso escritor é a sua vinculação com o período histórico do Brasil de meados do século XX. Suas principais peças foram escritas entre a década de 1940/1960, momento em que o país vivia um rápido processo de urbanização, industrialização, transição demográfica do campo para a cidade e, de forma correspondente, uma veloz mudança de padrões comportamentais. O jornalismo de massas, o rádio popular, a expansão do futebol, a criação de Brasília e a nova faceta mais urbana da sociedade brasileira encontram densa  expressão do teatro de Nelson Rodrigues, nitidamente pelo fato de o próprio autor ter atuado com destaque na imprensa carioca, de onde retira inspiração para consecução de suas “tragédias cariocas”.   

 

Ainda que situada em um contexto de mudança de padrões comportamentais,  consta que a estreia de “Perdoa-me Por Me Traíres” foi particularmente marcada por uma intensa polêmica. Vejamos o que o próprio autor conta da estreia da peça, que ocorrei no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 19 de Junho de 1957:

 

“Lembro-me da estreia da minha peça Perdoa-me por me traíres, no Municipal (....). Metade da plateia aplaudia, outra metade vaiava. E, súbito, num os camarotes, ergue-se o então vereador Wilson Leite Passos. Empunhava um revolver como um Tom Mix. Simplesmente, queria caçar meu texto, à bala.”.

 

A peça gira em torno de Glorinha, uma colegial de um colégio de elite do Rio de Janeiro, e que é introduzida à prostituição por sua amiga Nair. A hesitação da personagem, enquanto se dirige ao prostíbulo de Madame Luba, decorre do medo de ser descoberta pelo Tio Raul, que a controla de forma brutal, sendo capaz de matá-la, se descobrisse que estava a gazetear aula da escola.

 

Ao longo da peça, descobre-se que Tio Raul matara a mãe de Glorinha, após descobrir que esta traía o seu irmão Gilberto. Ocorre que Raul coage Judite a tomar veneno, não pela defesa da honra do irmão, mas porque ele próprio amava sua cunhada.

 

O tema da traição é o carro chefe do enredo: a descoberta da traição é o meio com que a verdade vem à tona, particularmente em situações limite.

 

JUDITE (com um riso soluçante) – Um amante? Um só? Sabes de um e não sabes dos outros? (violenta e viril) Olha: vai dizer a tua mãe, a teus irmãos, a tuas tias – fui com muitos, fui com tantos! (subitamente grave e terna) Já me entreguei até por um bom dia! E outra coisa que tu não sabes: adoro meninos na idade das espinhas”

 

Nelson Rodrigues aponta para a fragilidade humana, que consiste numa propensão para aderir ao mal. Adesão que remete a impulsos de destruição e de dominação do outro. A violência sexual contra menores, o sadismo, a infidelidade conjugal e a canalhice daqueles que aparecem socialmente como arautos da moralidade, acabam, ao final, redimidas na morte, a sugerir que a plena autenticidade não é possível em vida.  Não se trata absolutamente de peças moralizantes, nem de crítica diríamos hoje “progressista” dos padrões de comportamento: é antes um esforço de relato objetivo, próximo do jornalismo, da vida em sua dimensão trágica, anda que vinculadas ao cotidiano.

domingo, 18 de setembro de 2022

“MACUNAÍMA” – MÁRIO DE ANDRADE

 “MACUNAÍMA” – MÁRIO DE ANDRADE






 

 

Resenha Livro - “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter” – Mário de Andrade – Ed. Nova Fronteira

 

Macunaíma foi escrito por Mário de Andrade durante 6 dias ininterruptos, durante as férias de Dezembro de 1926, numa chácara em Araraquara/SP. Nas palavras do escritor, uma semana de rede, cigarros e cigarras na Chácara Pio Lourenço, no meio de mangas e abacaxis.

 

Ainda nas palavras do autor, o livro nasceu como um brinquedo, sem qualquer pretensão de estudo do folclore do país:

 

“Entre alusões sem malvadeza ou sequência desfatiguei o espírito nesse capoeirão da fantasia onde a gente não escuta as proibições, os temores, os sustos da ciência ou da realidade – apitos dos polícias, breques por engraxar. Porém, imagino que como todos os outros o meu brinquedo foi útil. Me diverti mostrando talvez tesouros em que ninguém não pensa mais.”.

 

A inspiração da obra partiu da leitura do livro do etnólogo alemão Koch-Gruenberg chamado “Vom Roraima zum Orinoco”, de onde, inclusive, saiu o nome do protagonista do nosso romance.  

 

Certamente, a riqueza de detalhes com que a história menciona aspectos da cultura brasileira, da fauna, da flora, dos mitos, do folclore, dos rituais religiosos, do palavreado indígena e popular, igualmente decorreram das viagens que o escritor fez pelo Brasil.

 

A história de Macunaíma é representativa de aspectos da psicologia brasileira e da trajetória do país. As aventuras do herói/protagonista envolvem cenas representativas da formação histórica do Brasil, da fisionomia e da moral (ou falta dela) do brasileiro.

 

No segundo prefácio do livro, escrito em 27/03/1928, Mário de Andrade nega que sua intenção fosse o de contar, ainda que de forma simbólica, a história do Brasil e os caracteres de sua civilização. Diz expressamente que não imaginou pretender expressar a cultura nacional, mas, depois do livro feito, foi que pareceu descobrir nele um sintoma deste brasilianismo.

 

Em todo o caso, a representação do Brasil se dá não apenas por meio da linguagem, com a existência de expressões indígenas e neologismos típicos da palavra falada no Brasil: “fala mansa”, “ólio”, sabiágongá”, “palavras-feias”, “brincar” (como expressão do ato sexual), “bolo-e-aimpim”, “tem mais não”, entre muitos.

 

A brasilidade está presente através de fatos representativos presentes na trajetória de Macunaíma,  que encontram paralelo evidente com a formação brasileira.

 

A começar pelo fato da vida de Macunaíma consistir num deixar viver. O que impera nas ações do herói não é um plano definido a ser executado, com algum método, mas numa existência aberta a tudo o que contingente e caótico. Ainda que o propósito do herói seja a busca do muiraquitã, mesmo os planos para a recuperação do tesouro não são executados, diante da prevalência da improvisação. Ou da preguiça.

 

Esta falta de rumo não seria uma marca política do Brasil? País que, a despeito de duzentos anos de sua independência política, ainda se caracteriza pelo improviso e falta de um fio condutor que o conduza à situação de plena soberania, aqui entendida também como domínio de seu destino, promotor de alguma previsibilidade.

 

O subtítulo do livro diz que Macunaíma é o “herói sem nenhum caráter”.

 

A ausência de caráter aqui remete a dois sentidos.

 

Em primeiro lugar, a falta de uma fisionomia física (falta de caracteres físicos): Macunaíma nasce preto retinto e filho do medo da noite. Ao longo da história, após contato com uma poça de água mágica, torna-se branco. Por meio de encantos, muda sua fisionomia em diversas passagens da história, sendo em parte índio, em parte preto, em parte branco, denotando a especificidade brasileira da mestiçagem. E a indefinição do fenótipo brasileiro, especialmente se comparado a povos orientais.

 

A passagem de Macunaíma da infância para a vida adulta ocorre após a Currupira jogar uma gamela de caldo envenenado no herói:

 

“Então pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou a lavagem no piá. Macunaíma fastou sarpatando mas só conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortificando e ficou do tamanho dum homem taludo. Porém a cabeça não molhada ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá.”.

 

Um corpo taludo com uma cabeça de criança. Mais uma vez, não estaríamos aqui diante de uma figuração do Brasil, país da primeira infância, se comparado às civilizações europeias e asiáticas, cujo vasto território remetem ao corpo de um adulto?

 

O segundo sentido atribuído ao caráter mencionado no sub-título é o moral. Não exatamente numa acepção pejorativa, mas ainda relacionada à infância do Brasil.

 

Mas uma vez, válido mencionar a explicação do autor dita no prefácio da obra:

 

“O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente ou consciência de séculos tenha auxiliado, o   certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro (não). Está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma.”.

 

Macunaíma foi dedicado ao historiador paulista Paulo Prado, autor do livro “Retrato de Brasil   (1928).

 

Neste livro, mal compreendido na sua época, o escritor chega à conclusão de que o brasileiro é um povo triste. E justifica a sua tese diante de três aspectos constitutivos da psicologia brasileira: a cobiça, a luxúria e o sensualismo.

 

O regime de colonização de exploração, sem povoamento de famílias europeia, criou as condições para mestiçagem e uma vida desregrada, se comparadas ao regime colonial de povoamento com forte presença puritana, que preponderou na américa do norte.

 

Pode-se dizer que Macunaíma, escrito e publicado na mesma época que o Retrato do Brasil, é uma expressão literária daqueles três pontos constitutivos da tristeza brasileira – da busca pelo tesouro Muiraquitã até as “brincadeiras” de Macunaíma, extrai-se três os alicerces da psicologia brasileira: a luxúria, a cobiça e o sensualismo.   

domingo, 11 de setembro de 2022

A FILHA DO CAPITÃO – ALEXANDRE PÚCHKIN

 A FILHA DO CAPITÃO – ALEXANDRE PÚCHKIN

 

 


Iemelian Ivanovich Pugachev (Pugachyovskaya, 1742 — Moscovo, 21 de janeiro de 1775) foi o líder de uma grande rebelião cossaca e camponesa na Rússia (rebelião Pugachov, 1773 - 1775).

 

Na época em que Púchkin nasceu (1799), o czar que reinava sobre a Rússia anda era Paulo I, o filho insano de Catarina II, que viria a ser morto dois anos depois numa conspiração palaciana, da qual tornaria secretamente parte seu filho e sucessor, Alexandre I. Moscou havia se tornado o centro da vida intelectual e artística do país. A alta sociedade, que em São Petersburgo gravitava em volta da Corte, em Moscou, via de regra, entediava-se. Os jovens promissores liam os imitadores russos de Parny, Rousseau, Racine, Voltaire, enquanto as jovens (e velhas) suspiravam com romances sentimentais que apareciam aos montes, todos iguais e de qualidade duvidosa. A mesmice dominava também o cotidiano. De manhã, praticavam equitação e, à noite, em dias certos da semana, quando não havia baile ou carteados, frequentavam salões. Os chefes de família cuidavam da administração de suas propriedades rurais, onde a família passava temporadas anuais, justamente com numerosa criadagem, parentes, servos e agregados. O povo, como sempre, sofria”. (BRNARDI, Aurora. “Púchkin e o Começo da Literatura Rua”. Caderno de Literatura e Cultura Russa. USP).

 

 

Aleksandr Sergeevich Púchkin é aclamado como o maior poeta russo e fundador da moderna literatura daquele país. Transitou pela poesia lírica e épica, pelo teatro e pelo romance, sendo tradicionalmente relacionado ao movimento romântico, com aproximação do realismo, especialmente nas suas obras mais tardias.

 

 

 

Pode-se dizer que sua importância está para literatura Russa de maneira equivalente ao papel de Willian Shakespeare para o teatro Inglês. É tido como iniciador da literatura Russa: inaugurou um novo modelo literário, sem se basear em heranças ou escolas literárias anteriores, posto que inexistentes na Rússia. Ele se inspirava na cultura e na poesia popular medieval russa.

 

O escritor nasceu em 6 de Junho de 1799 em Moscou. Seu pai era um jovem oficial da guarda, mal administrador, colérico e atormentado por dívidas. Sua mãe era neta de Ibraim Hannibal, conhecido como primeiro grande intelectual negro da história do ocidente. Este bisavó de Puchkin, em 1703, foi capturado e vendido ao sultão de Constantinopla, que por sua vez o deu de presente ao czar Pedro, o Grande. O imperador russo adotou Hannibal e o colocou na corte para viver como seu afilhado, posteriormente o enviado para Paris, onde conclui seus estudos, se formando em engenharia militar.

 

Hannibal conheceu em Paris Voltaire, Montesquieu e Diderot, entre outros pensadores, que o chamavam de “estrela negra do iluminismo”.

 

De modo que não é incorreto dizer que o maior dos poetas russos tinha descendência africana!

 

Na biblioteca do pai, Púchkin leu Plutarco, Homero, La Fontaine, Moliére, Corneille, Rancine, Diderot e Voltaire. Seguindo um costume da época, aprendeu francês por meio de seus preceptores, sendo patente a influência da cultura francesa na Rússia, especialmente no período de Catarina II (1762/1796), imperatriz com reputação de mecenas das artes e correspondente dos iluministas Voltaire, Diderot e D’Alambert.

 

 A FILHA DO CAPITÃO

 




“Não me porei a descrever nossa Campanha e o fim da guerra. Direi, brevemente, que a catástrofe chegou ao extremo. Passamos pelos povoados arrasados pelos amotinados e, a contragosto, tirávamos dos pobres habitantes o que tinham conseguido salvar. O governo estava paralisado por toda a parte: os latifundiários escondiam-se nas florestas. As corjas de bandidos faziam o mal por toda a parte; os chefes de destacamentos isolados puniam e perdoavam despoticamente; o estado de toda a ampla região em que o incêndio grassava era horrível... Que Deus não permita ver a revolta russa, insensata e implacável.”.

 

O romance “A Filha do Capitão” se passa no reinado de Katarina II (1762/1796), imperatriz russa que revitalizou o seu país mediante vitórias militares e êxitos em política externa, como a anexação da Crimeia e vitórias nos campos de batalha contra o Império Turco Otomano. Além disso, como já dito, esta Imperatriz valorizou as artes, literatura e a educação. O Museu Hermitage, que ainda pode ser visitado nos dias de Hoje em São Petersburgo, começou com a coleção de arte particular de Katarina II.  

 

O livro retrata fatos históricos da Rússia, mais precisamente a rebelião do Líder cossaco Iemelian Pugachev.

 

A história é contada em primeira pessoa por Piotr Andreivitch, um filho de militar oriundo da região de Simbirsk, que desde o ventre da mãe foi alistado como sargento de regimento da czarina.

 

Aos dezesseis anos, o protagonista é enviado para o exército, quando é remetido para uma remota fortaleza Russa, onde conhece Mária Ivanova, a filha do capitão e chefe militar do local. A história descreve o amor entre Piotr e Mária, cuja relação encontrará todo tipo de percalços e aventuras decorrente das guerras levadas a cabo contra levantes cossacos.

 

Ainda que a literatura de Púschkin esteja situada nos marcos do romantismo, o seu texto prima pela objetividade e realismo, que possibilitam ao leitor conhecer em detalhes os levantes camponeses russos, levadas a cabos por povos tártaros e quirques.

 

“Nesse momento, detrás de uma colina que se encontrava a meia vesta da fortaleza, assomaram novos grupos a cavalo, e logo se alastrou na estepe uma quantidade de homens armados de lanças e arcos. Entre eles, em um cavalo branco, ia um homem de cafetã vermelho, com sabre desembanhado na mão: era Pugatchov.”

 

Ao invadirem as fortalezas militares, os cossacos saqueavam as casas, enforcavam os líderes militares e faziam farras regadas a álcool. A população simples do local acabava por aderir aos revoltosos, seja pela coação seja pela simpatia que nutriam por camponeses que subvertiam o regime social baseado em diferenciações entre nobreza e povo.

 

O historiador britânico Eric Hobsbawm cunhou o conceito de “banditismo social”, que é plenamente aplicável ao levante cossaco descrito por Púschkin.

 

 Não são exatamente delinquentes comuns que cometem crimes para seu próprio proveito. O banditismo social é um fenômeno relacionado às sociedades camponesas pré-capitalistas e que costumam se acentuar em momentos de desagregação, como guerras, rivalidades locais relacionadas a disputas familiares, a fome ocasionada por má colheita ou mesmo o próprio desenvolvimento do capitalismo com a consolidação de Estados Nacionais e a modificação forçada do modos de vida milenares, incluindo a desintegração familiar.

 

Diante de tais condições objetivas o fenômeno do banditismo social tem o condão de surgir e, o que é particularmente interessante, aparece ao longo da história em todos os cantos do mundos.

 

Os cossacos de Pugatchov não são muito diferentes dos bandoleiros dirigidos por Lampião no Brasil. Sem uma consciência política mais apurada, se revoltam contra a elite local, e praticam saques, roubos, incêndios e assassinatos.

 

No romance, ainda que Pugarschov apareça como um vilão, existe uma certa simpatia entre o algoz e o protagonista, que luta nos exércitos de Katarina II, mas de alguma forma reconhece a nobreza e coragem de camponeses que se levantavam, ainda que inconscientemente, contra o regime da servidão.