sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

“História da Cidade de São Paulo” – Affonso de E. Taunay

“História da Cidade de São Paulo” – Affonso de E. Taunay

"Bandeirantes na Mata" - Henrique Bernadelli - Museu Nacional de Belas Artes

Resenha Livro - “História da Cidade de São Paulo” – Affonso de E. Taunay – Edições do Senado Federal – V. 23 – Brasília – 2004

“Nascidos de uma cruz reforçadora da mentalidade vermelha e da robustez muscular branca, no dizer feliz de Eduardo Prado, tiveram os paulistas, desde os primeiros anos seiscentistas, características bem definidas que lhe valeram, por parte dos portugueses e estrangeiros indiscutível curiosidade de observação, daí decorrendo uma série de testemunhos. Verídicos uns, exagerados, falsos e até grotescamente fantasiosos, outros.
Assim, entre a gente castelhana não havia duas opiniões: eram vassalos meramente nominais dos reis de Portugal, a quem obedeciam quando lhes dava a veneta. E isto mesmo levados com muito tato e complacência”. Affonso de E. Taunay
                
Affonso de E. Taunay foi filho do conhecido Visconde de Taunay, este aristocrata personagem da política brasileira do séc. XIX, que lutou como engenheiro militar na Guerra do Paraguai, governou as Províncias de Santa Catarina  e Paraná e foi autor de “Inocência”, livro que se situa no romantismo literário, mais particularmente em sua primeira fase, com um destaque especial às belezas do sertão, a vida pitoresca camponesa desde Santana do Parnaíba.

O estilo literário romântico também é curiosamente evidenciado no livro da história d’a Cidade de São Paulo de Taunay filho. Em termos teórico metodológicos, estamos diante de uma história de matriz positivista, tributária das tradições de Leopold Von Ranke e Varnhagen. Um positivismo temperado com lances ufanistas, através da exaltação por exemplo da figura dos Bandeirantes, em conflito constante com a Coroa e com a lei na atividade de captura dos índios e especialmente a partir do séc. XVIII agentes da interiorização do povoamento brasileiro, especificamente em busca de novas jazidas de metais. Aqui válido lembrar que algumas jazidas de ouro foram encontradas em pequenas proporções na região do Jaraguá já no séc. XVI; que as minas de ouro desvendadas pelos bandeirantes abriram passagens para a ocupação e desenvolvimento posterior de Minas Gerais, Mato Grosso e Gois; e que a reputação dos paulistas como povo experiente no desbravamento de terras e conflitos com indígenas fez com que o bandeirante paulista Domingo Jorge fosse mobilizado pelas autoridades para aniquilar o Quilombo dos Palmares.

Quando se diz que a orientação teórico metodológica do autor Taunay remete ao positivismo historiográfico não se quer com isso dizer que houve uma adesão consciente do intelectual/professor a dada corrente historiográfica. Poderíamos aqui falar antes de uma história tradicional, baseada nos “grandes eventos” e “grandes homens”, cuja periodização dá-se através de datas de modo cronológica e com forte ênfase nas fontes oficiais – no caso desta “História de São Paulo”, especialmente diante do parco desenvolvimento da vila pelo menos até segunda metade do séc. XIX, escascam fontes que não sejam atas da câmara municipal, inventários e testamentos, estes últimos dos grandes proprietários. Fontes que darão algumas noções das condições materiais, da economia e mesmo da sociedade nos anos em que São Paulo era uma reclusa urbe, fechada e isolada do resto do Brasil pela serra do mar no sentido do litoral. Do ponto de vista historiográfico, uma história baseada nestes critérios encontra-se de certo modo superada – na história do Brasil há de se destacar a geração modernista de 1930 com Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre – cada qual a seu modo estabeleceria uma história mais cindida com as ciências sociais.

Com isso não queremos sugerir que a leitura desta “História da Cidade de São Paulo” seja ociosa ou apenas destinada ao historiador especializado. Estamos diante de um vasto retrato das origens até o advento de uma cidade em vias de franca expansão urbana e industrial já nas primeiras décadas do séc. XX. Tal história é temperada por um estilo literário francamente romântico que se por um lado exalta a dimensão de indivíduos (em geral da elite) na história, governantes/administradores competentes como um Jorge Tibiraçá Piratininga, um Washington Luiz e mesmo uma grande ênfase na figura de D. Pedro I, por outro lado deixa oculto a história do cotidiano, da cultura popular e das instâncias de opressão/dominação do trabalho, seja o servil, seja o desempenhado pelas mulheres.

Há aqui um ufanismo em que o Paulista surge como um elemento rebelde, audaz, corajoso e disposto a desafiar pelas armas ordens/decretos externos.

O grito do Ipiranga, que hoje a historiografia diz ter sido um evento sem grande importância prática na série de acontecimentos que envolvem a independência do Brasil, é assim narrado:

“Chegado na manhã de 7 de Setembro a São Paulo e sabendo que o Príncipe estava em Santos, para lá partiu Bregaro encontrando-o no alto do Ipiranga à tardinha.

Leu D. Pedro os Ofícios e cartas enviadas pela Princesa Real e José Bonifácio. E, ao percorrê-los, depois de um momento de reflexão, bradou: “É tempo! Independência ou Morte! Estamos separados de Portugal!”.

Em ato contínuo, arrancando o laço português que trazia no chapéu, arrojou-o para longe e desembainhando a espada, ele os mais presentes, prestaram o juramento de honra que para sempre os ligava à realização da ideia da liberdade brasileira.

Trinta e oito, além do Príncipe, foram os presentes à memorável cena ocorrida às quatro e meia da tarde de 7 de Setembro de 1822, no campo deserto do Ipiranga”.

Ainda que o autor não se aventure a uma periodização, sendo a sua história em certo sentido sequencial à história política da capital tendo como mote as realizações administrativas de cada chefe de governo, a vastidão de dados e alguns relatos de viajantes dão a esta história um caráter informativo que permite nos propor algumas divisões no tempo.

Os antecedentes remotos de São Paulo remetem ao nome imortal do português João Ramalho que por volta de 1515 atingiu terras brasileiras, não se sabendo ao certo sua origem, sendo provavelmente a da pena de degredo ou naufrágio. João Ramalho foi um dos elementos brancos que se misturaram aos indígenas da costa (tupiniquins), agindo como importante agente da colonização, desde anos morando na região de Piratininga, Serra Acima. João  Ramalho tornou-se amigo do chefe Tupiniquim Tibiraçara, casou-se com uma das filhas do cacique e deu origem a uma geração de mamelucos.

Em 1553, Tomé de Souza concedeu foral de vila a um arraial de João Ramalho, nomeado-o capitão mor e alcaide mor. Um ano depois o Padre Manuel de Paiva celebrou a famosa missa evocadora da conversão do Apóstolo das Gentes, ato inicial do pequeno arraial de São Paulo do Campo de Piratininga.

Um primeiro período remoto da cidade envolve traços de uma urbe isolada, em que convivem nem sempre amistosamente o colono branco e o missionário jesuíta. Há a propósito, em 1570 a  Lei Évora que dá liberdade aos autóctones e é solenemente ignorada pelos paulistas, que chegariam ao ponto de expulsar os jesuítas da vila. Nesse período, com enormes dificuldades de comunicação e transportes, a subsistência da vila vai se dando a partir do cultivo de trigo, algodão, feijão, arroz, cana (em menor escala pelo clima) e carne bovina e suína. As casas são feitas de taipa e iluminação pública e privada só haveria 1872 (iluminação à gás).

A descoberta do ouro nas Minas de Cotaguases implica num importante êxodo da cidade – incluindo a saída em aventuras dos próprios dirigentes políticos da câmara – criando uma situação de estagnação. De modo que as linhas gerais e a forma estática do desenvolvimento da cidade só mudaria com o plantio do café e sua valorização mundial, além da vinda dos imigrantes – italianos, espanhóis, portugueses e austríacos em sua maioria. Aqui é necessário fazer uma ponderação.

Aos comunistas interessa o estudo da história de molde a construir os elementos constitutivos da assim chamada “Questão Nacional” sobre a qual há a intervenção política concreta. Com relação à História de São Paulo, temos notícias de elementos da extrema direita que, por detrás também de um discurso ufanista da terra dos bandeirantes, propugnam ora a autonomia de São Paulo ora a expulsão dos migrantes nordestinos. A direita (e em especial a extrema direita) certamente não pode ser medida pela sua coerência: ela se serve de maneira oportunista de aspectos do senso comum para desvirtuar a história a seu favor. Ora este livro de Taunay dá grande ênfase ao papel dos imigrantes (e também migrantes brasileiros) na conformação e crescimento da cidade, a partir do surto cafeeiro. Não existiria São Paulo tal qual a conhecemos hoje sem a imigração. É num contexto em que há um radical aumento populacional (1872 – 47.697/ 1893 – 130.755) que se observa não só um notável crescimento urbanístico, mas incremento no número de jornais, construção de escolas e liceus, funcionamento de oito bancos (1887), linhas de bonde ligando os bairros da Liberdade, Mooca, Brás, Luz e Santa Cecília, abastecimento de água (1883-1887) e o desenvolvimento já de uma classe do labor composta de sapateiros, alfaiates, carpinteiros, ferreiros, chapeleiros, entre outros. Há uma zona convergente entre a ascensão do café, a vinda de imigrantes (anterior à Abolição em 1888) e um vasto desenvolvimento econômico, financeiro e cultural da cidade de São Paulo.

Em que pese as cores românticas e um certo ufanismo – que negligencia por exemplo a vida social das classes baixas, a questão da escravidão do indígena e do negro, origem direta da opulência dos grandes aristocratas que governariam diretamente o país com o fim do Império – este livro da história de São Paulo é um valioso acervo de informações e imagens que dão um sentido histórico das mudanças e das peculiaridades de São Paulo.   


quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

“História da Civilização Brasileira” – Pedro Calmon

“História da Civilização Brasileira” – Pedro Calmon

"Anchieta" - C. Portinari - 1954

Resenha livro - “História da Civilização Brasileira” – Pedro Calmon – Coleção Biblioteca Básica Brasileira – 2002

“Um punhado de farinha e um caranguejo nunca nos pode faltar no Brasil”, havia de dizer o Padre Vieira.

Esta ideia de vida nova é a impressão inicial do colono ao embarcar para a sua longa travessia. O oceano era mais do que uma distância; era uma cisão. Desde as primeiras expedições, o europeu que migrou  fez na América uma vida em tudo diversa da que tivera até então.  De acordo com o meio, o clima, a gente que encontrou na América. Ultra equinoctialem non peccari. – Ele transformou-se”

Pedro Calmon

Consta que esta “História da Civilização Brasileira” foi um livro muito popular no seu tempo. A 1ª edição data de 1933 quando o seu autor era um jovem intelectual baiano recém chegado ao Rio de Janeiro. Ainda em 1963 a obra seria reeditada desde a coleção brasiliana atingindo a 6ª edição, além de publicações em Argentina e Itália. Posteriormente, o livro parece cair no esquecimento o que provavelmente se dá em face do procedimento puramente descritivo da obra, do seu enfoque nos “grandes homens” e “grandes eventos” quando a historiografia brasileira através das inovações suscitadas pela geração modernista – Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Gilberto Freire[1] – valorizava as interfaces entre história e ciência social, cada qual através de orientações teórico metodológicas distintas.

Longe de tal “esquecimento” representar um interesse meramente bibliográfico do curioso especialista historiador.

A “História da Civilização Brasileira” é tributária de uma tradição historiográfica que remete a Vernhagen (marco inicial da historiografia brasileira) e Capistrano de Abreu. Todavia em face do período em que o livro foi escrito, há influência também dos modernistas, cogitando a obra, de forma pioneira, temas da história da cultura, como a literatura no Brasil colonial, sua arquitetura com a análise do barroco e da intervenção de Aleijadinho, a família e sua constituição na colônia; aspectos da história econômica ainda que em termos bastante quantitativos com uma abundância de dados sobre a produção agrícola do açúcar, do fumo, do cacau, do café e do algodão, a introdução das linhas férreas e o sentido do desenvolvimento das comunicações na produção, além de uma atenção específica às revoltas, rebeliões e revoluções que informam a história do Brasil desde a colônia, como a Guerra dos Emboabas – relacionada à disputa pelas descobertas auríferas entre paulistas e forasteiros, a Revolta de “Bequimã”, as Conjurações Mineiras e Baianas, entre outros.

Sobre a orientação teórico-metodológica do autor e obra, discorre Arno Wehling:

“Em matéria de concepção historiográfica, em estudo sobre seu pensamento histórico, nós o filiamos à matriz historicista, ou historicista romântico-erudita, da historiografia brasileira, que teve em Vernhagen sua principal expressão. Isso sem embargo de suas aproximações à obra de Capistrano de Abreu e às concepções modernistas das quais foi contemporâneo, o que, entretanto não alterou sua fidelidade pessoal”.

Certamente o contexto intelectual da década de 1930, já posterior à Semana da Arte Moderna (1922) e contemporâneo da nova historiografia brasileira, faz deste trabalho um relato eminentemente descritivo mas contemplando de maneira mais detida a historia social, cultural e econômica. Se por exemplo em Capistrano de Abreu o elemento indígena aparece na formação do Brasil como um elemento quase paisagístico e de pouca relevância no desenvolvimento histórico do país, Pedro Calmon faz análise mais atenta do índio, responsável por dificuldades na instalação do homem europeu em face da denominada “guerra justa” contra o elemento indomável, a importância da intervenção jesuítica contrária à escravidão do índio e a própria conformação de um sentimento de nação através do agrupamento do negro, do branco e do índio. Sentimento forjado nas lutas pela reconquista das províncias ocupadas pelos Holandeses no nordeste (séc. XVII). Mesmo no aspecto cultural, o hábito de dormir em redes pelo colono, os pés descalços e a nova alimentação com base na farinha de mandioca são decorrentes desta fusão de grupos humanos diferentes que informarão as particularidades do brasileiro. O homem brasileiro era o português – “marinheiro das armadas, o colono, camponês loiro do norte de Portugal, negociante moreno, judeu ou mouro, homem d’armas de Lisboa, braquióde, nervoso e inquieto”. Era o homem negro que  através de Henrique Dias, herói da luta de reconquista do nordeste, representava um ideal romântico da posição do negro na colônia em face de um país escravocrata e contrabandista de cativos. E era o indígena que nesta obra é analisado com mais atenção que a tradicional historiografia:

“O índio falava, na maior extensão da costa, uma língua comum: o tupi. Mas as suas procedências eram vastas, seus tipos antropológicos diversos, como distinta a sua cor (havia “abajus” e “abaúnas”, claros e escuros), peculiares os seus costumes, o idioma inconfundível. O tupi litorâneo foi inimigo virtual do tapuia sertanejo, que ele vencera nas regiões ribeirinhas, repelindo-o para o interior. O tapuia era o gentio das línguas travadas, o que não pertencia à comunidade tupi e vivia mais barbaramente do que o índio da costa, posto em entendimento com os brancos, e por estes influenciado desde as primeiras viagens”.  

Já os índios distinguem brasileiros e franceses pela cor da barba: barba preta para lusitanos e barba loira para os de França.

Há de se destacar como outro aspecto distintivo da obra um certo determinismo geográfico, de resto não incomum dentre as reflexões sobre o problema do Brasil em fins do XIX e início do XX. Assim, se explicou a ocupação territorial e as razões mesmo de revoltas. Por exemplo, explica-se o ciclo da Borracha no norte (1879-1912), constituindo a opulência da cidade de Manaus, entre outros pela grave seca do Ceará em fins do século XIX pavimentando a migração; as correntes de vento explicam em grande medida os contatos marítimos dentre as regiões com destaque do Rio São Francisco, do Rio Amazonas e do Paraná na difusão do povoamento; ou até a explicação de Canudos a partir das condições geo-climáticas do sertão além do contexto de religiosidade local, não se podendo falar que o movimento de Antônio Conselheiro era uma ação política consciente de restituição da Monarquia. Mesmo a vinda de imigrantes europeus em substituição à mão de obra negra envolve aspectos climáticos: os imigrantes preferem o clima mais ameno da região meridional, o que explica os graves problemas econômicos enfrentados pelas províncias do norte em face das paulatinas leis de restrição/abolição da escravatura – abolição do tráfico em 1850, lei do ventre livre (1871), lei dos sexagenários (1885) e a abolição da escravidão em 1888.

Como se sabe o problema da escravidão e o seu questionamento é um problema político pelo qual se debatem conservadores, liberais, proprietários  rurais e mesmo militares ao longo do século XIX. Em 1831 com a primeira lei formal de abolição do tráfico, informa Calmon, os Brasileiros se habituam com a ideia de que um dia não haverá mais escravos. A mocidade acadêmica, influenciada por pensadores franceses e pela experiência norte americana que através de Guerra Civil conquistou a abolição, representaria uma vanguarda daquele movimento. Luiz Gama e J. Patrocínio os elementos negros à frente dos abolicionistas. Esta mudança de mentalidade é revelada pelas práticas de alforria – entre 1872 e 1876 houve 3000 libertações espontâneas; a província do Ceará promove a abolição da escravatura já em 1884; criam-se caixas para doação com o intuito de alforriar escravos; até a libertação plena dos cativos quando o Barão de Cotegipe  alertara de forma profética a Princesa Isabel: “Vossa Alteza ganhou a partida mas perdeu o trono”.

A civilização brasileira é obra de cerca de 300 páginas que percorre 300 anos de Brasil Colonial, da Independência, do 1º reinado, das Regências,  do 2º Reinado,  da Proclamação da República até o 2º mandato de Rodrigues Alves. Há para o leitor uma perspectiva ampla e sintética da história do Brasil em contraponto à certa tendência das pesquisas historiográficas em nível acadêmico de se reduzir o objeto de estudo a períodos relativamente curtos aduzindo problemas bastante específicos, como “A história da culinária na Província de Rio de Janeiro entre 1808-1821”, a título de exemplo. Se estas pesquisas mais específicas ganham por um lado em profundidade, perdem por outro lado em envergadura, sendo necessários os relatos panorâmicos e extensos da história de modo a melhor sugerir, aqui, o sentido histórico da “civilização brasileira”.  É uma obra que vale a pena ser conhecido por tal visão panorâmica, além da riqueza de informações a partir de fontes primárias. A síntese a que Pedro Calmon chega após percorrer 4 séculos da história brasileira é do desenvolvimento combinado com pendências, uma espécie de história inconclusa:

“Constituímos um êxito positivo, em todos os domínios da atividade do povo. Entretanto ainda nos sobrava a impressão de que tudo estava por fazer – tão grande é o âmbito geográfico desta civilização que apenas esboçou as suas tendências ou diferenciou a sua fisionomia”!




[1] Produziu-se em poucos anos obras de alto interesse para a historiografia brasileira num sentido de, através do olhar sobre o passado do país, constituir os elementos que informam a nacionalidade. As obras mais importantes são: “Casa Grande e Senzala” (1933) de Gilberto Freire, “Evolução Política do Brasil” (1933) de Caio Prado Jr., “Raízes do Brasil” (1936) de Sérgio Buarque de Holanda e “História Econômica do Brasil” (1936) de Roberto S.   

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

“Com Stáline – Recordações” – Enver Hoxha

“Com Stáline – Recordações” – Enver Hoxha



Resenha Livro - “Com Stáline – Recordações” – Enver Hoxha – Lisboa - Fevereiro de 1980

                O nome do dirigente do Partido Comunista Albanês Enver Hoxha bem como a experiência da luta pela libertação nacional albanesa e seu regime comunista é provavelmente muito pouco conhecido dentre o público Brasileiro. Hoxha, durante a invasão alemã em Albânia na II Guerra Mundial, fundou o Partido Comunista, posteriormente denominado Partido do Trabalho da Albânia. Consta nestas reminiscências que a orientação para a mudança do nome do partido partira do próprio Stálin: a Albânia era um país majoritariamente camponês, com uma indústria e um proletariado reduzidos, de modo que o Partido do Trabalho suscitava a necessária aliança operário-camponesa.

                Hoxha foi nomeado secretário do Comitê Central do Partido e comissário do Exército de Libertação Nacional em combate com o inimigo nazi-fascista e os elementos reacionários da Albânia. Hoxha lutou nas trincheiras da II Guerra Mundial na condição de comandante e comissário político até a expulsão do inimigo. Após a guerra foi primeiro ministro da Albânia até o ano de 1955.

                Esta obra corresponde a uma espécie de memórias/recordações dos encontros de Enver Hoxha com Joseph Stálin e foi publicada por ocasião do centenário da morte do grande marechal vermelho da URSS no ano de 1979. Sua leitura ainda mantém vivo interesse aos comunistas brasileiros por diferentes razões.

                Em primeiro lugar, na introdução, Hoxha faz uma síntese da importância de Stálin em face da história do movimento comunista mundial, o que é particularmente relevante diante das calúnias e mistificações que historicamente buscaram apagar a figura do dirigente soviético da história: nestes termos, tanto a reação quanto revisionistas/trotskystas fazem coro em torno de certo senso comum segundo o qual Stálin teria inaugurado uma “ditadura totalitária” ou promovido uma “contrarrevolução burocrática”. Como veremos, não é gratuito estes ataques quase sem precedentes a um indivíduo como Stálin. Como bem lembra Ludo Martens no livro “Stálin: um novo olhar”, a mistificação em torno de Stálin diz respeito ao fato de que a URSS entre a morte de Lênin em 1924 e os anos do “estalinismo” mostrou-se como o período em que o socialismo desafiou de maneira mais decisiva os capitalistas em nível mundial. É o que se observa particularmente após a II Guerra Mundial, quando o exército vermelho esmagou militarmente o nazi-fascismo e granjeou o respeito e admiração de trabalhadores em todo mundo, incluindo dos países capitalistas do ocidente, colocando o próprio capitalismo numa crise só vista no séc. XX em 1929.  

                Hoxha faz referência ao papel decisivo da URSS e de sua direção política na II Guerra Mundial:

“Stáline propôs  aos governos dos grandes países capitalistas a conclusão de uma aliança contra o flagelo hlitleriano mas estes governos rejeitaram esta proposta, indo mesmo ao ponto de violar as alianças que já tinham com a União Soviética na esperança de que os hitlerianos extirpassem o “germe do bolchevismo” e tirassem as castanhas do lume deles.

(...)

Numerosos políticos e historiadores burgueses e revisionistas afirmam que a agressão hitleriana encontrou a União Soviética desprevenida e responsabilizaram Stáline por tal fato. Mas a vida refuta esta calúnia. A Alemanha hitleriana, como estado agressor que era, violou cobardemente o pacto de não agressão e aproveitou-se do efeito estratégico da surpresa  e da considerável superioridade numérica de suas forças (cerca de 200 divisões, suas e dos seus aliados), para se lançar numa “guerra-relâmpago” que deveria permitir, de acordo com os planos de Hitler, vencer a União Soviética e submetê-la em menos de dois meses!

Sabemos bem o que aconteceu na realidade. A “guerra relâmpago”, vitoriosa em toda Europa  ocidental, fracassou a leste. O Exército Vermelho, dispondo de uma sólida retaguarda graças ao apoio dos povos soviéticos, conseguiu ir esgotando as forças do inimigo durante a retirada, para depois as encurralar e passar ao contra ataque, esmagando-as com golpes sucessivos até obrigar a Alemanha hitleriana a capitular sem condições”.

                Um segundo interesse para a leitura destas memórias diz respeito às conversas entre Hoxha e Stálin acerca da construção do socialismo na Albânia, desde problemas da agricultura e indústria até a posição dos Albaneses em face do movimento comunista internacional. Hoxha já na introdução revela que os comunistas albaneses reivindicam a tradição soviética da Revolução de Outubro até a morte de Stálin: com a ascensão de Khrushchov, o XX Congresso do PC da União Soviética e as ditas “denúncias dos crimes de Stálin”, o dirigente albanês entende haver uma mudança qualitativa inclusive na relação entre os países, se tornando a URSS numa potência Social-Imperialista. O que é interessante é que nos encontros com Stálin, não se observa uma relação de subordinação em que o dirigente soviético daria ordens e comandos a serem executados pelos albaneses. Stálin apenas se limita a oferecer preciosos conselhos, não só políticos, mas em matérias bastante específicas, como ao conceder sementes de Eucalipto que serviriam para os albaneses plantar nas regiões de Pântano subtraindo a umidade do solo.

                 Há no 4º Encontro entre Hoxha e Stálin importante discussão com a participação do Partido Comunista Grego em que se demonstram as divergências entre gregos e albaneses. Diante da luta de libertação nacional grega contra os monarco-fascistas, Hoxha critica o abandono  da estratégia da guerra de guerrilhas que deveria evoluir no sentido da insurreição geral e na tomada do poder. A derrota dos comunistas gregos se dá pela opção da direção do partido comunista na formação de exércitos regulares com uma tática defensiva, algo que certamente levaria à derrota diante da força numérica do inimigo, apoiado pelos ingleses e americanos. Outro fator da derrota do movimento grego foi a incompreensão do papel dirigente do partido no exército, com a necessidade de uma direção política no front.

                 Um terceiro interesse nas recordações de Hoxha diz respeito a aspectos pessoais de Stálin revelados nos encontros. Stálin sempre mostra atenção aos problemas gregos e, como dito, faz recomendações respeitando a autonomia do movimento albanês. Tem uma postura cordial e humilde diante das solicitações. De uma maneira geral, as ideias de Stálin tem um sentido bastante prático:

“Na minha opinião, disse o camarada Stálin, não deveis apressar-vos na coletivização da agricultura. O vosso país é montanhoso e tem um relevo muito variável de região para região. Também nós, nas zonas montanhosas, só muito mais tarde criamos os Kolkhozes”.

                  O combate aos revisionistas, aos imperialistas e aos inimigos internos é uma realidade compartilhada tanto em Albânia quanto em URSS. As chamadas depurações promovidas por Stálin e tão alardeadas pelos trotskystas/revisionistas como sintoma da burocratização é antes uma luta de princípios contra setores estreitamente ligados aos capitalistas estrangeiros:

“Alguns permaneceram nas fileiras do Partido bolchevique para assaltar a cidadela por dentro e desagregar a justa linha marxista-leninista deste partido conduzido por Stáline, enquanto outros ficaram fora das fileiras do partido mas no interior do Estado, conspirando e sabotando aberta ou disfarçadamente a construção do socialismo. Nestas circunstâncias Stáline aplicou com firmeza uma das principais recomendações de Lénine, depurando o partido sem hesitações de todos os elementos oportunistas, capitulacionistas face à pressão da burguesia, do imperialismo e dos pontos de vistas estranhos ao marxismo-leninismo”.

                  A oposição entre Stálin e Trótsky foi deformada em “socialismo num só país” contra internacionalismo, enquanto o relato de Hoxha revela o verdadeiro sentido internacionalista e  de solidariedade da URSS para com o movimento comunista mundial e particularmente a Albânia, com envio de especialistas e técnicos do campo e da cidade desde a URSS para ajudar na construção do socialismo albanês. A verdadeira oposição entre Stálin e Trótsky pode ser, entre outras, a de que o marxismo-leninismo de Stálin pavimentou um caminho de vitórias (especialmente em face do aspecto prático e objetivo da direção estalinista, conjugado com uma estreita observância de princípios marxistas-leninistas). Já a teoria da revolução permanente nos termos não de Marx mas de Trótsky teriam levado a URSS a durar menos do que os 72 dias de existência da Comuna de Paris.


                  Seria oportuno que Expressão Popular, Boitempo e demais editoras de esquerda oferecessem ao público brasileiro a contribuição de Enver Hoxha.       

terça-feira, 31 de outubro de 2017

“O Papel da Violência na História” – Friederich Engels

“O Papel da Violência na História” – Friederich Engels



Resenha Livro - “O Papel da Violência na História” – Friederich Engels – Tradução Eduardo Chitas – Obras Escolhidas em três tomos – Editorial Avante!

           
Este manuscrito foi redigido por Engels entre fins de Dezembro de 1887 e Março de 1888. Foi publicado pela primeira vez na revista Die Neue Zeit nº 22-26 entre 1897-1896.

O trabalho faz uma reflexão histórica sobre o processo de unificação tardia do estado alemão conduzido pela Prússia, bem como os arranjos diplomáticos, guerras e disposição das classes sociais em Europa ao longo do século XIX. Ao se apropriar de uma orientação teórico metodológica baseada no materialismo histórico, o relato não segue a orientação da velha história positivista dos Grandes Eventos, linear e cronológica, mas antes, uma história dotada de sentido que se perfaz a partir da luta encarniçada entre as classes sociais, num contexto em que a burguesia – já desde de a Revolução Francesa de 1789 e das Revoluções de caráter nacionalista, liberal e democrática de 1848 – granjeia posição de classe dominante.           
          
Em que pese Marx e Engels não terem dedicado um trabalho específico acerca do que se pode referir como teoria ou filosofia da história, são amplas as pistas que revelam o procedimento para uma teoria crítica com vocação a apreender as contradições e a totalidade dos fenômenos do passado desde o ponto de vista do materialismo histórico. Já na Ideologia Alemã (1945), em sua polêmica em face do sistema filosófico idealista alemão e ao materialismo contemplativo de Feuerbach, há indicação de que não são as ideias que movem a história mas antes a base material de produção a partir da qual se engendra as formas de sociabilidade, o estado e as ideias.  

Assim sintetiza Marx:

“Eis portanto os fatos: indivíduos determinados com atividades produtivas segundo um modo determinado entram em relações sociais e políticas determinadas. Em cada caso isolado, a observação empírica deve demonstrar nos fatos, e sem nenhuma especulação ou mistificação, a ligação entre a estrutura social e a política e a produção. A estrutura social e o Estado nascem continuamente do processo vital de indivíduos determinados; mas estes indivíduos não são tais como aparecem na representação que fazem de si mesmos ou na representações que fazem os outros deles, mas na sua existência real, isto é , tais como trabalham e produzem materialmente: portanto, do modo como atuam em bases, condições e limites materiais determinados e independentes de sua vontade".

Assim temos em A Ideologia Alemã especialmente presente a ideia do materialismo histórico, o combate ao idealismo da filosofia da história, de tipo especulativa, segundo a qual a Ideia ou o Homem, movem as relações materiais. Entendem Marx e Engels já em 1945 por outro lado que as relações entre os modos de troca e o desenvolvimento determinado das forças produtivas é que ao longo da história foram engendrando as representações da ideia, da noção do homem sobre si mesmo, da religião ou mesmo do estado.
            
Poucos anos depois, no Prólogo de Engels à Edição Alemã de 1883 do Manifesto Comunista, fica evidente dois aspectos dentro do materialismo histórico: uma história dotada de sentindo e mesmo uma orientação teleológica segundo a qual o caminho necessário do desenvolvimento histórico caminha para uma polarização mais aguda entre proletários e burgueses até uma resolução final.

“A produção econômica e a estrutura social que necessariamente dela se deriva em cada época histórica constituem a base sobre a qual descasa a história política e intelectual dessa época...Portanto, toda a história da sociedade da sociedade, desde a dissolução do regime primitivo de propriedade coletiva sobre o solo, tem sido uma história de lutas de classes exploradoras e exploradas, dominantes e dominadas, nas diferentes fases do desenvolvimento social. Agora esta luta chegou a uma fase em que a classe explorada e oprimida (o proletariado) já não pode emancipar-se da classe  que a explora  e a oprime (a burguesia), sem emancipar ao mesmo tempo, para sempre, a sociedade inteira da exploração, da opressão e da luta de classes”.

Importante ressaltar que dentro desta ordem de ideias, as sucessões de modo de produção desde o escravismo, feudalismo e capitalismo constituem a pré-história da humanidade que em face da superação da sociedade cingida em classes sociais e com o fim da propriedade privada (expressão jurídica da forma do capital) revelaria o início da história propriamente dita.

O conceito de determinação de que fala Althusser segundo o qual a totalidade das relações de produção correspondente a determinado grau de desenvolvimento de forças produtivas constitui a estrutura econômica da sociedade sob a qual se eleva uma superestrutura jurídica/política e que engendra diferentes formas sociais de consciência. Ou nas palavras de Marx, em “Contribuição da Crítica da Economia Política”, não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário é o seu ser social que determina sua consciência.

Em face destes pressupostos teórico metodológicos, Marx e Engels redigiriam trabalhos sobre história que irão se apropriar do materialismo histórico, buscando delimitar as relações entre as mudanças correspondentes ao desenvolvimento das forças produtivas, o gradual processo de sucessão dos meios de produção e os processos políticos eivados de violência que corroboram para ascensão de novas classes sociais no Poder.

O caso alemão é considerado por suas particularidades neste “O Papel da Violência na História”: sua unificação é tardia, sua classe burguesa é fraca politicamente, fazendo com que o processo de conformação do estado nacional seja dirigido não por meios burgueses mas pelo modo bonapartista cuja figura expoente de Bismarck e os Junkers, nobreza ligada à grande propriedade de terra, é dirigente. Por outro lado, a fragmentação do território alemão, com diferentes legislações aduaneiras, diferentes moedas, diferentes tribunais e ausência de uma nacionalidade que colocasse em proteção os mercadores no estrangeiro inviabiliza o desenvolvimento econômico capitalista. A violência da Prússia ao se constituir como estado unitário e sua participação em Guerras terá como fundo o escopo de garantir a unidade nacional e franquear o desenvolvimento capitalista:

“(...), era desejo impetuoso do comerciante e do industrial práticos, a partir da necessidade prática dos negócios, de varrer toda a velharia de pequenos estados transmitida historicamente e que barrava o caminho à livre expansão do comércio e indústria; de afastar toda fricção superficial que o negociante alemão tinha primeiro de vencer no seu país se queria entrar no mercado mundial e a que eram poupados todos os seus concorrentes. A unidade alemã tinha-se tornado uma necessidade econômica”.

O que é salientado aqui é que o meios autoritários e bonapartistas com que os Junkers implantaram de certo modo o programa burguês de unidade nacional diz respeito a certa etapa do capitalismo em que a ameaça vermelha do proletariado passa ser um perigo real. Uma revolução com a participação do proletariado após a experiência de 1848 poderia, para usar uma expressão mais moderna, se desenvolver numa “revolução permanente”, em especial no caso alemão, donde a burguesia corresponde a um partido político frágil.

E quais as consequências da unificação que nos fazem visualizar o enlace entre as exigências econômicas e suas repercussões políticas e jurídicas para viabilizar a acumulação nesta etapa de transição do feudalismo à modernidade em Alemanha?

“A Constituição da Confederação subtraía as relações economicamente mais importantes à legislação de cada Estado singular e remetia a sua regulamentação para a Confederação: direito civil comum e livre circulação em todo o território da Confederação, direito de domicílio, legislação sobre ofícios, comércio, alfândegas, navegação, moedas, pesos e medidas, caminhos-de-ferro, canais, correio e telégrafos, patentes, bancos, toda a política externa, consulados, proteção ao comércio no estrangeiro, polícia médica, direito penal, processo judicial etc. A maioria destes objetos foi ordenada por leis e, no conjunto, de modo liberal. E assim foram finalmente eliminados – finalmente! – os piores abusos do sistema de pequenos Estados, que o mais das vezes obstruíram o caminho, por um lado, ao desenvolvimento capitalista, por outro, aos apetites prussianos de Dominação”.


Resta claro que a finalidade da violência com expressão em Guerras como A Guerra da Criméia (1853-1856), ou a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) denotam o frágil equilíbrio de poder dentre as nações Europeias no séc. XIX e mais importante desdobramentos tardios de lutas políticas de classes em que estavam em jogo interesses de nacionalidades, autonomia local e consolidação tardia de Estados Nacionais – conjuntura de ascensão da classe burguesa e por trás de si já a sombra de um proletariado que irá se desenvolver a partir de partidos políticos independentes já a partir de fins do século XIX. 

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

"O Estado e a Revolução" - Lênin

“O Estado e a Revolução” – Lênin



Resenha Livro - “O Estado e a Revolução” – Lênin – Tradução J. Ferreira
               
                
Este importante trabalho de Lênin foi redigido no calor da Revolução Russa, mais especificamente no intervalo entre as duas etapas, democrático-burguesa (fevereiro) e socialista (outubro) daquele magnífico acontecimento histórico . Já desde a segunda metade de 1916, o dirigente bolchevique demonstra necessidade de um estudo teórico acerca do estado:  neste ano publica um trabalho atacando as posições de Bukharin (“A Internacional dos Jovens”). Em carta a Kollontai datada de 17 de Fevereiro de 1917 Lênin informa-a ter reunido o material necessário para o livro: documentos copiados em letra fina e apertada num caderno intitulado “Marxismo e o Estado” donde se encontram citações de obras de Marx, Engels além de extractos para fins de reduzi-los a polêmicas com os social –democratas alemães Kautsky, Bernstein e o ultraesquerdista Pannekoek.
                
De fato, como é uma tendência nos trabalhos de Lênin, as reflexões teóricas irão sempre encontrar uma repercussão na prática do movimento operário internacional, aqui se ressaltando as diferenças entre a posição revolucionária (bolchevique) acerca do estado e revolução, as variantes oportunistas/reformistas que via de regra retiram sob diversas formas e pretextos o potencial revolucionário da teoria de Marx e as variantes anarquistas que não compreendem o processo de transição que envolve a ditadura do proletariado, perscrutando a simples abolição do aparato repressivo ideológico estatal sem com isso utilizar da própria máquina do estado capitalista para esmagar a resistência da antiga classe proprietária. O procedimento de Lênin envolve o resgate de passagens decisivas de Marx e Engels em que cada um tratou do problema da dominação política burguesa, a partir do Manifesto Comunista de 1848, do problema da revolução proletária e da teoria da transição (Em especial na Crítica do Programa de Gotha) ou até de alguns lances acerca de experiências reais de organização política dos trabalhadores, no caso a partir da Comuna de Paris de 1871, quando desde a “Guerra Civil em França”, Marx e o movimento operário como um todo deveriam extrair lições acerca de tarefas concretas envolvendo o que fazer após a tomada do poder efetivamente pelos trabalhadores:

“Para evitar esta transformação, inevitável em todos os regimes anteriores, do Estado e dos órgãos do Estado, servidores da sociedade na origem, em donos dela, a comuna empregou dois meios infalíveis. Primeiramente, ela submeteu todos os lugares da administração, da justiça e do ensino à escolha dos interessados por meio de eleição com sufrágio universal e, bem entendido, à revocabilidade a todo momento por estes mesmos interessados. E, em segundo lugar, ela retribuiu todos os serviços, desde os mais inferiores aos mais elevados, com salário que recebiam os outros operários”.

Em que pese a fraseologia marxista, são diversos os pontos em que setores da esquerda em especial ligados à falida II Internacional (cujo derradeiro fim deu-se com o apoio dos respectivos partidos aos seus países de origem na 1ª grande guerra) demonstram abandonar a perspectiva revolucionária do estado e revolução. Encaram o estado não como um órgão de dominação de uma classe por outra, mas como um meio de conciliação de classes. Segundo Marx, Engels e Lênin, o Estado é órgão por meio do qual uma classe domina e oprime outra classe:

“O Estado é o produto e a manifestação do facto de as contradições das classes serem inconciliáveis. O Estado aparece precisamente no momento e na medida em que objetivamente as contradições das classes não podem ser conciliadas. E inversamente a existência do Estado prova que as contradições das classes são inconciliáveis.”

Com relação aos anarquistas, o eixo da divergência gira em torno do problema da transição, ou mais especificamente da ditadura do proletariado. No limite as teorias anti-autoritarias caem num utopismo e perfilam aqui uma posição oportunista, com palavras de ordem irrealizáveis. Na prática corroboram com a orientação oportunista, que em Rússia se faz representar pelos mencheviques e social-revolucionários:

“Nós não somos utopistas. Não “sonhamos” com dispensar de golpe toda a administração, toda a subordinação; estes sonhos anarquistas, baseados na incompreensão das tarefas que incubem à ditadura do proletariado, são fundamentalmente estranhos ao marxismo e não servem na realidade senão para protrair a revolução socialista para o dia em que os homens tenham mudado. Pelo que nos respeita, nós queremos a revolução socialista com homens tais como ele são hoje, os quais não dispensam a subordinação, o controle, os fiscais e contabilistas”.

Para além de demarcar posição, o tema do Estado e Revolução naquela conjuntura envolvia concretamente as palavras de ordem, a direção que o partido de Lênin deveriam imprimir no contexto revolucionário russo. Consta que o último capítulo do opúsculo deveria versar sobre a revolução russa, a começar por 1905, projeto interrompido pelos acontecimentos de Outubro de 1917. Para a satisfação de Lênin, que afirma ser mais recompensante fazer a revolução do que escrever sobre ela.

Nosso desafio 100 anos depois da Revolução em Rússia poderia partir de algumas assertivas de Lênin e confrontá-las com o próprio desenvolvimento histórico da URSS. Um capítulo inteiro é dedicado à base econômica da extinção do estado, o que envolve a socialização dos meios de produção: não se trata necessariamente de um sinônimo de estatização dos meios de produção, para não falar de políticas contingenciais que envolveram o recrudescimento do “Estado Contabilista” como a NEP. Certamente, deve-se levar em consideração que quando Lênin escrevia estas linhas, ainda tinha a expectativa que a Revolução Russa deveria ser o prelúdio da Revolução na Europa, consideração que os fatos o forçariam a abandonar alguns anos depois. Mas o que fica aqui é a ortodoxia com que Lênin lida com os clássicos do Marxismo e revela falsificações pela esquerda de noções afins com o marxismo que, por outro lado, retiram seu conteúdo revolucionário. Um debate bastante atual envolve até a democracia e o sufrágio universal, de fato, situações políticas mais favoráveis para a luta dos trabalhadores, reconhece Lênin, mas ainda baseadas na existência do estado capitalista e portanto da dominação/opressão política da burguesia.  


São estes trabalhos teóricos que demonstram como Lênin representa uma solução de continuidade, com ideias originais, claras e contundentes, em relação a Marx e Engels, trazendo para o bojo da etapa imperialista do capitalismo novas reflexões sobre política, revolução e teoria da transição. 

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

“Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano” – Carlos Marighella


 “Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano” – Carlos Marighella

Resultado de imagem para minimanual do guerrilheiro urbano marighella[

Resenha Livro - “Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano” – Carlos Marighella
           
            Carlos Marighella iniciou sua militância na Bahia quando estudante de Engenharia em Salvador no ano de 1933 – para ser mais exato, um ano antes, no contexto político da Era Vargas, já fora preso em manifestação de rua. De qualquer forma, pode-se dividir sua trajetória política em dois períodos: desde a sua adesão ao Partido Comunista Brasileiro, organização em que granjeou posição dirigente, tendo participado da bancada comunista da Assembleia Constituinte de 1946. E, posteriormente, o rompimento com o PCB, a adesão à tática da guerrilha urbana no contexto da luta contra a ditadura militar.

Com relação a este primeiro período de Marighella dentro do PCB há uma boa fonte de textos e discursos do inimigo número um da ditadura militar, trabalho publicado pela Fundação Dinarco Reis, ligada ao PCB[1]. Desde a Constituinte (1946), os comunistas defendem as posições mais progressistas, como a efetiva separação entre o Estado e a Igreja, o Ensino Laico e a instituição do Divórcio. Como se sabe, o Partido Comunista Brasileiro teria curta vida durante o Governo Dutra e seria proscrito sob o argumento de se tratar de uma organização filiada à URSS.

O rompimento de Marighella com o PCB envolve dois fatos políticos fundamentais: a Revolução Cubana (e a viagem do revolucionário baiano aquele país em 1967) e a derrota das esquerdas em face do golpe militar de 1964. Por um lado a vitória da revolução de 1959 re-orientou uma parcela significativa da militância de esquerda na América Latina acerca da viabilidade dos métodos da guerrilha como forma de fazer frente à ditaduras apoiadas ou não pelo imperialismo norte-americano. Levou ao ê xito neste sentido uma Revolução na Nicarágua em 1979.

É certo que o Golpe Militar no Brasil contara com participação direta de Washington, incluindo exercícios paramilitares de direita e movimentações de frotas navais em caso de reação aos golpistas, de modo que a via pacífica certamente seria um caminho sem êxito para se derrotar uma Ditadura no coração da América Latina, sob a vigilância do imperialismo, num contexto de Guerra Fria – e neste mini manual é reiterado o fato de que os inimigos são não só os militares mas os imperialistas norte-americanos.

Por outro lado, a análise da co-relação de forças não levou em consideração que o regime político dos militares encontrou relativa estabilidade por meio de uma situação de crescimento econômico: já a ditadura sanguinária de Batista em Cuba chegou a ser abandonada dada a sua impopularidade pelos mesmos EUA conquanto a Guerrilha Urbana brasileira não teve fôlego e força de mobilização para desgastar politicamente o regime militar que se serviu de métodos de censura e repressão de forma eficaz. Sintomaticamente, é com a entrada em cena da classe trabalhadora a partir das greves do ABC em 1978 que se vislumbra o início do fim do regime autoritário: as greves lançam as bases para a re-organização dos movimentos sociais e de massa, já nos anos 1980, com mobilizações de massa em face da morte do Jornalista Herzog e do operário Manuel Fiel Filho, da ampla campanha pela Lei de Anistia[2], desde a fundação do Partido dos Trabalhadores e do Movimento pelas Diretas.

Quando de sua ruptura com o PCB, Marighella em sua carta de desligamento suscita 3 argumentos essenciais: (i) reboquismo dos comunistas e do proletariado à burguesia, ou a certa fração supostamente progressista da burguesia, representada por Goulart, fato que se demonstra equivocado na prática desde que esta burguesia transige e não reage ao golpe; (ii) confiança no dispositivo militar diante de uma não compreensão marxista da natureza de classes das forças armadas e de sua cúpula; ilusões de classe também relacionadas à não compreensão do papel da burguesia nacional, o que leva o PCB em dados momentos a apoiar políticos como Juscelino Kubitschek e o anti-comunista Marechal Lott.

Este Mini Manual foi escrito em Junho de 1969, 5 meses antes da morte de Marighella. Trata-se literalmente de um manual com instruções acerca das qualidades, das características, das habilidades necessárias de um guerrilheiro urbano. Sua leitura traduz não só os caracteres de uma militância disposta a sacrificar sua vida em nome da Revolução Brasileira, mas sinaliza também algo sobre uma concepção política – distinta dos tradicionais partidos comunistas – ancoradas na noção de ação direta, propaganda através da violência revolucionária e expectativa de que a guerrilha evolua no sentido de um exército revolucionário para a libertação nacional – através da junção com o movimento revolucionário no campo.

O senso comum pode pensar que basta coragem e uma profunda convicção política para aderir a uma causa revolucionária e morrer pela revolução brasileira. O Mini-Manual expressa uma concepção profissional de militantes revolucionários que remete à concepção de Lênin – menos no sentido da construção de uma vanguarda, e mais no sentido de militantes inteiramente dispostos, sem qualquer tipo de vacilação, com caráter profissional de atuação:

“O guerrilheiro urbano somente pode ter uma forte resistência física se treinar sistematicamente. Não pode ser um bom soldado se não estudou a arte de lutar. Por esta razão o guerrilheiro urbano tem que aprender e praticar vários tipos de luta, de ataque e de defesa pessoal.

Outras formas úteis de preparação física são caminhadas, acampar, e treinar sobrevivência na selva, escalar montanhas, remar, nadar, mergulhar, pescar, caçar pássaros, e animais grandes e pequenos.

É muito importante aprender a dirigir, pilotar um avião, manejar um pequeno bote, entender mecânica, rádio, telefone, eletricidade, e ter algum conhecimento das técnicas eletrônicas”.

O Brasil vive neste momento uma conjuntura em que a intervenção dos militares já é uma realidade nos morros e favelas do Rio de Janeiro. Só em 2017, 700 já foram mortos pela polícia no RJ[3]. Diante das bravatas do General Antônio Hamilton Mourão, do Sargento Roseno[4]  e Villa Boas, a possibilidade de um novo regime militar transparece como uma realidade palpável.

Neste contexto, que lições extrair dos movimentos revolucionários que combateram em armas a ditadura de 1964?

Desde já, sinalizamos que os grupos não conseguiram desenvolver uma política que criasse lastro e se massificasse, não colocou em cena a classe trabalhadora, com seu protagonismo e métodos de luta, através das greves e ocupações de fábricas, sendo aqui insubstituível um programa que envolva a construção de uma direção que dispute efetivamente o poder. As Guerrilhas Urbanas se propunham, numa conjuntura bastante difícil, “a exterminação física dos chefes e assistentes das forças armadas e da polícia” e “a expropriação  dos recursos do governo e daqueles que pertencem aos grandes capitalistas”. Não foram tão longe aqui quanto os próprios revolucionários cubanos – em que pese terem promovido uma revolução de “fevereiro” em 1959 com a derrubada de Batista, as próprias contradições da realidade engendraram em alguns anos uma revolução de “outubro”. Havia no Movimento 26 de Julho uma clareza política que ia além de se bater em assaltos e ações diretas com os homens de Batista, mas uma guerrilha com fulcro em derrubar pelas armas Batista, através de um amplo trabalho de propaganda desenvolvido pela Rádio Rebelde desde a Sierra M. Qual seja a disputa pelo poder conjugada com a adesão popular ao movimento revolucionário, que se inicia como guerrilha rural. 

Classe trabalhadora como sujeito histórico e uma força política dirigente vocacionada à disputa ao poder são elementos que precisam se colocados como premissa para uma atualização de um novo projeto de enfrentamento com um regime ditatorial. Quanto às qualidades, habilidades e características essenciais do Guerrilheiro Urbano, Marighella elenca uma que nos parece essencial: ausência de vacilação, posição decisiva, intransigência.






[1] Ver Resenha: “Escritos de Marighella no PCB” – Milton Pinheiro e Muniz Ferreira (ORG) – Coleção Biblioteca Comunista – Fundação Dinarco Reis - http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/10/escritor-de-marighella-no-pcb-milton.html

[2] Em que pese os resultados objetivos da campanha terem sido desvirtuados em favor de torturadores e demais algozes, anistiados até hoje por meio da lei 6683/1979
[4] Autor da declaração: “Muitos Comunistas bandidos estão com  medo porque sabem que a chibata vai comer solta”