sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

“História da Cidade de São Paulo” – Affonso de E. Taunay

“História da Cidade de São Paulo” – Affonso de E. Taunay

"Bandeirantes na Mata" - Henrique Bernadelli - Museu Nacional de Belas Artes

Resenha Livro - “História da Cidade de São Paulo” – Affonso de E. Taunay – Edições do Senado Federal – V. 23 – Brasília – 2004

“Nascidos de uma cruz reforçadora da mentalidade vermelha e da robustez muscular branca, no dizer feliz de Eduardo Prado, tiveram os paulistas, desde os primeiros anos seiscentistas, características bem definidas que lhe valeram, por parte dos portugueses e estrangeiros indiscutível curiosidade de observação, daí decorrendo uma série de testemunhos. Verídicos uns, exagerados, falsos e até grotescamente fantasiosos, outros.
Assim, entre a gente castelhana não havia duas opiniões: eram vassalos meramente nominais dos reis de Portugal, a quem obedeciam quando lhes dava a veneta. E isto mesmo levados com muito tato e complacência”. Affonso de E. Taunay
                
Affonso de E. Taunay foi filho do conhecido Visconde de Taunay, este aristocrata personagem da política brasileira do séc. XIX, que lutou como engenheiro militar na Guerra do Paraguai, governou as Províncias de Santa Catarina  e Paraná e foi autor de “Inocência”, livro que se situa no romantismo literário, mais particularmente em sua primeira fase, com um destaque especial às belezas do sertão, a vida pitoresca camponesa desde Santana do Parnaíba.

O estilo literário romântico também é curiosamente evidenciado no livro da história d’a Cidade de São Paulo de Taunay filho. Em termos teórico metodológicos, estamos diante de uma história de matriz positivista, tributária das tradições de Leopold Von Ranke e Varnhagen. Um positivismo temperado com lances ufanistas, através da exaltação por exemplo da figura dos Bandeirantes, em conflito constante com a Coroa e com a lei na atividade de captura dos índios e especialmente a partir do séc. XVIII agentes da interiorização do povoamento brasileiro, especificamente em busca de novas jazidas de metais. Aqui válido lembrar que algumas jazidas de ouro foram encontradas em pequenas proporções na região do Jaraguá já no séc. XVI; que as minas de ouro desvendadas pelos bandeirantes abriram passagens para a ocupação e desenvolvimento posterior de Minas Gerais, Mato Grosso e Gois; e que a reputação dos paulistas como povo experiente no desbravamento de terras e conflitos com indígenas fez com que o bandeirante paulista Domingo Jorge fosse mobilizado pelas autoridades para aniquilar o Quilombo dos Palmares.

Quando se diz que a orientação teórico metodológica do autor Taunay remete ao positivismo historiográfico não se quer com isso dizer que houve uma adesão consciente do intelectual/professor a dada corrente historiográfica. Poderíamos aqui falar antes de uma história tradicional, baseada nos “grandes eventos” e “grandes homens”, cuja periodização dá-se através de datas de modo cronológica e com forte ênfase nas fontes oficiais – no caso desta “História de São Paulo”, especialmente diante do parco desenvolvimento da vila pelo menos até segunda metade do séc. XIX, escascam fontes que não sejam atas da câmara municipal, inventários e testamentos, estes últimos dos grandes proprietários. Fontes que darão algumas noções das condições materiais, da economia e mesmo da sociedade nos anos em que São Paulo era uma reclusa urbe, fechada e isolada do resto do Brasil pela serra do mar no sentido do litoral. Do ponto de vista historiográfico, uma história baseada nestes critérios encontra-se de certo modo superada – na história do Brasil há de se destacar a geração modernista de 1930 com Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre – cada qual a seu modo estabeleceria uma história mais cindida com as ciências sociais.

Com isso não queremos sugerir que a leitura desta “História da Cidade de São Paulo” seja ociosa ou apenas destinada ao historiador especializado. Estamos diante de um vasto retrato das origens até o advento de uma cidade em vias de franca expansão urbana e industrial já nas primeiras décadas do séc. XX. Tal história é temperada por um estilo literário francamente romântico que se por um lado exalta a dimensão de indivíduos (em geral da elite) na história, governantes/administradores competentes como um Jorge Tibiraçá Piratininga, um Washington Luiz e mesmo uma grande ênfase na figura de D. Pedro I, por outro lado deixa oculto a história do cotidiano, da cultura popular e das instâncias de opressão/dominação do trabalho, seja o servil, seja o desempenhado pelas mulheres.

Há aqui um ufanismo em que o Paulista surge como um elemento rebelde, audaz, corajoso e disposto a desafiar pelas armas ordens/decretos externos.

O grito do Ipiranga, que hoje a historiografia diz ter sido um evento sem grande importância prática na série de acontecimentos que envolvem a independência do Brasil, é assim narrado:

“Chegado na manhã de 7 de Setembro a São Paulo e sabendo que o Príncipe estava em Santos, para lá partiu Bregaro encontrando-o no alto do Ipiranga à tardinha.

Leu D. Pedro os Ofícios e cartas enviadas pela Princesa Real e José Bonifácio. E, ao percorrê-los, depois de um momento de reflexão, bradou: “É tempo! Independência ou Morte! Estamos separados de Portugal!”.

Em ato contínuo, arrancando o laço português que trazia no chapéu, arrojou-o para longe e desembainhando a espada, ele os mais presentes, prestaram o juramento de honra que para sempre os ligava à realização da ideia da liberdade brasileira.

Trinta e oito, além do Príncipe, foram os presentes à memorável cena ocorrida às quatro e meia da tarde de 7 de Setembro de 1822, no campo deserto do Ipiranga”.

Ainda que o autor não se aventure a uma periodização, sendo a sua história em certo sentido sequencial à história política da capital tendo como mote as realizações administrativas de cada chefe de governo, a vastidão de dados e alguns relatos de viajantes dão a esta história um caráter informativo que permite nos propor algumas divisões no tempo.

Os antecedentes remotos de São Paulo remetem ao nome imortal do português João Ramalho que por volta de 1515 atingiu terras brasileiras, não se sabendo ao certo sua origem, sendo provavelmente a da pena de degredo ou naufrágio. João Ramalho foi um dos elementos brancos que se misturaram aos indígenas da costa (tupiniquins), agindo como importante agente da colonização, desde anos morando na região de Piratininga, Serra Acima. João  Ramalho tornou-se amigo do chefe Tupiniquim Tibiraçara, casou-se com uma das filhas do cacique e deu origem a uma geração de mamelucos.

Em 1553, Tomé de Souza concedeu foral de vila a um arraial de João Ramalho, nomeado-o capitão mor e alcaide mor. Um ano depois o Padre Manuel de Paiva celebrou a famosa missa evocadora da conversão do Apóstolo das Gentes, ato inicial do pequeno arraial de São Paulo do Campo de Piratininga.

Um primeiro período remoto da cidade envolve traços de uma urbe isolada, em que convivem nem sempre amistosamente o colono branco e o missionário jesuíta. Há a propósito, em 1570 a  Lei Évora que dá liberdade aos autóctones e é solenemente ignorada pelos paulistas, que chegariam ao ponto de expulsar os jesuítas da vila. Nesse período, com enormes dificuldades de comunicação e transportes, a subsistência da vila vai se dando a partir do cultivo de trigo, algodão, feijão, arroz, cana (em menor escala pelo clima) e carne bovina e suína. As casas são feitas de taipa e iluminação pública e privada só haveria 1872 (iluminação à gás).

A descoberta do ouro nas Minas de Cotaguases implica num importante êxodo da cidade – incluindo a saída em aventuras dos próprios dirigentes políticos da câmara – criando uma situação de estagnação. De modo que as linhas gerais e a forma estática do desenvolvimento da cidade só mudaria com o plantio do café e sua valorização mundial, além da vinda dos imigrantes – italianos, espanhóis, portugueses e austríacos em sua maioria. Aqui é necessário fazer uma ponderação.

Aos comunistas interessa o estudo da história de molde a construir os elementos constitutivos da assim chamada “Questão Nacional” sobre a qual há a intervenção política concreta. Com relação à História de São Paulo, temos notícias de elementos da extrema direita que, por detrás também de um discurso ufanista da terra dos bandeirantes, propugnam ora a autonomia de São Paulo ora a expulsão dos migrantes nordestinos. A direita (e em especial a extrema direita) certamente não pode ser medida pela sua coerência: ela se serve de maneira oportunista de aspectos do senso comum para desvirtuar a história a seu favor. Ora este livro de Taunay dá grande ênfase ao papel dos imigrantes (e também migrantes brasileiros) na conformação e crescimento da cidade, a partir do surto cafeeiro. Não existiria São Paulo tal qual a conhecemos hoje sem a imigração. É num contexto em que há um radical aumento populacional (1872 – 47.697/ 1893 – 130.755) que se observa não só um notável crescimento urbanístico, mas incremento no número de jornais, construção de escolas e liceus, funcionamento de oito bancos (1887), linhas de bonde ligando os bairros da Liberdade, Mooca, Brás, Luz e Santa Cecília, abastecimento de água (1883-1887) e o desenvolvimento já de uma classe do labor composta de sapateiros, alfaiates, carpinteiros, ferreiros, chapeleiros, entre outros. Há uma zona convergente entre a ascensão do café, a vinda de imigrantes (anterior à Abolição em 1888) e um vasto desenvolvimento econômico, financeiro e cultural da cidade de São Paulo.

Em que pese as cores românticas e um certo ufanismo – que negligencia por exemplo a vida social das classes baixas, a questão da escravidão do indígena e do negro, origem direta da opulência dos grandes aristocratas que governariam diretamente o país com o fim do Império – este livro da história de São Paulo é um valioso acervo de informações e imagens que dão um sentido histórico das mudanças e das peculiaridades de São Paulo.   


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