quarta-feira, 23 de junho de 2021

EM DEFESA DE MONTEIRO LOBATO

 

EM DEFESA DE MONTEIRO LOBATO






“O fazendeiro paulista é alguma coisa no mundo. Cada fazenda é uma vitória sobre a fereza retrátil dos elementos brutos, coligados na defesa da virgindade agredida. Seu esforço de gigante paciente nunca foi cantado pelos poetas, mas muita epopeia há por aí que não vale a destes heróis do trabalho silencioso. Tirar uma fazenda do nada é façanha formidável. Alterar a ordem da natureza, vencê-la, impor-lhe uma vontade, canalizar-lhe uma vontade, canalizar-lhe as forças de acordo com um plano preestabelecido, dominar a réplica eterna do mato daninho, disciplinar os homens da lida, quebrar a força das pragas... – batalha sem tréguas, sem fim, sem momento de repouso e, o que é pior, sem certeza plena de vitória. Colhe-a muitas vezes o credor, um onzeneiro que adiantou um capital caríssimo e ficou a salvo na cidade, de cócoras num título de hipoteca, espiando o momento oportuno para cair sobre a presa, como um gavião”. (“O Drama da Geada” – Monteiro Lobato – 1920).

 

José Bento Renato Monteiro Lobato desde criança desenvolveu a atividade literária. Nascido na cidade de Taubaté/SP em 18 de abril de 1882, ainda na escola se dedicava a escrever histórias e criar jornais.

 

É provável que seu trabalho mais conhecido do público tenha sido o da literatura infantil, a criação da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo, da boneca Emília, dos primos Narizinho e Pedrinho, do Visconde de Sabugosa, da Dona Benta e da Tia Nastácia.

 

Além da literatura infantil, Monteiro Lobato produziu artigos, críticas literárias, crônicas e um único romance, denominado o “Presidente Negro”, publicado em 1926. Também teve participação pessoal em movimentos políticos nacionalistas, em especial na defesa na nacionalização do Petróleo.

 

 

 

É certo que a leitura de parte de suas obras pode surpreender um leitor desatento, que não relacione algumas ideias inequivocamente racistas com as teses sociológicas então em voga no país entre os fins do século XIX e o início do século XX.

 

 

 

Mais recentemente, houve mesmo quem propusesse “cancelar” Monteiro Lobato por conta de suas teses raciais.

 

O anacronismo presente neste tipo de análise é inequívoco e dispensa maiores comentários.

 

Deixar de ler Monteiro Lobato significa renunciar ao contato com a história das ideias do Brasil num contexto em que as teses de eugenia, as críticas da miscigenação e as propostas do embranquecimento da população eram parte do vocabulário do pensamento social, de Nina Rodrigues à Sílvio Romero, de Euclides da Cunha à Joaquim Nabuco.

 

Sim, o mesmo líder abolicionista, frequentemente lembrado por suas campanhas em prol da libertação dos escravos, refutava no parlamento a vinda da imigração chinesa (“amarelos”) por considerações puramente raciais. Joaquim Nabuco, amigo íntimo de Machado de Assis, censurou o crítico literário José Veríssimo quando, após a morte do Bruxo do Cosme Velho, em artigo memorial, Veríssimo chamava atenção para o fato de que nosso maior romancista fora da cor preta.  Na opinião de Joaquim Nabuco, a despeito do fenótipo do falecido escritor, a sua alma era branca e o artigo de Veríssimo depunha contra o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas.  

 

 

No começo do século XX as campanhas sanitaristas ajudam as elites intelectuais a abandonarem, de forma palatina, os critérios de análise social baseadas exclusivamente na raça. O atraso do país paulatinamente deixa de ser relacionado ao problema da raça e passa a ser explicado pela (falta de) saúde e salubridade.

 

 

Importante papel foi cumprido por Gilberto Freire no seu “Casa Grande e Senzala” (1933), dizendo que os problemas do brasileiro não diziam respeito à raça ou à miscigenação envolvendo negros, índios e portugueses,  mas à salubridade, à saúde, à alimentação e à higiene.

 

Esta mudança de posicionamento se expressou também no escritor paulista Monteiro Lobato: quando criou o seu personagem Jeca Tatu, atribuía o atraso do caipira à degeneração racial. Já em 1918, Monteiro Lobato em prefácio da obra faz a sua autocrítica, já reconhecendo a predominância das doenças e da insalubridade no temperamento de Jeca Tatu.

 

Quem lê com atenção o “Casa Grande e Senzala” observa que a refutação das teses eugenistas e raciais em Gilberto Freire dizia debates que ainda estavam na ordem do dia. Casa Grande e Senzala e sua proposta de explicação da especificidade da formação nacional Brasileira envolvia novidades no campo metodológico, buscando chaves explicativas na cultura, na sexualidade, na vida íntima e nos hábitos de alimentação e higiene.

 

Ora, lendo os contos de Monteiro Lobato redigidos entre anos 1900-1920 verifica-se que o escritor Paulista foi nada menos do que um pioneiro na superação de teses puramente raciais na explicação da realidade nacional. Sua autocrítica sobre as considerações raciais do Jeca Tatu data de 1916, quase 20 anos antes da publicação do “Casa Grande e Senzala”.

 

No conto “Negrinha”, publicado em 1920, o tema da mentalidade escravocrata, que sobrevive quase intacta após o 1888, é descrito mediante a denúncia da proprietária Dona Inácia, “excelente senhora, gorda, rica, animada dos padres”, que se entretém brutalizando Negrinha, uma órfã de sete anos, que “não era preta, mas fusca”.

 

Nestes contos de Lobato, é muito comum o trágico estar emparelhado com o cômico: Dona Inácia intimamente acredita que sua criação da órfão baseada na mesma linha dos escravocratas do século anterior era um ato de caridade, crença reforçada pelo padre que frequenta a sua casa.

 

A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos – e daqueles ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se fizera ao regime novo – essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! (...) O 13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para o frenesis”.

 

Nestes marcos, percebe-se que, ao contrário do que sugere a propagando de identitários e do liberalismo de esquerda, as ideais de Monteiro Lobato refletiam o ambiente cultural do período e, especialmente a partir dos anos 1920, sinalizavam mesmo ideias progressistas para a época, inclusive quanto ao problema racial.

 

Isto para não se mencionar o engajamento do autor em torno da bandeira do “Petróleo é Nosso” e o seu nacionalismo econômico, que certamente vai em sentido mais progressista que as ideias do liberalismo de esquerda sobre o tema, ainda nos dias de hoje.

 

A bandeira da nacionalização do Petróleo aparece em duas obras do escritor datadas dos anos 1930: “O Ferro” (1931) e “Escândalo do Petróleo” (1936), este último um sucesso de venda em sua época, em que o escritor denunciava Getúlio Vargas por “não perfurar e não permitir que perfurem”.

 

O livro foi recolhido pelas autoridades, não impedindo que o escritor percorresse todo o país em campanha pela nacionalização do petróleo e busca de apoio.  

 

Entre 1932 e 1937, Lobato fundou ou se filiou a três diferentes companhias de prospecção: Cia Petróleos do Brasil, Cia de Petróleo Nacional e Cia Mattogrossense de Petróleo.

 

Também se associou à pesquisa da petrolífera Alliança Mineração e Petroleos LTD, a AMEP, um departamento da Companhia de Petróleo Nacional.

 

Em 1941, durante o Estado Novo, o escritor chegou a ser preso e permanecer detido durante 6 (seis) meses por conta de seu engajamento político em defesa da soberania nacional.

 

O conto “Quero Ajudar O Brasil” (1920) retrata este momento da vida do escritor, quando se engajou na venda de ações destinadas a empresa incorporadora voltada à exploração e descoberta de jazidas de petróleo no Brasil.

 

O conto (ou mais precisamente crônica) relata a história de um homem do povo, negro de cor, que coloca todas suas economias (três contos de réis) para compra de ações da incorporadora. Os demais acionistas alertam o homem dos riscos do empreendimento, tentam convencê-lo a desistir do negócio, ou ao menos comprar menos ações e investir o dinheiro em negócio menos arriscado. Nada demove o homem: seu desejo não é o retorno financeiro, “mas ajudar o Brasil”.

 

Quando verificamos que o pensamento identitário e o liberalismo de esquerda estão intimamente relacionados com o pensamento social norte americano, não surpreende que estas ideias se voltem hoje contra Monteiro Lobato, homem cujo patriotismo e defesa dos interesses nacionais colide com as narrativas impulsionadas pelo imperialismo norte-americano, por meio de seus aparelhos ideológicos de estado.  

 

BIBLIOGRAFIA

 

“Negrinha e Outros Contos” – Monteiro Lobato – Ed. Principis

 

“Cidades Mortas e Outros Contos” - Monteiro Lobato – Ed. Principis

 

“O Presidente Negro” - Monteiro Lobato – Ed. Principis


quarta-feira, 16 de junho de 2021

Os Contos de Aluísio Azevedo

 Os Contos de Aluísio Azevedo




 

“A originalidade do romance de Aluísio está na consciência íntima do explorado e do explorador, tornada logicamente possível pela própria natureza elementar da acumulação num país que economicamente ainda era semicolonial” (Antônio Cândido – “De cortiço a cortiço” – In: O discurso e a cidade. 2004. Pg. 20).

 

Aluísio Azevedo é inequivocamente o maior expoente do naturalismo literário no Brasil.

 

Esta etapa da evolução histórica da literatura acentuou um sentido geral de objetividade que advinha já da 3ª Fase do Romantismo e do Realismo. No caso do naturalismo, a objetividade ganha contornos de cientificidade, havendo mesmo uma proposta de fusão entre a arte e a ciência. Enquanto na escola romântica, a salvação humana está no retorno do homem ao seu estado natural, no Naturalismo, a salvação dá-se em torno da explicação científica mediante a descrição empírica dos fenômenos sociais.

 

Este tipo de arte suscita evidentes fontes históricas para o leitor dos dias de hoje. A descrição do cortiço no mais famoso romance de Aluísio Azevedo possibilita um contato direto com a realidade do subúrbio do Rio de Janeiro do século XIX, descrevendo os tipos populares, como o taverneiro português João Romão, a quintandeira Bertoleza ou a mulata sensual Rita Baiana.

 

É certo, contudo, que este protagonismo dos tipos populares ainda é muito parcial neste romance, publicado em 1890. O grande protagonista d’o Cortiço é o próprio cortiço, que se apresenta ao leitor como um organismo social, com uma vida própria, tendo ironicamente os personagens o caráter mais paisagístico. Além disso os personagens do cortiço são retratados de uma maneira caricatural, havendo um evidente diálogo entre a escrito de Azevedo e o seu trabalho anterior como chargista de jornal. Seria apenas com a literatura pré-moderna de Lima Barreto e definitivamente com a 2ª Geração Modernista (Graciliano Ramos, Rachel de Queiróz, José Lins do Rego) que o povo pobre passa a ser retratado de forma mais humana, suscitando suas contradições mais íntimas, e dando aos tipos populares um verdadeiro protagonismo.

 

Aluísio de Azevedo ficou conhecido por seus romances, mas antes de escritor, foi desenhista, chargista e caricaturista. Dedicou 17 anos de sua vida à literatura, tendo escrito onze romances, uma novela policial, várias peças de teatro, duas antologias de contos e inúmeros artigos em jornais e revista. Obteve o reconhecimento do público ainda em vida e foi um sucesso de vendas.

 

Contudo, em 1895, quando tinha 38 anos de idade, presta concurso público para diplomata e é nomeado Vice Cônsul. Trabalhou em Vico, Yokohama, La Plata, Salto Oriental, Cardiff, Nápoles, Assunção e Buenos Aires, onde faleceu em 21/01/1913.

 

Durante esta última etapa de sua vida abandonou por completo a literatura, com a exceção de uma coletânea de impressões de viagens escrita quando de sua estada em Yokohama. O livro se chama “O Japão” e só seria publicado em 1984. É muito provável que ao sair do Brasil e deixar de ter contato direto com a realidade brasileira, o escritor tenha se tornado improdutivo, nitidamente se considerando o realismo da sua produção literária.

 

O escritor maranhense publicou dois livros de contos, denominados “Demônios” (1893) e “Pegadas” (1898).

 

Dos doze contos publicados na primeira antologia, sete estão também presentes na segunda. Alguns destes contos se diferenciam bastante dos trabalhos mais especificamente naturalistas, baseados na impessoalidade e numa descrição minuciosa e objetiva da realidade.

 

O conto “Demônios” trata de uma situação fantástica, em que um jovem apaixonado se vê imerso numa realidade paralela, transformando-se ele e seu grande amor Laura, sucessivamente em lobo, em árvore, em minério, em éter.

 

O conto “Insepulto” remete ao realismo machadiano, com suas discussões sobre o problema da consciência, da culpa e da vergonha. Diferentemente da arte naturalista que acaba tratando das pessoas e das coisas de uma forma um tanto mecanicista. Este conto trata do envelhecimento, tanto do corpo, quanto da alma, quando o protagonista, 35 anos depois, revê o seu primeiro amor, da infância e adolescência.  

 

Parte destes contos de Aluísio Azevedo foram reunidos por Maria Viana e publicados pela editora DCL, trabalho a que remetemos o leitor desta resenha.


BIBLIOGRAFIA  


“Contos de Aluísio Azevedo” – (org.) Maria Viana – Ilustração Clayton Barros – Coleção O Encanto do Conto – Ed. DCL   

domingo, 13 de junho de 2021

“Cidades Mortas e Outros Contos” – Monteiro Lobato

 “Cidades Mortas e Outros Contos” – Monteiro Lobato 





Resenha Livro - “Cidades Mortas e Outros Contos” – Monteiro Lobato – Ed. Principis – 1ª Edição

 

“Fazer literatura” é a forma natural da calaçaria indígena. Em outros países o desocupado caça, pesca, joga o murro. Aqui belestra. Rima sonetos, escorcha contos ou tece desses artiguetes inda não classificados nos manuais de literatura, onde se adjetiva sonoramente uma aparência de ideia, sempre feminina, sem pés e raramente sem cabeça, que goza a propriedade, aliás preciosa, de deixar o leitor na mesma. A gramática sofre umas tantas marradas, os tipógrafos lá ganham sua vida, as beldades se saboreiam na cândi-adjetivação e o sujeito autor lucra duas coisas: mata o tempo, que entre nós em vez de dinheiro é uma simples maçada, e faz jus a qualquer academia de letras, existente ou por existir, de Sapopemba a Icó”.  (Monteiro Lobato – “O Plágio” – 1905).

 

José Bento Renato Monteiro Lobato desde criança desenvolveu a atividade literária. Nascido na cidade de Taubaté/SP em 18 de abril de 1882, ainda na escola se dedicava a escrever histórias e criar jornais. É provável que seu trabalho mais conhecido do público tenha sido o da literatura infantil, a criação da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo, da boneca Emília, dos primos Narizinho e Pedrinho, do Visconde de Sabugosa, da Dona Benta e da Tia Nastácia.

 

Além da literatura infantil, Monteiro Lobato produziu artigos, críticas literárias, crônicas e um único romance, denominado “Presidente Negro”, publicado em 1926.

 

 

 

Mais recentemente, houve mesmo quem propusesse “cancelar” Monteiro Lobato por conta de algumas teses raciais, suscitadas, por exemplo, n’o “Presidente Negro”. O anacronismo presente neste tipo de análise é inequívoco e dispensa maiores comentários. Deixar de ler Monteiro Lobato significa renunciar ao contato com a história das ideias do Brasil num contexto em que as teses de eugenia, as críticas da miscigenação racial e as propostas do embranquecimento da população eram parte do vocabulário do pensamento social, de Nina Rodrigues à Sílvio Romero, de Euclides da Cunha até o líder abolicionista Joaquim Nabuco, que refutava a vinda da imigração chinesa (“amarelos”) por considerações puramente raciais, comungando com o ideal de branqueamento da população brasileira.

 

 

 

No começo do século XX as campanhas sanitaristas ajudam as elites intelectuais a abandonarem, de forma gradual, os critérios de análise social baseadas exclusivamente na raça. O atraso do país paulatinamente deixa de ser relacionado ao problema da raça e passa a ser explicado pela (falta de) saúde e da salubridade. Esta mudança de posicionamento se expressou também no escritor paulista Monteiro Lobato: quando criou o seu personagem “Jeca Tatu”, atribuía o atraso do caipira à degeneração racial. Já em 1918, Monteiro Lobato em prefácio da obra, faz a sua autocrítica, já reconhecendo a predominância das doenças e da insalubridade no temperamento do protagonista da história.

 

 Feitas estas considerações, a leitura dos contos reunidos sob o nome de “Cidades Mortas” (1919) leva o leitor ao contato com um Brasil muito diferente dos dias atuais, quando o país ainda estava longe de completar sua transição do mundo agrário ao mundo rural.

 

Na roça, os dias se repetem invariavelmente, exceto aos domingos, feriados religiosos e eventos políticos, quando a população se encontra nas calçadas da rua e na praça, a comentar sobre a vida alheia. Os homens matam o tempo pitando cigarros e as mulheres parindo filhos. Um ou outro livro de literatura circula na mão de poucos, considerando o peso do analfabetismo na população. Alguns destes poucos intelectuais (ou mais propriamente “bacharéis”) escrevem seus textos poéticos de qualidade literária duvidosa, cujas palavras difíceis encantam sinhazinhas em busca de casamento.

 

“Cidades Mortas” é a história que abre esta coletânea de contos, publicada pela primeira vez em 1919. Estas cidades se referem às regiões pioneiras da economia do café do Vale do Paraíba que outrora corresponderam à vanguarda da economia nacional e, entre fins do século XIX e início do século XX, vão paulatinamente entrando em decadência por conta da desvalorização mundial dos preços do produto.

 

O abandono das plantações de café do Vale do Paraíba dava-se também pelo próprio esgotamento do solo, com a migração dos proprietários daquela região para o Oeste Paulista:

 

“Léguas a fio sucedem de morraria áspera, onde reinam soberanos a saúva e seus aliados, o sapé e a samambaia. Por ela passou o Café, como um Átila. Toda a seiva foi bebida e, sob forma de grão, ensacada e mandada para fora. Mas do ouro que veio em troca nem uma onça permaneceu ali, empregada em restaurar o torrão. Transfiltrou-se para o Oeste, na avidez de novos assaltos à virgindade da terra nova; ou se transfez nos palacetes em ruína; ou reentrou na circulação europeia por mão de herdeiros dissipados. (...) À mãe fecunda que o produziu nada coube; por isso ressentida, vinga-se agora, enclausurando-se numa esterilidade feroz. E o deserto lentamente retoma as posições perdidas.”.  

 

No seu trabalho sobre a Abolição no Brasil a historiadora paulista Emília Viotti da Costa[1] chama atenção para o fato de a lei Áurea ter sido votada em regime de urgência, com  83 deputados votando a favor e apenas 9 deputados se posicionando contra. Todos estes opositores de última hora da abolição da escravidão eram provenientes das regiões mais atrasadas do Vale do Paraíba e do Rio de Janeiro, chamando atenção para o atrasado político dos proprietários daquelas áreas rurais, inequivocamente as menos preparadas para transição do regime de trabalho em todo o país.

 

O tema da decadência  da economia cafeeira é suscitado em outros contos de Monteiro Lobato, não a explicando apenas por conta da baixa mundial dos preços do produto ou mesmo por conta da abolição da escravidão, mas pela conduta dos próprios fazendeiros e do governo.

 

O conto humorístico “Café! Café!” de 1900 trata da história de um velho Major proprietário de fazenda de café, homem extremamente teimoso, que via os preços do produto reduzirem ano a ano, de 30 mil réis para 10 mil réis e depois para 5 mil réis. Quando descia o preço, o Major sempre dizia que no futuro os preços retomariam os 30 ou 40 mil réis, enquanto a baixa dos preços provocava a desagregação da fazenda, a retirada dos meeiros, a intervenção de credores.

 

Contudo, “tudo nele (no Major) recendia passado e rotina. Na cabeça já branca habitavam ideias de pedra”.

 

Quando amigos do Major insinuavam que ele devesse instituir a policultura ou ao menos plantar mantimentos o teimoso ameaçava expulsar o amigo de casa por não admitir “ideias revolucionárias” na sua fazenda.

 

A crítica ao governo pode ser vista na satírica história “O Luzeiro Agrícola” de 1910 em que o poeta Sizenando Capistrano, homem absolutamente improdutivo e inapto para as coisas práticas, acaba arranjando um emprego como inspetor agrícola, incumbindo-lhe, ao menos formalmente, fomentar pecuária, elaborar relatórios, ensinar o uso de máquinas agrícolas, preconizar a policultura e combater a rotina. O ministro solicita a Capistrano escrever um relatório “sobre qualquer coisa. Relate, vá relatando. A função capital do nosso ministério é produzir relatórios de arromba sobre o que há e o que não há. Relate”.

 

Capistrano gastou um ano redigindo um estudo botânico-industrial da “beldroega”. Enviado o trabalho ao ministro, foi-lhe informado que o estudo iria ser incinerado. Ninguém leria o trabalho e o relatório apenas ocuparia volume nos arquivos do ministério. Ademais, ao redigir o relatório, Capistrano dava trabalho para a tipografia que o imprimia e para o forno de incineração da Casa da Moeda. Finalmente, o ministro convidou Capistrano a redigir um novo relatório, que teria o exato fim do primeiro.



[1] COSTA, Emília Viotti. “A Abolição”. Ed. Unesp.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

“O Presidente Negro” – Monteiro Lobato

 “O Presidente Negro” – Monteiro Lobato




 

Resenha Livro - “O Presidente Negro” – Monteiro Lobato – Ed. Principis – 1ª Edição

 

“Quem olhasse de um ponto elevado o panorama histórico dos povos veria, na França, uma flâmula com três palavras; na Inglaterra, um princípio diretor, Tradição; na Alemanha, uma fórmula, Organização; na Ásia, um sentimento, Fatalismo. Mas ao voltar os olhos para a América perceberia fluidificado no ambiente um princípio novo – Eficiência”. ( “O Presidente Negro” – Capítulo XIV – “Eficiência e Eugenia”).

 

José Bento Renato Monteiro Lobato desde criança desenvolveu a atividade literária. Nascido na cidade de Taubaté/SP em 18 de abril de 1882, ainda na escola se dedicava a escrever histórias e criar jornais. É provável que seu trabalho mais conhecido do público tenha sido o da literatura infantil, a criação da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo, da boneca Emília, dos primos Narizinho e Pedrinho, do Visconde de Sabugosa, da Dona Benta e da Tia Nastácia. Além da literatura infantil, Monteiro Lobato produziu artigos, críticas literárias, crônicas e um único romance, justamente este “Presidente Negro”, publicado em 1926.

 

É certo que a leitura de parte de suas obras pode surpreender um leitor desatento, que não relacione algumas ideias inequivocamente racistas com as teses sociológicas então em voga no país entre os fins do século XIX e o início do século XX.

 

Mais recentemente, houve mesmo quem propusesse “cancelar” Monteiro Lobato por conta de suas teses raciais. O anacronismo presente neste tipo de análise é inequívoco e dispensa maiores comentários. Deixar de ler Monteiro Lobato significa renunciar ao contato com a história das ideias do Brasil num contexto em que as teses de eugenia, as críticas da miscigenação e as propostas do embranquecimento da população eram parte do vocabulário do pensamento social, de Nina Rodrigues à Sílvio Romero, de Euclides da Cunha à Joaquim Nabuco. Sim, o mesmo líder abolicionista que refutava a vinda da imigração chinesa (“amarelos”) por considerações puramente raciais.

 

No começo do século XX as campanhas sanitaristas ajudam as elites intelectuais a abandonarem, de forma palatina, os critérios de análise social baseadas exclusivamente na raça. O atraso do país paulatinamente deixa de ser relacionado ao problema da raça e passa a ser explicado pela (falta de) saúde e da salubridade. Importante papel foi cumprido por Gilberto Freire no seu Casa Grande e Senzala (1933), dizendo que os problemas do brasileiro não diziam respeito à raça mas à salubridade, à saúde e à higiene. Esta mudança de posicionamento se expressou também no escritor paulista Monteiro Lobato: quando criou o seu personagem Jeca Tatu, atribuía o atraso do caipira à degeneração racial. Já em 1918, Monteiro Lobato em prefácio da obra faz a sua autocrítica, já reconhecendo a predominância das doenças e da insalubridade no temperamento de Jeca Tatu.

 

Feitas estas considerações, a leitura do “Presidente Negro” revela a percepção que o escritor e as pessoas da sua geração tinham do futuro racial da humanidade.

 

A história é narrada por Ayrton Lobo e se passa no ano de 1924. O narrador é um humilde empregado de rua de uma casa comercial e alcança, com muita economia, o  sonho de possuir um veículo próprio Ford. Ayrton sofre um acidente com o veículo e é salvo pelo professor Benson que o acolhe em seu castelo e faz do hóspede seu confidente particular. O professor fez uma descoberta até então desconhecida por todo o mundo: o “porviroscópio” uma máquina que possibilita visualizar o futuro. Por esta máquina fantástica, o narrador é levado a conhecer a “guerra de raças” ocorrida nos EUA dos anos de 2228, quando as eleições presidenciais pela primeira vez na história dão à vitória a um candidato negro, o presidente Jim Roy.

 

As projeções sobre o futuro revelam ao leitor de hoje as perspectivas que se colocavam ao pensamento social dos primeiros anos do século XX e da chamada Belle Epoque. É por exemplo mencionado que no futuro se resolverá por completo o problema dos transportes. Todo o tempo gasto com deslocamentos de pessoas e mercadorias seria substituído pelo radiotransporte. Tudo seria feito à distância, de certa forma antecipando Monteiro Lobato a realidade digital e a internet que temos hoje.

 

Era parte das cogitações daquele período o problema do eugenismo e uma análise do problema racial ainda dentro das premissas do determinismo e do darwinismo social. No futuro projetado, pela eugenia, os degenerados e os tarados não teriam a permissão de reproduzir-se, implicando numa evolução da sociedade: diríamos hoje uma evolução genética. Aqui mais uma vez vale a consideração feita na introdução desta resenha: Lobato apenas reproduzia as ideias da sua época, não tendo ainda conhecido a experiência do nazismo alemão para daí extrair as suas conclusões.

 

Sabemos que o pensamento social identitário, importado das ciências sociais norte americanas, ainda encontra grande apelo dentro do público brasileiro. Existem por outro lado movimentos negros que não se limitam a reduzir a complexidade da questão racial a alguns enunciados de tipo moral, suscitando proibições de palavras ou de autores. Daí a importância de se reivindicar a leitura e o estudo das obras de Monteiro Lobato que, com as suas contradições, ainda são parte indissociável da cultura do povo brasileiro, além, é claro, de colaborar o estudo para explicar a questão racial no país.