sábado, 18 de setembro de 2021

“Auto da Compadecida” – Ariano Suassuna

 “Auto da Compadecida” – Ariano Suassuna

 




Resenha Livro - “Auto da Compadecida” – Ariano Suassuna – 34ª Ed. Nova Fronteira

 

“João Grilo – Jesus?

Manuel – Sim.

João Grilo – Mas espere, o senhor que é Jesus?

Manuel – Sou.

João Grilo – Aquele Jesus a quem chamavam de Cristo?

Jesus – A quem chamavam, não, que era Cristo. Sou, por que?

João Grilo – Porque...não é lhe faltando com o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos queimado.

Bispo – Cala-te, atrevido.

Manuel – Cale-se você. Com que autoridade está repreendendo os outros? Você foi um bispo indigno de minha igreja, mundano, autoritário, soberbo. Seu tempo já passou. Muita oportunidade teve de exercer sua autoridade, santificando-se através dela. Sua obrigação era ser humilde, porque quanto mais alta é a função, mais generosidade e virtude requer. Que direito tem você de repreender João porque falou comigo com certa intimidade? João foi um pobre em vida e provou sua sinceridade exibindo o seu pensamento. Você estava mais espantado do que ele e escondeu essa admiração por prudência mundana. O tempo da mentira já passou.

João Grilo – Muito bem. Falou pouco mas falou bonito. A cor não pode ser das melhores, mas o senhor fala bem que dá gosto”

 

O Auto da Compadecida é peça teatral escrita pelo paraibano Ariano Suassuna no ano de 1955. Seria a primeira de uma série de comédias que seriam escritas posteriormente: “O Casamento Suspeitoso” (1957), “O Santo e a Porca” (1957), “A Pena e a Lei” (1959) e “Farsa da Boa Preguiça” (1960).

 

Nas notas do autor que acompanham as falas dos personagens, indicando propostas de encenação, fica patente a intenção de Suassuna na  representação do enredo na forma de circo.

 

É um palhaço que abre o espetáculo e anuncia cada um dos atos, inclusive engajando os atores na arrumação das cenas. O cenário proposto pelo escritor não poderia ser feito de forma mais simples.

 

Logo na introdução, propõe Suassuna:  

 

“O Auto da Compadecida foi escrito com base em romances e histórias populares do Nordeste. Sua encenação deve, portanto, seguia a maior linha de simplicidade, dentro do espírito em que foi concebido e realizado. O cenário (usado na encenação como um picadeiro de circo, numa ideia excelente de Clênio Wanderley, que a peça sugeria) pode apresentar uma entrada de igreja à direita, com uma pequena baulastrada ao fundo, uma vez que o centro do palco representa um desses pátios comuns nas igrejas do interior.”.

 

O paralelo com o circo também pode se referir aos dois personagens principais, João Grilo e Chicó. De certa forma, ele representam aquele modelo circense dos dois palhaços. João Grilo sendo o mais espertalhão, que se mete em situações arriscadas. E Chicó o palhaço mais abobado, que se acovarda e, não raro, atrapalha os planos do seu parceiros.

 

A história suscita uma tradição popular de literatura de cordel. As passagens cômicas do gato que “descome” moedas, a falsa ressurreição de mortos pelo toque de uma gaita e o enterro de um cachorro cantado em latim são todas oriundas da cultura popular nordestina.

 

Neste caso se trata de uma cultura oral: os cordéis, diferentemente dos livros, não foram feitos para serem lidos, mas para serem declamados ao público na praça. A proposta do Teatro de Suassuna é a mesma. Ao término do espetáculo, o palhaço diz que quem não pode pagar pelo show, como recompensa, que pague com aplausos.

 

Mais do que uma fonte história da cultura popular nordestina, a peça é um retrato nítido daquilo que Sérgio Buarque de Holanda denominava a cordialidade do povo Brasileiro:

 

“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial” . A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “ boas maneiras” , civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro” HOLANDA. S. B. Pg 146-7

 

Este sentimento emotivo aparece quando a Compadecida, ao exercer a sua infinita misericórdia, não permite que os personagens, a despeitos dos seus erros, terminem no inferno.

 

Na cena da aparição de um Jesus Cristo de cor negra, João Grilo manifesta o seu preconceito racial. Contudo, Jesus condena em primeiro lugar não Grilo, mas o Bispo, por sua hipocrisia. O mitra ficou igualmente estupefato, mas achou pertinente censurar Grilo por pura prudência mundana, covardia ante Jesus. Que fique de lição ao identitários do nosso atual movimento negro que querem importar ideias políticas do EUA para o Brasil, desconsiderando que o nosso país se baseou não na colônia de povoamento, mas de exploração, que a população negra aqui não é minoria, mas maioria, tendo sido a miscigenação racial, desde o momento que os portugueses chegaram aqui, não a exceção, mas a regra.

 

Que fique também a lição de que o povo brasileiro, a despeito dos seus problemas, tem a virtude de detestar a hipocrisia. 

sábado, 11 de setembro de 2021

BREVES NOTAS SOBRE JOSÉ DE ALENCAR

 BREVES NOTAS SOBRE JOSÉ DE ALENCAR




 

“Quando um homem chora, minha prima, a dor adquire um quer que seja de suave, uma voluptuosidade inexprimível; sofre-se, mas sente-se quase uma consolação em sofrer.

Vós, mulheres, que chorais a todo o momento, e cujas lagrimas são apenas um sinal de vossa fraqueza, não conheceis esse sublime requinte da alma que sente um alívio em deixar-se vencer pela dor; não compreendeis como é triste uma lágrima nos olhos de um homem”. (“A Viuvinha” – José de Alencar).

 

Quando José Martiniano de Alencar nasceu, em 1 de maio de 1829, havia apenas oito anos desde a independência do Brasil. O autor passou pelo  período tumultuado das Regências e participou, já adulto, ativamente dos debates políticos e literários do II Império.

 

A questão nacional no escritor cearense é inequívoca.

 

Seu projeto literário correspondeu à aclimatação do romance no território brasileiro. Muitos o consideram o nosso maior romancista do século XIX.  

 

Segundo Valéria de Marco:

 

“É empobrecedor considerar o romance de Alencar sem levar em conta que intervém em um amplo debate e que convive, lado a lado, na escrivaninha do escritor com panfletos políticos e polêmicas literárias. Seu romance não é pausa na vida agitada. É também proposta de reflexão sobre o país e veículo de discussão política”.

 

Ficaram conhecidos do público as obras indianistas deste nosso escritor: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Na sua crítica à Gonçalves Magalhães, o escritor dizia que a forma literária dos épicos era meio inadequado de retratar a nacionalidade: havia muito pouco tempo desde o fim da colônia e início da constituição da nação para se cogitar uma mitologia brasileira.

 

Também não se filiava Alencar à perspectiva dos cronistas que intentaram retratar de forma documental os índios brasileiros. Para o escritor, os índios deveriam ser retratados através do romance.

 

A idealização do bom selvagem, decorrência do pensamento romântico e com referência clara a Jean-Jacques Rousseau, geraria críticas já no tempo de Alencar. Manifestou-se o entendimento de que o autor era um artista de gabinete, que buscava retratar realidades regionais sem nunca tê-las conhecido de perto.

 

Sobre a Vida do Escritor

 

José Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, que na época era um povoado nas cercanias de Fortaleza. Seu pai fora padre, mas largou a batina para dedicar-se à vida política. José de Alencar estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em São Paulo, onde foi colega de Álvares de Azevedo (1831-1852) e Bernardo Guimarães (1825-1884).

 

Exerceu o jornalismo, a crítica literária e a política. Foi deputado pelo partido conservador e ocupou o cargo de ministro da justiça no gabinete Itaboraí. Defendeu a escravidão. Para os heróis do identitarismo que defendem a censura de Monteiro Lobato e o fogo nas estátuas, é possível que est fato os autorize a deixar de conhecer nosso escritor, sem grandes remorsos.

 

O seu primeiro romance, publicado na forma de folhetim, foi “Cinco Minutos” (1856). A história é contada na forma de uma carta redigida pelo protagonista do enredo à sua prima. Conta uma história de amor decorrente de um atraso de cinco minutos: o acaso da falta da pontualidade do narrador faria com que no bonde, o protagonista conhecesse Carlota, por quem se apaixona, mesmo sem a conhecer ou mesmo a ver o seu rosto. A mulher tinha todo o seu corpo coberto por chapéu e panos, nascendo o sentimento amoroso espiritual antes mesmo de se saber se Carlota era ou não bela.

 

Nestas tramas, o enredo leva o leitor a um contato direto com o ambiente urbano do Rio de Janeiro de meados do século XIX. No seu segundo romance, “A Viuvinha” (1857), a trama torna-se mais sofisticada e interessante, podendo o leitor de hoje ter uma fonte histórica valiosa da cidade, e mesmo nos recantos populares.

 

Vejamos a descrição de uma tasca, espécie de taberna onde os pobres faziam suas refeições:

 

“O interior do edifício correspondia dignamente à sua aparência.

A sala, se assim se pode chamar um espaço fechado entre quatro paredes negras, estava ocupada por algumas velhas mesas de pinho.

Cerca de oito ou dez pessoas enchiam o pequeno aposento: eram pela maior parte marujos, soldados ou corroceiros que jantavam.

Alguns tomavam a sua refeição agrupados aos dois e três sobre as mesas; outros comiam mesmo de pé, ou fumavam e conversavam em um tom que faria corar o próprio Santo Agostinho, antes da confissão.

Uma atmosfera espessa, impregnada de vapores acóolicos e fumo de cigarro pesava sobre essas cabeças, e dava àqueles rostos um aspecto sinistro.

No fundo, pela fresta de uma posta mal cerrada, aparecia de vez em quando a cabeça de uma mulher de 50 anos, que interrogava com os olhos os fregueses, e ouvia o que eles pediam”.

 

Na “A Viuvinha”, a forma literária é a mesma do livro anterior. Escrito em forma de carta, conta-se a história de Jorge, um jovem advindo de família rica que gasta toda a herança do pai numa vida desregrada e boemia. Em certo momento, apaixona-se por Carolina e pelo amor, abandona a vida dedicada ao ócio. Contudo, poucos instantes antes do casamento, descobre que tudo já era tarde demais. Seu padrinho, que cuidava das suas finanças por conta do falecimento do pai, informa que a empresa da família estava à bancarrota.

 

Como seria possível, na véspera do casamento, romper o enlace pela falta absoluta de recursos e, com isto, desgraçar para sempre a mulher que amava? O que fazer?

 

Sempre dentro do estilo romântico, após as mais duras provações, todas as dificuldades serão superadas e o casal tem um final feliz. A lição subjacente da história é a de que o homem, quando enfrenta as mais duras dificuldades da vida, tem a alma provada pelo desejo de evolução, redime-se ao final das culpas, e triunfa.

 

Há uma beleza nestas histórias românticas decorrente de um mundo que parece hoje perdido. Buscar a virtude e a pureza do corpo, hoje, parece ser mais um defeito do que um mérito. A meta do homem dos dias de hoje parece antes ser a de granjear o máximo de prazeres, pelo mínimo de esforço. E, como se sabe, o prazer costuma ser uma experiência puramente individual.

 

Talvez por isto, e muito para o nosso pesar, livros de José de Alencar não despertam o interesse, senão do publico especializado. Mas não desanimemos: as modas filosóficas são passageiras, mas as grandes obras de arte brasileiras permanecerão.  

domingo, 5 de setembro de 2021

O Amor de Soldado: A vida de Castro Alves por Jorge Amado

 O Amor de Soldado: A vida de Castro Alves por Jorge Amado

 






“Necessitamos da vossa ajuda. Não é fácil prender nos limites de um palco a vida de Castro Alves que se processou sempre na praça pública, à frente da multidão. Ele não agiu como a maioria dos poetas que se tranca nos gabinetes de trabalho à espera de inspiração. Não foi apenas um poeta da Liberdade, foi também um militante da Liberdade. Seu lugar era à frente do povo. Sua arte, ele a colocou a serviço da Pátria e da humanidade”. (Jorge Amado – “Amor de Soldado”).

 

Quando Castro Alves faleceu de tuberculose, em 6 de junho de 1871, o poeta baiano tinha apenas 24 anos de idade.

 

Foi mais um dos grandes escritores do nosso romantismo literário que viria a falecer ainda muito jovem. Contudo, no curto tempo de vida, teve uma ampla atuação política e artística: junto com Rui Barbosa, foi criador da primeira sociedade abolicionista de Recife, foi poeta, orador e militante das causas do abolicionismo, da república e da liberdade.

 

Adveio de uma família rica e tradicional do interior da Bahia. Estudou  Direito na Faculdade de Direito de Recife, onde travou relações com Tobias Barreto, e viria a concluir os estudos na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em São Paulo.

 

Foi no Recife que conheceria o grande amor da sua vida, a atriz portuguesa Eugênia Infante de Câmara, dez anos mais velha do que o nosso escritor. Contudo, como bem retratado nesta peça de teatro escrita por Jorge Amado em homenagem ao poeta condoreiro, a grande musa dos seus versos e a grande inspiração da vida do artista era a liberdade:

 

“EUGÊNIA –Sim, nenhuma mulher é digna da tua vida. Nasceste para um destino maior e qualquer mulher que tentasse dominar o seu coração te mataria. Um dia mo disseram e minha desgraça foi não ter acreditado naquelas palavras tão verdadeiras...As mulheres para ti só podiam valer como alegria ocasional, só podiam estar perto de ti como escravas da tua vida, jamais como senhoras do teu coração... Teu coração sempre pertenceu a outra, Castro...(pausa) Teu coração sempre foi da liberdade”.

 

A peça “O Amor de Soldado” foi escrita em 1944, instantes antes da vitória definitiva da democracia sobre o fascismo na guerra. Os impactos da vitória dos aliados na II Guerra Mundial fariam com que o PCB, já sob o governo Dutra, elegessem uma bancada comunista na assembleia constituinte da qual fazia parte além de Jorge Amado, Carlos Marighella, Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra, João Amazonas, entre outros.

 

Tempos em que a esquerda brasileira era nacionalista, lutava efetivamente pela soberania nacional, pela defesa dos recursos naturais do país e não se deixava convencer por ideologias derivadas do imperialismo, como os comunistas identitários da esquerda brasileira, com poucas exceções.

 

Os paralelos entre a luta pela abolição e pela república em Castro Alves e a luta pela democracia pelos comunistas de 1945 se encontram no denominador comum: a luta pela liberdade.  

 

A peça teatral começa justamente com esta afirmativa: “um sopro de liberdade atravessa o mundo”. O Brasil das jornadas abolicionistas e o mundo após a II Mundial.

 

A solução de continuidade entre as lutas dos abolicionistas e dos republicanos do XIX e dos comunistas e nacionalistas do século XX fica bem evidente em toda a trama.

 

Instantes antes de retornar à Bahia, onde viria a morrer, Castro Alves assim se despediria de Eugênia:

 

”CASTRO ALVES: Não, não verei nada disso. Mas adivinho tudo isso...E quero ajudar até o meu último instante a que esses sonhos se transformem em realidade. Eu vejo, Eugênia, em minhas noites solitárias, o mundo que os homens construirão. Custará sangue e vidas, a minha e a de muitos outros. Talvez de milhares e milhões. Mas será o mundo livre e então a vida será perene alegria e perene beleza. Não mais escravos de nenhuma espécie. Não mais humilhados, não mais miseráveis. A terra será de todos e os frutos das árvores a todos pertencerão. As máquinas trabalharão para todos os homens, os livros estarão em todas as mãos, a liberdade será bem de toda a gente, o trabalho uma alegria cotidiana. O mundo será uma festa e então o amor poderá crescer em todos os corações”.

 

 

 

Resenha Livro – “O Amor de Soldado” – Jorge Amado – Ed. Record.