domingo, 26 de junho de 2022

"O Missionário" – Inglez de Souza

 "O Missionário" – Inglez de Souza







Resenha Livro – O Missionário – Inglez de Souza – Valer Editora – 2010

 

“O movimento da fauna amazonense arrancara Padre Antônio à meditação a que se queria entregar, sujeitando-o todo à encantadora contemplação das maravilhas da natureza selvagem, naquela esplêndida manhã de agosto, em meio do largo rio que se desdobrava, a perder de vista, numa luzente toalha em que se refletia, como em puríssimo cristal, o azul dum céu sem nuvens, sombreado pelas ramagens de árvores seculares, e riscado em diagonal pela linha de voo de pássaros desconhecidos. As recordações da meninice assaltaram-no de novo, eram a mais grata memória do seu cérebro, evocadas sempre pelo espetáculo da natureza virgem. E vira-se a percorrer os campos incultos da fazenda, a aventurar-se numa pequena canoa pelo Amazonas fora, quando gostava de supor-se perdido na vastidão do rio, e a imaginação sonhava uma vida acidentada de combates com feras e de luta com os elementos na solidão das águas e das matas. Agora, via quase realizado o seu sonho de menino, em pleno deserto, indo talvez perder-se em paragens desconhecidas, dormir ao relento, matar a fome nos maracujás silvestres e nas castanhas oleosas, talvez morrer às mãos dos índios do sertão, que não teriam pena da sua mocidade e gentileza. Mas em todo o caso, ia saciar a alma de solidão e de liberdade, gozar talvez a inefável delícia de sentir-se só num grande país, de poder entregar-se desassombradamente ao enlevo dos seus queridos pensamentos íntimos, sem receio de olhares indiscretos nem de interrupções importunas.”.  

 

Herculano Marcos Inglez de Sousa nasceu na cidade de Órbidos, no Pará no ano de 1853. Fez seus estudos secundários no Maranhão e iniciou o curso de Direito na Faculdade de Recife.

 

Por conta da mudança de sua família para cidade de Santos em São Paulo, Inglez de Souza terminou a graduação na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no ano de 1876.

 

Positivista e republicano, fez política durante o II Império, alcançando a presidência dos estados de Sergipe e do Espírito Santo, além de ministrar curso de Direito Comercial na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro.

 

Comumente, diz-se que Aluísio de Azevedo, por meio dos romances “O Mulato” (1881), “Casa de Pensão” (1884) e “O Cortiço” (1890), teria sido o precursor do movimento literário naturalista no Brasil.

 

Contudo, é certo que ainda no ano de 1877, Inglez de Souza lançaria o romance regionalista “O Coronel Sagrado”, que pode ser situado como o marco inicial daquele movimento literário no Brasil, junto com os seus outros dois trabalhos mais conhecidos do público: “O Missionário” de 1888 e “Contos Amazônicos” de 1893.

 

De fato, as datas de publicação dos primeiros romances do escritor paraense fazem-no contemporâneo de outros escritores regionalistas, mas ainda presos ao romantismo literário, como Visconde de Taunay. Ainda que as descrições da floresta, da fauna, dos rios e dos bichos ainda tenha traços românticos, ocupando boa parte da exposição, em Inglez de Souza já se prenuncia a ideia de o meio social e as condições naturais serem os fatores condicionantes da atuação das personagens.

 

Em outras palavras, em Inglez de Souza é possível se verificar o determinismo geográfico e biológico estabelecendo as relações de causalidade nas escolhas e ações humanas, sempre como fator preponderante em relação ao livre arbítrio.

 

Este determinismo é ressaltados n’o Missonário no protagonista do romance, Padre Antônio de Moraes.

 

Nascido numa cidade longínqua do amazonas, filho de um matuto que oprime a mulher, bate nos filhos e se relaciona sexualmente com as escravas da fazenda, criado de forma livre em meio a uma natureza exuberante, Antônio manteria em sua vida adulta os traços de personalidade que entrariam posteriormente em confronto com as rígidas regras morais de um clérigo.

 

As heranças hereditárias, o meio social e até mesmo as condições ambientais criariam as condições para que o Padre se lançasse na aventura de catequizar índios selvagens mundurucus, menos por convicção religiosa e mais por uma busca de retomar a liberdade perdida da infância por meio de uma aventura na selva, pela vaidade de quem busca firmar seu nome na sociedade amazonense e pela rebeldia diante do monotonia de sua rotina como sacerdote de um minúsculo vilarejo no interior do Pará, denominado Silves.

 

E estes predicados igualmente fariam com que o padre se desviasse da sua missão original para ceder ao ímpeto sexual e desvirginar Clarinha, uma cabocla de 15 anos, por sinal, neta de índia que igualmente mantivera relação clandestina com outro padre evangelizador.   

 

“Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda rapariga que lhe ocupa o coração. A sua natureza ardente e apaixonada, extremamente sensual, mal contida até então pela disciplina do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a crença na sua predestinação, quisera saciar-se do gozo por muito tempo desejado, e sempre impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim, se o seu cérebro não fosse dominado por instintos egoísticos, que a privação de prazeres açulava e que uma educação superficial não soubera subjulgar.”.

 

O viés cientificistas nítido dos trabalhos naturalistas, decorrentes da influencia do darwinismo social, do determinismo social e geográfico e do positivismo com o seu enquadramento racional e esquemático da sociedade, torna incompatível uma comparação de “O Missionário” com outro romance c que igualmente trata da devassidão de clérigos, no caso “O Crime do Padre Amaro” (1875) do escritor Eça de Queiroz.

 

No caso do romance português, estamos diante de uma crítica social e radical da Igreja Católica de Portugal, dentro dos quadrantes do emergente movimento realista, em oposição e em combate à tradição romântica. Os pecados de Padre Amaro decorrem do livre arbítrio e da falência moral das instituições.  

 

No caso do romance do escritor paraense, a mesma devassidão é antes de tudo uma fatalidade, condicionada pelo atraso social da região amazônica, por uma educação religiosa inconsistente e por condições climáticas e hereditárias que facilitam a concupiscência e o individualismo.  Uma fatalidade tal qual os ciclos da natureza, repetindo-se com o Padre Antônio o que ocorrera com os outros sacerdotes que o antecederam na missão de evangelizar no amazonas: o relacionamento pecaminoso com as mulheres do sertão e a constituição clandestina de famílias.


BIBLIOGRAFIA

 

BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cutrix. 2021.


#1

terça-feira, 7 de junho de 2022

“Pais e Filhos” – Ivan Turguêniev

 “Pais e Filhos” – Ivan Turguêniev

 




Resenha Livro - “Pais e Filhos” – Ivan Turguêniev – Ed. Companhia das Letras – Tradução Rubens Figueiredo

 

“Por mais exaltado, pecador e rebelde o coração oculto no túmulo, as flores que crescem sobre ele olham para nós serenas, com seus olhos inocentes: não nos falam apenas de uma paz eterna, da grande paz da natureza “indiferente”; falam também da reconciliação eterna e da vida infinita...”. (Ivan Turgueniêv – “Pais e Filhos”).

 

Ivan Serguêievitch Turguêniev (1818-1883) nasceu na província de Oriol, na vasta propriedade rural de sua mãe, uma mulher autoritária e brutal, que exercia poder tirânico sobre os seus servos e filhos.

 

O primeiro livro do escritor, denominado “Memórias de um caçador” (1852) reúne contos de denúncia do regime de servidão, já consagrando de imediato o artista perante o público russo.

Neste mesmo ano de 1852, após a divulgação de um panfleto com críticas sociais, por ocasião do enterro do escritor Nikolai Gógol, Turgueniêv foi preso e depois confinado em sua propriedade rural por mais de um ano.

 

Não seria, contudo, correto, caracterizar a literatura do nosso escritor como um mero instrumento de crítica política. O que caracteriza sua literatura é um realismo decorrente de estudo cuidadoso da vida comum e popular da Rússia, relacionados com elementos líricos e poéticos. Seus livros envolvem a combinação justa entre a beleza e a realidade na medida em que no escritor existe uma fusão entre um bom poeta e um bom observador.

 

De acordo com o escritor Harry James, que conheceu pessoalmente Turguêniev, o eixo fundamento das suas histórias era não tanto os enredos, mas a mais profunda representação das personagens.  

 

“A primeira forma em que um relato surgia para ele era na figura de um indivíduo, ou numa combinação de indivíduos, que ele desejava ver em ação, convicto de que tais pessoas deveriam fazer algo muito especial e interessante. Elas se erguiam à sua frente bem definidas, nítidas, e ele queria conhecer, e mostrar, o mais possível de sua natureza.”.

 

Nosso escritor escreveu “Pais e Filhos” entre o fim de 1860 e o início de 1862, quando completou 42 anos de idade.

 

As datas são importantes, pois estão situadas entre o mais importante fato político da história da Rússia do séc. XIX: a abolição da servidão em 1861, regime social em que os camponeses eram propriedade dos senhores de terra.

 

Naquele contexto, ganhava força no cenário intelectual russo novas tendências críticas à autocracia, que engendrariam, entre outros, a criação do movimento político “Terra e Liberdade”, que propugnava o terrorismo e efetivamente viabilizaria o assassinato do Czar Alexandre II em 13 de Março de 1881.

 

O romance tem como fio condutor o choque de duas gerações, representadas de um lado: (i) pelos personagens Nikolai Petróvich e Pável  Petróvich que representam o pensamento tradicional, dos “pais”, identificados com o aristocratismo e o romantismo; e (ii) pelos personagens Bazárov e Arkádi, este último filho de Nikolai e sobrinho de Pável, que representam as tendências modernas, os “filhos”, a crítica ao pensamento convencional, o racionalismo radical e o cientificismo desprovido de princípios, que se poderia classificar como niilismo:

 

“- Ele é um niilista – repetiu Arkádi.

- Niilista – disse Nikolai Petróvich – vem do latim nihil, nada, até onde posso julgar; portanto essa palavra designa uma pessoa que....que não admite nada?

- Digamos: que não respeita nada – emendou Pável Petróvich e novamente esse pôs a passar manteiga no pão.

- Aquele que considera tudo de um ponto de vista crítico – observou Arkádi.

- E não é a mesma coisa? – indagou Pável Petróvich.

- Não, não é a mesma coisa. O niilista é uma pessoa que não se curva diante de nenhuma autoridade, que não admite nenhum princípio aceito sem provas, com base na fé, por mais que esse princípio esteja cercado de respeito.”.

 

Considerando o eixo fundamental do escritor de buscar retratar com a maior perfeição as complexidades de cada personagem, não seria de se espantar que não existem, ao final, vencedores e perdedores no embate entre pais e filhos, ou entre os niilistas e os aristocratas.

 

Ambos, com as suas contradições, acabam demonstrando parcial razão.  

 

O racionalista Bazárov apaixona-se por Anna Serguêievna, fazendo cair por terra todas as suas premissas acerca da inutilidade e futilidade do amor.

 

Já o fidalgo Pável Petróvich relativiza suas rígidas normas morais ao aceitar e mesmo incentivar que o seu irmão formalize um segundo casamento, após o falecimento da segunda esposa, tudo isso diante da conclusão, ainda que tardia, da futilidade das convenções, bem apontadas pelos jovens.

 

E para além dos problemas específicos daquele momento histórico russo, é certo que os dissensos entre os pais e filhos, os choques de geração, tem algo de universal, fazendo com que o romance nos comova ainda nos dias de hoje.