quinta-feira, 28 de novembro de 2013

“Formação Histórica do Brasil” – Nelson Werneck Sodré

Resenha Livro #88 “Formação Histórica do Brasil” – Nelson Werneck Sodré – Editora Brasiliense



Sobre o autor

Nelson Werneck Sodré nasceu no Rio de Janeiro em 1911. Estudo no Colégio Militar em 1924 e no Colégio Militar em 1930, ambos no então distrito federal brasileiro. Serviu o exército de 1931 a 1962, quando se transferiu para reserva como General. Foi professor-chefe do Curso de História Militar da Escola de Comando e Estado Maior, e chefe do Departamento de História do Instituto Superior de Estudos Brasileiros. O ISEB é importante instituição difusora das ideias nacionalistas e desenvolvimentistas no Brasil de meados do séc. XX.

Acerca do Livro

Este “Formação Histórica do Brasil” corresponde a curso de História do Brasil dado por Sodré no âmbito do Ministério de Educação.  Trata-se de uma análise crítica e materialista dos fundamentos históricos do Brasil, da colônia ao império, da república velha à revolução de 1930, dos dois governos de Getúlio Vargas aos desafios e impasses colocados ao país após a era JK. O materialismo diz respeito aos pressupostos teórico-metodológicos bem como às respectivas conclusões a que chega o autor. Na sua história, há pouca menção aos denominados “grandes eventos”, aos fatos políticos relacionados aos nomes que ocupam os cargos de poder, por exemplo. Estes são relatados de passagem, como aspectos superficiais. O que realmente importa, no método adotado por Sodré, são as alterações processuais e históricas das forças produtivas, os arranjos das classes sociais decorrentes das transformações no modo de produção. Este materialismo leva o autor a ir além justamente das manifestações mais superficiais do problema histórico e buscar dentro do arranjo produtivo delineado no país as fontes originárias do desenvolvimento histórico.

Nesta perspectiva, a evolução histórica do país deve ser menos encarada pela sucessão dos distintos regimes políticos formais (colônia, império, república, ditadura e democracia) e mais pela base econômica e pelo modo de produção dominantes.

Assim, nossa origem histórica está situada nas transformações porque passa a Europa desde a baixa idade média. A precoce centralização política portuguesa engendrada pela Revolução do mestre de Avis criaria as condições políticas e econômicas para o desenvolvimento da navegação. Iniciava-se o processo de transformação do modo de produção na Europa, da fase feudal para a fase do capitalismo comercial. O desenvolvimento do comércio, o metalismo, a prevalência econômica  da circulação de riquezas sobre a produção de bens e o correspondente político dos estados absolutistas modernos são os traços essenciais das nações metropolitanas que se lançarão às grandes navegações: primeiro os países ibéricos, depois Holanda e posteriormente Inglaterra e França. A descoberta de América e do Brasil decorreram de buscas alternativas de rotas comerciais com o oriente, da competitividade dos mercadores pelo comércio das especiarias, portanto.

Os primeiros 30 anos de colonização brasileira seriam marcados pelo virtual desinteresse metropolitano pela ocupação e colonização do novo território. Até porque faltava à Portugal recursos e mão de obra disponíveis para um empreendimento que exigia enormes montantes de capital inicial. Entre 1500-1530, a colonização esteve marcada pelos primeiros contatos entre portugueses e indígenas e pela comercialização do pau Brasil. Será só a partir de meados do séx. XVI que, diante das invasões francesas e do risco da perda do território, que o Império Português irá se mobilizar para o empreendimento colonial.

 E assim, a primeira atividade produtiva para além do extrativismo viria com a produção do açúcar. Sua base produtiva era o plantation: grandes propriedades, monocultura e trabalho escravo africano são os elementos constitutivos da nova produção. As terras eram doadas pela Coroa, que transferia ao particular poderes administrativos e jurisdicionais sobre as terras brasileiras. As dificuldades eram enormes e aqui se torna interessante o retrato social delineado por Sodré de nossa realidade colonial. As capitanias eram isoladas umas das outras e havia extrema escassez de manufaturas e alimentos: inicialmente o colonizador alimenta-se de milho e mandioca, sendo posterior a introdução do gado, com a produção do couro e alimento. Verifica-se um desenvolvimento desigual na região do nordeste e na região de São Vicente e no Planalto de Piratininga, região sudeste. No nordeste consolida-se a grande propriedade fundiária na região litorânea (mais próxima dos mercados europeus), tratando-se de uma colônia de exportação. São Vicente torna-se ao contrário uma colônia de povoamento, com papel destacado das missões jesuíticas, que iriam entrar em conflito com bandeirantes paulistas sempre que a conjuntura pressionasse no sentido de demanda de mão de obra, com captura do indígena.

Seguem-se sucessivamente diferentes períodos de nossa história econômica que irão delimitar e explicar as origens do Brasil contemporâneo de Sodré. A elite exportadora agrária, com a independência política de 1822, passaria a deter o controle político do país e dirigi-lo consoante os seus interesses: inicialmente atrelados ao capital comercial português e inglês e posteriormente ao imperialismo norte-americano. Alterações no nosso quadro geográfico, político e social seriam impulsionadas pelo surto minerador (que contribui para um primeiro desenvolvimento de nosso mercado interno), pela produção algodoeira, pela exploração das drogas do sertão amazônico (contando com unidades produtivas desenhadas pelos missionários jesuítas) e finalmente pelo café, a partir de meados do séc. XIX. O que permanece de nosso passado colonial é uma elite política agrário-exportadora sempre subordinada ao capital estrangeiro, a enorme concentração fundiária  e dificuldades de um desenvolvimento verdadeiramente nacional.

Importa aqui observar alguns pontos de vistas particulares de Sodré, bem como especular acerca das razões pelas quais este historiador tem sido eventualmente negligenciado pela historiografia. Em primeiro lugar, há de se destacar que há hoje pouca aceitação dentre os estudiosos do nosso passado sobre a existência de um regime feudal no Brasil. Em Sodré, aquele etapismo característico das formulações do antigo Partido Comunista Brasileiro encontra plena expressão. Nosso passado colonial inicia-se no âmbito do modo de produção escravista. Gradualmente, elementos de servidão irão compor este cenário, particularmente a partir das chamadas parcerias junto aos imigrantes na produção do café. Vejamos mais de perto esta questão do feudalismo no Brasil em Sodré:

“O fenômeno de transição de vastas áreas antes escravistas a um regime caracterizado de servidão ou semi-servidão é possível, no Brasil, pela disponibilidade de terras. Este é um dos fatores fundamentais, mas não deve ser apreciado pelo que apresenta, mas pelo que, realmente, é. A disponibilidade de terras é um fato inequívoco – mas de terras apropriadas, não de terras por apropriar. Há espaços vazios, mas não há propriedades a conquistar: não há transferência de propriedade. Está claro que o problema não é estático: grandes áreas não apropriadas, já objeto de ocupação, são apropriadas, por diferentes processos, entre os quais o da violência pura e simples (...). É nesses vazios que se estabelece a base de regressão. Não se trata assim de uma espécie de “fronteira móvel”, como se pensa às vezes, mas de uma invasão formigueira de pequenos lavradores ou de pequenos criadores que estabelecem as suas roças de mera subsistência e que permanecem no conjunto ausentes do mercado. (...) Trata-se de um quadro feudal inequívoco”.

Mais aceita, todavia, é a perspectiva de Caio Prado Júnior segundo a qual não haveria a rigor feudalismo no Brasil – um modelo, de todo modo, tipicamente europeu, havendo a classificação de sistema colonial. Por outro lado o denominado “sentido da colonização” em Caio Prado coincide com as teses nacionalistas de Sodré. Ambos apontam para a espoliação, a extração da riqueza e a pressão econômica sobre os setores menos expressivos economicamente como elementos fundamentais e permanentes na história do Brasil.

Assim, em que pese eventuais críticas a certo “formalismo” no exame histórico de Sodré – consoante a perspectiva etapista dominante dentre os comunistas brasileiros – sua contribuição ainda nos é muito útil, em pelo menos três aspectos. 1º no que se refere à sua original reconstrução histórica materialista, que é capaz de analisar nossa formação em maior profundidade do que a historiografia positivista calcada nos “grandes eventos”; 2º no vasto acervo de informações, estatísticas e fontes históricas que enriquecerão o repertório cultural do leitor; 3º nas suas conclusões nacionalistas e anti-imperialistas, nas implicações políticas, portanto, deste vasta e profunda investigação histórica de nosso passado.   

 

domingo, 24 de novembro de 2013

“Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo” – V. I. Lênin


Resenha Livro #87 “Imperialismo, Estágio Superior do Capitalismo” – V. I. Lênin – Ed. Expressão Popular
 
 
 

Este ensaio econômico de Lênin foi publicado pela primeira vez em 1917. Trata-se de uma síntese extremamente sólida e coerente do sistema capitalista mundial das três últimas décadas do séc. XIX até o início imediato do século XX, momento de apogeu da nova fase monopolista do modo de produção capitalista.

Lênin serve-se de um vasto arsenal de pesquisas quantitativas e dados numéricos sobre a produção industrial e sua associação ao capital bancário, a nova partilha do mundo com o aumento das possessões territoriais e populacionais das potencias imperialistas bem como análises mesmo de economistas burgueses que, diante dos fatos, são obrigados a reconhecer a mudança qualitativa da natureza do sistema capitalista decorrente daqueles novos números.

É bom pontuar que a própria noção de “Imperialismo” não é original de Lênin. O conceito já era moeda comum dentre os analistas contemporâneos do dirigente da revolução russa, com a diferença – aí sim fundamental – quanto ao sentido dado àquele fenômeno histórico. Para Lênin o imperialismo é uma fase superior e transitória do capitalismo.

O fenômeno é marcado pela transformação do capitalismo da livre-concorrência pelo capitalismo monopolista dos cartéis. Pela transformação do capitalismo voltado ao comércio ao capitalismo voltado à exportação de capitais. (E aqui, cabe um comentário perspicaz citado por Lênin que vem da boca de um economista burguês. O imperialismo engendra uma relação de dominação ainda mais intensa sobre as colônias entre outros justamente pelo fato da relação credor e devedor ser mais duradoura e premente do que a relação entre comprador e vendedor).

Outro traço específico do Imperialismo é a fusão do capital bancário e do capital industrial, subordinando o segundo ao primeiro. Lênin dedica um capítulo inteiro para análise dos bancos e revela como estes – por meio do controle da concessão de créditos – foram paulatinamente obtendo hegemonia tanto no âmbito da produção industrial quanto mesmo no âmbito da política. Há a conformação de uma “oligarquia financeira” em que os mesmos diretores dos cartéis de bancos ocupam simultaneamente cadeiras em conselhos administrativos da indústria, do comércio e dos governos. Isto só foi possível com a concentração da produção e do capital num grau jamais visto na história. Desempenham papel decisivo em especial nos investimentos que demandam larga quantia de dinheiro, como as linhas de trem ou a exploração do aço. E, aqui, entra o papel da partilha do mundo e do novo colonialismo. (Imperialismo). A concentração de capitais volta-se aos países periféricos em busca de matérias primas – e a partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas, longe de caminhar para um equilíbrio, conforme as teses dos economistas burgueses, é fonte constante de deslocamento das relações de forças e agudização de conflitos.

Estados Unidos e Japão disputam a hegemonia no extremo oriente. Os Japoneses direcionam sua atenção para a conquista da China. Se em meados do séc. XIX, menos da metade do território africano está dividido entre os imperialismos, ao final do mesmo século, 9/10 de todo aquele território já estaria sob o domínio de Alemanha, França, Inglaterra e Itália. A América Latina teria inicialmente a Inglaterra como a principal credora: a partir do séc. XX tal hegemonia seria contestada pelos EUA, em que pese as supostas boas intenções da denominada “Doutrina Monroe”

Numa breve síntese, Lênin destaca as cinco características fundamentais do imperialismo: (i) a concentração da produção e do capital alcançou um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios; (ii) a fusão do capital bancário com o capital industrial e a criação, baseada nesse capital financeiro, da “oligarquia financeira”; (iii) exportações de capitais se sobrepondo a exportações de mercadorias; (iv) formação de associações internacionais monopolistas de capitalistas que partilham o mundo entre si; (v) conclusão da partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes.

Um último aspecto decorrente da análise econômica diz respeito especificamente ao movimento operário, qual seja, a conformação da “aristocracia operária” dentro dos países imperialistas. Trata-se de um setor corrompido do proletariado que, remunerado pela nova oligarquia financeira, irá buscar submeter o movimento operário aos interesses imperialistas. A falência da II Internacional em 1914 expressaria de forma definitiva o papel da “aristocracia operária”, abandonando o movimento socialista o princípio do internacionalismo e fazendo capitular os partidos socialistas aos interesses chauvinistas das burguesias imperialistas. Lênin faz aliás menção a Engels que já observava o fenômeno no final do séc. XIX no movimento operário inglês.

Se de um lado, o capitalismo monopolista representa a mais completa socialização da produção, esta mesma passa a ser propriedade de um grupo cada vez mais restrito de capitalistas. Isto significa que o imperialismo acentua as contradições sociais, acentua a luta de classes e para Lênin, tratar-se-ia de um estágio transitória que poderia abrir caminho para o socialismo. Outra tendência seria a da acentuação dos conflitos pela partilha do mundo, que efetivamente resultou na primeira Guerra Mundial.

A originalidade do estudo de Lênin não diz respeito tanto ao esgotamento da análise econômica do capitalismo europeu e mundial de fins do Sec. XIX e começo do XX. Rosa Luxemburgo já o fez num estudo de maior extensão. O que caracteriza o pensamento de Lênin é o esforço de sempre relacioná-lo com a ação política. E aqui, as tendências imperialistas do capitalismo mundial servem ainda hoje de base para saber interpretar o sentido das mobilizações e das lutas da periferia capitalista, assim como delinear, conforme observado, nos próprios países imperialistas, movimentos no sentido de cooptação do movimento operário – “aristocracia operária”.

 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

“Machado de Assis – Ensaios e Apontamentos Avulsos” – Astrojildo Pereira

Resenha livro #86 “Machado de Assis – Ensaios e Apontamentos Avulsos” – Astrojildo Pereira – Ed. Oficina de Livros (MG)



É possível delimitar dois temas de interesse aos leitores desta coletânea de ensaios sobre Machado de Assis. O primeiro diz respeito ao autor do trabalho. Astrojildo Pereira decerto não é um nome desconhecido mas é provavelmente muito pouco lido, mesmo pelos comunistas brasileiros. Afinal, a sua produção intelectual não encontra reedição no país há décadas. O segundo interesse diz respeito ao objeto de estudo, Machado de Assis, o maior escritor brasileiro.

Outrossim, Astrojildo é um nome importante na história do movimento comunista brasileiro. Foi nada menos que fundador e primeiro secretário-geral do PCB, a partir de 1922. Militou na direção do partido comunista até início dos anos 1930 quando foi afastado em meio a ascensão de um novo grupo dirigente – tratar-se-ia de uma fração particularmente sectária e que conduziria o partido para a fracassada tentativa de levante comunista de 1935. Astrogildo não estava mais na direção do PCB na dita “Intentona Comunista”, que serviu de pretexto, junto com o suposto “Plano Cohen”, para Getúlio Vargas caçar os comunistas bem como colocar o partido na ilegalidade. Um fato interessante é o de que Astrojildo foi homem de origem popular e autodidata. Sequer terminou o ginásio. Após o seu afastamento do PCB, exilou-se no interior de São Paulo onde passou a viver da venda de...frutas. E foi neste momento de “exílio” que pôde aprofundar os seus estudos, bem como redigir já alguns dos ensaios que compõe este seu estudo singular sobre Machado de Assis.

Um fato importante, evidenciado pelo prefácio de José Paulo Netto, é que este estudo original de Astrojildo não teve o reconhecimento devido, em especial no âmbito da academia. Uma explicação para tal esquecimento pode dizer respeito ao ponto de vista marxista do autor. Outrossim, trata-se de um estudo precursor de muitas outras pesquisas acerca do vasto tema da produção literária e jornalística de Machado de Assis. O fato de Astrojildo não ter formação universitária parece-nos um ingrediente ainda mais vantajoso ao autor. A crítica literária costuma ser um terreno favorável para o pedantismo/hermetismo na linguagem. Já o texto de Astrojildo não é só acessível, mas cativante e seus apontamentos revelam um olhar muito perspicaz e atento a detalhes que ainda hoje bem servem para desmistificar algumas qualidades dadas a Machado de Assis por seus críticos.

Por exemplo, houve muitos que disseram ser Machado de Assis alguém indiferente em relação à política e à realidade social do país. Opiniões no mesmo sentido apontam para uma posição dúbia em relação à escravidão em Machado, em contraponto ao engajamento militante de um Castro Alves. Trata-se aqui de uma conclusão superficial. A temática da política não está presente apenas em suas crônicas jornalísticas, mas também na obra ficcional. Pode-se falar de “Essaú e Jacó”, os irmãos que se opõem dialeticamente, sendo um monarquista e outro republicano, um médico e outro advogado. Na política, um irmão representa o velho e o outro o novo. A transição do Brasil do Império para a República é personificada de forma sutil nos embates dos irmãos, que desde pequeno já se estapeavam, para a desgraça da mãe. Outrossim, Machado sempre mantinha uma preocupação de situar historicamente os seus enredos, bem como relacioná-los com fatos históricos – no Dom Casmurro, “ao tempo do rei”, há inclusive uma bela descrição fantástica de um encontro de Bentinho com o Imperador em que este convence sua mãe a não insistir com a promessa de fazer do filho padre.

Politicamente, pode-se dizer que Machado de Assis foi um liberal. Alguns viram “conservadorismo” diante de menções críticas do autor fluminense à república. Astrojildo nos oferece um ponto de vista diferente. Servindo-se sempre de diversas fontes, somos levados a saber que Machado temia antes o federalismo do que a república. O velho do Cosme Velho preocupava-se com a manutenção da unidade nacional, o que aliás vinha ao encontro mesmo de seu papel na história da literatura brasileira. Isto porque Machado de Assis é um dos precursores de uma literatura verdadeiramente nacional, tendo como ponto de vista privilegiado às análises psicológicas profundas ( que podem ser tidas como “universais”) com descrições de ambiente e mesmo formas de expressão típicos do Brasil do séc. XIX.

Existe uma ambivalência na vida e na obra de Machado de Assis que parece ser o aspecto mais interessante enunciado por Astrojildo Pereira. O escritor era ele próprio parte das antinomias que tanto o interessavam – e que se reportam até no título da já citada obra Essaú e Jacó. Machado foi filho de pintor e de lavadeira. Junto com Luís Gama (advogado abolicionista) e Lima Barreto (escritor e jornalista), era mulato que desafiava abertamente as teses racistas de um contemporâneo, Oliveira Vianna. Mesmo mulato e vivendo numa sociedade escravocrata, angariou reconhecimento público ainda em vida, sendo um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras. A sua crítica dirigia-se à incipiente sociedade burguesa, que continha dentro de si contradições estruturantes como a escravidão e o domínio político dos grandes proprietários rurais.

Ao mesmo tempo, Machado de Assis vivenciara um momento de transição na literatura brasileira. Particularmente os anos de 1870 marcariam um processo de renovação literária e cultural no Brasil. Tanto o é que já se tornou um senso comum dividir a obra Machadiana tendo como ponto divisor a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Até então, suas obras estariam melhor caracterizadas como da 3ª fase do Romantismo Brasileiro. Nosso Romantismo tem como 1ª fase o indianismo de um José de Alencar, uma segunda fase byronista da qual Álvares de Azevedo é o mais lembrado, e a 3ª fase que inicia um giro no sentido da análise social, culminando com o denominado Realismo. Astrojildo Pereira dedica um ensaio inteiro à essa suposta divisão, não a negando, mas advertindo não se tratar exatamente de uma ruptura. Mesmo com um pé no romantismo, já se evidenciava em obras anteriores como “A Mão e a Luva”, a preocupação com análise psicológica dos personagens. Mas este esforço de análise e crítica de costumes vai ganhando maior amadurecimento ao longo do tempo, encontrando sua maior plenitude em suas obras de maturidade: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, Quincas Borbas e Memorial dos Aires.

Como dizíamos, estas antinomias – vivenciadas por Machado e retratadas nos seus textos – fazem com que Astrogildo aproxime a literatura machadiana do materialismo dialético. Não se trata de um materialismo dialético consciente, sendo muito pouco provável que Machado sequer tenha lido Marx e Engels (ainda que o autor apresente bons indícios de que Machado teve notícia das ideias do filósofo anarquista francês Proudhon). O materialismo dialético de Machado é intuitivo é seria produto do seu próprio realismo. A sua matéria prima literária são as relações sociais concretas, das quais ele tem uma capacidade ímpar de interpretar e reproduzir. À guisa de conclusão, citamos a passagem final de um dos ensaios de Astrojildo referente a relação entre o velho machado e a nova filosofia materialista dialética.

“Ele (Machado de Assis) era um dialético inato, sua maneira de pensar era dialética, e seu pensamento aparece impregnado de elementos dialéticos. Isto me parece incontestável. Creio também que a essência materialista do seu pensamento não oferece margem a dúvidas sérias. Todavia, seria em todo incorreto e insensato supor ou concluir que Machado de Assis foi um “materialista dialético”. Nem podia ser, num país como o nosso, na época e nas condições em que viveu. Mas dentro de tais limitações objetivas, é evidente que seu pensamento avançou tanto quanto era possível. E nisto reside, a meu ver, um dos mais luminosos sinais da sua grandeza”.

É verdadeiramente uma pena que este importante ensaio de Astrojildo Pereira não encontra nova publicação, pelo menos nos últimos 30 anos. Trata-se de uma análise marxista do mais importante escritor de ficção do Brasil, escrita pelas penas de alguém que foi capaz de interpretar e tirar conclusões do texto machadiano à frente do seu tempo. Já é tempo de uma redescoberta desta obra, hoje apenas vista em sebos.      

 

terça-feira, 19 de novembro de 2013

“Partido e Revolução – 1848-1989” – Marcelo Braz


Resenha livro # 85- “Partido e Revolução – 1848-1989” – Marcelo Braz – Ed. Expressão Popular




Este estudo de Marcelo Braz é fruto de sua tese de doutorado na Faculdade de Serviço Social da UFRJ. Trata-se de um estudo de longa duração acerca do movimento comunista internacional, tendo como base a forma como as questões do partido e da revolução foram equacionadas nas diversas experiências socialistas ao longo da história.

Ressaltamos o aspecto de “longa duração” desta pesquisa, em primeiro lugar, por ser algo raro de ser observado no meio acadêmico. Observa-se via de regra análises históricas que privilegiam, cada vez mais, o particular e o fragmentário, em detrimento de estudos voltados às análises totalizantes e teleológicas: esta tendência na academia remonta à ofensiva pós-moderna que encontra seu correspondente político imediato no neoliberalismo. Assim, o trabalho de Marcelo Braz é um estudo que vai contra a corrente: seja nos seus pressupostos teórico-metodológicos, seja no seu campo de investigação e também nas suas conclusões. Em segundo lugar, qualificamos como um estudo de “Longa Duração” pela enorme diversidade de eventos e processos históricos que envolvem os anos de 1848-1989, sendo este um bom estudo panorâmico e introdutório da história do movimento comunista mundial.

Discutir o problema do partido político e da revolução dentro da história do movimento comunista internacional remete, neste estudo, a mais um esforço contra-hegemônico de re-afirmação do projeto socialista, bem como da atualidade da forma partidária como meio que foi para a consecução de todas as vitórias revolucionárias do séc. XX – seja no sentido de preparar as condições subjetivas de rupturas, seja no sentido de conduzir os estados pós-capitalistas rumo a novas experiências societárias.

Com o fim da URSS, a reestruturação capitalista a partir de 1973 e a posterior ofensiva neoliberal, questões essenciais ao movimento comunista internacional como partido revolucionário, classes sociais e mesmo a ideia de revolução passaram a ser contestados quanto à sua atualidade.

Houve aqueles que chegaram mesmo a dizer que chegávamos, com o fim do socialismo real e a vitória do capitalismo democrático-liberal, ao “Fim de História”. É nesse cenário geral que se pode falar numa “crise” do movimento comunista internacional. Marcelo Braz tem esta crise como ponto de partida e ponto de chegada de seu estudo. Inicialmente, constatando a consolidação do pós-modernismo, da negação das formas partidárias de luta e correspondente negação de mobilizações que visem à totalidade das relações sociais em detrimento da valorização das lutas parciais (ecológicas, de gênero, de sexualidade, etc.) que quando estão descaracterizadas quanto ao seu corte de classes tornam-se inteiramente inofensivas à ordem capitalista. Dado este quadro contra-revolucionário e de crise do movimento comunista, Braz fará um minucioso resgate histórico da evolução conceitual de partido e revolução na história do movimento comunista de forma a tornar claro “como” chegamos ao atual impasse.

O ponto de partido data-se de 1848, ano do lançamento do Manifesto Comunista por Marx e Engels. Existe controvérsia dentre historiadores e pesquisadores do marxismo se Marx chegou a desenvolver de fato uma teoria de partido, tal como se observaria com Lênin em seu “O que Fazer” (1902). Não existe em Marx uma obra específica sobre o assunto, mas apontamentos teóricos esparços, sendo o manifesto o documento que inicia o trabalho sobre esta problemática – sendo ainda importantes às críticas de Marx ao programa de Gotha e os seus textos que discorrem sobre organização na Comuna de Paris, informes dirigidos à Associação Internacional dos Trabalhadores reunidos em “Guerra Civil na França”. Para Marx, o partido comunista é mais uma das diversas correntes que atuam no âmbito do movimento operário – o seu internacionalismo e sua maior consequência política vai diferenciá-lo das demais correntes políticas. Aqui observa-se uma diferença entre as noções de partido em Marx e Lênin. Enquanto para Marx, o partido comunista é um dos partidos (frações) do movimento operário, em Lênin o partido comunista é O partido dos trabalhadores, ou, para ser mais exato, é a sua vanguarda. Curiosamente, o modelo mais aberto de partido em Marx seria posteriormente retomado por movimentos que reagiam ao monolitismo stalinista, ainda que perdendo a dimensão efetivamente revolucionária e classista, como o eurocomunismo observado nos partidos comunistas da Itália, França e Espanha a partir de meados dos anos 1950.

De qualquer forma, importa ressaltar que as contribuições originárias de Marx e de Lênin foram as que mais influenciaram os partidos comunistas em todo o mundo. Evidentemente, houve outras contribuições que foram produtos de momentos específicos da história do movimento comunista internacional. A partir de Marx e Engels, ressaltando-se que este último depois da morte de Marx fez elaborações no sentido de pensar o partido mais próximo dos trabalhos legais do que da perspectiva insurrecional, outras elaborações foram feitas: Bernstein e seu revisionismo da teoria da revolução em Marx, estabelecendo uma suposta via pacífica para o socialismo, alimentando o projeto social-democrata; o partido em Lênin, formado por revolucionários profissionais, os melhores das fileiras operárias que deveriam dirigir o proletariado para derrotar a burguesia e instaurar sua ditadura de classe; as críticas de Rosa Luxemburgo, mantendo a perspectiva revolucionária, mas combatendo a excessiva rigidez e centralismo bolcheviques e valorizando os momentos espontâneos das lutas como forma originária de organização; o chamado “marxismo-leninismo” da era Stalinista, momento em que há uma fossilização da teoria marxista e a adequação da mesma, sempre de forma tortuosa, aos imperativos relacionados à manutenção do estado operário e da burocracia soviética; a releitura eurocomunista, por um lado revigorando a crítica aberta e o pluralismo interno e por outro perdendo a independência de classes a partir da ampliação do raio de aliança dentre os comunistas.

Todo este acúmulo de experiências, guerras e revoluções pela qual passou o movimento comunista entre 1848-1989 passa a ser hoje o repertório a partir do qual os comunistas devem novamente debruçar-se sobre o problema do partido, da sua relação com a classe e da sua relação com a estratégia comunista. Não se trata de voltar-se às fontes para aplicá-las de forma mecânica sem mediações de tempo ou de lugar: trata-se sim de avaliar os erros e acertos, bem como apoderar-se desta rica experiência para propor soluções criativas mas não utópicas – como as que abrem mão do partido e da organização classista, por exemplo em Negri e Boaventura. Certamente, o capitalismo contemporâneo, a reestruturação produtiva e as novas tecnologias de comunicação criaram novos desafios aos revolucionários, bem como exigem uma reatualização das formas de organização da classe. Entretanto, este momento defensivo (que aliás podemos perceber que também é provisório na medida em que o capitalismo já surge mundialmente em crise) não deve nos levar a abandonar os princípios, a independência de classe, a estratégia comunista e a tática do partido político revolucionário. Afinal, até hoje não se conheceu na história nenhum processo de emancipação social da qual se prescindiu da forma partidária para organizar o movimento, fazer com que o mesmo crie confiança em suas forças e vença.

 

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

“História do Marxismo – V. 6” Eric Hobsbawm (Org.)

Resenha Livro # 84“História do Marxismo - O Marxismo na época da terceira internacional: da Internacional Comunista às Frentes Populares – Volume 6 – (Org. Eric Hobsbawm) – Ed. Paz e Terra



Organizada pelo historiador britânico e marxista Eric Hobsbawm, os diversos volumes da “História do Marxismo” reúnem diversos ensaios historiográficos referentes às distintas fases da evolução do movimento comunista e das ideias de Marx. Talvez seja interessante fazer menção rápida aos recortes temáticos e cronológicos dos vários volumes da coleção. Os marcos temporais partem do marxismo no tempo de Marx, o marxismo na época da II Internacional, o marxismo na época da III Internacional e o “Marxismo Hoje”, havendo nestes últimos volumes reflexões mais gerais sobre a importância do pensamento marxismo nos estudos sociais contemporâneos e balanços e perspectiva desta corrente política e de pensamento.

O volume VI a que tivemos acesso aborda o período que vai da conformação do Comitern ou III Internacional, até a conformação das frentes populares de combate ao fascismo, fortalecida, ainda que sempre com algumas hesitações, a partir de meados dos anos de 1930. As reflexões de cada artigo irão abordar: a questão do partido leninista, a origem deste modelo partidário, seus reflexos na revolução russa e suas antinomias em relação aos modelos de organização dos mencheviques, de León Trótsky e de Rosa Luxemburgo; as correntes constitutivas do movimento comunista internacional e, especificamente, da III Internacional; o fenômeno do comunismo de esquerda e debates subjacentes como o problema do “putschismo” (golpismo) ou as distintas políticas leninistas e esquerdistas acerca do parlamento e dos sindicatos; discute-se a revolução socialista abortada na Alemanha, com especial ênfase na percepção daquele levante dentro dos círculos dirigentes soviéticos; a bolchevização dos partidos comunistas europeus, iluminando aqui os reais vínculos e tensões entre o centro do Comitern e as direções locais dos partidos comunistas; a política da internacional quanto ao problema camponês; as táticas do movimento comunista frente ao perigo de guerra que culminou na II Guerra Mundial; a importância da virada na política externa soviética e do Comitern a partir do VII Congresso da III Internacional; e um estudo sintético sobre a composição política das diversas forças republicanas no contexto da Guerra Civil Espanhola.

Um elemento constante na leitura destes artigos refere-se ao esforço científico dos autores no sentido, não de fazer uma história “neutra”, mas de buscar evidenciar a complexidade das situações por meio de uma vasta análise das fontes históricas. Pela vastidão de fontes e pela proposta de analisar as questões em suas complexidades podemos dizer que se trata de uma história crítica do marxismo. Trata-se de textos voltados ao debate historiográfico e que, à medida que aprofundam as análises, os autores conseguem desmistificar algumas passagens da história que são reiteradas sob bases parcialmente ou inteiramente falsas. Um exemplo nesse sentido é o estudo da composição política da terceira internacional e das relações entre o Comitern e as diversas seções nacionais partidárias. Estamos habituados a ler ou escutar como a III Internacional fora um mero instrumento de aplicação mecânica dos interesses soviéticos nas distintas realidades nacionais. Fala-se do monolitismo político da III Internacional e da subordinação dos interesses da revolução mundial aos interesses de estado da URRS.

Uma análise mais detida deste problema revela que, particularmente em seus primeiros anos, a III Internacional tinha uma composição bastante heterogênea. De fato, entre 1918-1919, Lênin elencou em cada nação movimentos, organizações ou partidos que teriam maior compatibilidade com a III Internacional. (Foram cerca de 20 ao todo). Certamente, estas organizações se diferenciavam do reformismo dos partidos social-democratas da II Internacional, muitos tendo origem justamente como cisão no momento em que os velhos partidos de esquerda da Europa capitulavam ante o chauvinismo, entrando em governos ou votando créditos para a I Guerra Mundial. Mas dentro deste espectro de oposição ao reformismo e ao chauvinismo da II Internacional, havia desde movimentos anarco-sindicalistas, até organizações comunistas locais que em muito pouco lembravam (no que se refere à organização, tática e estratégica) o modelo bolchevique.

Outrossim, como não poderia deixar de ser, gradualmente os comunistas soviéticos foram impondo sua hegemonia naquele movimento internacional. Mas mesmo o “internacionalismo” é entendido de forma totalmente distinta entre os últimos anos de Lênin (1919-1924) e o dos anos subsequentes, em especial com a ascensão de Stálin. Aqui caberia uma analogia entre o processo gradual de homogeneização e monolitismo que vai de Lênin à Stálin, no Comitern e na história política da URRS. Nos dois casos, esta inversão representava em primeiro lugar um sentido distinto de internacionalismo em Lênin e Stálin. Ainda entre 1918-1919, Lênin via a vitória da revolução socialista na Europa ocidental como uma questão emergente e que seria decisiva mesmo para a sobrevivência do novo estado operário. A perspectiva leninista via o triunfo da revolução num país atrasado como uma operação “on hold”. E isso implicava no âmbito do Comitern maior liberdade de ação dentre as diversas seções, ainda que as mesmas reconhecessem sempre a deliberação da internacional como linha mestra para conduzir os seus respectivos movimentos. Havia também maior pluralidade política no interior do Comitern, ainda que seja forçoso reconhecer que desde o início o peso dos delegados soviéticos era fundamental. Com Stálin, já se observava na Europa a derrota da revolução na Alemanha, a ascensão do nazismo e do fascismo. Internacionalismo nesta conjuntura envolve a defesa do estado operário soviético do perigo fascista, daí a criação da imagem parcialmente correta de que os partidos nacionais eram correias de transmissão dos interesses do Comitern, que por sua vez reproduzia os interesses dos dirigentes soviéticos no plano das relações internacionais. Mas, insistimos, houve muita luta política e dissonâncias, sendo reducionista a imagem de partidos “satélites” totalmente subordinados ao centro.

Pesquisar a história do marxismo envolve estudar suas manifestações na história ora como corrente de pensamento (filosófico, político, econômico e sociológico) ora como movimento real dos trabalhadores em levantes, revoluções ou guerras civis. Buscar apurar o que há de mais avançado nesta corrente de pensamento, bem como avaliar os erros e acertos do passado certamente conduzirão os comunistas a intervirem na realidade de forma mais qualificada e segura. Daí a importância deste vasto trabalho de pesquisa da História do Marxismo.

  

domingo, 10 de novembro de 2013

“Stalingrado – Sebastian Denhardt”


Resenha Filme #1 “Stalingrado – A Batalha Mais Dramática da Segunda Guerra Mundial” – Dir. Sebastian Dehnhardt - 2009



Stalingrado é o nome de uma cidade russa localizada às margens do rio Volga – e por isso chamada hoje de Volgogrado. Lá ocorreu uma batalha de tipo estratégico durante a II Guerra Mundial. Após a expulsão do exercito nazista pelos soviéticos, o primeiro ministro W. Churchill (conhecido pelo seu anti-bolchevismo) declarou que, após Stalingrado, a força bélica dos nazista deixava de ser invencível.

A ofensiva nazista em território russo na II Guerra Mundial ocorreu em meados de 1941. O plano de Hitler era tomar o Caucásio e em especial manter o domínio sobre Baku, território estratégico por ser reserva de petróleo e carvão. O plano inicial de Hitler era tomar Stalingrado, maior domínio urbano da região, até antes do inverno Russo de 1942. O Führer seria derrotado, expulso e veria suas forças capitulariam entre dezembro de 1942 e janeiro de 1943. Stálin, em 1941, previra que Stalingrado seria o início do fim da dominação nazista em Rússia. E seu comandante militar asseverou que havia para o exército lutar ou morrer por Stalingrado. O que ocorreu foi bastante significativo: após lutas que chegaram ao domínio da própria cidade, uma gigantesca reação soviética acompanhou a  enorme moral  galgada pelo exército vermelho a partir da libertação de Stalingrado. De lá os russos iriam não apenas retomar todo território ao leste ocupado pelos alemães, como avançariam pela Polônia até Berlim na Alemanha.   

A resistência em Stalingrado deve ser saudada pelos comunistas que cultivam a nossa história dada a bravura do exército vermelho, além de muitos voluntários que ajudaram a organizar a resistência à ofensiva nazista. Na verdade, os russos já sabiam de antemão dos planos de Hitler no sentido de concentrar sua ofensiva na frente sudoeste do território russo. A tomada de Stalingrado (cidade do chefe de estado Joseph Stálin) tinha um efeito simbólico, tanto para Hitler quanto para Stálin. Este último determinou ser proibido que civis abandonassem a cidade – acreditava que, com uma cidade abandonada, a moral do exército seria menos rigorosa.

Os alemães chegaram a cercar e avançar pela cidade. Neste momento, o exército russo organizou-se em trincheiras dos edifícios tombados pelos bombardeios aéreos, numa luta de guerrilha. Outra tática de guerra dos vermelhos era a dos franco-atiradores, que matavam generais e dirigentes do exército nazista afetando a moral adversária. Trata-se de uma curioso tática de luta que remete ao velho terrorismo dos populistas da “Vontade do Povo” e dos antigos Socialistas Revolucionários da Rússia.


Com a resistência na cidade e uma nova frente voltada do oriente para apoiar as tropas de Stalingrado, os nazistas foram forçados a recuar. Um pequeno contingente continuou na cidade até se entregarem. Um general sempre relevante na história de guerra russa fez-se presente: o inverno. Hitler proibiu a capitulação, exigindo que o último militar alemão saísse da cidade morto. Entretanto, a desmoralização das tropas, a falta da suprimentos, as cerca de uma morte a cada 7 segundos de soldados alemães e as enormes dificuldades de um inverno rigoroso russo com menos 30 graus negativos forçaram a capitulação alemã. Os soldados famintos estavam se alimentando de ratos e cachorros. Assim como os soldados vermelhos capturados pelos nazistas eram logo enviados para campos de concentração e mortos, o mesmo destino tinham os capturados pelos vermelhos. 

Ao término do conflito de Stalingrado houve 1.143.500 soldados russos mortos e 400 000 alemães mortos. Na II Guerra Mundial, haveria 50 milhões de mortos (militares e civis) dentre os quais 27 milhões foram russos.

sábado, 9 de novembro de 2013

“A Vida de Lênin” – Louis Fischer

Resenha Livro #83 “A Vida de Lênin” – Volume 1 – Louis Fischer – Ed. Civilização Brasileira



Tivemos oportunidade de resenhar o segundo volume desta obra biográfica de Lênin redigida pelo historiador e jornalista norte-americano Louis Fischer (Ver aqui: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2013/01/a-vida-de-lenin-louis-fischer.html)  
O primeiro volume contempla na verdade a maior parte da vida de Vladimir Ilyitch Uliánov, nome verdadeiro do dirigente bolchevique, sendo “Lênin” um pseudômino. O primeiro tombo vai da infância de Lênin na província de Simbirsk, onde nasceu em 1970, seguindo pela juventude, a Universidade de Direito em Kazan, os primeiros envolvimentos com política, a morte de seu irmão mais velho Alexandre Uliánov. Fato importante na vida de Lênin foi a morte deste irmão, preso e enforcado pelo regime czarista após uma tentativa de assassinato do Czar Alexandre III. A. Uliánov fazia parte do movimento populista “Vontade do Povo”. A tática política dos populistas era, no início, o terrorismo individual: buscavam matar o czar e outros detentores do poder, implicando, quando obtinham sucesso, na mera troca de postos acompanhadas de uma repressão brutal. Já à época da morte do irmão, Lênin via a ineficácia dos métodos dos populistas. Posteriormente, estes também abandonariam os métodos terroristas, ainda que o próprio Lênin, quando chefe de estado, seria ele próprio vítima de uma bala não fatal dada por uma militante do grupo Socialista Revolucionário da direita.
O livro de Louis Fischer seguirá, pois, abordando os anos de Lênin no exílio na Sibéria e posteriormente na Europa. Em seu primeiro exílio no oriente russo, casou-se com sua companheira por toda vida, e também ativista política, Krupskaia. Lênin viveu em Genebra, na França, passou tempos na Finlândia e de lá voltou para São Petersburgo em abril de 1917 para dirigir pessoalmente a revolução.
A revolução russa didaticamente costuma ser dividida em dois momentos, fevereiro e outubro de 1917. O primeiro seria o momento “democrático-burguês”. O segundo momento seria o propriamente socialista.
Poderíamos acrescentar um período anterior, 1905-06, quando a Rússia passou por um levante generalizado, greves e lutas camponesas, após o chamado domingo Sangrento. Este evento marcante da história Russa foi massacre perpetrado pelas tropas do Czar contra uma manifestação pacífica liderada por um Padre que peticionava o chefe de estado para promover algumas reformas sociais. O resultado da repressão brutal (com milhares de mortos) foi a revolução russa de 1905. Foi neste levante que houve a rebelião de marinheiros do Encouraçado Potekim, que viria a ser tema de filme do mais eminente cineasta soviético, Sergei Eisenstein. Já em 1905 foram criados os primeiros Soviets, órgãos político-administrativos de participação política, que seriam mais uma vez impulsionado na revolução subsequente. 1905 é chamado por Lênin de “ensaio geral da revolução”.
Já os dois momentos marcantes da evolução política russa são fevereiro de 1917, com um novo levante que derruba o czar e instaura um governo democrático-burguês tendo como principal expoente político Kerensky e posteriormente a revolução bolchevique. Importante elemento constitutivo da eclosão da revolução russa é o problema da paz no âmbito da 1ª Mundial. Iniciada em 1914, a primeira guerra contava com a Entente de um lado (França, Inglaterra, Itália e Rússia, e posteriormente os EUA) e de outro aliança da Alemanha com o Império Austro-Húngaro. Em 1917 o descontentamento popular contra a guerra estava generalizado. Tropas inteiras abandonavam seus postos. Com a revolução, a terra passava a ser distribuída entre os camponeses pobres e estes, constituindo a maioria do exército, abandonavam seus postos para aproveitar a partilha.  

A Paz com a Alemanha – Brest-Litovsky

Um dos capítulos mais interessantes (e contagiantes, dada a bela narrativa de Fischer) refere-se às negociações de Paz realizadas pelo governo bolchevique, recém-instalado no poder, e os alemães. Há um capítulo inteiro dedicado ao importante (e polêmico) acordo Brest-Litovski, uma paz em separado entre a Rússia e a Alemanha, com condições extremamente adversas ao novo poder bolchevique.
É importante ressaltar que o historiador norte-americano é muito criterioso com as fontes de pesquisa. Ademais, por ter sido um estudioso de um período também por ele vivenciado, enriquece seu relato com muitos documentos da época, e é especialmente profundo quando se refere a personagens reais com quem teve a oportunidade de comunicar-se pessoalmente. É o caso do genial Radek, agitador bolchevista na Alemanha. Sobre a paz de Brest-Litov, Lênin revelou aqui duas qualidades que lhe são particulares e marcantes: sua capacidade de ver os problemas a longo prazo e a sua lealdade política. É certo que Lênin desde o começo e contra todos, defendeu a política acertada de uma paz a todo custo com a Alemanha. Lênin foi o que melhor pôde evidenciar o extremo cansaço do povo e em especial dos camponeses com a guerra. Sua lealdade política se expressa nas primeiras votações no comitê central em que sua posição foi derrotada. Lênin, mesmo numa questão tão decisiva e que remetia diretamente à sobrevivência da revolução russa, não foi desleal e deixou-se centralizar pelo partido, quando derrotado – além da lealdade, observa-se a coerência já que Lênin ele-próprio havia teorizado a forma de organização dos bolcheviques há mais de dez anos antes com o seu “O que Fazer”.

Louis Fischer fecha seu volume após o término da 1ª Guerra mundial, tendo continuado a Guerra Civil na Rússia entre bolcheviques, contra-revolucionários e tropas estrangeiras voltadas a esmagar o primeiro estado operário que conseguia sobreviver aos poucos meses a mais do que a 1ª tentativa naquele sentido, a Comuna de Paris de 1871.  A leitura tanto do 1º quanto do 2º Volume da biografia de Lênin de Louis Fischer é acima de tudo um vasto e profundo estudo sobre a história da revolução russa, a história política da União Soviética, história necessariamente imbricada na vida e na intervenção política de Lênin. Uma conclusão definitiva da leitura é: sem Lênin, é muito provável que a revolução tivesse sucumbido entre os anos de guerra civil (1917-1921). O que salvou a Rússia foi a sua contagiante energia revolucionária, seu realismo e sua disciplina pessoal. 

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

"Introdução ao Estudo do Direito” – Alysson Leandro Mascaro


Resenha Livro #82 “Introdução ao Estudo do Direito” – Alysson Leandro Mascaro – Ed. Atlas – 4ª Edição



Advertimos o eventual leitor deste texto que os propósitos deste espaço virtual têm maior caráter político do que acadêmico. As resenhas são análises críticas de diversas espécies de obras literárias, análises voltadas à denominada “batalha das ideias”, à luta contra-hegemônica desde uma perspectiva anti-capitalista.

Isto significa que o leitor que chegou a este blog interessado num resumo do livro de Alysson L. Mascaro, infelizmente terá de continuar fazendo sua legítima busca, seja para preparo de trabalhos acadêmicos, seja para estudos para provas universitárias. Certamente, para tais fins seria necessária não uma resenha crítica, mas um relato, capítulo, por capítulo, de todos os temas abordados pelo autor (a norma jurídica,  o ordenamento jurídico, as antinomias, as lacunas, a hermenêutica, etc.). Nossa proposta de trabalho aqui, todavia, é outra. Interessa-nos fazer uma reflexão analítica e mais geral deste livro de Introdução ao Estudo do Direito, sempre se orientando pelas premissas do marxismo, o que, aliás, também é o caso da obra do professor Mascaro.

Via de regra, “Introdução ao Estudo do Direito”, como o nome já sugere, é disciplina ministrada no 1º e/ou 2º semestres dos cursos universitários de direito. Esta disciplina busca delinear os institutos mais essenciais do ordenamento (ou sistema) jurídico. Reflete-se sobre o que é o direito, qual a sua origem histórica, como se deu sua evolução na história, as principais correntes de pensamento jurídico filosófico ao longo desta evolução. Também se estudará aqui temas eminentemente “jurídicos”  como a definição de norma jurídica e da lei, o problema da validade, da vigência, do vigor e da eficácias normativas, a hermenêutica (interpretação) com suas sub-espécies, como a interpretação gramatical (que parte da literalidade da lei) ou a interpretação teleológica (que parte dos fins a serem atingidos pela lei), e etc.

Neste manual de Introdução ao Estudo do Direito o aluno do 1º ano terá acesso a todos estes itens fundamentais com um acréscimo decisivo. O autor diferencia-se, por exemplo, de um manual estritamente juspositivista como “Introdução à Ciência do Direito” de André Franco Montoro já que não se limita a definições formais (ou “jurídicas”) dos institutos basilares do direito, mas sim, privilegia as relações sociais e de produção, as estruturas que engendram o direito, o estado e as suas instituições, conforme às exigências de produção e reprodução capitalista. Trata-se da perspectiva crítica que se delimita dentro do que Mascaro chama dos três caminhos do pensamento jurídico contemporâneo (tema também abordado em seu curso de “Filosofia do Direito”, com mais profundidade).

As três grandes linhas mestras são as correntes juspositivistas, expressas em Hans Kelsen (autor do séc. XX identificado com o liberalismo clássico), correntes não juspositivistas como o decisionismo de Carl Smitt (este tendo sido simpático ao regime nazista) e, finalmente, a perspectiva crítica, que  atingirá o nível de compreensão mais profundo do fenômeno jurídico.

A reflexão sobre a definição do que é Direito, o provável ponto de partida de qualquer curso de Introdução ao Estudo do Direito, só pode ser melhor encaminhada pelo pensamento crítico e histórico.

Ao contrário do pensamento positivista, que limita o fenômeno jurídico à norma jurídica (num esforço de “purificar” o direito da história, da política, das relações de força das classes sociais), o pensamento crítico delimita o direito como um fenômeno que não é “a-histórico” ou que, de certa forma, evoluiu constantemente desde os mais primórdios da civilização. Não é possível comparar o direito da antiguidade e da idade média com o direito da era moderna e contemporânea, que só ganha contorno e especificidade com a conformação do capitalismo e dos estados modernos. O direito até a modernidade é um misto de religião, moral e arte. É só com o capitalismo, com suas exigências de previsibilidade para a consecução das trocas comerciais ou com sua necessidade de criar contratos para viabilizar a venda da força de trabalho no mercado, que vão criar as figuras jurídicas correspondentes (e edificantes do atual ordenamento/sistema) como “sujeito de direito” ou “direitos subjetivos”.

Antes o direito assimilava-se à arte, correspondia a um ato de poder direto (e não mediado pelo estado) e se dava a partir da aplicação do direito ao caso concreto, sem qualquer uniformização como as codificações legais que surgiriam por exemplo com o Código Civil Napoleônico. A emergência da burguesia como classe dominante com o desenvolvimento capitalista engendrou por assim o direito, que, portanto, em última análise, serve para a reprodução da ordem de dominação burguesa.

Isto não deve levar o jovem estudante do direito movido pela utopia/esperança de um mundo menos injusto a abandonar o curso de direito, dada o alinhamento inevitável do estado, das suas instituições e do direito que os regram às exigências da sociedade capitalista (transações comerciais, exploração do trabalho, contenção da luta de classes, etc.).

O último tópico do livro tem o belo nome de “Das esperanças do Jurista”. Neste capítulo, Mascaro traça um panorama histórico do conceito de justiça na história. No capitalismo, com a conformação do estado com seus três poderes a emanar, especialmente, mas não só, pelo legislativo, normas jurídicas, dada a necessidade da segurança jurídica, da exigência da previsão da resolução dos conflitos sociais por uma norma unificadora, o justo confunde-se com o que é legal, com o que está na norma jurídica. Assim, um morador de rua faminto que furta um pão, pela ótica do justo enquanto o que se extrai da norma, teria que considerar correta a perpetuação da fome de milhões sob as custas da extrema fartura de muito poucos. A justiça estaria na punição do faminto pelo crime de furto e aplicação de pena já que o justo é o que está subsumido na norma. Daqui se extrai um caso de aberrante injustiça material e social, mas legitimada pelo justo legal. Ocorre que é justamente o jurista que não abandona de vista a busca pela justiça (não só formal, mas pelo justo concretizado na realidade) aquele mais necessário para se somar às luta sociais e dos trabalhadores por transformações. Existem muitas trincheiras de lutas a serem abertas e defendidas por aqueles que lutam pela sociedade igualitária, sem classes sociais, pós-capitalista por meio do Direito. E assim termina o livro do prof. Mascaro:

“O jurista médio, frio e tecnicista, só tem olhos às normas jurídicas estatais. O grande jurista tem os olhos voltados à esperança de um mundo justo”.