terça-feira, 22 de dezembro de 2020

“O Reformismo e a Contrarrevolução” – Ruy Mauro Marini


 




Resenha Livro - “O Reformismo e a Contrarrevolução – Estudos Sobre o Chile” – Ruy Mauro Marini – Tradução de Diógenes Moura Breda - Ed. Expressão Popular – São Paulo - 2019

 

“O regime militar imposto em 11 de Setembro de 1973 encerrou uma etapa da vida chilena que, começando pelo aprofundamento das contradições interburguesas e pela radicalização do movimento popular, levou finalmente, por mediação, inclusive, da formação de um governo de esquerda que esses acontecimentos tornaram possível, à crise do sistema de dominação burguês. A oposição entre os órgãos de Estado, a divisão crescente entre as fileiras militares, o surgimento de órgãos embrionários de poder à margem do Estado foram a expressão da crise global que se desencadeou no seio da sociedade chilena. O drama da Unidade Popular e, em particular, das forças que a hegemonizaram – o Partido Comunista e a corrente allendista – foi não compreender que a vitória de 1970, reafirmada em 1973 (quando a coalização governamental atingiu 44% da votação nas eleições parlamentares) não era a manifestação de um simples processo acumulativo, que permitisse esperar o aumento progressivo da força eleitoral da esquerda até o momento de poder alcançar, em 1976, não só a eleição de um novo governo de esquerda, mas também de uma maioria parlamentar: essa vitória era antes uma explicitação das contradições de classes, que não deixavam outra saída senão o enfrentamento direto entre elas”.  (MARINI, Ruy Mauro. “Duas Estratégias No Processo Chileno”).

 

A passagem supracitada ressalta um traço bastante peculiar da história política do Chile, que se convencionou chamar “a via chilena ao socialismo”. Em 04/09/1970 com a eleição de Allende e da Unidade Popular, observa-se a ascensão de um governo de esquerda que propõe a passagem ao socialismo respeitando à legalidade e os limites institucionais vigentes. A Unidade Popular (UP) nada mais era do que uma coalizão eleitoral envolvendo marxistas e sociais democratas, desde o início compromissada com o sistema político vigente. O que Ruy Mauro Marine chama atenção, contudo, é que o problema colocado à esquerda chilena não era o da transição ao socialismo, mas um problema anterior, que correspondia à questão da tomada do poder – e que não se confunde com a vitória eleitoral no governo. Esta ilusão das esquerdas perpassa todo o período de setembro de 1970 até 11 de Setembro de 1973, quando do golpe militar contrarrevolucionário. Uma lição essencial do processo é o de que o reformismo, ao abalar o regime de dominação burguês, sem, contudo, preparar o povo para a revolução, estará condenado a ser a antessala da contrarrevolução. No caso da experiência chilena, uma contrarrevolução nitidamente fascista e brutal, com o assassinato de 3.000 pessoas e o exílio de outros 200.000,00.  A “via chilena ao socialismo”, ou a pretensão de transformar estruturalmente a sociedade burguesa sem propor ultrapassar os seus próprios limites, ainda suscita lições importantes e atuais.

 

Antecedentes

 

Os artigos reunidos nesta coletânea preparada pela Editora Expressão Popular em parceria com a Adunirio[1], são textos escritor no calor da hora, entre 1970 e 1974. Importante frisar que Ruy Mauro Marini acompanhava os acontecimentos in loco. Depois do golpe militar de 1964 no Brasil, Marini exilou-se no México, após ter sido preso e torturado no CENIMAR/RJ. Na década de 1970 transfere-se ao Chile onde leciona na Universidade de Santiago até o golpe de setembro de 1973.

 

Ruy Mauro Marini também integra o comitê central do MIR, movimento da esquerda revolucionária, que compõe uma ala mais à esquerda da Unidade Popular.

 

No que se refere à luta da UP contra os golpistas nos anos de 1970-1973, observa-se que dentro da frente de esquerda há duas tendências. Uma tendência ligada ao allendismo e ao Partido Comunista buscava a realização de acordos com a burguesia, particularmente com a Democracia Cristã. O MIR de outro lado defendia o controle operário da produção como forma de combater a sabotagem e o desabastecimento encorajado pelos setores patronais.

 

Em artigos de março de 1973, Marini já acentua uma escalada de um movimento fascista chileno impulsionado pelo grande capital nacional e internacional, se fortalecendo sob a base da luta econômica levada à cabo pela direita com a especulação e os mercados paralelos. A especulação na frente econômica lança a pequeno burguesia contra a classe trabalhadora, cria confusão nas fileiras dos setores populares próximos ao proletariado e fortalece a coesão burguesa. A escalada não impediu que poucos meses antes do golpe, Allende, seguindo a tendência geral da conciliação, propusesse um plebiscito para deliberar sobre sua renúncia, além de colocar nada menos do que Augusto Pinochet como chefe do exército.

 

Os artigos de Ruy Mauro Marini igualmente abordam o tema da economia e da sociedade chilena na década de 1960/70 e as condições históricas que possibilitaram a vitória eleitoral da UP.

 

A vitória eleitoral de Allende se deu em margem apertada, contando com 36% ou 1/3 dos votos. A esquerda venceu eleitoralmente muito em função da divisão eleitoral da direita, representada pelo Partido Nacional e pela Democracia Cristã. A década de 1960 é um período de estagnação econômica do Chile. A perda do dinamismo industrial estimula a divisão entre os grupos capitalistas. É certo, por outro lado, que a eleição de Allende se dá no contexto de crise profunda do sistema de dominação burguês e escalada ininterrupta do movimento de massas, em especial no campo. O autor suscita dados convincentes neste sentido, como o aumento no número de sindicalização, e do movimento grevista, com destaque para os setores mais dinâmicos politicamente.

 

Balanço de uma derrota



 


O reformismo da UP certamente não se confunde com a experiência dos partidos ditos progressistas no Brasil no período de Lula e Dilma Rousselff. Allende nacionalizou a indústria do cobre, a principal do país, nacionalizou grandes e médias indústrias, promoveu a reforma agrária,  aumentou os salários e congelou os preços de mercadorias, promoveu reformas que efetivamente se contrapunham aos interesses gerais da burguesia.

 

Contudo, o seu reformismo, pelo próprio fato de abalar a sociedade burguesa até os seus alicerces sem se atrever a destruí-la, acabou se transformando de fato na antessala da contrarrevolução.

 

Nos momentos de maior acirramento da luta de classes no ano de 1973 as organizações operárias propunham o armamento e a autodefesa. É  sintomático que Allende e os reformistas firmassem acordo com a direita determinando que forças do governo desarmassem os operários na marra,  poucos instantes antes do golpe de 1973.

 

A “via chilena ao socialismo”, qual seja, “a conquista gradual e pacífica do poder político, sem a ruptura brusca da ordem burguesa, acompanhada da liquidação das bases da dominação imperialista, latifundiária e monopólica, através de medidas formuladas com a perspectiva de construção do socialismo[2]redundou num inequívoco fracasso cujas lições aparentemente não foram mesmo aprendidas pela própria esquerda chilena. Naquele país o fim da ditadura militar ocorreu mediante uma pactuação semelhante (mas não idêntica) da chamada Nova República brasileira, com a reiteração da política da esquerda de conciliar e fazer acordos com a direita. Quando das explosões de mobilizações da juventude chilena nestes últimos anos, verificou-se uma desconfiança tanto com relação à direita, quanto com à esquerda tradicional, algo parecido com o sentimento de desconfiança da juventude em junho de 2013. Que a leitura destes artigos do revolucionário mineiro Ruy Mauro Marini contribua para que as novas gerações extraiam as lições das derrotas históricas  e dos limites do reformismo, mesmo na sua versão mais radical com a “via chilena”.  

 



[1] Seção sindical dos docentes da Unirio, filiada ao Andes-SN

[2] MARINI, Ruy Mauro. “A Pequena Burguesia e o Problema do Poder”.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

“Marcoré” – Antônio Olavo Pereira

 “Marcoré” – Antônio Olavo Pereira




 

Resenha -  “Marcoré” – Antônio Olavo Pereira – José Olympio Editora – 13ª Edição

 

“Minha terra tem um viver miúdo, semelha o curral de Sabino. O gado se movimenta pelas pastagens em grupos distintos, come, trabalha, muge, ama. Os bezerros correm, saltam as moitas. Os bois velhos são afastados, vão para o cutelo”.

 

Um principal traço distintivo deste romance do escritor paulista Antônio Olavo Pereira é a ausência de heróis, a quase inexistência de grandes conflitos dramáticos que desencadeiam tragédias humanas. Pelo contrário, a história vai se passando com a descrição da experiência cotidiana de homens e mulheres de uma cidade do interior paulista em meados do século XX. Uma criança que nasce, um casamento que se desfaz, um coronel que morre de velhice, um padre que cuida de suas ovelhas, tudo se passando como se se sucedem as estações, ou o “gado miúdo de Sabino”.

 

Isso não significa que a leitura da história em algum momento descambe no tédio. Pelo contrário! Segundo o posfácio de Antônio Houaiss:

 

“Obra essencialmente anti-heróica, vinculada com o cotidiano em fidedigna coerência, consegue, não obstante, manter um nível de excepcional interesse em todas as suas páginas – pela sabedoria com que são conotados os acidentes do efêmero, nos planos de vida que se cruzam dentro da trama”.

 

A história é narrada em primeira pessoa por Mariano, um oficial maior que trabalha no cartório de seu sogro numa provinciana cidade do interior paulista. Quando do início na narrativa, Mariano tem 40 anos, está há 10 anos casado com Sílvia e, após uma longa espera e expectativa, descobrem finalmente a gravidez.

 

Os primeiros instantes do livro remetem à noção de paternidade. Desde a gravidez, ser pai já significa ser forçado a modificar hábitos enraizados. Silvia nega o sexo ao seu marido, já na gestação. Após o nascimento de Marco Aurélio, vulgo Marcoré, Sílvia confessa a Mariano que ao longo das dificuldades do parto, fez uma promessa religiosa em que abriria mão da relação carnal em definitivo, desde que a criança nascesse e crescesse com saúde. A esposa consente mesmo que Mariano mantenha mesmo relação extra conjugal: sua preocupação e sua dedicação é exclusiva para Marcoré.

 

Sobre a notícia de que Sílvia renunciava em definitivo à relação carnal, comenta Mariano:

 

“Já senhora de si e vendo-me rendido, mudou de assunto com habilidade. Eu continuava atordoado, mas já consciente de que passáramos a representar dois corpos perfeitamente distintos, tanto quanto possível sintetizados na criança de cílios longos que dormia ao lado de nossa cama. Tinha a sensação de que uma cunha se introduzira entre nós, de que uma fenda se produzira em nossa intimidade”.

 

É interessante notar que o nascimento da criança cria de fato uma fenda, primeiro separando os pais, depois colocado em oposição Mariano e sua sogra, D. Ema, e por fim cindindo Marcoré e seu pai. Todo o núcleo familiar que reside sobre o mesmo teto, Mariano, Sílvia, D. Ema, o sogro Seu Camilo passam a viver em função de Marcoré, de sua felicidade e de sua alegria. Este engajamento é tragicamente o ponto de partida da dissolução da família, acarretando num final em que a solidão e a tristeza parece ser o horizonte comum da vida todos.

 

Depois da morte dos parentes e do abandono pelo filho, que se muda para São Paulo,  o narrador em seus instantes finais suscita sentimentos de solidão que não envolvem revolta, mas o cansaço físico e espiritual oriundos da velhice, bem como o reconhecimento da fatalidade do drama vivido:

 

“A noite avança, há uma paz profunda na casa deserta. Não mais que lembranças de seus mortos lhe povoam o silêncio de trevas. Todos os ruídos de vida que me chegam são insólito, vêm da cidade que se prepara para receber o Ano Novo.

 

Nenhum sentimento de revolta ou inconformidade. Tenho o coração calmo, embora fatigado por toda uma existência de equívocos. Nenhuma constrição também, pois me recuso a aceitar o papel que me foi atribuído por meu filho. No balanço geral, cuido só ter havido vítimas, sem discriminação possível dos culpados”.

 

Para  Houaiss, o estilo da linguagem do livro é conciso, “preciso, enxuto, correto e sábio”. Antônio Cândido menciona “ainda a perfeição da língua e da composição, sem uma falha, sem o menor deslize, de um gosto apurado e, ao mesmo tempo, de uma total eficácia”. A obra igualmente recebeu elogios de Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre e José Lins do Rego, além de ter o autor recebido o prêmio Coelho Neto pelo romance da Academia Brasileira de Letras. Trata-se de um romance intimista, na melhor tradição dos romances de Graciliano Ramos: a franqueza do narrador e o intimismo com que partilha suas emoções remontam ao Paulo Honório de São Bernardo e ao Luís da Silva de Angústia.      

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

“A Rosa do Povo” – Carlos Drummond de Andrade

 “A Rosa do Povo” – Carlos Drummond de Andrade



 


Resenha Livro - “A Rosa do Povo” – Carlos Drummond de Andrade – Editora Record – 36ª Edição – 2006

 

“E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,

submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor

rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,

mas não a quero negando as outras horas nem as palavras

ditas antes com voz firme, os pensamentos

maduramente pensados, os atos

que atrás de si deixaram situações.

Que o riso sem boca não a aterrorize,

E a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,

Dedos torcidos, lívido

suor de remorso.

 

E a matéria se veja acabar: adeus composição

Que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade

 

(...)"

 

(“Os Últimos Dias” – Rosa do Povo – Carlos Drummond)  

 

Quando Carlos Drummond de Andrade publicou o poema parcialmente reproduzido acima no ano de 1945, o poeta tinha 43 anos e apenas estava começando a se projetar no mundo literário do país.

 

Em 1942 assina contrato com a José Olympio, editora que publicaria os trabalhos do escritor por 41 anos. O seus primeiros livros, “Alguma Poesia” (1930), “Beijo das Almas” (1934) e “Sentimento do Mundo” (1940) tiveram respectivamente 500, 200 e 150 exemplares, tiragens promovidas e parcialmente pagas do bolso do próprio poeta. Foram apenas distribuídas aos seus amigos.

 

Aos poucos o reconhecimento artísticos viria, em resposta a um labor que já vinha de muitos anos. No caso do poema supracitado, o tema, como se nota, é a morte e o receio do instante final. No caso do nosso poeta, a morte só viria em 1987, quando Carlos Drummond tinha 84 anos e um reconhecimento nacional e internacional de sua obra. O escritor morreu doze dias após a morte de sua filha, a também escritora Maria Julieta, vítima de um câncer. CDA escreveu em um diário após o falecimento da filha “Assim terminou a vida da pessoa que mais amei neste mundo”.

 

Os poemas de “A Rosa do Povo” foram escritos entre 1943/1945. O livro foi publicado em 1945: em que pese ter recebido boa acolhida do público e da crítica, não teve edições autônomas posteriores pela José Olympio.

 

Nas palavras do escritor na introdução escrita 40 anos depois da primeira edição:

 

“Quis a Record (editora) fazê-lo voltar à situação primitiva, como obra que, de certa maneira, reflete um ‘tempo’, não só individual, mas coletivo no país e no mundo. Escrito durante os anos cruciais da Segunda Guerra Mundial, as preocupações então reinantes são identificadas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas ilusões feneceram mas o sentimento moral é o mesmo – e está dito o necessário”.

 

É certo que a situação política do Brasil e do Mundo envolvia o prestígio da democracia, o rechaço ao nazi-faciscmo, e, em especial, o fortalecimento das simpatias dos povos pela URSS que, no contexto imediato do pós II Guerra, saiu-se inequivocamente como a maior responsável pela vitória militar sobre o nazi-facismo, com todas as consequências que esta vitória teve para os rumos da humanidade.

 

Hoje em dia, o senso comum decorrente de um discurso ideológico da guerra fria, certamente terá dificuldade de compreender o respeito que a URSS presidida por Stálin despertou pelos povos mundo afora, inclusive no Brasil. Em 1939 e em 1942 a revista norte-americana Times elegeu Stálin como homem do ano. Depois de estar praticamente sempre na ilegalidade desde 1922, o PCB não só conquistou a legalidade em 1945, como elegeu uma ampla bancada comunista na assembleia constituinte de Dutra, da qual foram parte Luís Carlos Prestes, Carlos Marighella, Jorge Amado e Maurício Grabois.

 

No ano de 1942 houve a batalha de Stalingrado (1942/1943). A batalha é conhecida como um ponto de virada dos limites da expansão nazista no território soviético, a partir de onde o exército vermelho empurraria as tropas nazistas até Berlin. Nada menos do que três poemas deste “Rosa Do Povo” fazem menção à Stalingrado, à vitória militar dos comunistas sobre os nazistas e ao socialismo: “Cidade Prevista”, “Carta a Stalingrado” e “Telegramas de Moscou”. O primeiro destes três poemas canta e anuncia um novo mundo, antevisto pelos poetas, um futuro que supera o atual “mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é bolo com flores”:

 

“Um mundo, enfim ordenado,

Uma pátria, sem fronteiras,

Sem leis e regulamentos,

Uma terra sem bandeiras,

Sem igrejas nem quartéis,

Sem dor, sem febre, sem ouro,

Um jeito só de viver,

Mas nesse jeito a variedade,

A multiplicidade toda

Que há dentro de cada um.

Uma cidade sem portas,

De casas sem armadilha,

Um país de riso e glória

Como nunca houve nenhum.

Este país não é meu

Nem vosso, ainda, poetas.

Mas ele será um dia

O país de todo homem”.

 

Não seria nada exato, contudo, caracterizar  a poesia e prosa de CDA como um trabalho militante e, muito menos, como ideologicamente comprometidas com o socialismo. Mesmo neste “Rosa do Povo”, que é provavelmente o mais politizado dos livros do escritor mineiro, os temas especificamente políticos não são maioria.

 

Pelo contrário, as temáticas variam da forma de fazer poemas, da rotina e do trabalho burocrático dos funcionários públicos, do amor e até do contar histórias em poesia. O que é interessante de se notar é que os temas dos poemas parecer terem sido agrupados de tal forma que é recomendável a leitura na ordem proposta pelo escritor – o livro parece uma espécie de ópera ou grande musical em que se intercalam momentos de maior e menor tensão.

 

O poeta começa nos poemas “A consideração do Poema” e “Procura da Poesia” apresentando sua proposta literárias: versos livres, sentimentos que variam da tristeza ao humor e à ironia, a total oposição à poesia parnasiana como todo bom poeta modernista.

 

Logo no início do livro o escritor afirma que não rimará a palavra sono com a incorrespondente palavra outono, mas rimará com a palavra carne ou outra que lhe convém. Mais do que poemas ideologicamente de esquerda, o crítico Affonso Romano de Sant’Anna vê uma relação entre este trabalho e o existencialismo, corrente filosófica que suscita uma tentativa e impossibilidade de inserção plena do indivíduo no mundo. Um mal estar que se expressa talvez no mais auto ponto poético de “A Rosa do Povo”, o poema “A Flor e Náusea”.

 

Certamente, não se trata de um desespero ante uma realidade sem saída, como vimos. Stalingrado, na distante Rússia, ainda remete a um ponto de esperança. E talvez seja mesmo imprescindível salientar que a última palavra redigida no último poema da coletânea seja justamente a palavra esperança:

 

“Poder de voz humana inventando novos vocábulos e dando sopro aos exaustos.

Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,

Crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores,

Ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança”.  

 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

“A Casa do Morro Branco” – Rachel de Queiroz

 

“A Casa do Morro Branco” – Rachel de Queiroz



 


Resenha Livro - “A Casa do Morro Branco (contos)” – Rachel de Queiroz – Editora Siciliano – São Paulo 1999

 

Os romances da escritora cearense Rachel de Queiroz se situam dentro de uma corrente literária comumente classificada como a 2ª Fase do Modernismo Literário. Se na primeira geração modernista, escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia suscitam de maneira pioneira uma forma literária especificamente nacional, deixando de basear a literatura em modelos e escolas literárias estrangeiras como se verificou desde o romantismo, o realismo e o naturalismo, esta segunda geração de certa maneira aprofunda o projeto nacionalista, só que por meio do regionalismo.

 

Não se verifica no regionalismo de escritores como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos ou Jorge Amado o mero pitoresco, o folclórico, ou uma descrição dos tipos populares como se os personagens fossem quase que inteiramente condicionados pelo meio social da pobreza, pela raça e pela geografia, como acontece de maneira nítida nos romances naturalistas. É certo que os escritores naturalistas foram pioneiros em dar algum protagonismo a personagens oriundos do povo, como nas descrições do Cortiço de Aluízio de Azevedo ou dos tipos do subúrbio carioca suscitados posteriormente por Lima Barreto.

 

Com os modernistas, contudo, os personagens do povo surgem como algo que vai além do superficial e do folclórico, os seus dramas e suas contradições fazem como que as suas histórias vão além de um mero juízo do certo ou do errado, do herói e do vilão. No regional se alcança o universal, do contato com as condições de vida do povo simples do campo, das vilas e cidades, entramos em comunhão com a experiência trágica que informa em qualquer tempo e lugar a trajetória humana.

 

A qualidade artística daqueles escritores regionalistas se comprova justamente pela atualidade dos dilemas suscitados pelos seus personagens, perdidos em rincões afastados no interior do país, há muitos e muitos anos.

 

São características da arte modernista deste período situado entre 1930 e 1945, uma narrativa de tipo realista, com compromisso do narrador em descrever de forma fiel pessoas e cenários. Há uma inequívoca valorização da cultura popular do país, um nacionalismo que se expressa em tendências culturais regionais. A temática do cotidiano e uma linguagem coloquial estão sempre presentes. E, aqui se destacando das narrativas naturalistas, há uma preocupação com a análise psicológica das personagens, sempre se sondando as intenções, as palavras que foram pensadas e não foram ditas, as hesitações, os sentimentos contraditórios que acompanham os atos, fugindo assim de uma explicação das pessoas e de suas atitudes por uma mera justificativa “científica” da influência do meio social, da raça e do meio ambiente.

 

A “Casa do Morro Branco é uma antologia de 14 contos de Rachel de Queiroz.

 

Nas pequenas histórias coexistem temas que são atemporais e remetem àquela universalidade que a arte aspira ao possibilitar um contato íntimo do leitor com as experiências e emoções de personagens distantes no tempo e no espaço. E temas nitidamente regionalistas, por exemplo, no conto com certo tom de humor denominado “Telefone” que descreve os embates de duas famílias de coronéis (Major Francisco Leandro, chefe do partido marreta, e Benvido Assunção, chefe rabelista) na pequena cidade de Aroeiras na Paraíba.

 

A chegada do primeiro telefone na cidade, instalado apenas na delegacia, na estação de trem, na Câmara, na casa do juiz e na residência dos dois chefes políticos rivais, é o ponto de partida da narrativa. Ironicamente, o instrumento que serve para a comunicação e aproximação de pessoais irá detonar um conflito na cidade com consequências trágicas.

 

De maneira geral, os contos têm como protagonistas as gentes simples do campo e das pequenas comarcas do nordeste. “Vozes d’África”, nesse sentido, é não só uma narrativa literária, mas um documento para o historiador conhecer a vida de camponeses humildes cuja origem ancestral comum é dos escravos africanos. As casas em que moram é de taipa e não têm cerca ao redor “porque os donos de terra tão sem valia não se interessam por divisas”. O telhado das casas de pau a pique é de sapé apanhado “ali mesmo, no morro, porque sapé comprado está custando dois cruzeiros e cinquenta centavos o molho pequeno”. O chão da casa é de barro batido e “a criançada é tanta, que só de pensar dá agonia”:

 

A luz que se gasta em casa é querosene, que o carreiro traz da bomba da Ribeira. Mas nestes tempos de dificuldade e carestia, muitas vezes a mãe tem acendido a velha candeia de azeite que a sogra lhe deixou de herança. A luz faz cada lista preta na parede que chega a subir para o sapé – mas alumia que chegue.

 

Noite de lua todos se juntam no terreiro varrido, em frente à casa. As crianças rodam na gangorra e os mais velhos ficam sentados em redor do poço, conversando com alguma visita. E tudo é tão bonito e tão quieto, que a mãe sempre acaba falando em aproveitar uma noite daquelas, que caia em tempo de festa do Senhor São Jorge (na frente de estranho ela não fala Ogum), para fazer um terço, enfeitar a frente de casa de bandeirinhas e, no último dia, comerem um leitão de forno. Mas sempre é interrompida por uma briga da criançada ou uma queda da gangorra. Levanta-se, bate as saias, vai acudir o menino e suspira:

 

- Ai que vida, Jesus!”

 

Outros contos desta coletânea fogem um pouco da orientação realista e se estendem ao campo do fantástico e do irreal, como “Ma-Hôre”, uma trágico- cômica história de uma expedição interplanetária mal sucedida, após contatos extraterrestres no planeta W-65; e as histórias de fantasmas e espíritos suscitadas em “A Presença de Leviatã”, “O homem que plantava maconha ou Exu Tranca Rua” e “Cremilda e o Fantasma”.

 

Fica o convite para editores do país darem uma nova edição a este livro de contos, aparentemente esquecido, de Rachel de Queiroz.

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A Literatura Infantil de Graciliano Ramos

 A Literatura Infantil de Graciliano Ramos




 

O escritor alagoano Graciliano Ramos é reconhecido por uma literatura que se situa no campo do modernismo, já em sua segunda fase. Junto com outros escritores como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Amando Fontes e Jorge Amado, desenvolveu uma arte de tipo regionalista, descrevendo tipos e pessoas dos extratos mais baixos da sociedade, sem com isso cair em caricaturas, ou estereótipos superficiais.

 

Estes escritores foram, neste sentido, muito além da literatura naturalista do século XIX que, se por um lado, foram pioneiros em chamar a atenção e dar protagonismo a personagens oriundos do povo, faziam-no não sem uma certa superficialidade, chegando a definir as personalidades como que condicionadas ao meio social, dentro da perspectiva do determinismo, ou como que determinadas pela raça, sob a influência do darwinismo e o pensamento cientificista típico do período.

 

A perspectiva de Graciliano Ramos e dos demais escritores de sua geração é completamente diferente. Naqueles escritores modernistas, as personagens populares aparecem com suas contradições humanas, suscitam sentimentos e ações que não se explicam apenas pela pobreza do meio ou da raça, os seus atos e palavras não se encerram em lógicas binárias de bem ou mal, certo ou errado, heróis e vilãos.

 

Talvez apenas Jorge Amado, na primeira fase de sua produção literária, chegaria mesmo a dar um colorido de heroísmos aos tipos populares, como nos camponeses dos campos de cacau (“Cacau” – 1933) e nos menores infratores da lei no seu famoso “Capitães de Areia” de 1937.

 

No que se refere a Graciliano Ramos, ficaram na memória dos seus leitores a saga da família retirante de uma seca no sertão nordestino, quando a bestialização dos seres humanos, que se comunicam com grunhidos e interjeições, convive com a humanização da natureza, nitidamente da cachorra, ironicamente designada de Baleia.

 

A seca e a transitoriedade da vida humana surgem como uma fatalidade, ainda que a arbitrariedade do soldado amarelo que agride e prende Fabiano sugira que as coisas não necessariamente deveriam ocorrer da forma como ocorrem.

 

Além dos seu “Vidas Secas” (1938), livros como “São Bernardo” (1934) e “Angústia” (1936) certamente são o que há de melhor em todo a história da literatura em língua portuguesa.  

 

Menos conhecidos são os trabalhos de literatura infantil do nosso escritor. No caso de “Alexandre e Outros Heróis” (1940) e “A Terra dos Meninos Pelados” (1937) descobrimos um tipo de literatura diferente dos romances de adulto supracitados. O realismo da literatura de adulto se confunde com o fantástico, com o pensamento lúdico da criança.

 

Alexandre é um típico contador de histórias dos tempos passados. A sua apresentação é feita logo na introdução:

 

“No Sertão do Nordeste vivia antigamente um homem cheio de conversas, meio caçador e meio vaqueiro, alto, magro, já velho, chamado Alexandre. Tinha um olho torto e falava cuspindo a gente, espumando como um sapo-cururu, mas isto não impedia que os moradores da redondeza, até pessoas de consideração, fossem ouvir as histórias fanhosas que ele contava”.

 

Ainda na introdução, o escritor alerta que as histórias de Alexandre não são originais, mas pertencem ao folclore do Nordeste, sendo possível que algumas tenham sido escritas.

 

Em que pese o contador de história jurar que os eventos narrados são reais, aconteceram de fato, são-nos narrados a história de um papagaio inteligente que defende presos no tribunal, de uma cachorra “moqueca” que fazia compras na feira para o seu dono, identificando e protestando com latidos a entrega de uma nota falsa, histórias de Alexandre montado numa onça que confundira cm cavalo. Há um aspecto de folclórico nas histórias, animais de roça como a cobra e a onça, que frequentemente despertam o medo na imaginação dos camponeses, aparecem em situações inusitadas.   

 

As histórias populares são contadas aos mesmos ouvintes. O cego preto Firmino é incrédulo e questiona detalhes da narrativa de Alexandre, sem, contudo, lograr identificar inequivocamente a falsificação. O mestre Gaudêncio é curandeiro e Libório é cantador de emboadas, desejoso de transformar em música as histórias de Alexandre. Das Dores é afilhada do contador de história e benzedeira de mal olhado. Finalmente, Cesária é a mulher de Alexandre, ratifica e confirma as narrativas do marido ajudando com datas e números. Os ouvintes das histórias são pessoas tão despojadas como Alexandre. Este, por sua vez, cria por sua cabeça um mundo imaginário que compensa a sua penúria.  

 

A “Terra dos Meninos Pelados” também é uma narrativa fantástica, desta vez não oriunda da imaginação de um velho contador de histórias, mas da mente lúdica de uma criança.


Raimundo era careca, tinha um olho azul e outro preto. Cansado da mangação das outras crianças, ingressa mundo mágico em que um carro, quando parecia ir atropelá-lo, para o movimento e explica à criança que naquelas bandas ninguém se machuca. Uma laranjeira gigante é capaz de falar e dá uma laranja à criança. O rio fecha a si mesmo, juntando as suas margens, para facilitar a travessia dos passantes. Finalmente, Raimundo se depara com um mundaréu de crianças que, como ele, são carecas, cada uma com um olho de cor diferente. É interessante observar que mesmo no mundo imaginário da terra dos meninos pelados, há um menino anão que também é objeto de mangação pelas demais crianças – mesmo no mundo da fantasia, existem as dificuldades do mundo real.

 

Se em Alexandre, o real se sobrepõe ao imaginário com a morte do contador de histórias (“não reparem na falta não meus amigos. Vou dormir.”), também no conto dos meninos pelados, Raimundo termina tendo que sair do mundo fantástico ao mundo real:

 

“Raimundo começou a descer a serra de Taquariu. A ladeira se aplanava. E quando ele passava, tornava a inclinar-se. Caminhou muito, olhou para trás e não enxergou os meninos que tinham ficado lá em cima. Ia tão distraído, com tanta pena, que não viu a laranjeira no meio da estrada. A laranjeira se afastou, deixou passagem livre e guardou silêncio para não interromper os pensamentos dele.

 

Agora Raimundo estava no morro conhecido, perto de casa. Foi-se chegando muito devagar. Atravessou o quintal, atravessou o jardim e pisou na calçada.

 

As cigarras chiavam entre as folhas das árvores. E as crianças que embirravam como ele brincavam na rua”.  


Bibliografia 


RAMOS, Graciliano. "Alexandre e Outros Heróis". Ed. Martins Editora. 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Notas Sobre Maurício Grabois

NOTAS SOBRE MAURÍCIO GRABOIS





É comum ouvir-se um certo dito ou chiste segundo o qual o temperamento revolucionário é um “ímpeto da juventude”, corrigido invariavelmente pelo tempo. Num sentido semelhante, ainda que oposto, Bertold Brecht poetizou: “há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”.

 

Quando Maurício Grabois faleceu em 25 de Dezembro de 1973, tinha 61 anos de idade e um passado de militância incluindo eleição como deputado constituinte pelo PCB no ano de 1946. Morreu em Xambioá, no Pará, depois de 6 (seis) anos lutando de armas nas mãos contra a ditadura militar brasileira na Guerrilha do Araguaia. Levou para lá o seu filho André Grobois, que foi morto em combate pouco antes, em 1972.

 

Trinta e sete anos após a sua morte veio ao público um diário escrito pelo dirigente comunista da guerrilha, cobrindo 605 dias na floresta amazônica, entre abril de 1972 e dezembro de 1973[1].

 

Lendo este diário, nota-se a confiança que guiava aqueles guerrilheiros, em que pese as dificuldades da doença (malária), da falta de comida, da dificuldade de movimentos na densa mata, e da ausência de instrumentos eficazes de comunicação, agitação e propaganda política.

 

Como é cediço, foi no congresso de 1966 que a maioria dos militantes do PCdoB, fundado em 1962, deliberou pela resistência armada ao regime militar.

 

Enquanto grupos como a ALN de Marighella, o MR-8, a VPR e VAR-Palmares optaram pela luta nos centros urbanos, o PCdoB tinha uma tática diferente: acreditavam que o melhor caminho era iniciar uma luta de longa duração, numa área de difícil acesso, afastada dos grandes centros urbanos. 

 

A ideia não era propriamente a de desencadear desde o início uma luta armada contra o estado desde as distantes florestas amazônicas. Os militantes PCdoB tinham a noção de que deveriam começar se instalando nesta região remota e desenvolver um trabalho paciente de mobilização e esclarecimento da população local, de forma a ganha-la aos poucos para a guerrilha.

 

Contudo, a descoberta precoce do movimento pela repressão determinou um enfrentamento militar em condições francamente desfavoráveis: nos diários, Grabóis relata que a repressão envolvia militares da marinha, exército e aeronáutica, polícia federal e a polícia militar do Pará. A ditadura procurou ao máximo ocultara existência da guerrilha, diziam que estavam lá para combater bandidos comuns e contrabandistas.

 

Grabóis fora, antes a guerrilha, um destacado dirigente do PCB, partido no qual ingressou no ano de 1932. Participou do levante comunista de 1935, pejorativamente designado por historiadores como a Intentona Comunista. Quando da conferência da Mantiqueira do PCB em 1943[2], Maurício Grabois foi eleito membro do comitê central do partido.   

 

Dissensões na direção do PCB ocorreriam de forma mais acentuada a partir de 1956, com as denúncias de Kruschov sobre o estalinismo no XX Congresso do PCUS. Jorge Amado, companheiro de Grabois na constituinte de 1946 e amigo do nosso dirigente, diria que àqueles dias foi a primeira vez que observara algum abatimento em Maurício.

 

O artigo “Duas Concepções, Duas Orientações Políticas”, escrito por Maurício Grabois em 1960 antecipa o seu rompimento com o partido e sinaliza críticas que Marighella igualmente faria algum tempo depois, já no momento em que as esquerdas faziam o balanço político da derrota de 1º de abril de 1964.

 

Aqui, Grabois critica a Declaração de Março de 1958, aprovada pelo CC do PCB. De maneira geral, a declaração subordina as tarefas democráticas do partido, como a luta pela reforma agrária, ao fator puramente nacional. Ao ponto de se admitir a aliança dos comunistas com latifundiários e setores da burguesia nacional em contradição (real ou aparente) com o imperialismo norte americano. A subordinação dos comunistas às frações da burguesia nacional, supostamente em contradição com o imperialismo, tirava o protagonismo do partido junto ao proletariado e seu aliado imediato, o campesinato. Seria possível que até mesmo a oposição de direita tirasse proveito do descontentamento popular, ante a apatia dos comunistas.

 

Na prática, afirma Grabois, o PCB afirmava-se como mais um partido nacionalista, não se diferenciando do PTB e da Frente Parlamentar Nacionalista.

 

A Declaração embeleza o capitalismo. Procura mostrar que a indústria brasileira atingiu elevado nível de crescimento e atribui este crescimento ao capital nacional. Mas, na realidade, o imperialismo também participa desse processo de industrialização, domina ramos fundamentais da indústria do país. O exagero na apreciação do papel do desenvolvimento capitalista no processo revolucionário, leva a Declaração a idealizar a burguesia, que é tratada como se fosse força consequente, capaz de defender até o fim os interesses nacionais. Toda a orientação estratégica e a linha tática expostas na Declaração têm em vista quase que exclusivamente os interesses da burguesia, conduzem ao fortalecimento de suas posições políticas, em prejuízo das demais forças revolucionárias”.

 

Nestas críticas à política pcbista de 1958 constam também: a renúncia pelos comunistas da luta pelo poder, substituída pela gradual ocupação de posições no parlamento por políticos progressistas; a defesa da via pacífica para a revolução brasileira, desarmando o proletariado brasileiro para as eventualidades que viriam a seguir.

 

De fato, a tese de uma “democratização crescente da vida política brasileira” mostrou-se um retumbante erro dos comunistas, nitidamente diante do que ocorreria apenas 6 anos depois. Afinal, conclui Grabois em 1960, “embora o país, atualmente, viva num clima de relativa liberdade, não se pode assegurar que a democratização é uma tendência permanente na vida brasileira, uma vez que as forças reacionárias se mantêm no poder e sempre que seus interesses são atingidos, apelam para a violência e atentam contra as liberdades democráticos”.

 

O cometimento de erros, ainda que trágicos, são escusáveis. Não é desculpável aos comunistas, por outro lado, deixar de aprender com os erros do passado.  



[1] O diário de Maurício de Grabois está disponível no link: https://www.marxists.org/portugues/grabois/1973/12/diario.htm - Acesso em 23/11/2020.

[2] “II Conferência Nacional do Partido Comunista do Brasil - PCB, realizada na clandestinidade em 28 e 30 de agosto de 1943, em pleno Estado Novo. Nesta conferência, que reuniu em Engenheiro Passos, RJ, representantes do Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia, Sergipe e Paraíba, foi decidido que o Partido iria se empenhar para o Brasil entrar na guerra contra o nazismo; Prestes, mesmo encontrando-se preso, foi eleito para o Comitê Central no cargo de Secretário Geral; Foi aprovado uma linha política inspirada nos modelos da união nacional em torno do governo, com o apoio incondicional a Vargas e o fortalecimento ideológico do partido contra as tendências de liquidação do PCB. As resoluções aprovadas serviriam de linha condutora das posições do PCB no período de 1945 a 1947”. - https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/c/conferencia_mantiqueira.htm

NOTAS SOBRE HO CHI MINH

 NOTAS SOBRE HO CHI MINH



 


O Vietnã é um pequeno país situado no sudeste asiático, localizado na península da Indochina. Faz fronteira com a China ao norte, com Laos e Camboja a oeste e com o mar da China Meridional ao leste e sul. Esta pequena nação gravou o seu nome na história da luta anticolonialista do século XX, quando, num período de algumas décadas, derrotou militarmente os imperialismos francês, japonês e norte-americano.

 

A revolução vietnamita, assim como a revolução chinesa, é um evento histórico de longa duração.

 

Desde o século XIX o país esteve integrado na Indochina Francesa. Ho Chi Minh integrou o movimento nacionalista e independentista que surgiu no início do século XX. O futuro líder comunista posteriormente diria que sua aproximação da luta social não se deu em função do marxismo internacionalista, mas do patriotismo anticolonialista:

 

Em primeiro lugar, foi o patriotismo, e não o comunismo, que me levaram a acreditar em Lênin e na Terceira Internacional. Aos poucos, durante a luta e enquanto estudava o marxismo-leninismo paralelamente às minhas participações nas atividades práticas, eu me dei conta de forma gradativa de que somente o socialismo e o comunismo poderiam libertar as nações oprimidas e o povo trabalhador ao redor do mundo, da escravidão” (Abril de 1960).

 

No contexto da II Guerra Mundial, o Japão invadiu o Vietnã e lá instalou bases militares. Os colonialistas franceses não só capitularam ao inimigo da Entente, como prosseguiram com sua perseguição sobre o VIETMINH, movimento revolucionário de libertação nacional criado por Ho Chi Minh em 1941.

 

Em agosto de 1945, com a rendição do Japão, o VIETMIHN tomou o poder, derrubou a monarquia, destituindo o imperador Bao Dai, fantoche dos imperialistas franceses, e proclamou a República Democrática do Vietnã.

 

A partir de então o movimento de libertação nacional vietnamita seguiu na luta armada contra as tentativas francesas de retomar o controle político do país, o que só encontraria desfecho no ano de 1954, quando a independência, proclamada em agosto de 1945, foi efetivamente reconhecida.

 

 

Nguyen Sinh Cung (Ho Chi Minh) nasceu na aldeia de Kim Lien, na região central do Vietnã. Desde cedo, Ho teve contatos com o movimento nacionalista: seu pai, um professor de um pobre vilarejo, manteve estreito contato com Phan Boi Chau (1867-1940), um dos pioneiros do movimento nacionalista vietnamita.

 

Consta que em 1911, Ho Chi Minh emigrou de sua terra natal após conseguir um trabalho como cozinheiro em um navio francês. Depois de contrair uma doença misteriosa no navio, foi abandonado no porto do Rio de Janeiro, residindo por um tempo num bairro na Santa Teresa. Posteriormente, em 1924, ao se encontrar em Moscou com comunista brasileiro Astrogildo Pereira, Ho Chi Minh invocou os dias que passou no Brasil, revelando ter ficado impressionado com a “zona do mangue”, ponto de prostituição e onde grassava extrema pobreza.

 

A MORALIDADE REVOLUCIONÁRIA




 

Fazer a revolução para transformar a sociedade antiga em um anova sociedade é uma obra grandiosa, mas também tarefa pesada, uma luta extremamente complexa, longa e árdua. É preciso ser forte para poder levar grandes cargas e ir longe. Somente tendo a moralidade revolucionária como fundamento é que o revolucionário pode cumprir sua tarefa de maneira honrosa.

 

Tendo nascido na sociedade antiga, cada um de nós conserva em si mais ou menos sequelas dessa sociedade do ponto de vista da ideologia, dos costumes, etc. O aspecto mais negativo e mais perigoso é o individualismo. O individualismo é o antípoda da moral revolucionária. Por menos que reste ainda na pessoa, o individualismo espera a ocasião propícia para desenvolver-se e eclipsar a moral revolucionária, para impedir-nos a inteira devoção à luta pela causa revolucionária.

 

O individualismo é uma coisa astuta e pérfida: atrai insidiosamente o homem para a descida fatal. Sabemos que descer uma ladeira é mais fácil que subi-la novamente, por isso o individualismo é ainda mais perigoso”. (Ho Chi Minh)

 

As palavras supracitadas datam de 1958, se situam no contexto da Guerra do Vietnã que perdurou até 1975, com a vitória dos comunistas e a unificação do país. O socialismo foi construído num contexto de luta militar contra diferentes imperialismos, exigiu a disciplina do povo e sua comunhão com um partido dirigente, sob a linha e orientação do marxismo leninismo.

 

O aspecto da luta como um processo de longa duração é um dos pontos que assemelham a revolução vietnamita e a revolução chinesa.

 

Ademais, Ho Chi Minh no artigo “A Revolução Chinesa e a Revolução Vietnamita” (1961) suscita outros pontos de comunhão:

 

(i) Foi por intermédio da China que a influência da Revolução de Outubro e o marxismo leninismo se propagaram até o Vietnã;

 

(ii) Foi na China que foram organizadas a Associação da Juventude Revolucionária do Vietnã (1925), a Conferência de Unificação dos diferentes grupos comunistas do Vietnã num partido marxista-leninista (1930); e

 

(iii) O primeiro Congresso do Partido Comunista Indochinês (1935) contou com a colaboração chinesa.

 

(iv) O esmagamento pela URSS dos militaristas japoneses na II Guerra Mundial contribuiu para a vitória da resistência chinesa e a vitória desta resistência criou condições favoráveis ao triunfo da revolução democrática vietnamita de 1945.

 

(v) Tanto a China quanto a URSS deram assistência material para a edificação do socialismo no Vietnã.

 

Já no seu testamento de 1969, Ho Chi Minh lamentaria a divergência que então existia entre as direções soviéticas e chinesas. Demonstrou a esperança que estas duas direções se reconciliassem.

 

Consta deste testamento de 10 de maio de 1969 as seguintes palavras:

 

No que diz respeito aos assuntos pessoais, por toda aminha vida servi à minha Pátria, à revolução e ao povo com todas as minhas forças e com todo meu coração. Se agora devo deixar este mundo, não tenho nada de que me lamentar, exceto de não ter sido capaz de servir mais e melhor.

 

Quando já tiver ido, para não desperdiçar o tempo e o dinheiro do povo, devem evitar um funeral oneroso.

 

(...)

 

Meu maior desejo é que nosso Partido e nosso povo, unindo estreitamente seus esforços, construam um Vietnã pacífico, reunificado, independente, democrático, próspero e que dê uma valiosa contribuição à revolução mundial”.

 

Ho Chi Minh faleceria 4 meses depois do seu testamento de uma parada cardíaca, com 79 anos de idade.

 

Há 15 anos existe na cidade mineira de Nova União um assentamento rural do MST denominado Ho Chi Minh.

 

A história deste assentamento pode ser melhor conhecida neste link: https://mst.org.br/2020/09/02/conheca-a-historia-do-assentamento-mineiro-que-homenageia-ho-chi-minh/