segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

“Martim Cererê” de Cassiano Ricardo

 “Martim Cererê” de Cassiano Ricardo 

 


 

 

Resenha Livro – “Martim Cererê: o Brasil dos meninos, dos poetas e dos heroes” – Cassiano Ricardo – Ed. São Paulo

 

Então o negro da Angola

Levou o garôto pra escola

que o primeiro yôyô branco

fundara junto ao barranco

à borda do campo em flor.

E disse: seu professor

Aqui trago este menino

Pra vassuncê dar um jeito

De fazer dele um doutor,

Pois nunca vi neste mundo

menino mais reinador.

 

(Sussurrava lá dentro do mato um Brasil todo em flor).”

 

Neste ano de 2022 comemoraremos no Brasil o bicentenário da Independência Nacional, marco histórico da constituição do país que superou o estatuto colonial, ao menos formalmente. Certamente, trata-se de um projeto ainda incompleto, que espera uma revolução nacional que lance as bases de uma efetiva soberania política, econômica e cultural.

 

Neste ano de 2022, ainda comemoramos o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, movimento que criou as condições para a criação de uma arte nacional tanto na sua forma quanto no seu conteúdo, superando nossa tendência de criar arte e literatura de acordo com escolas estrangeiras.

 

Martim Cererê do escritor paulista é certamente fruto daquele movimento iniciado em 1922.

 

O livro foi publicado em 1927, um ano antes do lançamento de Macunaíma, de Mário de Andrade. Contudo, o livro de poemas de Cassiano Ricardo foi certamente um sucesso de público se comparado ao mais famoso livro de Mário de Andrade, ao menos durante os anos 1920/30.

 

Em 10 anos foram publicadas 6 edições de Martim Cererê, sendo certo que cada publicação foi objeto de inclusão e exclusão de várias palavras, versos e poemas inteiros, de modo que se pode dizer que Martim Cererê foi realmente (re)escrito entre os anos de 1920/1960.

 

Inicialmente, o livro se situava dentro da proposta do movimento “Verde Amarelo” constituído por Menotti del Picchia (1892-1988), Plínio Salgado (1895-1988), Guilherme de Almeida (1890-1969) e Cassiano Ricardo (1895-1974).

 

Este movimento fazia contraposição ao movimento antropofágico capitaneado por Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Ambos são fruto direto da Semana de 1922.

 

Posteriormente, o grupo “Verde Amarelo” seria objeto de um racha. Um setor capitaneado por Plínio Salgado passou a defender o integralismo e a aplicação do regime italiano fascista no Brasil. Cassiano Ricardo se opôs ao integralismo, vendo-o como um movimento que abandona a perspectiva nacional para endossar ideologia estrangeira. Por considerações parecidas, o escritor também se opunha ao comunismo. Em contraposição ao comunismo e ao integralismo, nasce o movimento “Bandeira”, sendo portanto, descabidas algumas críticas superficiais que buscam desmerecer Martim Cererê por uma suposta filiação ao nazi-fascismo.

 

Tanto é assim que nas primeiras edições do livro (antes do advento do integralismo) a obra era iniciada com um poema de Plínio Salgado, que foi posteriormente excluído das edições dos anos 1930.

 

Outro erro da crítica foi o de promover análises do livro se baseando em uma ou outra versão, desconsiderando as variações das diversas edições do livro – que refletiam a própria evolução do pensamento político de Cassiano Ricardo.

 

Vemos que o espírito bandeirante e sua importância na constituição do Brasil irá ganhar maior importância nas edições posteriores a 1932, após a Revolução Constitucionalista de São Paulo. Igualmente, nas edições tardias, é dado maior relevo ao imigrante italiano, como um quarto elemento da “raça cósmica” brasileira, constituída pelo desbravador português (“caçador de relâmpagos”), o índio e o negro.

 

As alterações das diversas edições de Martim Cererê vão assim refletindo as mudanças políticas e seus impactos na consciência do escritor.

 

O livro não deve ser lido como uma somatória de pequenos poemas, mas como um único poema épico acerca da história do Brasil. Uma epopeia na qual o Brasil não foi descoberto “por acaso”, mas que é achado por navegadores com a consciência de cumprir um destino.  

 

Nosso país é retratado como uma nação na sua primeira infância:

 

“E como todo creador que quer fazer a criatura à sua imagem

 

Levou a criança travêssa

P’ra sua mãe-preta criar.

Depois botou-lhe barrete

Muito vermelho á cabeça

E começou a gritar:

Como fica bonito, elle assim !

Todo pintado de carvão

com o seu gôrro carmesim.”

 

(...)

 

“Então eu penso em mil cousas bonitas.

Penso no meu paiz onde tudo é creança.

Onde a terra é creança que brinca

Com borboletas á margem dos rios.

Onde os rios também são creanças

Brincando de carro com a roda da lua

Numa paisagem ainda torta e desmanchada

Toda manchada de esperança

Toda borrada de ilhas em debuxo

Com borrões de lápis verde num caderno de creança”

 

No ano do bicentenário da independência nacional, do centenário da Semana de 22 que lançou as bases do modernismo, inclusive no campo historiográfico quando advieram os livros de história do Brasil de Gylberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado e Caio Prado Júnior, nossa torcida é que uma nova onda nacionalista encante e mobilize os milhões de compatriotas em torno de vôos mais altos, tornando realidade todas as potencialidades do país. Como já foi dito, no guarda chuva do nacionalismo existe lugar para todos os brasileiros.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

A Questão de Raposa-Serra do Sol Por Aldo Rebelo

 A Questão de Raposa-Serra do Sol Por Aldo Rebelo




 

Resenha Livro – “Raposa-Serra do Sol: o índio e a questão nacional” – Aldo Rebelo – Ed. Thesaurus

 

“É o conflito embutido na terra indígena Raposo-Serra do Sol, demarcada em 1,7 milhão de hectares, para usufruto exclusivo de aproximadamente 11 mil índios, em prejuízo de não índios que desde a Colônia ali também se instalaram com a têmpera dos bandeirantes. (...) Como já tivemos oportunidade de afirmar, o primeiro e maior erro neste debate é escolher um lado e nele entrincheirar-se para travar uma guerra santa que desconsidera a legitimidade dos demais atores que adensam o litígio. Forçoso é reconhecer que tal erro vem sendo cometido além do tolerável pelo partido dos índios, que desenha o debate como um antagonismo entre humanistas e burgueses – e nesta categoria infame são enfiados todos os que buscam uma saída encaixada num projeto nacional, sem ceder ao dogmatismo das facções.”.

 

A reserva indígena de Raposo-Serra do Sol se situa no extremo norte do Estado de Roraima, nas divisas do país com a Guiana e a Venezuela.

 

A querela envolvendo a demarcação das terras indígenas de Raposo-Serra do Sol ganhou repercussão nacional no ano de 2008 quando o STF garantiu a demarcação contínua do território, acolhendo a pressão de ONGs e movimentos indigenistas, em contraposição aos interesses de arrozeiros, das populações caboclas e até mesmo de parte expressiva dos índios que defendiam a demarcação em ilhas comunicantes.

 

Efetivamente, esta decisão acarretou a expulsão de moradores cujas família lá se situam há mais de cem anos, boa parte deles brasileiros agricultores voltadas à produção de arroz. A razão pela qual parte dos índios também se opunham à demarcação contínua era a efetiva diferença de estágios civilizatórios dentre as diferentes tribos – enquanto parcela dos índios ainda vivem sob estágio nômade, sobrevivendo da caça e pesca, outras atingiram maiores patamares de desenvolvimento, havendo índios que desenvolvem a agricultura e a pecuária.

 

Durante este litígio, Aldo Rebelo, então deputado federal por São Paulo/SP, foi uma das poucas vozes dentro da esquerda a se opor à referida homologação contínua das terras de Raposo-Serra do Sol.  

 

Neste livro, o político alagoano nos mostra como esta operação decorreu de uma campanha ideológica que buscou tratar do problema como um confronto maniqueísta entre fazendeiros ávidos de dinheiro e índios oprimidos (e que por esta razão merecem uma tutela não desinteressada de ONGs financiadas por grupos estrangeiros).

 

Por fora deste debate ficou temas importes como a questão geopolítica da Amazônia e os inúmeros precedentes históricos de intervenção estrangeira direta ou indireta em torno da espoliação das riquezas nacionais.

 

Em Roraima se situa a maior reserva de urânio do Mundo. E não é de agora que esta região desperta a cobiça do estrangeiro.  

 

Ainda em junho de 1838, um missionário anglicano de nome THOMAS YOUD chegou até a aldeia brasileira no Pirara em Roraima e instalou-se um pouco mais acima, criando uma missão religiosa entre os rios Pirara e Moneca, à margem esquerda do Guatatá. Atraiu para o local alguns ingleses, que se misturaram com os índios e com brancos que ali já estavam instalados.

 

No ano de 1901 foi levada à arbitragem internacional uma disputa territorial em torno da região do Pirara, igualmente na região fronteiriça de Roraima. O modus operandi dos ingleses é por nós conhecido: buscaram cooptar aparcelas de populações indígenas, a quem ensinaram o Inglês, para, então, buscar formar a ideia de que a região pertencia a uma nação diferente da do Brasil, através de uma propaganda em que os índios aparecem como vítimas da opressão de fazendeiros e latifundiários Brasileiros.

 

Tratando da questão do Pirara, diz  LUIZ ERNANI CAMINHA GIORGIS

 

A arbitragem atribuiu assim, à Inglaterra, o território entre os rios Mahú-Tacutú e o Rupununi, consagrando a usurpação de 1840, desprezando o divisor de águas – a Serra de Pacaraima – e, principalmente, trouxe o domínio britânico às ribanceiras do Tacutú, o que significou abrir aos ingleses o Rio Branco e, através deste, o acesso ao Amazonas. Em contrapartida, negou à Inglaterra o limite pelo rio Cotingo, recuando-o até o Mahú, procurando assim equilibrar o resultado.

 

No caso da questão de Raposa-Serra do Sol, os meios de atuação não parecem ter mudado a sua forma. Desconsiderou-se os interesses e opiniões de populações tradicionais e parcela significativa dos índios. Hoje, no Estado de Roraima, nada menos do que 46% do território corresponde à reserva indígena, sendo certo que países ricos da Europa e da América jamais se propuseram a criar reservas indígenas ou ambientais diante destas dimensões. Aos índios ianomânis foram reservados nada menos do que 9,6 milhões de hectares o que equivale ao território de Cuba.

 

Contudo, a existência destas reservas não significa desenvolvimento e bem estar dos indígenas, sendo relatado por Aldo Rebelo a pobreza, abandona e as doenças que afligem estas populações.

 

Ao visitar uma destas tribos ianomâni em Roraima, o político questionou a razão pela qual não havia fornecimento de luz e água àquelas populações, onde ainda grassavam doenças como tuberculose, e outras patologias decorrentes de falta de saneamento. Aldo relata que havia muito fogo dentro da maloca para as famílias assarem bananas e mandiocas, muita poluição, muita fuligem e grande incidência de doenças infecciosas. A ele foi respondido por uma dirigente de ONG que estes equipamentos não são autorizados por mudarem as referências culturais dos índios.

 

A despeito de todos os precedentes históricos envolvendo a cobiça estrangeira em torno da riqueza mineral e a biodiversidade da Amazônia, existe alguns brasileiros, influenciados por ideologias identitárias que buscam repudiar o nosso passado, alguns ao ponto de defender a internacionalização da Amazônia.

 

A Amazônia, além de ser detentora de uma grande biodiversidade detém importantes estoques de recursos minerais.  Os estudos mostram que a região Amazônica é detentora de grandes estoques de ferro, manganês, alumínio, cobre, zinco, níquel, cromo, titânio, fosfato, ouro, prata, platina, paládio, ródio, estanho, tungstênio, nióbio, tântalo, zircônio, terras-raras, urânio e diamante. Se a escassez de água já é uma preocupação mundial, temos que na Amazônia se situa a maior bacia hidrográfica do mundo, responsável pela drenagem de cerca de 7.500.000 km² de água.

 

Diante destas premissas, é fundamental a leitura deste pequeno livro de Aldo Rebelo para reposicionar os termos do problema da demarcação de terras indígenas, fugindo da superficial querela entre fazendeiros gananciosos e índios oprimidos e indefesos. O reiterado posicionamento da esquerda alinhado com interesses estrangeiros se fez perceptível recentemente na discussões sobre o Marco Temporal.  

 

O primeiro e mais importante direito de um povo é o direito da sua autodeterminação e de sua soberania. Isto porque se um povo não tem este direito significa dizer que todos os demais direitos serão determinados de fora, de acordo com os interesses do imperialismo.




sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

“O Mulato” Aluísio de Azevedo

 “O Mulato” de Aluísio Azevedo











Resenha Livro – “O Mulato” – Aluísio Azevedo – Iba Mendas Editor Digital


“- Mulato!

 

Esta palavra explicava-lhe agora todos os mesquinhos escrúpulos que a sociedade do maranhão usara com ele. Explicava tudo: a frieza de certas famílias a quem visitara; a conversa cortada no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhes falavam sobre seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e sangue; a razão pela qual D. Amância lhe oferecera um espelho e lhe dissera: “Ora mire-se!” a razão pela qual, diante dele, chamavam de menino aos moleques da rua. Aquela simples palavra dava-lhe tudo o que ele até aí desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo, aquela palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-lhe a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura família; aquela palavra dizia-lhe brutalmente: “Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que nasceste, só poderás amar uma negra da sua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi escravo! E tu também o foste!”

 

Aluísio Tancredo Gonçalves Azevedo nasceu em 14 de abril de 1857 na cidade de São Luís do Maranhão.

 

Era filho de um vice-cônsul Português, sendo certo que o próprio escritor futuramente abandonaria a literatura aos 38 anos, para virar diplomata, tendo servido na Espanha, Inglaterra, Itália, Japão, Paraguai e Argentina.

 

O nosso escritor, quando criança, não era exatamente de família nobre e abastada, mas certamente nunca passou por privações materiais.

 

No ano de 1871 Aluísio se matriculou no Liceu Maranhense à época dirigido pelo professor Francisco Sotero. No mesmo ano começou a ter aulas de pintura com o artista italiano Domingos Tribuzzi.

 

Da pintura, passaria à caricaturista, sendo certo que a sua literatura teria alguma influência decorrente e manteria interfaces com suas charges: seja a proposta de uma narrativa objetiva que retratasse a realidade tal como ela é, seja na criação de tipos sociais com uma intencionalidade de promover crítica social e até mesmo humor.

 

“O Mulato” foi o segundo livro publicado pelo escritor Maranhense, lançado no ano de 1881, mesmo ano, diga-se de passagem, da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis.

  

O romance em análise não guardaria a mais pálida semelhança com o primeiro trabalho do autor, chamado “Uma Lágrima de Mulher” (1880).

 

O primeiro livro ainda se pode caracterizar como romance folhetinesco, todo ele se situando inclusive na Itália, sem referências nacionais. Já o segundo romance é tido por muitos como a primeira obra naturalista produzida no país, o que é discutível desde que o menos conhecido Inglês de Souza com sua proposta de literatura amazônica, já produzia livros naturalistas cerca de uma década antes d’o Mulato.

 

Boa parte da crítica literária, capitaneada por Antônio Cândido, buscam dividir a obra de Aluísio de Azevedo entre os trabalhos propriamente naturalistas, que seriam os que alcançariam maior expressão e importância literária e outras obras de menor relevância, de tipo romântico, folhetinesco e mais comerciais.

 

Dentre as ditas “grandes obras” do nosso escritor temos “O Mulato” (1881), “Casa de Pesão” (1883) e “O Cortiço” (1890), este último considerado o melhor livro de Aluísio Azevedo.

 

Contudo, da leitura de livros “Philomena Borges” (1884) e especialmente “O Coruja” (1890), chega-se à conclusão que estas obras não merecem a caracterização de livros superficiais. Inclusive, nestes trabalhos menos conhecidos verificamos a verve humorística cuja influência, como dito, decorre do trabalho anterior do caricaturista de jornal.

 

Há uma opinião de que as variações dos seus romances entre propostas experimentais naturalistas e romances de folhetim mais apetecidos ao público geral decorriam da necessidade financeira: Aluísio de Azevedo foi um dos primeiros escritores que efetivamente viviam e subsistiam da venda dos seus livros.

 

E como se caracteriza o naturalismo literário?

 

Pode ser caracterizado como uma ramificação do realismo, radicalizando a proposta da objetividade ao ponto de relacionar personagens e situações com as correntes cientificistas em voga no final do século XIX: o determinismo com sua noção de que  o ser humano está fadado a ter suas ações condicionadas pelas características biológicas e ao meio social em que vive; e o evolucionismo e a proposta da literatura como uma atividade experimental.

 

Conforme um dos criadores desta corrente literária, Émile Zola, mencionada no seu livro “O Romance Experimental” (1870), o escritor deve estar antes de tudo a serviço da realidade, só levando para seus escritos impressões coletadas do seu cotidiano e, portanto, legitimamente reais.

 

Diante destas premissas, a produção literária de Aluísio de Azevedo decanta aspectos da vida social, cultural e política do Brasil de fins do II Império.

 

No romance “O Mulato”, vemos temas candentes do período histórico como a abolição da escravatura, o papel da igreja na política e na sociedade, o republicanismo e o ideário de um pensamento laico, expresso no cosmopolitismo do protagonista do romance, Raimundo.

 

Raimundo é filho do português José Dias, um contrabandista de escravos português, com uma escrava chamada Domingas. Filho ilegítimo, portanto, que foi alforriado logo ao nascer e, aos 5 anos encaminhado à Portugal para estudar Direto, após a morte de seu pai.

 

Passados alguns anos, já adulto, o mulato volta à sua terra natal onde é recepcionado pelo seu tio Manuel, e fica no Maranhão com a finalidade de transacionar velhas terras herdadas de seu pai.

 

A reação da sociedade maranhense, o seu provincianismo, o maldizer e o atraso cultural de uma cidade contraditoriamente denominada “atenas brasileira” são o pano de fundo do enredo.

 

“A novidade foi logo comentada. Os portugueses vinham, com suas grandes barrigas, às portas dos armazéns de secos e molhados; os barraqueiros espiavam por cima dos óculos de tartaruga; os pretos cargueiros paravam para mirar o “cara-nova”. (...) Outros afiançavam que Raimundo era sócio capitalista da casa de Manuel. Discutiam-lhe a roupa, a cor e os cabelos. O Luisinho Língua de Prata afirmava que ele “tinha casta”.

 

Hospedado na casa de seu tio Manuel, Raimundo se apaixona por sua prima Ana Rosa. Contudo, o casamento não é admitido pelo pai por considerações puramente raciais. A tentativa de rapto de Ana Rosa por Raimundo acarretaria a morte trágica do Mulato, que foi executado por um pretendente que efetivamente se casaria com a filha de Manuel.

 

Seria, contudo, reducionismo dizer que a obra é um mero panfleto político em torno de teses progressistas daquele tempo: o pensamento laico e o abolicionismo.

 

Diante das premissas naturalistas, a história envolve uma certa fatalidade do personagem que, por sua origem e sua raça, tem a sua felicidade inviabilizada. Não se trata tanto de uma denúncia de uma sociedade que se pauta pelo preconceito de cor, mas da constatação de contradições de uma sociedade tardiamente escravocrata.

 

Por exemplo, temos a personagem Mônica, negra que cuida de Ana Rosa desde menina, que por sua vez lhe devota afeto de uma mãe. Também é certo que no Brasil, desde o início de sua ocupação territorial, predominou a mestiçagem, de modo que a oposição entre brancos e pretos não encontra no Brasil a mais remota semelhança com a experiência bi racial dos EUA. O mulato é desmerecido antes de tudo por sua origem de escravo e não pelo seu fenótipo.

 

É interessante frisar que O Mulato foi publicado em um contexto de acirrada polêmica nos jornais maranhenses entre jovens que postulam um pensamento laico e modernizador contra o conservadorismo dos membros e apoiadores da Igreja católica. Aluísio de Azevedo tomou parte nesta querela jornalística e este livro não envolve, como frequentemente se supõe, uma simples denúncia do racismo do povo brasileiro, mas a crítica do provincianismo do Maranhão, com grande parte de culpa pela intervenção de padres se, conduta ilibada, e, não menos importante, do instituto da escravidão.

 

Raimundo não é rejeitado apenas pelo tom de sua pele, mas principalmente por ser filho de escravo e ter sido alforriado na pia de batismo.