sábado, 17 de junho de 2023

O GUARANI DE JOSÉ DE ALENCAR

 O GUARANI DE JOSÉ DE ALENCAR




 

Resenha Livro – “O Guarani” – José de Alencar – Ed. Ática

 

Quando José de Alencar publicou em folhetins o seu romance “O Guarani” no ano de 1857, ainda era um jovem advogado e escritor, apenas iniciando sua carreira literária.

 

Seus dois primeiros livros foram “Cinco Minutos” (1856) e “Viuvinha” (1857), chamados pelo próprio escritor de forma pejorativa de “romancinhos”: se situam ao lado de outros livros como “Lucíola”, “Diva” e “Senhora”, num conjunto de obras que podem ser classificados como os “romances urbanos” do escritor cearense.

 

O início da literatura romântica indigenista, que promovia uma inédita conexão entre literatura e nacionalismo em território brasileiro, dar-se-ia com a publicação de “O Guarani”, que seria seguido depois por “Iracema” e “Ubirajara”. Trata-se de obras que pioneiramente apontam a centralidade da figura do indígena como elemento balizador da constituição do povo brasileiro.

 

Transcorreram pouco mais de 30 anos entre a independência política do Brasil em relação à Portugal e o início daquilo que ficou conhecido como a primeira fase do nosso romantismo. A recente proclamação da independência de 1822 ensejava uma resposta à pergunta: afinal, quem somos nós brasileiros? A forte presença do índio naquele movimento literário vinha como forma de resposta a essa pergunta.

 

SOBRE O AUTOR

 

Quando José Martiniano de Alencar nasceu, em 1 de maio de 1829, havia apenas oito anos desde a independência do Brasil. O autor passou durante a infância pelo período tumultuado das Regências e participou, já adulto, ativamente dos debates políticos e literários do II Império.

 

Nosso escritor foi filho de um padre, deputado provincial do Ceará pelo partido liberal, governador e posteriormente Senador daquele mesmo estado, cujo nome era o mesmo do seu filho: José Martiniano Alencar. Ambos transitaram pela política: no caso de José de Alencar filho, tratou-se de uma carreira que lhe trouxe menos recompensa do que a sua  atividade literária.

 

José de Alencar (filho) foi Ministro da Justiça durante o II Reinado, a despeito de manter uma postura crítica em relação a D. Pedro II. Em certo momento foi preterido pelo imperador para uma vaga ao Senado, por conta de pretéritos embates entre ambos, o  que causou ao romancista uma intensa desilusão.

 

Houve inclusive polêmica literária travada na imprensa carioca entre o autor d’o Guarani e o Imperador sobre o significado da obra de Gonçalves de Magalhães. D. Pedro II defendia o autor de “A Confederação dos tamoios”, enquanto Alencar critica duramente a qualidade da obra de Magalhães: “as virgens índias do seu livro podem sair dele e figurar em um romance árabe, chinês ou europeu (...) o senhor Magalhães não só mão conseguiu pintar a nossa terra, como não soube aproveitar todas as belezas que lhe ofereciam os costumes e tradições indígenas”.  

 

Curiosamente, José de Alencar posteriormente seria alvo de críticas semelhantes. Ficou conhecida na história a intensa campanha promovida pelo jornalista e romancista João Franklin da Silveira Távora contra a literatura de seu colega cearense, a quem criticava por fazer uma literatura social “de gabinete” sem o conhecimento da realidade social e do sertão, descrita não só nas obras indigenistas, mas naqueles seus “romances sertanejos” como “O Gaúcho” e “O Sertanejo”.

 

É certo que o registro de José de Alencar do Sertão e da situação do índio brasileiro é muito mais baseado em sua imaginação como escritor do que como historiador. Neste sentido, Távora estava correto ao dizer que os seus personagens foram formulados “dentro de um gabinete” e não mediante o contato direto com aquelas realidades.

 

Por outro lado, deve-se salientar que o trabalho literário de Alencar decorreu de muito estudo disciplinado: o seu “O Guarani” aborda aspectos da flora, fauna e tradições culturais do indígena brasileiro do início do século XVI baseando-se na leitura de historiadores e fontes históricas primárias. Suas fontes para descrição do cenário da história envolvem o botânico e pesquisador francês Auguste de Saint-Hilaire (1779/1853), Aires de Casal (1754/1821) e principalmente o livro “Tratado Descritivo do Brasil” (1587) de Gabriel Soares de Souza (1540/1591).

 

O GUARANI

 

A história se passa no ano de 1604 no interior da capitania do Rio de Janeiro, então governada por Mem de Sá, cuja maior realização fora a expulsão dos franceses do território da colônia portuguesa.

 

O fidalgo português D. Antônio de Mariz tomou parte nos combates pela defesa do território português. Contudo, no contexto da união ibérica em que Portugal ficou oficialmente sob o comando da coroa espanhola, Mariz, mantendo uma linha de fidelidade ao rei português, resolve-se asilar-se às margens do rio paraíba, no interior da província. É neste pequeno vilarejo que se passa a história.

 

“A derrota de Acácer-Quibir, e o domínio espanhol que se lhe seguiu, vieram modificar a vida de D. Antônio de Mariz.

 

Português de antiga têmpera, fidalgo leal, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento de nobreza e que só a ele devia preito e menagem. Quando pois em 1592 foi aclamado no Brasil D. Felipe II como sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do serviço”  

 

 D. Antônio preferia viver retirado com a sua família no mais longínquo sertão brasileiro, onde comandava um grupo de pessoas e ao redor de quem vivia sua família numa fazenda fortificada. Às margens do rio Paquequer, Mariz montou casa para sua mulher, sua filha Cecília, uma filha bastarda chamada Isabel, o escudeiro Aires Gomes e um fidalgo português chamado Álvaro de Sá.

 

Viviam como que numa república fortificada ante o risco constante de ataques de índios ou bandoleiros. Por essa razão, o fidalgo também mantinha “como todos os capitães de descobertas daqueles tempos coloniais, uma banda de aventureiros que lhe serviam as suas explorações e correrias pelo interior: eram homens ousados, destemidos, reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e agilidade do índio de quem haviam aprendido; eram uma espécie de guerrilheiros, solados e selvagens ao mesmo tempo.”.

 

A família também era acompanhada por Peri, o mais valente guerreiro Goitacá, que salvara a vida da filha de D. Antônio e por isso é acolhido pela família do fidalgo.

 

Peri é uma palavra guarani que significa junco silvestre.   O índio mantém uma dedicação semelhante ao fervor religioso em relação à Cecília. Na verdade, a bela filha do fidalgo português é amada de formas diferentes por três personagens da história.

 

O índio Peri mantém uma devoção relacionada a uma percepção de que Cecília era uma espécie de ente divino, a quem lhe incumbia responder a todos os seus desejos sem entrar um só pensamento de egoísmo. Amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a ela, para cumprir o menor dos seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade.

 

Já Álvaro ama Cecília da forma como amavam os românticos descritos nas histórias de cavalaria medieval. Em se tratando de um cavalheiro português, o seu sentimento era uma feição nobre e pura, ensejando momentos de timidez ou arroubos em que o português buscava timidamente confessar o seu amor à filha de D. Antônio.

 

Enquanto Peri adorava e Álvaro amava, o italiano Loredano a desejava: em se tratando de um romance nacionalista, o estrangeiro aparece na história como o seu principal vilão.

 

Loredano fora um padre beneditino que viera em missão religiosa ao Brasil: oportunamente abandonou e conjurou a religião para dar vazão a sua luxúria. Sonhava encontrar o ouro no Brasil, enriquecer e oportunamente raptar a filha do português.

 

Dentro desta trama, ocorre um incidente que dará curso aos principais eventos da história.

 

Um filho de D. Antônio acerta um tiro por engano numa índia aimoré, tribo conhecida particularmente por seu estágio bárbaro, menos civilizado que os demais índios. O espírito de vingança é um dos traços psicológicos determinantes daqueles povos indígenas, o que fora agravado pelo fato de a índia morta ter sido a mais bela e desejada mulher daquela tribo.

 

A vingança dos aimorés se dá através de uma guerra sem tréguas e com fins trágicos. Da guerra apenas sobrevivem Peri e Cecília. Ao final, a menina reconhece e vê o índio como um irmão, ou seja, alguém igual em termos civilizacionais, nitidamente se considerando que o índio já fora batizado por D. Antônio antes da batalha final contra os aimorés.  

 

Peri é o herói da epopeia “O Guarani”. A sua dedicação, coragem e abnegação são certamente formas de valorização não só da figura do índio, mas de alguém que está se  constituindo como brasileiro. Há no índio (ou brasileiro) uma delicadeza de sentimentos dentro de uma alma inculta. Uma inteligência sem cultura mas brilhante como o sol. A alma é virgem de civilização, mas naturalmente brilhante, forte, corajosa, ou seja,  representativa da aspiração de um Brasil igualmente altivo e independente.