terça-feira, 22 de dezembro de 2020

“O Reformismo e a Contrarrevolução” – Ruy Mauro Marini


 




Resenha Livro - “O Reformismo e a Contrarrevolução – Estudos Sobre o Chile” – Ruy Mauro Marini – Tradução de Diógenes Moura Breda - Ed. Expressão Popular – São Paulo - 2019

 

“O regime militar imposto em 11 de Setembro de 1973 encerrou uma etapa da vida chilena que, começando pelo aprofundamento das contradições interburguesas e pela radicalização do movimento popular, levou finalmente, por mediação, inclusive, da formação de um governo de esquerda que esses acontecimentos tornaram possível, à crise do sistema de dominação burguês. A oposição entre os órgãos de Estado, a divisão crescente entre as fileiras militares, o surgimento de órgãos embrionários de poder à margem do Estado foram a expressão da crise global que se desencadeou no seio da sociedade chilena. O drama da Unidade Popular e, em particular, das forças que a hegemonizaram – o Partido Comunista e a corrente allendista – foi não compreender que a vitória de 1970, reafirmada em 1973 (quando a coalização governamental atingiu 44% da votação nas eleições parlamentares) não era a manifestação de um simples processo acumulativo, que permitisse esperar o aumento progressivo da força eleitoral da esquerda até o momento de poder alcançar, em 1976, não só a eleição de um novo governo de esquerda, mas também de uma maioria parlamentar: essa vitória era antes uma explicitação das contradições de classes, que não deixavam outra saída senão o enfrentamento direto entre elas”.  (MARINI, Ruy Mauro. “Duas Estratégias No Processo Chileno”).

 

A passagem supracitada ressalta um traço bastante peculiar da história política do Chile, que se convencionou chamar “a via chilena ao socialismo”. Em 04/09/1970 com a eleição de Allende e da Unidade Popular, observa-se a ascensão de um governo de esquerda que propõe a passagem ao socialismo respeitando à legalidade e os limites institucionais vigentes. A Unidade Popular (UP) nada mais era do que uma coalizão eleitoral envolvendo marxistas e sociais democratas, desde o início compromissada com o sistema político vigente. O que Ruy Mauro Marine chama atenção, contudo, é que o problema colocado à esquerda chilena não era o da transição ao socialismo, mas um problema anterior, que correspondia à questão da tomada do poder – e que não se confunde com a vitória eleitoral no governo. Esta ilusão das esquerdas perpassa todo o período de setembro de 1970 até 11 de Setembro de 1973, quando do golpe militar contrarrevolucionário. Uma lição essencial do processo é o de que o reformismo, ao abalar o regime de dominação burguês, sem, contudo, preparar o povo para a revolução, estará condenado a ser a antessala da contrarrevolução. No caso da experiência chilena, uma contrarrevolução nitidamente fascista e brutal, com o assassinato de 3.000 pessoas e o exílio de outros 200.000,00.  A “via chilena ao socialismo”, ou a pretensão de transformar estruturalmente a sociedade burguesa sem propor ultrapassar os seus próprios limites, ainda suscita lições importantes e atuais.

 

Antecedentes

 

Os artigos reunidos nesta coletânea preparada pela Editora Expressão Popular em parceria com a Adunirio[1], são textos escritor no calor da hora, entre 1970 e 1974. Importante frisar que Ruy Mauro Marini acompanhava os acontecimentos in loco. Depois do golpe militar de 1964 no Brasil, Marini exilou-se no México, após ter sido preso e torturado no CENIMAR/RJ. Na década de 1970 transfere-se ao Chile onde leciona na Universidade de Santiago até o golpe de setembro de 1973.

 

Ruy Mauro Marini também integra o comitê central do MIR, movimento da esquerda revolucionária, que compõe uma ala mais à esquerda da Unidade Popular.

 

No que se refere à luta da UP contra os golpistas nos anos de 1970-1973, observa-se que dentro da frente de esquerda há duas tendências. Uma tendência ligada ao allendismo e ao Partido Comunista buscava a realização de acordos com a burguesia, particularmente com a Democracia Cristã. O MIR de outro lado defendia o controle operário da produção como forma de combater a sabotagem e o desabastecimento encorajado pelos setores patronais.

 

Em artigos de março de 1973, Marini já acentua uma escalada de um movimento fascista chileno impulsionado pelo grande capital nacional e internacional, se fortalecendo sob a base da luta econômica levada à cabo pela direita com a especulação e os mercados paralelos. A especulação na frente econômica lança a pequeno burguesia contra a classe trabalhadora, cria confusão nas fileiras dos setores populares próximos ao proletariado e fortalece a coesão burguesa. A escalada não impediu que poucos meses antes do golpe, Allende, seguindo a tendência geral da conciliação, propusesse um plebiscito para deliberar sobre sua renúncia, além de colocar nada menos do que Augusto Pinochet como chefe do exército.

 

Os artigos de Ruy Mauro Marini igualmente abordam o tema da economia e da sociedade chilena na década de 1960/70 e as condições históricas que possibilitaram a vitória eleitoral da UP.

 

A vitória eleitoral de Allende se deu em margem apertada, contando com 36% ou 1/3 dos votos. A esquerda venceu eleitoralmente muito em função da divisão eleitoral da direita, representada pelo Partido Nacional e pela Democracia Cristã. A década de 1960 é um período de estagnação econômica do Chile. A perda do dinamismo industrial estimula a divisão entre os grupos capitalistas. É certo, por outro lado, que a eleição de Allende se dá no contexto de crise profunda do sistema de dominação burguês e escalada ininterrupta do movimento de massas, em especial no campo. O autor suscita dados convincentes neste sentido, como o aumento no número de sindicalização, e do movimento grevista, com destaque para os setores mais dinâmicos politicamente.

 

Balanço de uma derrota



 


O reformismo da UP certamente não se confunde com a experiência dos partidos ditos progressistas no Brasil no período de Lula e Dilma Rousselff. Allende nacionalizou a indústria do cobre, a principal do país, nacionalizou grandes e médias indústrias, promoveu a reforma agrária,  aumentou os salários e congelou os preços de mercadorias, promoveu reformas que efetivamente se contrapunham aos interesses gerais da burguesia.

 

Contudo, o seu reformismo, pelo próprio fato de abalar a sociedade burguesa até os seus alicerces sem se atrever a destruí-la, acabou se transformando de fato na antessala da contrarrevolução.

 

Nos momentos de maior acirramento da luta de classes no ano de 1973 as organizações operárias propunham o armamento e a autodefesa. É  sintomático que Allende e os reformistas firmassem acordo com a direita determinando que forças do governo desarmassem os operários na marra,  poucos instantes antes do golpe de 1973.

 

A “via chilena ao socialismo”, qual seja, “a conquista gradual e pacífica do poder político, sem a ruptura brusca da ordem burguesa, acompanhada da liquidação das bases da dominação imperialista, latifundiária e monopólica, através de medidas formuladas com a perspectiva de construção do socialismo[2]redundou num inequívoco fracasso cujas lições aparentemente não foram mesmo aprendidas pela própria esquerda chilena. Naquele país o fim da ditadura militar ocorreu mediante uma pactuação semelhante (mas não idêntica) da chamada Nova República brasileira, com a reiteração da política da esquerda de conciliar e fazer acordos com a direita. Quando das explosões de mobilizações da juventude chilena nestes últimos anos, verificou-se uma desconfiança tanto com relação à direita, quanto com à esquerda tradicional, algo parecido com o sentimento de desconfiança da juventude em junho de 2013. Que a leitura destes artigos do revolucionário mineiro Ruy Mauro Marini contribua para que as novas gerações extraiam as lições das derrotas históricas  e dos limites do reformismo, mesmo na sua versão mais radical com a “via chilena”.  

 



[1] Seção sindical dos docentes da Unirio, filiada ao Andes-SN

[2] MARINI, Ruy Mauro. “A Pequena Burguesia e o Problema do Poder”.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

“Marcoré” – Antônio Olavo Pereira

 “Marcoré” – Antônio Olavo Pereira




 

Resenha -  “Marcoré” – Antônio Olavo Pereira – José Olympio Editora – 13ª Edição

 

“Minha terra tem um viver miúdo, semelha o curral de Sabino. O gado se movimenta pelas pastagens em grupos distintos, come, trabalha, muge, ama. Os bezerros correm, saltam as moitas. Os bois velhos são afastados, vão para o cutelo”.

 

Um principal traço distintivo deste romance do escritor paulista Antônio Olavo Pereira é a ausência de heróis, a quase inexistência de grandes conflitos dramáticos que desencadeiam tragédias humanas. Pelo contrário, a história vai se passando com a descrição da experiência cotidiana de homens e mulheres de uma cidade do interior paulista em meados do século XX. Uma criança que nasce, um casamento que se desfaz, um coronel que morre de velhice, um padre que cuida de suas ovelhas, tudo se passando como se se sucedem as estações, ou o “gado miúdo de Sabino”.

 

Isso não significa que a leitura da história em algum momento descambe no tédio. Pelo contrário! Segundo o posfácio de Antônio Houaiss:

 

“Obra essencialmente anti-heróica, vinculada com o cotidiano em fidedigna coerência, consegue, não obstante, manter um nível de excepcional interesse em todas as suas páginas – pela sabedoria com que são conotados os acidentes do efêmero, nos planos de vida que se cruzam dentro da trama”.

 

A história é narrada em primeira pessoa por Mariano, um oficial maior que trabalha no cartório de seu sogro numa provinciana cidade do interior paulista. Quando do início na narrativa, Mariano tem 40 anos, está há 10 anos casado com Sílvia e, após uma longa espera e expectativa, descobrem finalmente a gravidez.

 

Os primeiros instantes do livro remetem à noção de paternidade. Desde a gravidez, ser pai já significa ser forçado a modificar hábitos enraizados. Silvia nega o sexo ao seu marido, já na gestação. Após o nascimento de Marco Aurélio, vulgo Marcoré, Sílvia confessa a Mariano que ao longo das dificuldades do parto, fez uma promessa religiosa em que abriria mão da relação carnal em definitivo, desde que a criança nascesse e crescesse com saúde. A esposa consente mesmo que Mariano mantenha mesmo relação extra conjugal: sua preocupação e sua dedicação é exclusiva para Marcoré.

 

Sobre a notícia de que Sílvia renunciava em definitivo à relação carnal, comenta Mariano:

 

“Já senhora de si e vendo-me rendido, mudou de assunto com habilidade. Eu continuava atordoado, mas já consciente de que passáramos a representar dois corpos perfeitamente distintos, tanto quanto possível sintetizados na criança de cílios longos que dormia ao lado de nossa cama. Tinha a sensação de que uma cunha se introduzira entre nós, de que uma fenda se produzira em nossa intimidade”.

 

É interessante notar que o nascimento da criança cria de fato uma fenda, primeiro separando os pais, depois colocado em oposição Mariano e sua sogra, D. Ema, e por fim cindindo Marcoré e seu pai. Todo o núcleo familiar que reside sobre o mesmo teto, Mariano, Sílvia, D. Ema, o sogro Seu Camilo passam a viver em função de Marcoré, de sua felicidade e de sua alegria. Este engajamento é tragicamente o ponto de partida da dissolução da família, acarretando num final em que a solidão e a tristeza parece ser o horizonte comum da vida todos.

 

Depois da morte dos parentes e do abandono pelo filho, que se muda para São Paulo,  o narrador em seus instantes finais suscita sentimentos de solidão que não envolvem revolta, mas o cansaço físico e espiritual oriundos da velhice, bem como o reconhecimento da fatalidade do drama vivido:

 

“A noite avança, há uma paz profunda na casa deserta. Não mais que lembranças de seus mortos lhe povoam o silêncio de trevas. Todos os ruídos de vida que me chegam são insólito, vêm da cidade que se prepara para receber o Ano Novo.

 

Nenhum sentimento de revolta ou inconformidade. Tenho o coração calmo, embora fatigado por toda uma existência de equívocos. Nenhuma constrição também, pois me recuso a aceitar o papel que me foi atribuído por meu filho. No balanço geral, cuido só ter havido vítimas, sem discriminação possível dos culpados”.

 

Para  Houaiss, o estilo da linguagem do livro é conciso, “preciso, enxuto, correto e sábio”. Antônio Cândido menciona “ainda a perfeição da língua e da composição, sem uma falha, sem o menor deslize, de um gosto apurado e, ao mesmo tempo, de uma total eficácia”. A obra igualmente recebeu elogios de Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre e José Lins do Rego, além de ter o autor recebido o prêmio Coelho Neto pelo romance da Academia Brasileira de Letras. Trata-se de um romance intimista, na melhor tradição dos romances de Graciliano Ramos: a franqueza do narrador e o intimismo com que partilha suas emoções remontam ao Paulo Honório de São Bernardo e ao Luís da Silva de Angústia.      

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

“A Rosa do Povo” – Carlos Drummond de Andrade

 “A Rosa do Povo” – Carlos Drummond de Andrade



 


Resenha Livro - “A Rosa do Povo” – Carlos Drummond de Andrade – Editora Record – 36ª Edição – 2006

 

“E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,

submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor

rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta,

mas não a quero negando as outras horas nem as palavras

ditas antes com voz firme, os pensamentos

maduramente pensados, os atos

que atrás de si deixaram situações.

Que o riso sem boca não a aterrorize,

E a sombra da cama calcária não a encha de súplicas,

Dedos torcidos, lívido

suor de remorso.

 

E a matéria se veja acabar: adeus composição

Que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade

 

(...)"

 

(“Os Últimos Dias” – Rosa do Povo – Carlos Drummond)  

 

Quando Carlos Drummond de Andrade publicou o poema parcialmente reproduzido acima no ano de 1945, o poeta tinha 43 anos e apenas estava começando a se projetar no mundo literário do país.

 

Em 1942 assina contrato com a José Olympio, editora que publicaria os trabalhos do escritor por 41 anos. O seus primeiros livros, “Alguma Poesia” (1930), “Beijo das Almas” (1934) e “Sentimento do Mundo” (1940) tiveram respectivamente 500, 200 e 150 exemplares, tiragens promovidas e parcialmente pagas do bolso do próprio poeta. Foram apenas distribuídas aos seus amigos.

 

Aos poucos o reconhecimento artísticos viria, em resposta a um labor que já vinha de muitos anos. No caso do poema supracitado, o tema, como se nota, é a morte e o receio do instante final. No caso do nosso poeta, a morte só viria em 1987, quando Carlos Drummond tinha 84 anos e um reconhecimento nacional e internacional de sua obra. O escritor morreu doze dias após a morte de sua filha, a também escritora Maria Julieta, vítima de um câncer. CDA escreveu em um diário após o falecimento da filha “Assim terminou a vida da pessoa que mais amei neste mundo”.

 

Os poemas de “A Rosa do Povo” foram escritos entre 1943/1945. O livro foi publicado em 1945: em que pese ter recebido boa acolhida do público e da crítica, não teve edições autônomas posteriores pela José Olympio.

 

Nas palavras do escritor na introdução escrita 40 anos depois da primeira edição:

 

“Quis a Record (editora) fazê-lo voltar à situação primitiva, como obra que, de certa maneira, reflete um ‘tempo’, não só individual, mas coletivo no país e no mundo. Escrito durante os anos cruciais da Segunda Guerra Mundial, as preocupações então reinantes são identificadas em muitos de seus poemas, através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas ilusões feneceram mas o sentimento moral é o mesmo – e está dito o necessário”.

 

É certo que a situação política do Brasil e do Mundo envolvia o prestígio da democracia, o rechaço ao nazi-faciscmo, e, em especial, o fortalecimento das simpatias dos povos pela URSS que, no contexto imediato do pós II Guerra, saiu-se inequivocamente como a maior responsável pela vitória militar sobre o nazi-facismo, com todas as consequências que esta vitória teve para os rumos da humanidade.

 

Hoje em dia, o senso comum decorrente de um discurso ideológico da guerra fria, certamente terá dificuldade de compreender o respeito que a URSS presidida por Stálin despertou pelos povos mundo afora, inclusive no Brasil. Em 1939 e em 1942 a revista norte-americana Times elegeu Stálin como homem do ano. Depois de estar praticamente sempre na ilegalidade desde 1922, o PCB não só conquistou a legalidade em 1945, como elegeu uma ampla bancada comunista na assembleia constituinte de Dutra, da qual foram parte Luís Carlos Prestes, Carlos Marighella, Jorge Amado e Maurício Grabois.

 

No ano de 1942 houve a batalha de Stalingrado (1942/1943). A batalha é conhecida como um ponto de virada dos limites da expansão nazista no território soviético, a partir de onde o exército vermelho empurraria as tropas nazistas até Berlin. Nada menos do que três poemas deste “Rosa Do Povo” fazem menção à Stalingrado, à vitória militar dos comunistas sobre os nazistas e ao socialismo: “Cidade Prevista”, “Carta a Stalingrado” e “Telegramas de Moscou”. O primeiro destes três poemas canta e anuncia um novo mundo, antevisto pelos poetas, um futuro que supera o atual “mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é bolo com flores”:

 

“Um mundo, enfim ordenado,

Uma pátria, sem fronteiras,

Sem leis e regulamentos,

Uma terra sem bandeiras,

Sem igrejas nem quartéis,

Sem dor, sem febre, sem ouro,

Um jeito só de viver,

Mas nesse jeito a variedade,

A multiplicidade toda

Que há dentro de cada um.

Uma cidade sem portas,

De casas sem armadilha,

Um país de riso e glória

Como nunca houve nenhum.

Este país não é meu

Nem vosso, ainda, poetas.

Mas ele será um dia

O país de todo homem”.

 

Não seria nada exato, contudo, caracterizar  a poesia e prosa de CDA como um trabalho militante e, muito menos, como ideologicamente comprometidas com o socialismo. Mesmo neste “Rosa do Povo”, que é provavelmente o mais politizado dos livros do escritor mineiro, os temas especificamente políticos não são maioria.

 

Pelo contrário, as temáticas variam da forma de fazer poemas, da rotina e do trabalho burocrático dos funcionários públicos, do amor e até do contar histórias em poesia. O que é interessante de se notar é que os temas dos poemas parecer terem sido agrupados de tal forma que é recomendável a leitura na ordem proposta pelo escritor – o livro parece uma espécie de ópera ou grande musical em que se intercalam momentos de maior e menor tensão.

 

O poeta começa nos poemas “A consideração do Poema” e “Procura da Poesia” apresentando sua proposta literárias: versos livres, sentimentos que variam da tristeza ao humor e à ironia, a total oposição à poesia parnasiana como todo bom poeta modernista.

 

Logo no início do livro o escritor afirma que não rimará a palavra sono com a incorrespondente palavra outono, mas rimará com a palavra carne ou outra que lhe convém. Mais do que poemas ideologicamente de esquerda, o crítico Affonso Romano de Sant’Anna vê uma relação entre este trabalho e o existencialismo, corrente filosófica que suscita uma tentativa e impossibilidade de inserção plena do indivíduo no mundo. Um mal estar que se expressa talvez no mais auto ponto poético de “A Rosa do Povo”, o poema “A Flor e Náusea”.

 

Certamente, não se trata de um desespero ante uma realidade sem saída, como vimos. Stalingrado, na distante Rússia, ainda remete a um ponto de esperança. E talvez seja mesmo imprescindível salientar que a última palavra redigida no último poema da coletânea seja justamente a palavra esperança:

 

“Poder de voz humana inventando novos vocábulos e dando sopro aos exaustos.

Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,

Crispação do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores,

Ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e esperança”.  

 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

“A Casa do Morro Branco” – Rachel de Queiroz

 

“A Casa do Morro Branco” – Rachel de Queiroz



 


Resenha Livro - “A Casa do Morro Branco (contos)” – Rachel de Queiroz – Editora Siciliano – São Paulo 1999

 

Os romances da escritora cearense Rachel de Queiroz se situam dentro de uma corrente literária comumente classificada como a 2ª Fase do Modernismo Literário. Se na primeira geração modernista, escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia suscitam de maneira pioneira uma forma literária especificamente nacional, deixando de basear a literatura em modelos e escolas literárias estrangeiras como se verificou desde o romantismo, o realismo e o naturalismo, esta segunda geração de certa maneira aprofunda o projeto nacionalista, só que por meio do regionalismo.

 

Não se verifica no regionalismo de escritores como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos ou Jorge Amado o mero pitoresco, o folclórico, ou uma descrição dos tipos populares como se os personagens fossem quase que inteiramente condicionados pelo meio social da pobreza, pela raça e pela geografia, como acontece de maneira nítida nos romances naturalistas. É certo que os escritores naturalistas foram pioneiros em dar algum protagonismo a personagens oriundos do povo, como nas descrições do Cortiço de Aluízio de Azevedo ou dos tipos do subúrbio carioca suscitados posteriormente por Lima Barreto.

 

Com os modernistas, contudo, os personagens do povo surgem como algo que vai além do superficial e do folclórico, os seus dramas e suas contradições fazem como que as suas histórias vão além de um mero juízo do certo ou do errado, do herói e do vilão. No regional se alcança o universal, do contato com as condições de vida do povo simples do campo, das vilas e cidades, entramos em comunhão com a experiência trágica que informa em qualquer tempo e lugar a trajetória humana.

 

A qualidade artística daqueles escritores regionalistas se comprova justamente pela atualidade dos dilemas suscitados pelos seus personagens, perdidos em rincões afastados no interior do país, há muitos e muitos anos.

 

São características da arte modernista deste período situado entre 1930 e 1945, uma narrativa de tipo realista, com compromisso do narrador em descrever de forma fiel pessoas e cenários. Há uma inequívoca valorização da cultura popular do país, um nacionalismo que se expressa em tendências culturais regionais. A temática do cotidiano e uma linguagem coloquial estão sempre presentes. E, aqui se destacando das narrativas naturalistas, há uma preocupação com a análise psicológica das personagens, sempre se sondando as intenções, as palavras que foram pensadas e não foram ditas, as hesitações, os sentimentos contraditórios que acompanham os atos, fugindo assim de uma explicação das pessoas e de suas atitudes por uma mera justificativa “científica” da influência do meio social, da raça e do meio ambiente.

 

A “Casa do Morro Branco é uma antologia de 14 contos de Rachel de Queiroz.

 

Nas pequenas histórias coexistem temas que são atemporais e remetem àquela universalidade que a arte aspira ao possibilitar um contato íntimo do leitor com as experiências e emoções de personagens distantes no tempo e no espaço. E temas nitidamente regionalistas, por exemplo, no conto com certo tom de humor denominado “Telefone” que descreve os embates de duas famílias de coronéis (Major Francisco Leandro, chefe do partido marreta, e Benvido Assunção, chefe rabelista) na pequena cidade de Aroeiras na Paraíba.

 

A chegada do primeiro telefone na cidade, instalado apenas na delegacia, na estação de trem, na Câmara, na casa do juiz e na residência dos dois chefes políticos rivais, é o ponto de partida da narrativa. Ironicamente, o instrumento que serve para a comunicação e aproximação de pessoais irá detonar um conflito na cidade com consequências trágicas.

 

De maneira geral, os contos têm como protagonistas as gentes simples do campo e das pequenas comarcas do nordeste. “Vozes d’África”, nesse sentido, é não só uma narrativa literária, mas um documento para o historiador conhecer a vida de camponeses humildes cuja origem ancestral comum é dos escravos africanos. As casas em que moram é de taipa e não têm cerca ao redor “porque os donos de terra tão sem valia não se interessam por divisas”. O telhado das casas de pau a pique é de sapé apanhado “ali mesmo, no morro, porque sapé comprado está custando dois cruzeiros e cinquenta centavos o molho pequeno”. O chão da casa é de barro batido e “a criançada é tanta, que só de pensar dá agonia”:

 

A luz que se gasta em casa é querosene, que o carreiro traz da bomba da Ribeira. Mas nestes tempos de dificuldade e carestia, muitas vezes a mãe tem acendido a velha candeia de azeite que a sogra lhe deixou de herança. A luz faz cada lista preta na parede que chega a subir para o sapé – mas alumia que chegue.

 

Noite de lua todos se juntam no terreiro varrido, em frente à casa. As crianças rodam na gangorra e os mais velhos ficam sentados em redor do poço, conversando com alguma visita. E tudo é tão bonito e tão quieto, que a mãe sempre acaba falando em aproveitar uma noite daquelas, que caia em tempo de festa do Senhor São Jorge (na frente de estranho ela não fala Ogum), para fazer um terço, enfeitar a frente de casa de bandeirinhas e, no último dia, comerem um leitão de forno. Mas sempre é interrompida por uma briga da criançada ou uma queda da gangorra. Levanta-se, bate as saias, vai acudir o menino e suspira:

 

- Ai que vida, Jesus!”

 

Outros contos desta coletânea fogem um pouco da orientação realista e se estendem ao campo do fantástico e do irreal, como “Ma-Hôre”, uma trágico- cômica história de uma expedição interplanetária mal sucedida, após contatos extraterrestres no planeta W-65; e as histórias de fantasmas e espíritos suscitadas em “A Presença de Leviatã”, “O homem que plantava maconha ou Exu Tranca Rua” e “Cremilda e o Fantasma”.

 

Fica o convite para editores do país darem uma nova edição a este livro de contos, aparentemente esquecido, de Rachel de Queiroz.