sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O Anarquismo: da doutrina à ação - Daniel Guérin

Resenha Livro #11: “O Anarquismo: da doutrina à ação” – Daniel Guérin - Ed. Germinal




Algumas informações iniciais

Mesmo na internet há poucas informações sobre vida e trajetória política de Daniel Guérin (1904-1988). Foi ativista político e autor de livros sobre política e história; publicou obras sobre o homossexualismo e a liberação sexual, Rosa Luxemburg e o “espontaneísmo revolucionário” e lutas na América do Norte. Tem contribuição no debate historiográfico da Revolução Francesa, escrevendo na revista Annales sobre o tema.


Foram, ainda, seus diversos livros sobre anarquismo que o fizeram famoso pelo mundo. Segundo prefácio de Roberto das Neves, os textos sobre anarquismo do escritor francês eram amplamente conhecidos pela juventude européia durante as lutas do maio de 1968; Daniel Cohn-Bendit, referência daquele movimento, dizia-se discípulo e amigo pessoal de Guérin. “Posso afirmar que raramente encontrei um jovem que houvesse lido Marcuse, mas a cada passo via nas mãos dos jovens L’Anarchisme de Daniel Guérin, calorosamente discutido nos centros escolares e sindicais”.

Politicamente, transitou entre o anarco-sindicalismo e o socialismo independente. No âmbito do socialismo libertário, Guérin militou em uma organização pouco conhecida, o PSOP (Parti Socialiste Ouvrier et Paysan): este pequeno agrupamento reunia dissidentes do Partido Comunista Francês, trotskistas, luxemburguistas e socialistas libertários, correspondendo à mesma seção internacional do POUM [Partido Obrero de Unificación Marxista]espanhol. Para Pietro Ferrua (diretor-fundador do Centro Internacional de Pesquisas Sobre Anarquismo), o pensamento de Guérin está no meio termo entre o anarquismo e o marxismo. O anarquismo mantém sua atualidade a partir de sua crítica radical à burocracia e ao autoritarismo. Já o marxismo ou o socialismo genérico são reivindicados na medida em que a luta pela “autogestão” significa, aqui, o aprofundamento, a radicalização das lutas revolucionárias. Guérin, ainda segundo Ferrua, mantém-se convicto da conciliação entre anarquismo e marxismo, o que lhe valerá certa posição de isolamento ou mesmo ambigüidade política. (Tece duras críticas ao leninismo, mas dele tira alguma legitimidade, ao associar certas passagens de O Estado e a Revolução às concepções libertárias. Reconhece Trotsky como um “revolucionário honesto”, mas denuncia a repressão sobre a rebelião dos marinheiros de Kronstadt – comandado pelo dirigente bolchevique – como parte do esmagamento da revolução autêntica).

Não sabemos quais obras de Guérin foram publicadas no Brasil. Chegou a nossas mãos, ao acaso (encontrada em um sebo [alfarrabista] em São Paulo), uma edição bastante gasta do Anarquismo, lançada pela editora Germinal de 1968 [*]. A Germinal foi fundada em 1947 no Rio de Janeiro pelo anarquista português Roberto das Neves. Aparentemente, era uma editora independente e provavelmente com enormes dificuldades na promoção e difusão dos livros – identificamos problemas de tradução bastante evidentes, erros de ortografia e ausência de notas de rodapé. De maneira que novas edições de Guérin para o público brasileiro (contando com uma nova tradução e maior trabalho de pesquisa sobre o autor) são necessárias. Reconhecemos, por suposto, a importância e o pioneirismo do trabalho da Germinal – não nos consta existência de outra edição do livro em português.

As idéias força do anarquismo

O propósito de Guérin no ensaio é lançar uma visão panorâmica sobre os principais aspectos teóricos e práticos do anarquismo. Há a intenção de retirar do isolamento intelectual autores e teses ligadas ao “socialismo libertário” (entendido como sinônimo do anarquismo) e estabelecer certo “ajuste de contas”, identificando aspectos em que aquelas teses provaram-se aparentemente corretas – particularmente, a crítica radical da política frente à degeneração do socialismo em capitalismo de Estado no leste da Europa. A reabilitação do anarquismo, oportuna num momento da história onde se reorganizava a esquerda frente às claras evidências de repressão política na URSS, também significa a desconstrução de certos equívocos disseminados dentro e fora do campo da esquerda sobre o que significa anarquismo.

Logo no começo, o autor desconstrói certo senso comum que identifica anarquismo à “bagunça” ou “desordem”. Muito pelo contrário: em Proudhon, Bakunin e demais ideólogos daquele movimento, há propostas as mais diversas de organização política centrada em torno de alguns princípios comuns – que os unem genericamente ao campo do socialismo libertário. É em torno dos aspectos teóricos de organização que as duas primeiras partes do livro se referem: o problema da autogestão, as bases de troca e as formas econômicas dentro do modelo autogestionário, o significado da concorrência e sua afirmação ou negação no anarquismo, o sentido do federalismo no âmbito do anarquismo (uma discussão bastante original e interessante, que vai pensar formas de articulação geral da política e de forma não coercitivas, que relacione os poderes locais aos âmbitos regionais e “internacionais”, ou, melhor dizendo, “mundiais”). Discutindo as particularidades do movimento anarquista no que se refere aos seus princípios de funcionamento e nas suas experiências práticas em Espanha, Iugoslávia ou Argélia, vai sendo desconstruído aquele senso que define como utópicas as formas de organização independentes do Estado.

Especificidades do anarquismo

Guérin identifica anarquismo como uma vertente particular do socialismo: todo anarquismo é socialista, mas nem todo socialismo é anarquista. Ao longo do texto, opõe anarquismo ao “socialismo autoritário”, referente, basicamente, aos momentos em que a burocratização ou a intervenção mais ou menos motivada do Estado socialista implode práticas políticas de autogestão mais ou menos espontâneas. A especificação do “socialismo libertário” refere-se a uma série de características comuns àquela tradição.

“O Anarquista é, em princípio e antes de mais, um revoltado”: a revolta visceral a tudo que remete de alguma forma aos poderes oficiais ou mesmo ao que é regular, lembra Guérin, faz com que o anarquista sinta simpatia pelo o que é irregular. “É muito injustamente, acreditava Bakunin, que Marx e Engels falavam com profundo desprezo do Lumpenproletariat (“proletariado esfarrapado” [ralé]), pois é nele e só nele, e não na camada burguesa da massa operária, que residem o espírito e a força da futura revolução social”. Há, finalmente, maior atenção ao indivíduo, ainda que neste campo haja muitas diferenças internas dentre os autores – o ultra-individualismo de Max Stinner (que remete a uma postura anti-social, anti-socialista) opõe-se a outras tradições coletivistas, que, de forma geral, identificam tendência de harmonia social quando há ausência de aparatos de controle e domínio político. Guérin identifica como fontes de energia do anarquismo tanto o indivíduo quanto as massas.


O problema do Estado e do Governo

As diferentes percepções sobre o Estado são provavelmente o ponto em que mais imediatamente se identificam diferença entre anarquistas e outras tradições socialistas. O “definhamento” ou “extinção” do Estado processado no âmbito da ditadura dos produtores é prontamente denunciado pelos anarquistas como sinal de degeneração, controle e burocratização da insurreição popular. O “horror ao Estado” é emblemático e surge nos textos de forma contundente e radical: vamos transcrever algumas passagens longas, mas muito interessantes, sobre esta percepção. Identificamos dois pontos importantes nestas descrições: a idéia do Estado, sob qualquer forma, como fonte de opressão; o fato de esta opressão do Estado servir, posteriormente, como explicação para os desvios do “socialismo autoritário”.

“(Os burgueses) consideram o povo uma espécie de aglomerados de selvagens, comendo o nariz uns aos outros se o governo não funcionasse mais.”


“O governo do homem pelo homem é a servidão. Quem puser a mão sobre mim, para me governar, é um usurpador e um tirano. Declaro-o meu inimigo. Ser governado é ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, parqueado, endoutrinado, predicado, controlado, calculado, apreciado, censurado, comandado por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude […]. Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, corrigido. É, sob pretexto de utilidade pública e em nome do interesse geral, ser submetido à contribuição, utilizado, resgatado, explorado, monopolizado, extorquido, mistificado, roubado […]. Oh!, personalidade humana! Como foi possível deixares-te afundar, durante sessenta séculos, nesta abjeção?”

“[O Estado] é uma abstração devoradora da vida popular, um imenso cemitério aonde, sobre e sob o pretexto desta abstração, vêm generosamente, com beatitude, sacrificar-se, envilecer-se todas as aspirações reais, todas as forças vivas de um país”.

“Longe de ser criador de energia, o governo desperdiça, paralisa e destrói, por seus métodos de ação, forças enormes”.


Limites do horror ao Estado e Governo

Em que pese a intenção propagandista das frases, reconhecemos que elas sinalizam os problema da transição política socialista, e em parte antecipam, como procura ressaltar Guérin, a burocratização e conformação de revoluções populares e/ou socialistas aos marcos do capitalismo de Estado. O problema, no nosso entendimento, é que a premissa para aquelas críticas à política refere-se não raras vezes a certo entendimento de que toda direção política acaba tendo uma natureza contra-revolucionária por ser uma direção: a posição de direção – seja em qual circunstância – cria condições para a sua própria degeneração. Tony Cliff afirmava que não é o poder político aquilo que irá “corromper” ou “degenerar” as lutas, mas o seu contrário: a falta de poder político, a impotência das massas e de mecanismos de controle político pela base e radicalmente democráticos é que criam condições para a degeneração.


O caráter ideológico da democracia burguesa, esta sim, no nosso entendimento, estaria contemplada pela tese do “horror ao Estado” – a forma burguesa de Estado é logo abolida pelos socialistas, combinando-se com a generalização de formas de poder popular fincadas na generalização da socialização produtiva. Na crítica à democracia burguesa, Guérin aponta idéia similar: “A teoria da soberania do povo encerra a sua própria negação. Se o povo fosse soberano, não haveria mais governo nem governadores. O soberano seria reduzido a zero. O Estado não teria mais razão de existir, identificar-se-ia com a sociedade, desapareceria na organização industrial”. Ficamos tentados a localizar a tese do “horror ao Estado” no “horror ao Estado burguês”, destacando o caráter anticapitalista e revolucionário (sem ilusões no reformismo estatal) das lutas, hoje.


Encerrando

Não é nossa intenção aqui chegar a alguma conclusão sobre o grau de pertinência das teses anarquistas ou do que entendemos ser a transição do capitalismo ao socialismo e comunismo. Nossa intenção aqui é chamar atenção para um livro pouco conhecido e provocar eventuais interessados em pesquisar, ler, discutir e socializar idéias concorrentes ao tema. Finalizamos este – já longo – artigo com uma passagem, à guiza de conclusão.


“Graças a estas experiências, as idéias libertárias lograram ressurgir recentemente do cone de sombra a que os seus detratores as havia relegado. O homem contemporâneo, que serviu de cobaia ao comunismo estatal em grande parte do globo, começa, meio aturdido ainda, a inclinar-se, com viva curiosidade e freqüentemente em seu benefício, para as novas formas de sociedade regida por autogestão, propostas, no século passado, pelos pioneiros da anarquia. É certo que ele não as aceita em bloco; todavia, extrai delas ensinamentos e nelas se inspira para tentar conduzir a bom termo a tarefa que se impõe nesta segunda metade do século: romper, no plano econômico, como no político, os grilhões que, de modo indefinido, se designam por “estalinismo”, sem contudo renunciar aos princípios fundamentais do socialismo – antes, ao contrário, descobrindo ou reencontrando as fórmulas de um socialismo autêntico, isto é, com liberdade”.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Dilema de Hamlet - Mauro Iasi

Resenha Livro # 10 - “O dilema de Hamlet: O ser e não ser da consciência” - Mauro Iasi - Ed. Viramundo





“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre/ Em nosso espírito sofrer pedras e setas/ Com que a Fortuna, enfurecida nos alveja/ Ou insurgir-nos contra um mar de provações;/ E em luta pôr-lhes fim?”

A passagem corresponde a monólogo da peça Hamlet de Willlian Shakespeare: o protagonista, hesitante, pergunta a si mesmo se deve ou não agir (ou reagir) ao “mar de provações”, deve cumprir a promessa feita ao fantasma do pai que acusa Cláudio de tê-lo assassinado, vingar-se do vivo em nome do morto, ou deve suicidar-se, sucumbir definitivamente às “pedras e setas”. No que interessa aos objetivos de Iasi, a passagem de Shakespeare diz respeito aos mesmos dilemas da consciência de um militante político. O problema da consciência de classe, de seus limites e potencialidades frente aos aparatos de consolidação de hegemonias e, simultaneamente, às crises e lutas que viabilizam a conformação de contra-hegemonias e mudanças radicais das percepções sobre o mundo, todas estas discussões que de alguma forma partem do dilema inicial de Hamlet são objeto de atenção do estudo.

Desde que o problema da consciência política e sua manifestação no plano individual, societário e nas classes sociais implica nas mais diversas possibilidades de discussão, “O Dilema de Hamlet” acabou saindo como um panorama geral e crítico da forma como a sociologia moderna trabalhou o problema da consciência . Esta visão panorâmica tem como fio condutor o eixo anticapitalista presente na orientação metodológica (marxista) e no próprio entendimento do autor quanto a algumas tarefas do campo político oposto à sociedade do capital. Em diversas passagens, Mauro Iasi sinaliza que mudanças radicais não são “inevitáveis” (tal qual prescreveria certa orientação distorcida e linear do marxismo), mas são cada vez mais necessárias.

A necessidade e a possibilidade da mudança decorrem da constatação (que perpassa todo o “dilema”) de que a História é também uma manifestação humana, de que o seu resultado final não é o resultado de forças inabaláveis, mas do resultado de conflitos que envolvem tanto elementos objetivos (forças produtivas e o grau de contradição entre o seu desenvolvimento e os meios de produção) quanto elementos subjetivos (que envolvem, entre outros, a organização política e o problema das transformações da consciência de classe).

Emancipação Humana

Particularmente, este último aspecto subjetivo também é colocado por Mauro Iasi como algo que torna necessária a luta pela superação do capitalismo. Emancipação humana significa a superação das mediações da religião, da política e da mercadoria associadas ao mundo do capital (ou mesmo antes dele). “Pela mediação religiosa os seres humanos atribuem a algo fora deles a capacidade de construir o seu destino, de fazer sua própria história; pela mediação política do Estado, os seres humanos atribuem à forma social fora deles sua identidade enquanto seres sociais; e, finalmente, na mediação da mercadoria, os seres humanos vêem na abstração do valor, na igualdade dos produtos do trabalho, uma relação mediada pelas coisas”.

Mesmo o problema da mediação religiosa, admite o autor, encontrará maiores dificuldades de superação numa outra organização política e econômica dotada de sentido humano: o próprio problema da finitude da vida recoloca a busca de sentido para além da existência concreta.

Seja como for, num mundo em que, cada vez mais, tratam-se as pessoas como coisas e as coisas como pessoas – fenômeno que é fruto da alienação social do trabalho e da natureza geral do capital enquanto relação social – o “dilema de Hamlet” chama atenção especialmente para a necessidade não só “objetiva” da construção de um novo modo de produção.

Da consciência em si à consciência para si – Desafios

Ao se pensar sobre o “agir ou não agir” de Hamlet, destacamos o problema das transformações da consciência, de seu fluxo ao longo da história e de suas manifestações em períodos revolucionários. O problema da consciência de classe tornou-se objeto de controvérsias, mesmo em relação à "atualidade" da luta revolucionária dos trabalhadores. Esta é cada vez mais oposta ora a um amoldamento da noção de classes a grupos mais fluidos e heterogêneos (“povo”, “cidadãos”, “eleitores”, etc.) circunscrevendo os conflitos de classe a um quadro jurídico-institucional, ora a pulverização das lutas em torno de bandeiras cada vez mais específicas e que são prontamente amoldadas pelo Estado a partir da criação de “comissões especiais”, “secretarias específicas”. Ou, mais emblemático, a ocorrência do “empreendedorismo social” através de ONGs dentro da lógica neoliberal que imprime novas tarefas ao Estado.

O desafio de resgatar um sentido unitário das lutas, de articulá-las em torno de um movimento geral anticapitalista passa por uma “lacuna” ainda não satisfatoriamente analisada pelos marxistas. Trata-se de se responder o como promover e generalizar a transição dentre as consciências “em si” para a consciência “para si”, das lutas específicas em torno de objetivos imediatos para uma transformação geral em que uma classe social nega a realidade e vocacione-se a dirigir transformação em nome e para todas as demais classes.

Este problema, mais uma vez, torna-se ainda mais complicado ao se constatar que as próprias lutas “moldam” as classes, de maneira que trabalhadores não são "naturalmente" revolucionários, são antes parte de uma dinâmica complexa de relações de conflito e consentimento: as classes amoldam-se à ordem, eventualmente atuam no sentido de defender o próprio sistema que originalmente as oprimem. (O fato das classes “amoldarem-se” às lutas é parte de uma crítica feita pelos “marxistas analíticos”, particularmente Pzerworski. Mauro Iasi resgata esta crítica sem contudo cair em uma conclusão “reformista” que poderíamos incorrer a partir de uma interpretação mais "flexível" do conceito de classes).

Do ponto de vista histórico, as fases revolucionárias da burguesia e do proletariado diferenciam-se de modo já previsto por Marx. Entre a transição do feudalismo ao capitalismo, a burguesia desenvolve-se exteriormente às relações sociais dominantes (servos e senhores), colocando-a numa posição privilegiada para, num dado momento, ser capaz de negar toda a ordem e produzir um movimento que lute por alternativa societária que atenda aos seus interesses. Por se desenvolver exteriormente às relações de produção então dominantes, a burguesia possui maior autonomia relacional que o proletariado. Conclui Mauro Iasi: “O proletariado, ao contrário, está incluído na relação principal do modo de produção capitalista (capital-trabalho), sendo parte constitutiva do capital enquanto capital variável. Não é de se estranhar, portanto, que a consciência proletária veja na aparência das coisas a crise do capital como sua própria crise, e, por vezes, o desaparecimento da sociedade capitalista como se fosse o desaparecimento da própria sociedade”.

Se as dificuldades aqui aumentam, cresce também a necessidade de se resgatar toda intervenção política socialista ancorada na agitação e propaganda, na educação teórica e mesmo na promoção de manifestações artísticas, místicas e demais técnicas que incidam sobre a consciência individual. Este trabalho político voltado ao agir histórico tem como objetivo dispertar a atenção de novas pessoas para a militância e resgatar um sentido de unidade ou um sentimento de solidariedade de classe. Longe de ser pessimista, Mauro Iasi reafirma a atualidade do pensamento de Marx sobre classes sociais e o seu protagonismo na história.

Comentários Finais

Segundo o prefácio, o ensaio corresponde à dissertação de mestrado do educador Mauro Iasi na faculdade de sociologia da USP. O texto tem um tom mais acadêmico, existe atenção em trabalhar os autores da sociologia “clássica” (Durkheim, Webber e Marx) de maneira que o leitor já deva ter algum conhecimento prévio destes pensadores. Certamente, o “Dilema” não é uma leitura fácil: tivemos dificuldade de apreender alguns assuntos, particularmente os relacionados à psicologia e à linguagem no âmbito da sociologia. Talvez, o texto “Ensaio sobre consciência e emancipação” da Ed. Expressão Popular possa ser um bom ponto de partida para, depois, aprofundar o tema da consciência militante no “Dilema”.

Outra ponderação pontual: em certa passagem, o autor revela que seu estudo partiu de entrevistas feitas com militantes, pedindo que contassem sobre a forma como começaram a atuar politicamente. As memórias estavam associadas às “memórias de vida” referentes a grupos determinados (grupos de jovens, igreja, teatro, etc.). Certamente, o estudo poderia ser mais ilustrado com estes depoimentos, poderia haver maior espaço para os relatos de maneira a relacioná-los com o problema (em si já bastante teórico) da consciência.

Ainda sim, o ensaio de Mauro Iasi é um ferramenta bastante original e instigante para todo militante marxista situado na luta, desde que todas as lutas relacionam-se em alguma medida à manifestação da “consciência militante”. Vamos transcrever uma passagem do penúltimo capítulo do estudo: o trecho é longo mas sintetiza bem implicações do “ser ou não ser” de Hamlet e a linha política anticapitalista de Mauro Iasi.

“Se tomássemos as análises de Juarez Brandão Lopes e Leôncio Martins Rodrigues, poderíamos concluir pela impossibilidade da emergência de uma consciência de classe; se tomássemos o otimismo de Sader sobre a emergência de novos personagens ou nos baseássemos no Ascenso do movimento da década de 1980 [no Brasil], poderíamos imaginar que a revolução novamente se tornaria possível. Hoje estaríamos mais propensos a procurar entender a defensiva e o novo amoldamento às estruturas de consentimento. Perdidos em cada momento do processo, deixaríamos de ver um nítido movimento em qe cada ponto do processo de acumulação é o resultado de uma tensão entre luta e consentimento, em que os indivíduos, contra qualquer previsibilidade de engenhosos e eficientes meios de coerção e hegemonia, se antagonizam contra a ordem em algum ponto do processo, se mobilizam e agem, militam por seus sonhos. A cooptação e o amoldamento à ordem são a prova de que a cooperação é necessária. O consentimento, assim como a hegemonia, não representa o fim da luta, mas é o resultado direto dela.
(...)
No interior desse processo [de acumulação capitalista] que em si mesmo não guarda sentido, senão o da tentativa de perpetuar a acumulação, os trabalhadores, por meio de suas histórias de vida e de sua ação como seres sociais, podem se antagonizar com a ordem estabelecida e sua representação ao nível das ideias; podem, nem automática, nem inevitavelmente, constituir uma alternativa societária além da ordem capitalista. Isso, ainda que não seja automático, nem inevitável, é necessário. O único sentido que guarda a história é aquele que os seres humanos atribuem a ela”.

sábado, 25 de dezembro de 2010

A Revolução Permanente - Leon Trotsky

Resenha Livro #9 - "A Revolução Permanente" - Leon Trotsky. Ed. Expressão Popular




Autor e suas circunstâncias históricas

Leon Trotsky nasceu em 1879 e morreu assassinado no México em 1940. Foi ativista e teórico político, participou do levante operário em São Petersburgo em 1905 e das revoluções de Fevereiro e Outubro de 1917. Chefiou o exército vermelho após a tomada do poder político pelos bolcheviques e esteve à frente da tropa que reprimiu motim anarquista em Kronstadt em 1921. Após a morte de Lênin em 1924, vê-se cada vez mais isolado politicamente: há a polarização (desigual, por suposto) entre a orientação stalinista centrada na tese do socialismo nacional e a teoria da revolução permanente, formulada por Trotsky e sobre a qual se agrupa a Oposição de Esquerda, minoritária.

Em 1925 é proibido de falar publicamente e em 1929 é forçado a sair da URSS. A edição “A Revolução Permanente” foi escrita em 1928, momento, portanto, em que já iniciara campanha oficial de aniquilação do trotskysmo e oposição política entre grupo ligado à burocracia oficial (velhos bolcheviques, ou “epígonas”) e Trotsky. Esta oposição não diz respeito a divergências pontuais de táticas políticas específicas ou menos ainda diferenças e disputas pessoas centradas exclusivamente nas figuras de Trotsky e Stalin. A antinomia diz respeito a um corte definitivo dentro da política do movimento comunista mundial que vai opondo percepções distintas sobre os papéis das classes sociais no decorrer das revoluções e a sua conformação, particularmente nos países de capitalismo atrasado. Esta diferença – colocada por Leon Trotsky pelas teses da revolução permanente e a tese do socialismo nacional – repercutia, naqueles anos, a lutas políticas imediatas, particularmente à rebelião chinesa (1925-1927) e à capitulação do movimento operário comunista daquele país ao Kuomitang.

Identificamos recorrentes disputas no âmbito da esquerda que vai opor campos distintos, derivados mais ou menos daquela polarização. Ela (a polarização) repercute mesmo debates da própria esquerda brasileira: o problema do etapismo dentre as formulações do PCB, o papel das lutas democráticas e os seus limites, a composição de classes em torno da “revolução burguesa” brasileira e, mais recentemente, a polêmica em torno do programa democrático popular sinalizam de alguma maneira estratégias mais ou menos associadas àquela polarização. As divergências servem, aqui, apenas como ilustração da atualidade da “Revolução Permanente” e de um balanço ainda inconcluso da esquerda frente ao problema da revolução democrática e socialista, assim como das suas respectivas composições de classe. Qual é o papel do campesinato e como ele se relaciona com o poder operário na luta revolucionária? Em que medida sobrevivem experiências socialistas isoladas, sem contar com a generalização mundial do modo de produção pós-capitalista? Como se relacionam as tarefas democráticas inconclusas e a estratégia socialista? Qual classe ou composição de classes dirigirão estas lutas mínimas e máximas? Pode-se falar em socialismo em um só país? As diferentes respostas para estas perguntas correspondem às distintas filiações políticas, repercutindo a polêmica até os nossos dias.

A história das ideias trotskystas

Ainda sobre Trotsky, vale apontar sua grande incidência (e variabilidade de significação) nas organizações de esquerda no Brasil e no Mundo. Quando escreveu “A Revolução Permanente”, a Oposição de Esquerda ainda atuava no âmbito da III Internacional e denunciava sua política conciliadora, que negava a centralidade de movimentos operários em suas lutas, fazendo-os operar a serviço da dominação burguesa, inviabilizando a tática revolucionária internacionalista e viabilizando a orientação etapista de Stálin – esta situação é narrada no texto a partir de derrotas distintas do movimento comunista na Europa (Alemanha e Polônia) e Oriente (China e Índia). Cerca de 10 anos depois, a Oposição de Esquerda sai da III Internacional (1938) e no mesmo ano é fundada a IV Internacional. Há aqui um marco importante: é sobre esta organização internacional que se apóiam novos partidos ou forças políticas em todo mundo, cada qual partindo de alguns pontos de partida comuns: o caráter internacionalista das lutas, a centralidade da classe operária na revolução e as críticas à burocracia estalinista. O ponto de partida não leva aos mesmos pontos de chegada: a tese que caracteriza a URSS como Estado Operário degenerado ou burocratizado é oposta à tese de Capitalismo de Estado, há diferentes formulações em torno do problema das guerras mundiais, do significado das lutas anti-imperialistas e dos movimentos de libertação nacional na América Latina e Africa. Surge, dentro do trotskysmo, tradições particulares a partir de autores e ativistas políticos do séc. XX: Michel Pablo, Ernest Mandel e Nahuel Moreno.

No Brasil, seguem algumas das organizações políticas identificadas com o trotskysmo: PSTU que se filia à organização internacional LIT - IV Internacional; diversas correntes do PSOL, dentre as quais o ENLACE, o antigo bloco Socialismo Revolucionário (atual LSR) ligado ao grupo CIO filiado também à IV Internacional, o grupo REVOLUTAS que é seção brasileira da IST, o MES, a CST (UIT-QI); LER-QI que integra o grupo internacional Fração Trotskysta igualmente filiado à IV - Internacional. Há ainda organizações com intervenção mais restrita a algumas universidades e sindicatos, como o MNN (Movimento Negação da Negação) e a LBI (Liga Bolchevique Internacionalista). Sobre a história das ideias trotskystas, opinamos pela leitura do artigo “O Trotskysmo depois de Trotsky” de Tony Cliff.

A Teoria da revolução permanente e a sua oposição

A Teoria da Revolução Permanente decorre de debates e artigos publicados por Trotsky já em 1905, ano em que uma insurreição popular e espontânea varreu a Rússia. Lênin considera 1905 como o ano do ensaio geral da revolução proletária. Em 1917, as diferentes fases da revolução – fevereiro, com a derrocada definitiva da monarquia e outubro, com a tomada do poder pelos bolcheviques – viriam, segundo Trotsky, a confirmar na prática as orientações gerais da teoria da revolução permanente. Esta tem como eixo central a relação de interdependência entre as etapas democráticas e socialistas da luta revolucionária e a necessidade premente de serem as lutas revolucionárias conduzidas pela e para a classe trabalhadora. Neste aspecto, há maior relevo para o problema da revolução em países de capitalismo atrasado. O sentido da revolução na Rússia não poderia ser uma transformação uniforme e mecânica do país, da monarquia e do feudalismo à democracia liberal e capitalismo e finalmente ao socialismo. O sentido da revolução permanente é o que Trostsky chama “transcrescimento” das bandeiras democráticas às bandeiras socialistas dentro de um mesmo movimento dirigido pelo proletariado.

Aqui há uma crítica frontal ao que se entende como etapismo, o engessamento das lutas a certo enquadramento da história que determina rigidamente a natureza política de cada momento histórico e não raro serve como fonte de deslegitimação de lutas autônomas. Segundo Trotsky, a supressão tanto dos ranços feudais quanto dos problemas democráticos pendentes encontram-se entrelaçados à revolução socialista, “por meio de uma série de conflitos sociais crescentes, da insurreição de novas camadas populares, de ataques incessantes do proletariado aos privilégios políticos das classes dominantes”. Não se trata, como acusa a ortodoxia, de pular “etapas” do desenvolvimento histórico, mas reconhecer por um lado a variabilidade dos fenômenos históricos e sua repercussão dialética que não se confundem com um “evolucionismo vulgar” do etapismo; significa, por outro lado, a necessidade da revolução democrática não cair dentro de uma política geral burguesa, em que trabalhadores e camponeses travam as lutas no sentido de confirmar o poder político de distintas frações da burguesia, “sujar as mãos em seu lugar” – a revolução permanente deve transitar, assim, desde fases pré-modernas até colocar na ordem do dia a construção do socialismo.

Duas implicações decorrem do caráter permanente da revolução. Em primeiro lugar, a própria natureza permanente da revolução implica na indeterminação de sua duração e na amplitude das relações sociais em mudança. “A sociedade não faz senão mudar de pele, sem cessar. Casa fase de reconstrução decorre diretamente da precedente. Os acontecimentos que se desenrolam guardam, necessariamente, um caráter político, dado que assumem a forma de choques entre os diferentes grupos de sociedade em transformação(...). As profundas transformações na economia , na técnica, na ciência, na família, nos hábitos e nos costumes, completando-se, formam combinações e relações recíprocas de tal modo complexas que a sociedade não pode chegar a um estado de equilíbro. Nisso se revela o caráter permanente da própria revolução socialista”.

A segunda (e não menos importante) implicação: a generalização necessária da revolução em nível mundial, como garantia de sua suplantação definitiva do capitalismo. Em Trotsky, a revolução socialista começa no âmbito nacional mas não pode nele permanecer: no caso de existir uma ditadura proletária isolada, uma série de contradições internas e externas fará com que, num prazo não previsível, o estado proletário sucumba. Estas contradições resumidamente decorrem do elo mundial em que o capitalismo já se configura: seu desenvolvimento desigual e combinado certamente determinará características específicas nas lutas travadas na Índia ou Inglaterra, na China ou na Alemanha: ainda assim, a vitória do socialismo depende “do desenvolvimento mundial das forças produtivas e do ímpeto mundial da luta de classes”.

Implicações gerais: o legado de Lênin e o problema da China

A classe de trabalhadores deve ter como palavra de ordem a defesa da ditadura democrática do proletariado apoiada pelos camponeses. Lênin, em polêmica com Trotsky, falava em “ditadura democrática do proletariado e dos camponeses” admitindo maior ou menor preponderância do campesinato dentro da direção das lutas. Tratava-se, segundo Trotsky, de uma “fórmula algébrica”, de uma tese flexível que deveria ir sendo melhor trabalhada conforme a evolução dos eventos históricos. E de fato o foi: a partir da experiência histórica, verificou-se que os camponeses na Rússia não podiam organizar-se como classe revolucionária, como grupo social com bandeiras articuladas em torno da transformação de toda a sociedade. E com o tempo, assegura Trotsky, Lênin passou a defender posição semelhante à sua ao constatar a situação política concreta.

Os camponeses organizavam-se no partido dos Socialistas Revolucionários e possuíam uma política vacilante, muitas vezes contra-revolucionária e em defesa da burguesia: os comunistas devem incidir neste setor no sentido de arrastá-lo politicamente. Não se deve, ainda, perder de vista a centralidade operária da luta revolucionária. Os camponeses não podem ser uma classe revolucionária, por eles próprios. Dado momento revolucionário, eles vão ser arrastados ou para o lado do proletariado ou para o lado burguês.

Independentemente da atualidade desta tese –especialmente num quadro de proletarização e extensão das relações capitalistas de trabalho no campo com o agronegócio - chamamos atenção para o que há por trás da polêmica. O livro, situado dentro de um contexto de disputa política com o stalinismo, remete à tentativa de encontrar maior respaldo das teses de Lênin à Teoria da Revolução Permanente. Diante de um contexto de manipulações dos textos e disseminação de informações distorcidas de forma a isolar o trotskismo politicamente, boa parte do trabalho de Trotsky diz respeito a um resgate das ideias de Lênin e à denúncia de desvios teóricos promovidas pelo stalinismo. Além de situações políticas concretas, o que estava em jogo naquela disputa era e ainda o é o real legado e significado do leninismo e do marxismo. Como já colocamos, o aspecto prático de destaque no texto é o problema da política da III Internacional no Oriente: discutir e resgatar o sentido da revolução permanente dizia respeito a identificar que a ausência de uma direção operária na revolução cria condições para a burguesia utilizar-se das classes subalternas para fazer a sua revolução. Este é o sentido da “tragédia chinesa”.

Balanços Provisórios

No que concerne às lutas anticapitalistas da atualidade, a leitura de Revolução Permanente serve para situar marco inicial de discussões acerca da natureza das revoluções e da forma como as direções políticas daquelas lutas disputavam entre si a hegemonia ideológica dos movimentos. Como se sabe, estas disputas levaram a fins trágicos: Trotsky foi assassinado em 1940, assim como diversos teóricos e ativistas que apresentavam qualquer divergência à linha política oficial. Se por um lado nos afastamos da percepção de que o problema da revolução russa se referia a um problema exclusivo de direções políticas, reconhecemos, ao menos, acordo com o necessário (e hoje ainda mais óbvio) internacionalismo na luta contra o capitalismo e na cada vez mais estreita ligação entre lutas democráticas pontuais e um sentido geral de transformação radical da sociedade. Estas duas implicações da teoria da revolução permanente (internacionalismo e radicalidade revolucionária) ainda nos servem de lição e norte para a batalha contra o capital.

Uma citação final

"A ditadura do proletariado, que sobe ao poder como força dirigente da revolução democrática, será colocada, inevitável e muito rapidamente, diante de tarefas que a levarão a fazer incursões profundas no direito burguês da propriedade. No curso do seu desenvolvimento, a revolução democrática se transforma diretamente em revolução socialista, tornando-se, pois, uma revolução permanente. Em lugar de pôr termo à revolução, a conquista do poder pelo proletariado apenas a inaugura. A construção socialista só é concebível quando baseada na luta de classes nacional e internacional. Dada a dominação decisiva das relações capitalistas na arena mundial, essa luta não pode deixar de acarretar erupções violentas: no interior sob forma de guerra civil, no exterior sob forma de guerra revolucionária. É nisso que consiste o caráter permanente da própria revolução socialista".

domingo, 12 de dezembro de 2010

Marxismo e Alienação - Leandro Konder



Resenha livro #8 - Marxismo e Alienação - Leandro Konder - Ed. Expressão Popular


O problema da alienação: ponto de partida do autor

Logo no começo do seu estudo, Leandro Konder alerta que sua intenção não é a de fazer resgate geral de todas as acepções do conceito de alienação: estudar a história do termo e seu sentido dentre as diversas tradições teóricas é tema extenso e implicaria num ensaio fragmentado. Alienação tem diversas fontes e sentidos antagônicos entre si. A idéia aparece na teologia cristã, em expressões da economia política clássica (Ricardo, Smith) e no jusnaturalismo, com a idéia da alienação da liberdade para realização do contrato social (Rousseau).

Em Hegel, pela primeira vez, a alienação deixa de aparecer como uma idéia ilustrativa e com sentido mais particular e torna-se um conceito ordenado dentro de uma teoria geral: “O conceito hegeliano de alienação é o legítimo pai do conceito marxista. E o conceito marxista, seu descendente imediato, embora tivesse de desenvolver em oposição a ele, só o pode superar integrando a si todos os elementos vivos do conceito hegeliano”.

Nas ciências humanas, tornou-se dominante a orientação marxista dentro do que se entende por alienação. De maneira que, hoje, falar em alienação significa remeter aos problemas referentes à sociedade capitalista analisada pelo filósofo alemão. Leandro Konder parte desta premissa para escrever o seu livro: apropria-se da categoria já em sua fase madura, consolidada pelo marxismo, e avança, descrevendo as formas em que alienação se manifesta dentro da história contemporânea, da arte, das religiões antigas e modernas. Há, particularmente, o esforço em traduzir a realidade imediata (o movimento comunista brasileiro, manifestações da arte no Brasil e no mundo, as intervenções imperialistas na América latina, o problema do stalinismo) de maneira a ir identificando em que medida a alienação constrange ou dificulta todo movimento (mais ou menos avançado) de superação do capitalismo.

Este esforço é emblemático: sugere a preocupação mais prática do autor, de maneira a inserir o livro dentro de um quadro de disputa política no interior do movimento comunista e da luta anticapitalista geral. As críticas à alienação dentro da recepção dogmática do marxismo no âmbito do subdesenvolvimento e a analise da “ideologia do colonialismo” como manifestação da alienação coordenada pelo imperialismo são exemplos desta dupla dimensão política da obra – escrita em 1965.

A narrativa é bastante acessível e muito bem escrita. Por não se centrar exclusivamente ao aspecto teórico e buscar sempre ir identificando na história exemplos do estranhamento humano particular da sociedades de classe, a leitura ganha em originalidade de fontes e referências, que passam pelos romances de Franz Kafka, obras de arte, música e filosofia existencialista de Sartre.

O Conceito Marxista: desafios

Alienação e Marxismo de Leandro Konder vai tratando das diversas manifestações da alienação, entendida como fenômeno extra-econômico. De fato, o problema da alienação liga-se à forma como o trabalho se manifesta no capitalismo: a apropriação privada dos meios de produção e a transformação da força de trabalho em mercadoria implica numa alienação (afastamento) entre aquele que produz e aquilo que é produzido – aquilo que é criado pelo homem “se aliena dele, torna-lhe estranho e volta-se contra ele” (MARX). Ainda no terreno econômico, o trabalha alienado cria condições para uma percepção distorcida ou estranhada dos objetos de consumo – o mecanismo da alienação econômica opera no sentido de naturalizar relações sociais e históricas de produção, o que, no capitalismo, implica na percepção “fetichista” da mercadoria a que Marx refere-se nos primeiros capítulos do Capital. O que parece ser central no livro de Leandro Konder é a tentativa de superar senso comum que restringe alienação à alienação econômica correspondente ao fetichismo da mercadoria e conversão do trabalho em meio. Parte-se daquelas premissas econômicas e de algumas discussões gerais sobre consciência e ideologia (introdução) para, finalmente, ir traçando um panorama geral de manifestações extra-econômicas da alienação no âmbito do capitalismo – os capítulos vão, cada um, abordando a História, a Arte, a Religião, a Política e o Subdesenvolvimento – estes dois últimos vão centrando atenção na manifestação da alienação no âmbito do movimento comunista internacional e brasileiro.

De maneira geral, identificamos no autor preocupação análoga ao seu estudo “A Derrota da Dialética” – o trabalho teórico passa a ser central dentre os marxistas, de forma a oxigenar a teoria, resgatando aquilo que há de original e criativo, superando ortodoxias presas aos modelos esquemáticos e economicistas– que, particularmente no caso do stalinismo, significava aparelhamento da teoria à prática política autoritária. O destaque dado a alienação dentro do movimento comunista é parte daquilo que dá sentido ao texto: a desalienação.

Um estudo necessário

Entendemos que Marxismo e Alienação atende as expectativas do próprio autor, qual seja: trabalhar a idéia da alienação como forma de favorecer sua superação. A desalienação não é um processo automático, exige interferência humana e esta é uma colaboração bastante interessante para cursos de formação política, discussões em grupos e novas elaborações teóricas decorrentes de certas provocações do texto. (O autor faz em diversas passagens sugestões de estudos e pesquisa, deixa algumas portas abertas para eventuais interessados).

O tema é bastante amplo, envolve erudição ao contemplar as variadas dimensões em que a alienação ocorre (nos livros, filmes, na psicologia, na religião, na política dos socialistas). Destacaríamos aqui, em particular, o problema da arte. Fonte de manifestações dos preconceitos e percepções ideológicas dominantes de cada respectivo momento histórico, a arte, ao contrário da ciência, também opera num certo nível intuitivo que, historicamente, sinaliza, nas chamadas grandes obras, elementos do futuro. A idéia de artistas visionários diz respeito ao seu papel histórico, como indivíduos cuja percepção é privilegiada e capaz de enunciar alguns aspectos das transformações gerais da sociedade em curso. A Metamorfose de Kafka ou Angústia de Graciliano Ramos remetem a certo mal estar decorrente da fragmentação de sentido humano frente à mercantilização progressiva das relações. Já em “O Processo” (Kafka) são os aparatos burocráticos que vão sinalizando uma sociedade baseada em formas mais ou menos sutis de controle – não se identifica ao certo a origem da opressão mas já se sinaliza tendências de controle político. Esta dupla dimensão da arte – produto do seu tempo e manifestação do porvir – pode fazer com que ela (a arte) assuma um papel importante (e negligenciado) dentre aqueles que se colocam no campo das lutas contra o capital. Dar um sentido humano para as manifestações de arte, potencializar o seu compromisso com o seu tempo e atentar-se para os conflitos de classe e para o desenvolvimento da história de uma maneira geral é um ponto de partida para uma arte, ainda alienada, mas com vocação desalienante. Identificamos no debate arte e alienação uma porta particularmente especial para novas reflexões a partir do Alienação e Marxismo. Desde aqui, identificamos atualidade e enormes possibilidades de leituras e trabalhos associados ao texto.


Sinopse

MARXISMO E ALIENAÇÃO: contribuição para estudo sobre o conceito marxista de alienação. Livro escrito em 1965, tratando-se do primeiro livro lançado pelo autor. Recentemente o livro foi reeditado pela Ed. Expressão Popular. Leandro Konder é professor do Departamento de Educação da PUC-RJ desde os anos 1980 . É um dos principais divulgadores do marxismo no Brasil, tendo especial papel na introdução da obra de Lukács. Tem 21 livros publicados, detre os quais A derrota da dialética, Flora Tristan – Uma vida de mulher, uma paixão socialista, Walter Benjamin – O marxismo da melancolia, Fourier – O socialismo do prazer – Vida e obra, O que é dialética, O futuro da filosofia da práxis.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Os Corumbas - Amando Fontes

Resenha Livro #7 - Os Corumbas - Amando Fontes




Sobre o Autor

Amando Fontes foi jornalista, advogado e deputado estadual constituinte em 1946. Filho de um farmacêutico e uma dona de casa, ficou órfão ainda criança e foi criado pelos avós: passou a infância em Aracaju, residiu durante a vida no Rio de Janeiro, Salvador e Curitiba. Fontes escreveu apenas dois romances: “Os Corumbas” lançado em julho de 1933 e que já conta com 25 Edições (ainda que identificamos desconhecimento generalizado do autor e da obra) e o ainda menos conhecido “Rua do Siriri”, ambos lançados pela Ed. José Olympio.

O Que há de Particular em Fontes

A origem social pequeno burguesa e o relativo isolamento do autor frente aos circuitos literários e culturais de meados do séc. XX (apenas tardiamente Fontes junta-se ao grupo do poeta Augusto Schmidt) fizeram provavelmente com que seu texto se diferencie daqueles autores dedicados à literatura social. Sua narrativa dá voz aos trabalhadores e aos setores populares sem certa estigmatização correspondente ao olhar externo e mais ou menos descritivo da situação de sofrimento popular (tradição que é inaugurada já no naturalismo de “O Cortiço” de Aluízio de Azevedo) ou numa intervenção mais panfletária como os primeiros romances de Jorge Amado.

O que a gente vai percebendo conforme conhece a história de trabalhadores livres e pobres do Aracaju dos anos 1920-30 é uma humanização radical das personagens, como se houvesse um reconhecimento (naquele momento pioneiro) da condição de sujeitos: dos operários da fábrica de algodão, dos camponeses forçados a abandonar suas terras, dos setores populares da cidade, prostitutas, soldados e das donas de casa.

Antônio de Alcântara Machado em resenha escrita de quando do lançamento de Corumbas, enxerga a abertura de um novo caminho para a literatura nacional, comparando Fontes ao escritor e dramaturgo russo Aleksei Górki. Isto significa olhar para o povo e para os trabalhadores menos sob um olhar folclórico, idealizado, estereotipado ou tipicamente “descritivo” e mais sob uma forma mais ou menos equivalente ao retrato da sociedade burguesa sobre a qual a literatura realista do séc. XIX se ocupou – o senso humano ao qual nos referíamos diz respeito ao reconhecimento inclusive das superstições, preconceitos e mesquinharias dentre os proletários de Aracaju.

No Brasil, acreditamos que Graciliano Ramos também opera neste nível e já adianta – particularmente em Vidas Secas e Angústia – descrições psicológicas de personagens do povo num âmbito mais profundo. Ainda, Graciliano fala de funcionários públicos (Luís- Angústia), fazendeiros empobrecidos (Paulo – São Bernardo), jornalistas e profissionais liberais (Caetés) ou retirantes da seca (Vida Seca). Fontes fala de trabalhadores do campo e proletários da cidade.

Sobre Corumbas

Sá Josefa e Seu Gerado são dois agricultores do interior do Sergipe. Conhecem-se emblematicamente numa festança popular de comemoração da ocorrência das chuvas. Casam-se e tem filhos – alguns sobrevivem e trabalham desde cedo, outros morrem. As águas viabilizam sobrevida na roça: entretanto, o tempo passa, a chuva vai ficando escassa, os usineiros e senhores de engenho vão pagando cada vez menos pela cana e a vida no campo torna-se insuportável. O casal parte para Aracaju em busca de emprego nas fábricas de tecido. Àquela altura a família de retirantes conta com 3 mulheres e um homem, cada qual havendo de se empregar nas recém-construída indústria de algodão da capital.

A jornada de trabalho é descrita por Fontes contemplando as diferentes percepções das personagens à exploração da força de trabalho barata dos corumbas.

Alguns personagens reagem com ressentimento, rancor individual que se encaminha no abandono da família – este é o caso de Rosenda, a filha mais velha, a primeira a fugir com um namorado para o desgosto de Sá Josefa. Outros reagem à revolta através do riso – este é o caso da filha Albertina, personagem particularmente interessante em sua forma de encarar o trabalho pesado na fábrica, o assédio moral de patrões e o relacionamento com os homens. O seu fim, porém, se assemelha ao de sua irmã mais velha, com o agravante: mesmo tendo sido sempre cética em relação ao amor, apaixona-se, é violada, abandonada e apenas lhe resta a prostituição.

Pedro, o filho homem, é uma pessoa calada e fechada em seu mundo. Trava amizade com um intelectual que lhe introduz textos de Lênin e se junta a grupo que, pela primeira vez, organiza uma greve geral na capital do Sergipe – seu destino é a prisão, após a traição de advogado pessoalmente simpático à causa dos operários, mas ligado organicamente ao Estado.

A desagregação crescente e gradual dos corumbas conflui para que Sá Josefa e Geraldo tenham de perceber(e sentir) os efeitos perversos da vida na cidade e a derrocada dos seus sonhos. Todos os filhos se vão, só restam os pais. Não vamos dizer o que ocorre finalmente com o casal, evidentemente.

Uma passagem: a reação dos patrões

“As fábricas sentiram, então, toda a gravidade do perigo. Esqueceram questões de concorrência, que as havia afastado desde muito, e passaram a deliberar como um só corpo, unidas e solidárias. As suas diretorias, incorporadas, foram até a presença do chefe da polícia, que prometeu tomar as mais severas providências”.