quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O Dilema de Hamlet - Mauro Iasi

Resenha Livro # 10 - “O dilema de Hamlet: O ser e não ser da consciência” - Mauro Iasi - Ed. Viramundo





“Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre/ Em nosso espírito sofrer pedras e setas/ Com que a Fortuna, enfurecida nos alveja/ Ou insurgir-nos contra um mar de provações;/ E em luta pôr-lhes fim?”

A passagem corresponde a monólogo da peça Hamlet de Willlian Shakespeare: o protagonista, hesitante, pergunta a si mesmo se deve ou não agir (ou reagir) ao “mar de provações”, deve cumprir a promessa feita ao fantasma do pai que acusa Cláudio de tê-lo assassinado, vingar-se do vivo em nome do morto, ou deve suicidar-se, sucumbir definitivamente às “pedras e setas”. No que interessa aos objetivos de Iasi, a passagem de Shakespeare diz respeito aos mesmos dilemas da consciência de um militante político. O problema da consciência de classe, de seus limites e potencialidades frente aos aparatos de consolidação de hegemonias e, simultaneamente, às crises e lutas que viabilizam a conformação de contra-hegemonias e mudanças radicais das percepções sobre o mundo, todas estas discussões que de alguma forma partem do dilema inicial de Hamlet são objeto de atenção do estudo.

Desde que o problema da consciência política e sua manifestação no plano individual, societário e nas classes sociais implica nas mais diversas possibilidades de discussão, “O Dilema de Hamlet” acabou saindo como um panorama geral e crítico da forma como a sociologia moderna trabalhou o problema da consciência . Esta visão panorâmica tem como fio condutor o eixo anticapitalista presente na orientação metodológica (marxista) e no próprio entendimento do autor quanto a algumas tarefas do campo político oposto à sociedade do capital. Em diversas passagens, Mauro Iasi sinaliza que mudanças radicais não são “inevitáveis” (tal qual prescreveria certa orientação distorcida e linear do marxismo), mas são cada vez mais necessárias.

A necessidade e a possibilidade da mudança decorrem da constatação (que perpassa todo o “dilema”) de que a História é também uma manifestação humana, de que o seu resultado final não é o resultado de forças inabaláveis, mas do resultado de conflitos que envolvem tanto elementos objetivos (forças produtivas e o grau de contradição entre o seu desenvolvimento e os meios de produção) quanto elementos subjetivos (que envolvem, entre outros, a organização política e o problema das transformações da consciência de classe).

Emancipação Humana

Particularmente, este último aspecto subjetivo também é colocado por Mauro Iasi como algo que torna necessária a luta pela superação do capitalismo. Emancipação humana significa a superação das mediações da religião, da política e da mercadoria associadas ao mundo do capital (ou mesmo antes dele). “Pela mediação religiosa os seres humanos atribuem a algo fora deles a capacidade de construir o seu destino, de fazer sua própria história; pela mediação política do Estado, os seres humanos atribuem à forma social fora deles sua identidade enquanto seres sociais; e, finalmente, na mediação da mercadoria, os seres humanos vêem na abstração do valor, na igualdade dos produtos do trabalho, uma relação mediada pelas coisas”.

Mesmo o problema da mediação religiosa, admite o autor, encontrará maiores dificuldades de superação numa outra organização política e econômica dotada de sentido humano: o próprio problema da finitude da vida recoloca a busca de sentido para além da existência concreta.

Seja como for, num mundo em que, cada vez mais, tratam-se as pessoas como coisas e as coisas como pessoas – fenômeno que é fruto da alienação social do trabalho e da natureza geral do capital enquanto relação social – o “dilema de Hamlet” chama atenção especialmente para a necessidade não só “objetiva” da construção de um novo modo de produção.

Da consciência em si à consciência para si – Desafios

Ao se pensar sobre o “agir ou não agir” de Hamlet, destacamos o problema das transformações da consciência, de seu fluxo ao longo da história e de suas manifestações em períodos revolucionários. O problema da consciência de classe tornou-se objeto de controvérsias, mesmo em relação à "atualidade" da luta revolucionária dos trabalhadores. Esta é cada vez mais oposta ora a um amoldamento da noção de classes a grupos mais fluidos e heterogêneos (“povo”, “cidadãos”, “eleitores”, etc.) circunscrevendo os conflitos de classe a um quadro jurídico-institucional, ora a pulverização das lutas em torno de bandeiras cada vez mais específicas e que são prontamente amoldadas pelo Estado a partir da criação de “comissões especiais”, “secretarias específicas”. Ou, mais emblemático, a ocorrência do “empreendedorismo social” através de ONGs dentro da lógica neoliberal que imprime novas tarefas ao Estado.

O desafio de resgatar um sentido unitário das lutas, de articulá-las em torno de um movimento geral anticapitalista passa por uma “lacuna” ainda não satisfatoriamente analisada pelos marxistas. Trata-se de se responder o como promover e generalizar a transição dentre as consciências “em si” para a consciência “para si”, das lutas específicas em torno de objetivos imediatos para uma transformação geral em que uma classe social nega a realidade e vocacione-se a dirigir transformação em nome e para todas as demais classes.

Este problema, mais uma vez, torna-se ainda mais complicado ao se constatar que as próprias lutas “moldam” as classes, de maneira que trabalhadores não são "naturalmente" revolucionários, são antes parte de uma dinâmica complexa de relações de conflito e consentimento: as classes amoldam-se à ordem, eventualmente atuam no sentido de defender o próprio sistema que originalmente as oprimem. (O fato das classes “amoldarem-se” às lutas é parte de uma crítica feita pelos “marxistas analíticos”, particularmente Pzerworski. Mauro Iasi resgata esta crítica sem contudo cair em uma conclusão “reformista” que poderíamos incorrer a partir de uma interpretação mais "flexível" do conceito de classes).

Do ponto de vista histórico, as fases revolucionárias da burguesia e do proletariado diferenciam-se de modo já previsto por Marx. Entre a transição do feudalismo ao capitalismo, a burguesia desenvolve-se exteriormente às relações sociais dominantes (servos e senhores), colocando-a numa posição privilegiada para, num dado momento, ser capaz de negar toda a ordem e produzir um movimento que lute por alternativa societária que atenda aos seus interesses. Por se desenvolver exteriormente às relações de produção então dominantes, a burguesia possui maior autonomia relacional que o proletariado. Conclui Mauro Iasi: “O proletariado, ao contrário, está incluído na relação principal do modo de produção capitalista (capital-trabalho), sendo parte constitutiva do capital enquanto capital variável. Não é de se estranhar, portanto, que a consciência proletária veja na aparência das coisas a crise do capital como sua própria crise, e, por vezes, o desaparecimento da sociedade capitalista como se fosse o desaparecimento da própria sociedade”.

Se as dificuldades aqui aumentam, cresce também a necessidade de se resgatar toda intervenção política socialista ancorada na agitação e propaganda, na educação teórica e mesmo na promoção de manifestações artísticas, místicas e demais técnicas que incidam sobre a consciência individual. Este trabalho político voltado ao agir histórico tem como objetivo dispertar a atenção de novas pessoas para a militância e resgatar um sentido de unidade ou um sentimento de solidariedade de classe. Longe de ser pessimista, Mauro Iasi reafirma a atualidade do pensamento de Marx sobre classes sociais e o seu protagonismo na história.

Comentários Finais

Segundo o prefácio, o ensaio corresponde à dissertação de mestrado do educador Mauro Iasi na faculdade de sociologia da USP. O texto tem um tom mais acadêmico, existe atenção em trabalhar os autores da sociologia “clássica” (Durkheim, Webber e Marx) de maneira que o leitor já deva ter algum conhecimento prévio destes pensadores. Certamente, o “Dilema” não é uma leitura fácil: tivemos dificuldade de apreender alguns assuntos, particularmente os relacionados à psicologia e à linguagem no âmbito da sociologia. Talvez, o texto “Ensaio sobre consciência e emancipação” da Ed. Expressão Popular possa ser um bom ponto de partida para, depois, aprofundar o tema da consciência militante no “Dilema”.

Outra ponderação pontual: em certa passagem, o autor revela que seu estudo partiu de entrevistas feitas com militantes, pedindo que contassem sobre a forma como começaram a atuar politicamente. As memórias estavam associadas às “memórias de vida” referentes a grupos determinados (grupos de jovens, igreja, teatro, etc.). Certamente, o estudo poderia ser mais ilustrado com estes depoimentos, poderia haver maior espaço para os relatos de maneira a relacioná-los com o problema (em si já bastante teórico) da consciência.

Ainda sim, o ensaio de Mauro Iasi é um ferramenta bastante original e instigante para todo militante marxista situado na luta, desde que todas as lutas relacionam-se em alguma medida à manifestação da “consciência militante”. Vamos transcrever uma passagem do penúltimo capítulo do estudo: o trecho é longo mas sintetiza bem implicações do “ser ou não ser” de Hamlet e a linha política anticapitalista de Mauro Iasi.

“Se tomássemos as análises de Juarez Brandão Lopes e Leôncio Martins Rodrigues, poderíamos concluir pela impossibilidade da emergência de uma consciência de classe; se tomássemos o otimismo de Sader sobre a emergência de novos personagens ou nos baseássemos no Ascenso do movimento da década de 1980 [no Brasil], poderíamos imaginar que a revolução novamente se tornaria possível. Hoje estaríamos mais propensos a procurar entender a defensiva e o novo amoldamento às estruturas de consentimento. Perdidos em cada momento do processo, deixaríamos de ver um nítido movimento em qe cada ponto do processo de acumulação é o resultado de uma tensão entre luta e consentimento, em que os indivíduos, contra qualquer previsibilidade de engenhosos e eficientes meios de coerção e hegemonia, se antagonizam contra a ordem em algum ponto do processo, se mobilizam e agem, militam por seus sonhos. A cooptação e o amoldamento à ordem são a prova de que a cooperação é necessária. O consentimento, assim como a hegemonia, não representa o fim da luta, mas é o resultado direto dela.
(...)
No interior desse processo [de acumulação capitalista] que em si mesmo não guarda sentido, senão o da tentativa de perpetuar a acumulação, os trabalhadores, por meio de suas histórias de vida e de sua ação como seres sociais, podem se antagonizar com a ordem estabelecida e sua representação ao nível das ideias; podem, nem automática, nem inevitavelmente, constituir uma alternativa societária além da ordem capitalista. Isso, ainda que não seja automático, nem inevitável, é necessário. O único sentido que guarda a história é aquele que os seres humanos atribuem a ela”.

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