quarta-feira, 18 de setembro de 2019

“Sobre o Suicídio” – Karl Marx


“Sobre o Suicídio” – Karl Marx



Resenha Livro - “Sobre o Suicídio” – Karl Marx – Editora Boitempo – 2006

“Sobre o suicídio” foi publicado no ano de 1846 no Orgão de Representação de Classes Despossuídas da Alemanha denominado Gesellschaftsspiegel. Enquanto Marx viveu, o ensaio não seria publicado novamente, sendo raras as menções do artigo desde então. Uma segunda publicação se daria apenas no ano de 1932, nas obras completas publicadas em alemão, quando foram suscitadas pela primeira vez outras obras importantes como os “Manuscritos Econômico-filosóficos” e a “Sagrada Família”.

Estamos diante de um trabalho do jovem Marx, anterior à ruptura epistemológica a que Althusser se refere a partir da publicação de Ideologia Alemã (divulgado ao público apenas em 1933) e consolidada em sua obra científica de maior envergadura, O Capital (1867).

Este ensaio foi escrito de maneira conjunta com Jacques Peuchet (1758-1830). Não se trata de uma peça escrita pelo próprio Marx, mas de enxertos traduzidos do alemão das memórias de Peuchet, um monarquista que participara pessoalmente da Revolução Francesa e, após uma trajetória de idas e vindas, ocupando cargos públicos e na imprensa, termina como arquivista do departamento de polícia de Paris. É lá e nesta condição que Peuchet escreve em suas memórias os relatos dos suicídios naquela cidade, sempre desde um ponto de vista crítico, não moralista, o que provavelmente levou o jovem Marx a se interessar pelos escritos e republicá-lo em alemão, atribuindo ao texto algumas considerações pessoais[1].

O ensaio antecipa temas como o aborto e a opressão familiar no seio da sociedade burguesa: trata-se de uma crítica social da sociedade capitalista na sua fase de florescência, do desenvolvimento das cidades e das fábricas, da livre concorrência e dos primeiros passos na conformação do proletariado.

O suicídio é demonstrado como o último recurso contra os males da vida privada: a opressão familiar, o problema do aborto e o adultério são reiteradas causas dos suicídios, especialmente entre as mulheres, de modo que se pode mesmo estabelecer que o artigo de Marx antecipa a questão feminina, o que, por outro lado, não nos autoriza ainda a caracterizar o velho mouro como um feminista avant la lettre.

Sim, Marx destaca que a causa da morte da mulher, vítima do ciúmes doentio do seu companheiro, reside no trato da companheira como se  baseado no código civil e no direito de propriedade. Mas, a crítica de Marx vai mesmo além: “o ciumento é antes de tudo um proprietário privado”. A propriedade privada é a expressão jurídica do capital e são nas relações sociais cindidas pelas determinações econômicas as chaves explicativas essenciais do suicídio. Ocorre que neste momento Marx ainda não formulara por completo sua crítica da economia capitalista, implicando numa interpretação ainda parcial do problema.

É certo que o suicídio não é um fenômeno restrito das classes exploradas. Dentre as histórias de suicídios relatadas por Marx há aquelas relacionadas às mulheres de alta sociedade: brigas, paixões, desgostos domésticos são segundo uma classificação de Peuchet a causa primeira do suicídio em Paris no período considerado. Mas é certo que muitas das histórias que viraram estatística diziam respeito ao desespero da miséria e da fome. Nos momentos de crise econômica aumentam o suicídio, o latrocínio e a prostituição. Um homem casado e com duas filhas encontra-se desempregado enquanto as mulheres da casa o sustentam fazendo costuras. Sentindo-se um peso morto, o homem se mata. Outros recorrem ao assassinato e outras recorrem à prostituição. “No capitalismo é mais fácil arranjar a pena capital pelo cometimento de um crime do que algum trabalho”.

O que se observa neste curto e interessante ensaio é como Marx já de forma pioneira antecipa a forma com que a tradição crítica deve pensar o problema do público e do privado. Como é cediço, tal separação envolve uma visão burguesa de mundo, a partir da qual se consolida a opressão familiar no recinto doméstico, o domínio da mãe e do pai pelos filhos, do marido pela esposa, etc. É interessante que mesmo o monarquista Peuchet identifica ser necessário estender as garantias da revolução francesa no seio doméstico. Em Marx já se destaca aqui uma crítica social inspirada na ideia de que o privado é também político. O suicídio aqui é o sintoma de uma sociedade doente, que necessita de transformações radicais. Ainda que diferentes, o público e o privado se relacionam intimamente, através de diferentes determinações entre si.

É certo que o ensaio ainda diz respeito a um jovem Marx. A própria escolha de Peuchet, um monarquista, romântico e endossador das ideias de Rousseau, já é reveladora neste sentido. O romantismo esteve presente no pensamento de setores médios, camponeses e aristocratas que viram seu mundo submergir pelo advento da revolução industrial, da revolução burguesa, da modernidade. O romantismo não é somente uma escola literária mas um protesto cultural contra a civilização capitalista em nome de um passado idealizado. Esta vinculação entre Marx e o romântico Peuchet sinaliza o ponto de partida a partir do qual a trajetória do pensamento crítico de Marx seguirá, do mundo das ideias, para a crítica da economia política.
  

“As doenças debilitantes, contra as quais a atual ciência é inócua e insuficiente, as falsas amizades, os amores traídos, os acessos de desânimo, os sofrimentos familiares, as rivalidades sufocantes, o desgosto de uma vida monótona, um entusiasmo frustrado e reprimido são muito seguramente razões de suicídio para pessoas de um meio social mais abastado, e até o próprio amor à vida, essa força enérgica que impulsiona a personalidade, é frequentemente capaz de levar uma pessoa a livrar-se de uma existência detestável. Madame de Staël, cujo maior mérito está em ter estilizado lugares-comuns de forma brilhante, tentou demonstrar que o suicídio é uma ação antinatural e que não se deve considerá-lo um ato de coragem; sobretudo, ela sustentou a ideia de que é mais digno lutar contra o desespero do que a ele sucumbir. Argumentos como esses afetam muito pouco as almas a quem a infelicidade domina. Se são religiosas, as pessoas especulam sobre um mundo melhor; se, ao contrário, não creem em nada, então buscam a tranquilidade do Nada. As “saídas” filosóficas não têm, a seus olhos, nenhum valor e são um débil lenitivo contra o sofrimento. Antes de tudo, é um absurdo considerar antinatural um comportamento que se consuma com tanta frequência; o suicídio não é, de modo algum, antinatural, pois diariamente somos suas testemunhas. O que é contra a natureza não acontece”.



[1] Para Michel Lowy, em que pese o ensaio ter sido escrito de forma conjunto, o texto final pode ser lido como um todo de autoria de Marx.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Cinco Teses Filosóficas – Mao Tsé Tung


Cinco Teses Filosóficas – Mao Tsé Tung



Resenha Livro - Cinco Teses Filosóficas – Mao Tsé Tung – Edições Nova Cultura

O selo Edições Nova Cultura foi criado em julho de 2015 por iniciativa de militantes da União Reconstrução Comunista. A editora vem publicando e divulgando obras do marxismo-leninismo até então negligenciadas pelas nossas editoras de esquerda, que de certo são refratárias em publicar obras de Stálin, Ludo Martens e mesmo Mao Tsé Tung.

O selo atende a um conjunto cada vez maior de pessoas interessadas em se aprofundar no estudo das ideias de Marx, Engels, Lênin e Stálin.

A prática é o critério da verdade. O fato é que as teses revisionistas e trotskystas, tão em vogas dentre a esquerda exatamente no momento das derrotas históricas do socialismo, vêm sendo paulatinamente afastadas. A própria realidade se encarrega em demonstrar, por um lado, que o fim da URSS não implicou no fim do horizonte socialista. Por outro lado, os fatos demonstram como revisionismo, trotskysmo e imperialismo atuam em conjunto, se unificam no combate ao marxismo-leninismo, sob o epíteto de combate ao “stalinismo”, implicando na articulação contra estados operários e governos nacionalistas em oposição ao imperialismo, seja em Cuba, seja na Venezuela, seja mais recentemente diante dos eventos em Hong Kong.

Por outro lado um conjunto cada vez mais amplo de pessoas estão interessadas e abertas a conhecer a história do socialismo no século XX para além das narrativas do imperialismo e seus prepostos na esquerda. Compreender a luta política dentro da União Soviética e as razões de fundo das chamadas depurações e sua relação com o preparo da nação para a guerra imperialista que se aproximava. Compreender a tática da ditadura democrática dos operários e camponeses formulada por Lênin e seguida igualmente na China, envolvendo a ditadura sobre os antigos exploradores e o centralismo democrático no seio do povo. Qual seja, a unidade entre liberdade e disciplina. Compreender as diferenças de método que residem em diferentes soluções ante as contradições entre o povo e seus inimigos  de classe e as contradições no contexto da construção do socialismo ante os conflitos no seio do povo. Trata-se de problemas formulados por toda uma gama de pensadores e dirigentes envolvidos diretamente na construção do socialismo, e não na “crítica” perpetrada pelos papagaios de esquerda do capital.

São preocupações também oriundas da experiência revolucionária chinesa que tornam a leitura destas teses filosóficas ainda mais importante e atual.

Estas cinco teses filosóficas correspondem a diferentes intervenções de Mao Tsé Tung acerca do problema do conhecimento dentro da perspectiva marxista e da aplicação prática. Sobre a contradição e sobre a prática foram escritos respectivamente em julho e agosto de 1937, correspondendo a conferências realizadas na Academia Militar e Política Antijaponesa. Estamos num contexto em que o Partido Comunista Chinês propugna a formação da frente única nacional em aliança com o Koumitang para a luta de libertação nacional contra o inimigo Japonês. Esta guerra duraria até 1945 com a derrota do Japão – o partido comunista sai fortalecido do conflito mobilizando seu exército a escala de milhões e levando adiante a última etapa da luta revolucionária da China culminando na vitória dos comunistas em outubro de 1949. As demais teses filosóficas envolvem o período da construção do socialismo na China quando as contradições, a prática social e os métodos para resolução dos problemas mudam qualitativamente – “Sobre o tratamento correto das contradições no seio do Povo” e “Sobre o trabalho de propaganda” são de 1957 enquanto “De onde vem as ideias corretas” data de 1963.

Da Prática e da Contradição.

O problema que os dois ensaios iniciais tratam é o da teoria do conhecimento dentro do marxismo. Nesta perspectiva, o conhecimento do homem depende essencialmente da atividade de produção material, durante a qual o homem compreende progressivamente os fenômenos da natureza, as suas propriedades e suas leis.

“A teoria materialista-dialética do conhecimento coloca a prática em primeiro lugar, sustentando que o conhecimento humano não pode estar, em nenhum grau, desligado da prática, e rejeitando todas as teorias erradas que negam a importância da prática. Lênin dizia que a ‘prática é superior ao conhecimento (teórico), pois esta possui não apenas a dignidade do geral, mas também a do real imediato”.

Num primeiro momento ou etapa do conhecimento o homem percebe a realidade através das sensações, assimilando os efeitos exteriores do fenômeno. Num segundo momento, o homem extrai do conhecimento fenomênico as ideias, leis e teorias, passando do exterior à essência. Pode-se falar de um conhecimento sensível e, posteriormente, de um conhecimento lógico. Contudo, os dois modos de conhecer também devem estar enfeixados pela prática: o conhecimento sensível e o conhecimento racional diferem pelo seu caráter mas estão unidos pela prática. “A nossa prática testemunha que os fenômenos de que temos uma percepção sensível, não podem ser imediatamente compreendidos por nós e só os fenômenos compreendidos podem ser sentidos de uma maneira mais profunda”.

De outro giro, o conhecimento dos fenômenos exige da prática na medida em que o conhecimento é indissociável da vivência. Durante a idade média, no feudalismo, não poderia ter sido formulada teoria ou leis relativas ao modo de produção capitalista. O marxismo neste ponto só poderia ser o produto de um contexto de desenvolvimento máximo das forças produtivas, possibilitando a crítica da economia política realizada por Marx. A verdade da teoria apenas pode ser determinada pelo seu resultado prático, pela sua verificação prática na realidade. Assim, dentro do materialismo dialético poderíamos formular o esquema: sensação < experiência direta < participação pessoal na prática. Ou, ainda mais sucintamente: experiência / teoria / prática.  

Neste aspecto, a conhecida tese de Marx segundo a qual os filósofos até então se limitaram a interpretar o mundo, devendo agora darem o passo adiante no sentido de transformá-lo significa também um avanço no sentido do conhecer atuando sobre o mundo.

Ademais, Mao critica os dogmáticos e “sabe-tudos” que ignoram a prática e se contentam com o conhecimento enciclopédico. Para se conhecer diretamente um fenômeno é indispensável participar em pessoa na luta prática que visa modificar a realidade. Em outra intervenção, Mao Tse Tung recomenda que os intelectuais não só se ateiam aos livros mas que se liguem o máximo que puderem às massas, convivendo o quanto puderam com operários e camponeses, vivendo com eles, trabalhando com eles, etc. Mao igualmente chama a atenção para o fato do conhecimento ser uma questão de ciência, não se admitindo a desonestidade e a presunção, mas a modéstia e a honestidade.  

Enquanto a prática corresponde a um meio de acesso ao conhecimento, a contradição não diz respeito tanto ao agir, mas ao ser: a lei da contradição é a lei fundamental da dialética materialista, correspondendo ao estudo da contradição na própria essência dos fenômenos. A dialética se opõe à metafísica. O modo de pensar metafísico é próprio da concepção idealista de mundo e do ponto de vista de classe envolve a perspectiva da burguesia em sua condição de classe dominante e reacionária: num período mais recente esta perspectiva deu razão também ao evolucionismo vulgar.

A metafísica considera todos os fenômenos do mundo isolados e em estado de repouso. Considera os fenômenos de maneira unilateral e quando reconhecem mudanças, elas são apenas quantitativas e não qualitativas. Os metafísicos também sustentam que os diferentes fenômenos do mundo permanecem imutáveis desde o começo da sua existência. “Segundo eles (metafísicos) tudo o que caracteriza a sociedade capitalista, ou seja, a exploração, a concorrência, o individualismo, etc., encontra-se igualmente na sociedade escravagista da antiguidade, inclusive na própria sociedade primitiva, e há de continuar a existir de modo eterno, imutável”.

Em sentido contrário, o materialismo dialético entende que os fenômenos em seu desenvolvimento têm movimento próprio, necessário, interno, encontrando-se cada fenômeno, no seu movimento, em ligação e interação com outros fenômenos – e mais precisamente, o movimento interno reside no contraditório no interior dos próprios fenômenos.

É preciso chamar atenção para o fato de que no materialismo-dialético todo o fenômeno ser eivado de contradição: na contradição o universal existe no particular. Na matemática há a contradição do mais e do menos, de modo que esta ciência (matemática) se ocupa de uma contradição particular. Na química há o polo negativo e o polo positivo dos átomos. Na física mecânica há o movimento e o repouso. Seja como for, no materialismo dialético a mudança não reside apenas em causas externas, como coloca a metafísica e o materialismo mecanicista. As contradições inerentes e internas aos fenômenos com suas especificidades engendram a mudança: do ovo sob o efeito do calor nascerá o pinto. Contudo, o calor sobre uma pedra não produzirá o pinto. A mudança não é apenas quantitativa, mas qualitativa.

Na perspectiva da dialética não se verifica exatamente uma lógica binária, mas uma luta de contrários dentro de uma mesma unidade, o que se verifica nos fenômenos da natureza e da sociedade. O próprio conhecimento corresponde a luta entre velhas verdades e novas concepções que virão a substituir-lhes: frequentemente, a verdade nasce de forma minoritária, avança e prevalece sobre as velhas formas e posteriormente é derrogada por novos avanços no conhecimento. Neste aspecto, o conhecimento não segue de forma linear, mas de forma espiral, dentro da lógica de universalidade e especificidade da contradição, da unidade entre contrários, da luta entre opostos. As contradições da China no contexto da revolução, no contexto da guerra contra o Japão e no contexto da construção do socialismo mudam dramaticamente e de forma qualitativa. A contradição entre proletariado e burguesia é resolvida na revolução pelo antagonismo, uma faceta específica e temporária da contradição. A contradição entre proletariado e campesinato na construção do socialismo não é antagônica sendo resolvida pelos planos quinquenais e pela consolidação das cooperativas no campo.     

As últimas três teses filosóficas do livro correspondem à aplicação prática do materialismo dialético às questões concretas colocadas pelo problema da construção do socialismo na China. A editora Expressão Popular lançou apenas “Sobre a Contradição e a Dialética” sendo oportuna a leitura das demais obras em que o dirigente chinês aplica de forma mais detalhada o método do materialismo dialético aos problemas suscitados pela revolução chinesa.       

domingo, 8 de setembro de 2019

“Sobre os Fundamentos do Leninismo” – J. V. Stálin


“Sobre os Fundamentos do Leninismo” – J. V. Stálin



Resenha Livro - “Sobre os Fundamentos do Leninismo: conferências pronunciadas na Universidade Sverdlov à promoção leninista” – J. V. Stálin – Transcrição Partido Comunista Revolucionário. 1926



“Sobre os Fundamentos do Leninismo” corresponde à conferência pronunciada por Stálin para estudantes universitários russos em maio de 1924. Quatro meses após a morte de Lênin e diante de um contexto de consolidação da Ditadura do Proletariado na URSS.

A exposição respondia então a questões práticas e polêmicas que atravessaram todo um período de formação e desenvolvimento do partido comunista russo. Por exemplo, nesta intervenção, Stálin suscita o que Lênin entendia ser o estilo de trabalho dos militantes do partido e dos próprios trabalhadores diante da construção do socialismo: a conjugação do ímpeto revolucionário russo e o chamado espírito prático americano.

O ímpeto revolucionário russo é um antídoto contra o espírito de trabalho rotineiro, contra a submissão servil às tradições russas seculares, contra o burocratismo e a acomodação. Todavia, o revolucionarismo sem o espírito prático engendra a “presunção comunista” segundo a qual as coisas podem ser resolvidas por um decreto. Da mesma forma o espírito prático que pode ser uma força que remove todo tipo de obstáculos na execução do trabalho pode implicar num utilitarismo sem princípios, na ação que ignora o porquê e o como.

Desde este exemplo ficava claro como a assimilação das ideias de Lênin encontrava um fio de continuidade em situações concretas e objetivas que o movimento revolucionário russo lidou e lidaria no futuro. É certo que uma das particularidades do pensamento de Lênin é o desenvolvimento de uma teoria indissoluvelmente juncada com a prática: seria um erro, contudo, entender que o leninismo possa ser compreendido como uma expressão russa do marxismo.

Assim, o pronunciamento de Stálin inicia-se buscando definir o que vem a ser o leninismo.

LENINISMO

Marx e Engels desenvolveram sua teoria num contexto de expansão e relativo progresso do capitalismo. Um momento de florescência do capital. Conjuntura em que a burguesia na sua luta contra o feudalismo arrastava consigo o campesinato. Momento em que a revolução proletária ainda estava em sua etapa inicial. Um longo período de oportunismo e capitulação ante a burguesia corresponde ao período de hegemonia da II Internacional, sendo o sinal mais claro e dramático desta capitulação o apoio dos partidos sociais democratas às suas respectivas burguesias nacionais na guerra imperialista.

Lênin esxurge de forma a ressuscitar o conteúdo revolucionário do marxismo, conteúdo soterrado pela II Internacional. Mas não se trata o leninismo apenas de restaurar o conteúdo  revolucionário das ideias marxistas mas levar o marxismo a um desenvolvimento ulterior diante das novas condições históricas.

Assim, uma primeira definição é a de que o leninismo é o marxismo da época do imperialismo – Marx e Engels neste sentido militaram numa etapa pré revolucionária quando o imperialismo ainda não estava desenvolvido, bem como no período em que a revolução proletária ainda não se convertera num problema imediato. Assim, temos dois aspectos iniciais para situar o problema do leninismo: a luta contra o oportunismo que efetivamente é uma marca constante de suas intervenções. Mas também é um passo à frente dentro do marxismo.

IMPERIALISMO

Há de se destacar o vínculo entre o problema do imperialismo e da revolução. Lênin efetivamente define o imperialismo como a etapa agonizante do capitalismo desde que o imperialismo leva ao extremo as contradições deste modo de produção. O Imperialismo é a conversão do capitalismo da livre concorrência ao capitalismo dos trustes e dos monopólios, bem como da conformação de oligarquia financeira de modo que os meios parlamentares e pacíficos de luta como sindicatos e cooperativas tornam-se impotentes frente à agudização da contradição capital e trabalho. O Imperialismo engendra igualmente a contradição entre um punhado de nações exploradoras  sobre centenas de milhões de homens dos países coloniais e dependentes: os casos mais emblemáticos suscitados pelos revolucionários russos são a Índia, a China e a Pérsia.

“Mas, para explorar esses países, o imperialismo se vê obrigado a neles construir ferrovias, fábricas e usinas, a criar centros industriais e comerciais. A aparição da classe dos proletários, a formação de uma intelectualidade nacional, o despertar de uma consciência nacional, o fortalecimento do movimento de libertação: tais são os efeitos inevitáveis desta política”.

Naquele contexto, o fato da primeira revolução proletária vitoriosa estourar na Rússia dos czares não podia ser uma mera coincidência. A Rússia dos czares era um ponto de convergência das contradições do imperialismo. A Rússia dos czares era foco de todo tipo de opressão capitalista, colonial e militar, exercida da forma mais bárbara. Naquela nação se conjugava a onipotência do capitalismo com o despotismo do Czar. Ademais, a Rússia era uma imensa reserva do imperialismo ocidental, dando livre acesso ao capital estrangeiro e recrutando milhões de camponeses Russos para integrar o exército da Entente na 1ª Guerra Mundial. Desde que os interesses do czarismo e do imperialismo se entrelaçavam e se fundiam, a derrota do regime feudal na Rússia, concretizada em fevereiro de 1917, só seria possível efetivamente com uma derrota concomitante do imperialismo.

Poderíamos dizer que as particularidades do desenvolvimento histórico da Rússia também contaram a favor da vitória final em outubro de 1917: a própria divisão do Imperialismo no contexto da Guerra permitiu que a Revolução triunfasse diante da Guerra Civil, desde que os imperialismos não puderam unificar suas forças militares para derrotar a revolução. De outro giro, Stálin discorre sobre a importância da aliança operário-camponesa como fator decisivo da vitória. Eram basicamente camponeses que integravam o exército de Guerra da Rússia e as comunidades rurais foram assistindo o retorno dos caixões de centenas de milhares de operários mortos junto às mirs, criando uma animosidade interna diante da Guerra. O partido dos Socialistas Revolucionários que tradicionalmente tinham o apoio dos camponeses viram esta base, entre fevereiro e outubro de 1917, passar para os bolcheviques que de forma intransigente e sob a liderança de Lênin, defendiam a paz imediata. Suscita-se em Lênin e Stálin a necessidade de consolidar ainda mais a aliança operário-camponesa na etapa da construção do socialismo, indicando a via da organização dos camponeses em cooperativas.

Seria importante ressaltar que o leninismo é uma fonte teórica de destaque acerca das possibilidades revolucionárias no seio dos movimentos de libertação nacional, oriundos de países dependentes, como o Brasil:

“O leninismo dá a essa pergunta uma resposta afirmativa, isto é, reconhece a existência de capacidade revolucionária no seio do movimento de libertação nacional dos países oprimidos, e considera possível utilizá-la no interesse da derrubada do inimigo comum, o imperialismo. O mecanismo do desenvolvimento do imperialismo, a guerra imperialista e a revolução na Rússia confirmam plenamente as conclusões do leninismo a esse respeito”.

PARTIDO
    
Dentro destas nuanças entre o pensamento de Lênin e de Marx e Engels, vemos como existe uma diferença importante acerca do problema do Partido. Marx não teve a possibilidade de conhecer os partidos sociais democrata de massas: é só lembrar em ainda em 1871 as ideias de Marx eram minoritárias na Comuna de Paris, ante a força dos partidários de Proudhon e Blanqui. Para Marx há o embaralhamento de partido e classe. O sujeito político é o sujeito social. Em Lênin encontramos outra formulação. O partido em Lênin é o partido de vanguarda, não se sujeitando a ficar à reboque dos elementos atrasados dos trabalhadores, mas conduzi-los no sentido de ampliar sua consciência. O partido em Lênin tem como missão elevar as massas desorganizadas para o nível da vanguarda.

Lênin como Marx e Mao, entendem ser a política e a guerra duas interfaces de um mesmo fenômeno de modo que a complexidade de uma revolução que destrua o capitalismo em nível mundial não poderá ser concretizada sem um espírito de estrita disciplina e unidade partidária, bem como de uma direção preparada, um estado maior.

Nestes termos pode-se dizer que o partido é o chefe político e o estado maior da classe operária.

Para cumprir esta missão, o partido deve incorporar em suas fileiras os melhores elementos da classe operária, armando-se de uma teoria revolucionária que guie o movimento. O partido revolucionário quando se depura dos elementos oportunistas se reforça automaticamente ante seus inimigos de classe. Finalmente, esta orientação não exclui o exercício da crítica e autocrítica internas. Contudo, uma vez tomada uma decisão pelo partido, deve haver a mais estrita observância da unidade e disciplina sob pena de se criarem frações que devem ser inadmitidas. Neste caso a oposição às frações não é de Stálin, no todo um seguidor ortodoxo do leninismo, mas de Lênin.

Hoje, com a grande derrota histórica do socialismo e por uma enorme propagação enganosa das ideias políticas do imperialismo acerca de  “democracia” e “autoritarismo”, parece fora de moda suscitar as ideias de Lênin, especialmente no que se refere ao problema da organização partidária. Seria necessário ressalvar: não fosse o próprio modelo de partido propugnado por Lênin e em continuação por Stálin, não teria sido possível observar desde o triunfo da revolução em outubro de 1917, passando pela vitória sobre os imperialismos na guerra civil, até a destruição militar do nazi-fascismo na II Guerra Mundial. O partido não é um ente abstrato, um enunciado formal tendo em certos princípios uma espécie de força imune ao problema da burocracia. O partido, no marxismo-leninismo, é um destacamento de vanguarda da classe operária, o estado-maior da luta do proletariado, a forma suprema de organização de classe do proletariado e, o mais importante, um instrumento para assegurar a ditadura do proletariado.  Não é um fim em si mesmo mas um meio para a construção do socialismo. 

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Carlos Marighella e a Revolução Brasileira


Carlos Marighella e a Revolução Brasileira


Resenha – Textos Diversos – Carlos Marighella – Marxists.org

“São estas relações de produção que estão em crise – se assim podemos dizer. Pois já não se harmonizam às condições exigidas para o nosso progresso e desenvolvimento. E constituem um obstáculo ao avanço de nossas forças produtivas. O que se torna evidente pelo domínio do imperialismo norte-americano sobre a propriedade e a economia brasileira, pela predominância e o monopólio da propriedade territorial latifundiária, pelo desajuste na apropriação dos frutos do trabalho, pela desproporcional distribuição dos bens materiais, acentuando a acumulação das riquezas em mãos de uns poucos privilegiados, enquanto milhões de brasileiros vegetam, reduzidos a mais rasa miséria”. MARIGHELLA, A crise brasileira. 1966.

Carlos Marighella ficou conhecido na história como o inimigo número um da ditadura militar instaurada pelo golpe de 1964. Contudo, sua trajetória militante remonta a período mais remoto na história dos movimentos sociais e populares no Brasil.

Nascido em Salvador em 1911, ingressou no PCB em 1934, durante a era Vargas. Em maio de 1936 foi preso e torturado e permaneceu encarcerado durante um ano. Após algumas idas e vindas na prisão, Marighella foi solto em 1945 e eleito deputado constituinte pelo partido comunista desde o governo Dutra em 1946. Como se sabe, o mandato não duraria muito pois o PCB seria logo depois colocado na ilegalidade.

Um texto fundamental para se conhecer as posições dos comunistas na constituinte corresponde ao discurso pronunciado por Marighella na sessão de 4 de julho de 1946, por ocasião do debate sobre o projeto constitucional. A saber:

“Dizíamos, então, que o projeto constitucional era reacionário, falho e insuficiente, preso ainda a fórmulas antiquadas, sem ver a realidade  brasileira, assegurando a hipertrofia do Executivo, mantendo um velho instrumento de estagnação e retrocesso como o Senado, negando o direito de voto a praças e analfabetos, sujeitando a justiça eleitoral ao Poder Executivo, negando a autonomia dos municípios, negando o direito de greve, passando para uma tímida repressão aos trustes e monopólios, em vez de impedi-los; não abrindo perspectivas para liquidação do monopólio da terra, fonte do atraso de todo o nosso povo, e, por fim, não assegurando a completa separação entre a Igreja e o Estado”.

Como se vê, os comunistas então propugnavam um programa de tipo nacionalista e democrático. Buscavam alargar as liberdades democráticas numa frente única que incluía setores do que poderíamos denominar de burguesia nacional, pequeno burguesia e camponeses. Mais adiante, quando das conclusão acerca da derrota das esquerdas diante do golpe de 1964 Marighella irá salientar, entre outros, o erro de uma política de reboque à burguesia, à ausência da independência de classe possibilitando que Jango e os setores da burguesia nacional hegemonizassem a frente única.

O programa nacionalista e democrático partia de uma premissa talvez verdadeira na China dos anos 1927-1949 e na Rússia de 1905-17, qual seja, a instauração de um programa não propriamente socialista e revolucionário ante os resquícios feudais que informariam a sociedade, a economia e a política. Em que pese hoje serem poucos aqueles que entendem ter o Brasil sido colonizado pelos portugueses sob um modo de produção feudal nos mesmos moldes na Europa anterior às revoluções burguesas, esta análise ainda era, em meados do séc. XX no Brasil, bastante recorrente, especialmente no meio da esquerda.  

Em todo caso, é claro nos artigos deste período a preocupação dos comunistas em ampliar direitos democráticos por dentro das instituições e no movimento de massas. É o caso do pronunciamento supracitado e a intervenção de Marighella em conferência do PCB em 1956, “Por um Amplo Trabalho de Agitação e Propaganda Entre as Mulheres”. Marighella reconhece como partido vinha dando pouca atenção às demandas das mulheres e como o imperialismo por meio da propaganda nas rádios e novelas ia incutindo um temor ante o comunismo, como se eles fossem contra a família e a religião.

Os comunistas brasileiros não incorrem no erro vulgar do combate à religião, mas, pelo contrário, suscitam o direito democrático ao culto religioso. Sobre o tema, diz Marighella na constituinte: “Não nos devemos nos esquecer de que, durante o longo período do Estado Novo eram os Centros espíritas fechados sob a alegação de constituírem focos de agitação”.

A política levada pelos comunistas naquele caso era a efetiva separação do estado e religião o que, na década de 1950, significava o casamento civil gratuito, o ensino leigo ministrado nos estabelecimentos públicos, a inviolabilidade da liberdade da consciência e a possibilidade do divórcio. Citando Lênin e Marx em pleno congresso nacional constituinte, o dirigente não deixa de lembrar que  “a religião é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, bem como é o espírito de uma civilização da qual se excluiu o espírito. Ela é o ópio do povo”.

No mesmo discurso, Marighella suscita aspectos positivos ou progressistas da própria religião cristã, como a passagem bíblica em que se diz ser mais difícil um camelo entrar pelos fundos de uma agulha, do que um rico entrar no reino de Deus.

A Crise Brasileira

Fazendo uma leitura em ordem cronológica de textos de Carlos Marighella, é possível observar uma clivagem entre os períodos que antecedem e sucedem o golpe de 1964. É neste contexto que Marighella escreve o importante artigo “A Crise Brasileira” (1966) que antecede sua ruptura com o PCB, esta em dezembro de 1966. O balanço de Marighella é que a vitória dos golpistas deu-se em razão de uma série de fatores: a falta de resistência, o despreparo dos comunistas que viram perplexos os acontecimentos. A resistência dos comunistas tornou-se impossível por que sua política, como vimos, vinha sendo feita sob a dependência da liderança da burguesia. Houve igualmente a subestimação do perigo da direita fruto do reboquismo e ilusões no governo Goulart. Havia uma confiança excessiva no dispositivo militar. Subestimou-se enfim o perigo do golpe, um erro que a esquerda cometeu quando do impeachment de Dilma em 2016.

Em todo o caso, já neste artigo Marighella pontua que a mudança radical no panorama política exige também uma mudança tática. Na situação anterior, o movimento de massas estava em ascensão – havia um governo da burguesia, lutando pelas reformas à sua maneira, dentro de um clima de liberdades. No pós 1964 temos uma ditadura entreguista, militar, dentro de um clima onde as liberdades democráticas foram suprimidas. O objetivo inequívoco é derrotar a ditadura e fazê-lo pela violência, pela resistência das massas em suas mil e uma particularidades. O movimento de massas não visa como antes mudar o governo. Seu escopo é derrubar o governo.

Marighella chama atenção para as debilidades da burguesia nacional Brasileira o que se relaciona por sua vez com a chamada crise brasileira: suas origens remontam ao crescimento do capitalismo de forma tardia no país e em condições de dependência do imperialismo. No Brasil a burguesia nacional é débil, seja pela inaptidão de se dissociar do imperialismo norte americano, seja pela impossibilidade de eliminar o latifúndio.

Se compararmos os artigos “A Crise Brasileira” de 1966 e a interessantíssima carta de dezembro de 1968 “Quem Samba Fica, Quem Não Samba Vai Embora”, observa-se que Marighella radicaliza algumas de suas posições críticas aos partidos ao ponto de sugerir que o problema da teoria e da organização partidária seriam questões de gabinete, problemas de burocratas, restando a atividade prática revolucionária como meio efetivo para o objetivo de derrotar a ditadura.

Em vez da palavra, a ação. Em vez de uma direção político-partidária de vanguarda, uma cúpula com os mais valentes e mais destacados guerrilheiros. Em vez de trabalho de base, ainda que clandestino, junto as massas e especialmente aos trabalhadores nas fábricas, o terror. O que é certo é que os movimentos da guerrilha que lutaram contra a ditadura no Brasil certamente demonstraram a coragem de muitos que estiveram dispostos a lutar até a morte pela revolução brasileira. Mas é inquestionável que o seu isolamento social e a falta de uma vinculação com a classe trabalhadora foram as principais causas do seu isolamento e derrota.      

“Vocês tem carta branca na frente guerrilheira para desencadear a ação. Só não têm carta branca para coisas burocráticas, isto é, para impedir ações planejadas pelos grupos, sejam eles quais forem. Nem podem fazer discussões formais. É preciso ação e mais ação. Distribuir manifestos, pichar muros, sabotar, fazer política de terra arrasada, tudo isto com tabuco na cintura. Ninguém deve se deixar prender sem resistência. Por isto deve andar armado. E atirar para matar policiais e dedos-duros. A ditadura tem medo e nós não vamos parar nem sair do ritmo porque os fascistas deram um golpe dentro do golpe”. MARIGHELLA. Carta dirigida aos revolucionários de São Paulo, 1968.