sexta-feira, 30 de abril de 2021

“Preto No Branco” – Thomas E. Skidmore

 “Preto No Branco” – Thomas E. Skidmore




 

Resenha Livro – “Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro” – Thomas E. Skidmore – Editora Companhia das Letras

 

A história da escravidão no Brasil e o debate sobre a questão racial ainda hoje são temas da história nacional cercados de mitos.

 

Um deles afirma que a escravidão no Brasil foi generosa com o elemento negro se comparada com o regime escravagista de outros países, nitidamente o dos EUA. Este ponto de vista teve como principal expressão as análises do Brasil Colonial suscitadas por Gilberto Freire em seu “Casa Grande e Senzala” (1933), quando houve uma interpretação nostálgica do passado colonial e da sociedade patriarcal, afirmando-se que do passado remoto brasileiro edificou-se uma democracia racial.

 

O mito da democracia racial só seria desmontado por historiadores e sociólogos revisionistas de meados do século XX (Florestan Fernandes, Roger Bastide, Emíla Viotti da Costa, entre outros) que demonstraram como a violência da escravidão no Brasil em nada se diferenciava das demais experiências dos países colonizados na América, ao menos no que diz respeito à violência dos proprietários e repressão às formas de resistência do negro.

 

O que há de específico do regime escravocrata no Brasil é sua tardia abolição. Quando a Guerra Civil norte-americana colocou fim à escravidão nos EUA, em 1865, apenas três países na América mantiveram este regime de trabalho: Brasil, Porto Rico e Cuba. O Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravidão, em 1888.

 

Outro mito relacionado ao problema da escravidão do Brasil envolveu a ideia de que a sua abolição teria sido obra da generosidade da classe dominante brasileira, do Partido Conservador, dos monarquistas e, particularmente, da Princesa Isabel. Ora, dos 9 deputados que votaram contra a Lei Áurea, todos eles eram do Partido Conservador, no caso latifundiários do Vale do Paraíba, donos de fazendas de café atrasados em relação aos proprietários do oeste paulista, já que ainda não tinham ajustado a organização do trabalho nas fazendas de acordo com a tendência, já sinalizada há décadas, da substituição pelo trabalho livre.

 

Quanto ao papel da família real, apenas em 1866 (um ano após o fim da escravidão nos EUA) o imperador na sua fala ao trono admitiu a possibilidade da abolição, desde que a longo prazo. Válido lembrar que o gesto final da Princesa Isabel foi objeto de uma votação de urgência considerando-se o estado de total desagregação do regime escravista. O impulso final que levou a abolição não partiu da benevolência da princesa mas da radicalização política do movimento abolicionista, tendo como exemplo a luta dos caifazes de São Paulo, além de fugas e rebeliões generalizadas de escravos em todos os cantos.  

 

Neste quadro de mistificação do passado brasileiro, a leitura do trabalho de Skidmore sobre o problema de raça e nacionalidade do Brasil entre 1870-1930 revela como as elites do país, ora se amparando em teorias cientificistas de cunho racista da Europa, ora confrontando estas teorias com a realidade multirracial dada, discutiram o futuro racial brasileiro em termos de branqueamento.  

 

Talvez surpreenda muitos leitores de hoje o fato de que o abolicionismo no Brasil não significou exatamente a concessão de direitos democráticos ao elemento negro – este viu-se, após a Lei Áurea, excluído do acesso à terra e de direitos de cidadania, enquanto as elites se ocupavam da importação de trabalhadores europeus, necessariamente brancos, buscando conciliar as teorias racistas europeias em voga e a realidade multiétnica do país.

 

O ideal racista do branqueamento da população estava presente inclusive em Joaquim Nabuco, o grande líder abolicionista, que se opôs decididamente à imigração de chineses (“amarelos”) por objeção puramente racial.

 

Sílvio Romero (1888), ligado à uma escola de intelectuais do Recife (PE) e influenciado pela filosofia alemã, foi um dos primeiros intelectuais a tratar do tema da raça dentro do prisma do determinismo social. Influenciado por Spencer e Thomas Buckle, Romero entende o negro como essencialmente inferior, opinião consensual na época, podendo, sob a tutela do branco e através da miscigenação, redimir-se.

 

A europeização do país é um projeto que se relaciona com a participação de representantes do país em conferências internacionais, ocasiões em que os brasileiros buscaram vender ao mundo a imagem de um país aberto aos imigrantes para o trabalho nas fazendas: não só para ocupação dos trabalhos realizados até então pelos escravos negros, mas especialmente para o branqueamento da população brasileira.  

 

Entre 1902-1912 o Barão do Rio Branco na condição de ministro das relações exteriores atua justamente para reforçar a imagem internacional do Brasil como um país europeizado. Este também foi o sentido da reforma urbana no Rio de Janeiro durante a gestão de Pereira Passos nos primeiros anos do século XX, bem como as campanhas sanitaristas lideradas por Oswaldo Cruz.

 

As campanhas sanitaristas ajudam as elites intelectuais a abandonar os critérios de análise social baseadas exclusivamente na raça: o atraso do país paulatinamente deixa de ser relacionado ao problema da raça e passa a ser explicado pela (falta de) saúde e da salubridade. Esta mudança de posicionamento se expressa no escritor paulista Monteiro Lobato: quando criou o seu personagem Jeca Tatu, atribuía o atraso do caipira à degeneração racial. Em 1918, Monteiro Lobato em prefácio da obra faz a autocrítica, já reconhecendo a predominância das doenças e da insalubridade no temperamento de Jeca.

 

O racismo científico em voga entre os fins do XIX e inícios de XX vai sendo deixado de lado e já parece às elites intelectuais brasileiras entre os anos 1920-30. Contudo, a ideologia do branqueamento da população subsiste, havendo a expectativa de que o elemento negro seria paulatinamente superado pela etnia branca. Dentro deste ideal de branqueamento que perpassa todo o período analisado no livro, o homem de cor pode até elevar-se socialmente, mas apenas em caráter excepcional e mediante grandes esforços individuais. Mulatos como Nina Rodrigues granjeavam posições na elite, e ainda assim defendiam as teses racistas e o branqueamento. Outros como Roquette Pinto, Gilberto Freire e Manoel Bonfim pioneiramente combateram as teses racistas europeias, inclusive chamando a atenção para o fato de que estas teorias partiam de países europeus cujos interesses imperialistas estavam nitidamente relacionados às teorias racistas.

 

“Examinamos as diversas formas pelas quais membros articulados da elite explicavam suas expectativas raciais em termos das teorias raciais dominantes. Quando o racismo científico chegou ao Brasil, os intelectuais reagiram com a tentativa de produzir um fundamento para seu sistema social dentro do marco do pensamento científico racista. Mesmo quando essas teorias caíram em descrédito científico, a elite manteve fé explícita no processo de branqueamento. Como essa crença já não podia ser propagada em termos de superioridade ou inferioridade racial, era descrita como um processo de ‘integração étnica’ que miraculosamente (como tinha sido desde a década de 1890) vinha resolvendo os problemas raciais do Brasil. Como permanecia a esperança de branqueamento, crescia a confiança em sua inevitabilidade”.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

“A Abolição” – Emília Viotti da Costa

 “A Abolição” – Emília Viotti da Costa




 

Resenha Livro - “A Abolição” – Emília Viotti da Costa – Editora Unesp

 

Quando a Guerra Civil norte-americana colocou fim à escravidão nos EUA, na data de 1865, apenas três países na América mantiveram este regime de trabalho: Brasil, Porto Rico e Cuba.

 

O Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravidão e este é um dos traços que dão especificidade ao escravismo brasileiro: a manutenção do regime escravista no país perdurou por décadas convivendo com vedações  legais, pelo menos desde 1831, quando, sob pressão da Inglaterra, o Império formalmente abolia o tráfico de escravos.

 

A pressão inglesa pela abolição do tráfico datava de 1807 quando a Inglaterra aboliu ela própria o tráfico de escravos e passou a atuar no sentido de combater o comércio internacional de cativos.

 

Havia um posicionamento formal da Inglaterra em favor da dignidade dos escravos, além de grupos políticos que desde a Europa faziam propaganda abolicionista por meio de reuniões e publicações. Contudo, é certo que a mobilização britânica contra o tráfico de africanos tinha inequívoca finalidade econômica:  o pioneirismo da Inglaterra na revolução industrial acarretou no desenvolvimento do capitalismo em sua fase industrial, do estado moderno e das condições para o desenvolvimento do trabalho livre. A manutenção do regime escravista nas colônias era vista pelos ingleses como um empecilho para os interesses de sua indústria nascente, que dependia de um mercado consumidor, por meio da mão de obra assalariada. Também se verificava uma forma de concorrência desleal nas colônias e nações que mantinham a mão de obra escrava em detrimento da economia capitalista britânica.  

 

Já no Brasil, é certo que entre os séculos XVI e XVIII a escravidão praticamente não é questionada, exceto pelos próprios escravos mediante fugas e insurreições.

 

O iluminismo francês no bojo da Revolução Francesa foi o ponto de partida de teorias emancipacionistas, encontrando expressão na Conjuração Baiana de 1789, na Confederação do Equador (1824) e nas rebeliões do Período Regencial (1831-1842). São estes jacobinos os parentes remotos do abolicionismo brasileiro:

 

“Indivíduos de linguagem causticante e ânimo exaltado, ídolos das massas, esses panfletários eram legítimos representantes do pensamento radical e jacobino. (...) Alistavam-se sob as bandeiras da Oposição Liberal Radical e colocavam sua pena à disposição de todos os descontentes”.

 

Ficou conhecida na história a expressão da “lei para inglês ver”. Este foi o caso das leis e tratados que perduraram entre 1831 e 1850, quando a Lei Eusébio de Queiroz, aprovada sob a pressão diplomática e militar da Inglaterra, efetivamente colocou um fim ao tráfico de escravos. Estima-se que nestes 20 anos entraram no Brasil ilegalmente meio milhão de escravos.

 

Com a lei de 1850 o tráfico de escravos era considerado ato de pirataria, possibilitando a intervenção de ofício dos navios britânicos. A extinção do tráfico acarretou o aumento do preço dos escravos e o desenvolvimento do tráfico interno de mão de obra: os cativos saiam de zonas econômicas menos dinâmicas, como os engenhos de açúcar do nordeste, em direção ao Vale do Paraíba e ao oeste paulista onde se desenvolvia  a indústria do café.

 

Foi neste período que foram feitas as primeiras experiências com a subvenção de vinda de imigrantes europeus para o trabalho nos cafezais paulistas, com destaque para iniciativas do Senador Vergueiro. Estas primeiras experiencias não seriam bem sucedidas mas abririam caminho para uma maciça vinda de imigrantes italianos a partir dos anos 1880.

 

Verifica-se outros fenômenos mais gerais na sociedade e na economia que estavam criando as condições objetivas para a abolição.

 

Entre 1822 e 1888 verificou-se o declínio da população escrava e o aumento da população livre no Brasil. No ano da independência a população livre era de 8,5 milhões, enquanto em 1888 esta população era de 14 milhões. A população escrava em 1822 era de 1 milhão e em 1887, às vésperas da abolição, era de 700 mil almas.

 

A maior concentração de população livre nos meios urbanos fez com que as cidades se tornassem um importante núcleo do abolicionismo. É na cidade de São Paulo atuando como rábula que Luiz Gama defende nos tribunais a liberdade dos escravos com base na lei de 1831. O abolicionista Joaquim Nabuco por sua vez foi eleito com o voto urbano da população do Recife. Nas cidades multiplicam-se instituições culturais, jornais, editoras e livrarias. Há aumento de pessoas que trabalham como profissionais liberais: médicos, engenheiros, advogados, funcionários públicos e professores. Em 1881 uma reforma eleitoral dá maior peso ao voto urbano, o que contribuirá para a aprovação da abolição.

 

Na segunda metade do século XIX houve também melhoria do sistema de transporte através de ferrovias. A construção de estradas de ferro não só permitiu a localização de fazendas em áreas até então inacessíveis e antieconômicas, como também um aumento da produção e fretes mais baixos. A mão de obra até então utilizada na manutenção e condução de tropas de burro e carros de boi foi liberada, podendo ser usada em outros setores.

 

A abolição ainda foi precedida da Lei do Vente Livre (1871) e da Lei dos Sexagenários (1885). Já no ano 1870/80 a abolição era dada como algo certo pelos próprios proprietários: o que estava em jogo era a forma de transição do regime compulsório para a mão de obra livre, bem como o problema das indenizações. As reformas, neste sentido, nada mais eram do que meios de estender no tempo um regime de trabalho tido como anacrônico pelas ideias políticas e filosóficas do tempo.

 

O período que antecede a abolição caracteriza-se pela radicalização, de generalização de fugas e rebeliões e mesmo a constituição de grupos como os Caifazes em São Paulo:

 

“Os caifazes denunciavam pela imprensa os horrores da escravidão, defendiam na Justiça a causa dos escravos, faziam atos públicos em favor da emancipação, coletavam dinheiro para alforrias e protegiam escravos fugidos. Suas atividades não paravam aí. Perseguiam também aos capitães de mato incumbidos de apreender escravos fugidos, sabotavam a ação policial e denunciavam os abusos cometidos por senhores, expondo-os à condenação pública. Procuravam, ainda por intermédio da imprensa e da propaganda, manter a população constantemente mobilizada”.

 

É neste contexto de total desagregação do regime escravagista que a Lei Áurea foi aprovada em 1888. A lei foi votada em regime de urgência:  83 deputados votam a favor e 9 contra (todos do partido conservador, provenientes de regiões rurais menos preparadas para transição ao regime livre). Não se tratou o 13 de maio de uma concessão benevolente da princesa Isabel mas uma resposta tardia do Estado a uma forma social em decomposição, dentro de um contexto de crise que poderia colocar a própria existência do regime político em cheque.  




  

segunda-feira, 12 de abril de 2021

“A Escravidão no Brasil” – Jaime Pinsky

 “A Escravidão no Brasil” – Jaime Pinsky



Johann Moritz Rugendas: habitação dos negros

 

Resenha Livro - “A Escravidão no Brasil: as razões da escravidão, sexualidade e vida cotidiana, as formas de resistência” – Jaime Pinsky

 

A escravidão não significa apenas um modo de produção ou uma mera relação sócio-econômica. Ela se caracteriza pela mais completa sujeição de um homem a outro – o escravo não é apenas a propriedade do senhor, mas também sua vontade está sujeita à autoridade do dono e seu trabalho pode ser obtido até pela força.

 

O escravo não é apenas objeto, mas pessoa sujeita a suas vontades: contudo, além de não pode exercer a sua vontade livremente, será obrigado ao trabalho, além de separado sumariamente de seu local de origem e de sua família, obrigado a renunciar sua identidade e até mesmo suas crenças religiosas.

 

Assim que desembarcava no Brasil, o escravo era batizado, mediante sal na boca, recebendo um nome cristão. A religião cumpria a função de ensinar a mansidão e o conformismo: devida ser a religião “um freio para os revoltosos, um consolo para os desanimados, uma esperança para os desgraçados e um alento para os fracos”, como se dizia na época.

 

Como se sabe, no primeiro século de colonização no Brasil, os Portugueses adotaram o regime de trabalho escravo dos índios. Uma certa historiografia e literatura românticas, muito tempo depois, iria sedimentar a ideia de que o índio teria uma inabilidade inata ao trabalho escravo, desde que vivia no seu estado natural, sempre cioso de sua liberdade. Nestes termos, sugeriu-se que o escravo africano seria naturalmente mais adaptado ao trabalho servil do que o índio.

 

Na verdade as razões pelas quais predominou a partir dos séculos XVI e XVII o trabalho escravo negro sobre indígena diziam respeito a questões de ordem prática: a fraca densidade demográfica da população indígena no Brasil, o fato de as tribos ficarem cada vez mais arredias, a própria dizimação dos indígenas por doenças e pela superexploração do trabalho, além da proteção jesuítica ao índio.

 

Ademais, havia o interesse da coroa e dos traficantes: “enquanto a captura do índio era quase um negócio interno da colônia – quando, frequentemente, até o quinto (imposto) devido à Colônia era sonegado – o comércio ultramarino trazia excelentes dividendos tanto ao governo, quanto aos comerciantes. Assim, governo e jesuítas apoiavam indiretamente os traficantes, estabelecendo limitações à escravidão indígena – em nome de Deus”. (Jaime Pinsky)

 

O negro portanto foi trazido para exercer o papel de força de trabalho compulsória numa estrutura organizada para a grande lavoura, inicialmente o açúcar e, posteriormente, o café. Também atuaram na mineração, no cultivo do algodão, no extrativismo vegetal na Amazônia, na pecuária e em trabalhos urbanos.  

 

A violência em face do escravo era institucionalizada. Os castigos mais frequentes eram de açoite, mediante chicote. Muitas vezes sequer era necessário o escravo ter cometido uma infração para ser castigado. Em algumas fazendas, logo quando chegava, o escravo era açoitado para demonstrar que naquelas paragens qualquer rebeldia seria objeto da mais brutal repressão. O negro, após as sessões de tortura, deveria engolir o seu orgulho e não manifestar resistência.

 

Não interessava porém aos proprietários assassinar ou inutilizar um escravo, a não ser em casos de grave rebeldia, como forma de exemplo aos demais. Os escravos eram também uma mercadoria, um instrumento de trabalho de alto valor pecuniário.

 

Neste contexto, as autoridades passaram a estabelecer regras sobre os castigos. No Rio de Janeiro, por exemplo, os açoites eram aplicados entre nove e dez da manhã, precedido de uma cerimônia pública, com a participação de populares. No pelourinho (uma grande pedra, ou um tronco de madeira, com duas argolas laterais) o negro era amarrado e supliciado. Havia também os calabouços: espécie de cadeias onde escravos eram castigados ou mesmo abandonados pelos proprietários.

 

Contrariando a ideologia romântica que afirma a natureza livre do índio em contraponto ao africano, foram diversas as formas de resistência à escravidão pelo negro. Fugas eram recorrentes, não só por não se conformarem com os maus tratos mas pela busca da liberdade, ainda que por pouco tempo, até a captura.

 

Os quilombos foram constituídos através de ajuntamento de fugitivos, alguns com grandes dimensões, como Palmares, que resistiu por mais de 60 anos, reunindo uma população de até 20 a 25 mil pessoas.

 

Havia também os assassinatos aos senhores, envenenamentos, os suicídios, os motins e revoltas urbanas. As mais importantes revoltas que contaram com participação de escravos foi a Balaiada (1838/1841) no Maranhão e a Revolta dos Males (1835) na Bahia.    

“Quilombos - Resistência ao Escravismo” – Clóvis Moura

 “Quilombos - Resistência ao Escravismo” – Clóvis Moura


"Dança do Batuque" Johann M. Rugendas - 1835

 

Resenha Livro - “Quilombos - Resistência ao Escravismo” – Clóvis Moura – Ed. Expressão Popular - 1ª Edição – 2020.

 

“Palmares foi a negação, pelo exemplo de seu dinamismo econômico, político e social, da estrutura escravista-colonialista. O seu exemplo era um desafio permanente e um incentivo às lutas contra o sistema colonial em seu conjunto. Daí Palmares ter sido considerado um valhacouto de bandidos e não uma nação em formação. A sua destruição, o massacre da Serra da Barriga, quando os mercenários de Domingos Jorge Velho não perdoaram nem velhos nem crianças, o aprisionamento e a eliminação de seus habitantes e finalmente a tentativa de apagar-se da consciência histórica do povo esse feito heroico foram decorrência de sua grande importância social, política e cultural.” (Clóvis Moura, op. cit.).

 

Os quilombos não foram a única fora de resistência dos negros escravos do Brasil. Houve fugas, assassinatos de feitores, incêndios, suicídios, motins urbanos, raptos de mulheres, envenenamentos e guerrilhas. Mas certamente os Quilombos foram a maior expressão da resistência dos escravos na medida em que o movimento, a sua própria existência, desafiava a ordem escravagista vigente: servia de exemplo e esperança aos demais cativos e engendrava o medo disseminado entre os senhores.

 

Os quilombos surgiram desde o século XVI e persistiram até os últimos instantes antes da Lei Áurea de 1888.

 

Não eram casos isolados de ajuntamentos de escravos fugitivos, mas um fenômeno disseminado em todo o território nacional, durante todo período da escravidão, com maior expressão em Palmares, onde resistiu durante  sessenta e cinco anos uma população de até 20/25 mil pessoas.

 

Uma das especificidades do escravismo no Brasil é que ele percorre um período de tempo de quatrocentos anos e espraia-se na superfície de um sobcontinente. No Brasil, diferentemente de outros países da América Latina, o escravismo não era um sistema adotado de forma regionalizada, não se tratava de um fenômeno local. O escravismo foi disseminado em toda a extensão territorial do Brasil. Paralelamente, serão identificados quilombos do Rio Grande do Sul ao Amazonas, passando por São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Goiás, Pará, Alagoas, Sergipe, Maranhão e Pernambuco. Os quilombos se espraiam pela Colômbia, Cuba, Haiti, Jamaica, Peru e Guianas, com diferentes denominações.

 

O quilombo pode ser definido como ajuntamento de negros em região não habitada. Os mais importantes foram Palmares no atual estado do Alagoas, além de Cumbe na Paraíba e Ambrósio, em Minas Gerais. Quilombola é o morador do quilombo, não sendo obrigatoriamente negro, pois lá havia índios, mestiços e brancos foragidos.

 

Havia quilombos extrativistas (Amazonas); pastoris (Rio Grande do Sul); mineradores (Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso); de serviços (que saiam dos quilombos para trabalhar nos centros urbanos); os predatórios, que viviam de saques praticados contra os brancos.

 

A importância dos quilombos reside no fato de ao mesmo tempo se tratar de um desafio político da ordem escravagista vigente, e a estruturação de uma ordem social alternativa, em que os antigos escravos readquirem o seu status de ser humano. A sua existência alimentava as esperanças de uma massa de escravos, além de suscitar fugas e outros atos de rebeldia. Neste contexto, as classes dominantes eram tomadas por uma síndrome de medo permanente: o medo da sublevação dos índios e negros, que compõem a maioria da população, é suscitada reiteradamente pelos documentos da época e se expressa também pela dura repressão em face dos rebeldes.  

 

Palmares se estruturou  como um quilombo agrícola onde se plantava feijão, mandioca, batata doce, banana (pacova) e cana de açúcar. Além da economia doméstica, havia uma economia de guerra com a produção de facas, arcos, flechas e artesanato. A sociedade se estruturava numa economia igualitária e comunitária em que havia a distribuição dos excedentes e a obrigatoriedade do trabalho.

 

Um ponto a ser levado em consideração é que a pesquisa histórica sobre Palmares prescinde de documentos para estabelecer conclusões definitivas sobre o funcionamento interno de Palmares. Nenhum documento escrito oi deixado pelos quilombolas de Palmares, restando as fontes históricas orais. Mais recentemente, os estudos de arqueologia na região do Quilombo do Palmares vem chamando a atenção para a variabilidade da composição étnica da população: além de escravos negros, compunham as comunidades índios e brancos foragidos da justiça.

 

Havia espaço para religiosidade com sincretismo entre o catolicismo e religiões africanas.

 

Clóvis Moura fala que a família palmarina se estruturava de formas poliândricas e poligênicas. O número de mulheres importadas da África ao Brasil era muito menor do que o de homens e nos quilombos estima-se que a desproporção era ainda maior. Por conta disso, cada mulher era dividida por 3 homens. Já as lideranças militares tinham, cada um, diversas mulheres. Dentre as mulheres de Zumbi, consta que uma delas era branca, possivelmente raptada.

 

Quanto ao regime político de Palmares, parece-nos ser impróprio chamar o quilombo de uma República – não há absolutamente nada em Palmares que guarde a mais pálida semelhança com as noções modernas de República. Tratava-se de uma confederação de Quilombos com um Rei que exercia poderes ilimitados e um conselho com representantes dos chefes dos diversos quilombos. A necessidade de uma estrutura militarizada não se relaciona apenas com uma influência política remota da cultura política das sociedades africanas: trata-se de uma necessidade objetiva, já que o Quilombo, para sua sobrevivência, depende de uma defesa militar permanente, especialmente quando as comunidades se sedentarizam e necessitam de estabilidade para estruturar sua economia agrícola e até mesmo desenvolver um certo comércio ilícito local.

 

É certo que após a capitulação de Ganga Zumba, um setor da elite militar presidido por Palmares rompe com o antigo rei e retoma a luta. Além disso, também é certo que os movimentos de resistência costumam engendrar relações sociais de coletivismo e solidariedade entre os seus membros, o que não era diferente nos Quilombos.

 

A leitura do “Quilombos Resistência e Escravismo” de Clóvis Moura proporcionada pela Editora Expressão Popular ajudará o publico brasileiro a  compreender que esta forma de resistência em armas ao regime vigente não foi excepcional, não foi um fenômeno pontual e regional, mas uma experiência generalizada em todo o território nacional, durante todo o período de vigência da escravidão. A resistência dos quilombos nesta quadra histórica retoma, na atualidade, o debate sobre o problema da violência revolucionária no Brasil e sua sólida tradição na história nacional, a despeito da caracterização do brasileiro, pela historiografia tradicional, como um homem cordial.    



sábado, 3 de abril de 2021

A Desconsideração da Personalidade Jurídica

 

A Desconsideração da Personalidade Jurídica 




 

As pessoas jurídicas podem ser conceituadas como o conjunto de pessoas ou de bens arrecadados, que adquirem personalidade jurídica própria por uma ficção legal. A pessoa jurídica não se confunde com seus membros, sendo essa regra inerente à própria concepção da pessoa jurídica[1].

“A pessoa jurídica é uma realidade autônoma, capaz de direitos e obrigações, independentemente dos membros que a compõem, com os quais não tem nenhum vínculo, agindo por si só, comprando, vendendo, alugando, etc., sem qualquer ligação com a vontade individual das pessoas físicas que dela fazem parte. Realmente, seus componentes somente responderão por seus débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual” (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – V. 1. São Paulo, Saraiva, 21 Ed., p. 272).

São diversos os critérios de classificação da pessoa jurídica. Quanto à estrutura interna, as pessoas jurídicas se diferenciam em corporações e fundações. As corporações são o conjunto de pessoas que atuam com fins e objetivos próprios. São as sociedades, as associações, os partidos políticos e as entidades religiosas. Já a fundação é o conjunto de bens arrecadados com finalidade e interesse social.

Outra divisão refere-se à função da pessoa jurídica. Existem as pessoas jurídicas de direito público, que, de acordo com o artigo 41 do CC/02 são a união, os estados, o distrito federal, os territórios, os municípios, as autarquias e as demais entidades de caráter público criadas pela lei. Há as pessoas jurídicas de direito privado, que são pessoas jurídicas instituídas pela vontade dos particulares, visando atender os seus interesses. São, de acordo com o artigo 44 do CC/02 as fundações, as associações, as sociedades (simples e empresárias), os partidos políticos, as entidades religiosas e empresas individuais de sociedade limitada. As pessoas jurídicas de direito público interno e externo são mais detidamente analisadas no direito constitucional, no direito administrativo e no direito internacional público. Já a reflexão sobre as pessoas jurídicas de direito privado são objeto de maior análise no direito civil, no direito empresarial e no direito do consumidor.

A desconsideração da personalidade jurídica é uma figura jurídica criada para coibir abusos de direito, confusão patrimonial e desvio de finalidade. Quando a personalidade jurídica for utilizada pelos sócios para fugir de suas finalidades ou para lesar terceiros, é possível desconsiderá-la imputando-se responsabilidade aos sócios e membros integrantes da pessoa jurídica que procuram burlar a lei ou lesar terceiros.

A desconsideração da personalidade jurídica, quando se tratar de lide civil e empresarial, apenas será deferida se comprovado o abuso da personalidade jurídica, na forma do artigo 50 do CC/02.

Nas lides consumeristas, os requisitos para a desconsideração da personalidade jurídico não dirão respeito exclusivamente ao abuso de direito: de acordo com o 5§ do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.

A Lei dos Crimes Ambientais (lei 9605/98) no seu artigo 4º também estabelece critérios menos rígidos para a desconsideração da personalidade jurídica:

Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

novo CPC suscitou no capítulo relativo à intervenção de terceiros o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (artigos 133 e seguintes). Assim, antes de redirecionar uma execução em face dos sócios, será necessária a instauração de um incidente processual, devendo os sócios serem citados para ajuizar contestação. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica pode ser requerido pela parte ou pelo MP quando lhe couber intervir no processo. Pode sem proposto em qualquer fase do processo, inclusive no cumprimento de sentença.

A desconsideração da personalidade jurídica pode ser um mecanismo de punição de maus empresários que abusam da proteção conferida para lei para agir com excesso de poder, abuso de direito, violação do contrato social ou mesmo com o encerramento irregular para prejudicar credores. Para tanto, é indispensável a instauração do incidente processual, oportunizando a ampla defesa e o direito ao contraditório.

Contudo, a desconsideração da personalidade jurídica não deve ser reconhecida no caso de mera insolvência da pessoa jurídica, nitidamente quando se tratar de lides tipicamente cíveis e empresariais. A banalização do instituto mediante a desconsideração da personalidade jurídica de ofício, comum no processo do trabalho, não colaborará para afastar os maus administradores das empresas, além de engendrar insegurança jurídica. Se não houvesse autonomia patrimonial, muitas empresas sequer existiriam, uma vez que, no insucesso do empreendimento, sua criação poderia acarretar em riscos predominantemente superiores às vantagens.

A teoria do disregard of the legal entity, portanto, deve sempre ser pensada como situação excepcional, apta apenas a produzir efeitos em situações relacionadas ao abuso de direito pelos sócios e administradores.

Bibliografia

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. Volume Único. Ed. Gen.


[1] Nocódigo civil 19166, mencionava-se explicitamente a diferenciação, conforme artigo200 do código revogado: Lei nº 3.071 de 01 de Janeiro de 1916 Art. 20. As pessoas jurídicas tem existência distinta da dos seus membros.