quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Por que não sou Feminista?

Artigo #1 - Por que não sou feminista?



O modo de produção capitalista cria condições para a reprodução e perpetuação de opressões contra tudo o que difere do padrão heteronormativo, do gênero masculino e do fenótipo branco. A superexploração da mulher negra dentro dos trabalhos mais precarizados e informais diz respeito, nesse sentido, ao fato do capitalismo servir-se de uma sociedade cingida por preconceitos raciais e de gênero para oferecer postos de emprego com os mais baixos salários e piores condições de trabalho aos setores marginalizados que destoam do padrão heteronormativo, masculino e branco. No âmbito dos mais precários postos de trabalho nas empresas de telemarketing ou nas redes de fast-food, uma rápida observação desde fora já bem revela a composição dos trabalhadores: jovens, alguns homossexuais, muitos negros e muitas mulheres. No caso particular do gênero, qualquer análise objetiva da realidade envolverá o reconhecimento de que o machismo é um momento constituinte da exploração capitalista, bem como fomentado pela Indústria Cultural, pela divisão sexual do trabalho, pela educação familiar e escolar ou mesmo pela maior parte das religiões. O machismo por sua vez produz a violência contra a mulher, violência física, sexual ou moral. Reproduz desigualdades mesmo no âmbito do mercado de trabalho. Para as mulheres, menores salários e maiores dificuldades de ascensão aos cargos de direção em todos os âmbitos possíveis: empresas, órgãos públicos, sindicatos e partidos políticos, mesmo de esquerda.

Numa breve síntese podemos afirmar que o machismo (apesar de ser um fenômeno histórico pré-capitalista) é um momento constituinte da sociedade do capital. Lutar contra o capitalismo implica, portanto, lutar contra o machismo. E lutar contra o machismo implica no fortalecimento da luta anti-capitalista.

Ocorre que as palavras são polissêmicas: “machismo” e “feminismo” vão ter significações distintas, para um homem machista, para um homem não machista, para uma mulher machista e para uma mulher não machista. A diferença de conotação envolve igualmente a visão social de mundo dos diferentes interlocutores.

A oposição entre machismo e feminismo

Lutar contra o machismo não implica adesão ao feminismo, entendido aqui como corrente política profundamente heterogênea que oferece diversas táticas para ou atenuar ou romper com a desigualdade de gênero.

Em primeiro lugar, é necessário ressaltar que existem diversos feminismos. Do neoliberal PSDB ao ultraesquerdista-trotskysta PCO, quase todos os partidos políticos possuem um setor de mulheres. Cada qual com táticas e estratégias distintas, às vezes antagônicas. O recorte de classes passa a ser um primeiro critério divisor do feminismo: o feminismo burguês em suas mais distintas variantes propõe medidas paliativas de combate à opressão, sem fazer com que tal militância envolva uma busca até as origens da desigualdade de gênero: o modo de produção capitalista. Outro feminismo, igualmente inconsequente, estabelece as relações entre as contradições vividas pelas mulheres e o capitalismo, buscando a superação da desigualdade por meio de grandes reformas legais e institucionais que ainda preservem o capitalismo – feminismo pequeno-burguês de matriz reformista.   Finalmente, há o feminismo revolucionário, corrente política que entende ser a plena superação da opressão das mulheres produto tanto das batalhas cotidianas contra o machismo quanto, e principalmente, pelo fim da sociedade do capital, fonte originária desta e das demais desigualdades.

Os comunistas se identificam não com todo feminismo, mas com este último feminismo em particular, o feminismo revolucionário. Entendem assim que o problema da luta de classes perpassa a opressão de gênero, de modo que, por suposto, há um enorme, gigantesca distância do “feminismo” em Rosa Luxemburgo ou em Margareth Thatcher.

Aqui iniciamos o início de nossa polêmica. Todo comunista deve lutar taticamente contra o machismo, o racismo e a homofobia: lutar contras as opressões é lutar contra um sistema de exploração classista que se serve das opressões para fazer perpetuar a super-exploração do trabalho, justificar ideologicamente as desigualdades naturalizadas pela sociedade capitalista e até mesmo criar alguns “padrões” de conduta e de fenótipo a serem atingidos – com o apoio da Industria Cultural, os “padrões” acompanham industrias de cosméticos, academias de musculação, revistas e produtos culturais da televisão e cinema, etc.

Entretanto, entendemos que lutar contra o machismo não torna um indivíduo “feminista”. Mais. Não ser feminista não significa adesão ou conivência com o machismo. Como se sabe, o feminismo é uma corrente política multicolor e nenhum comunista (homem ou mulher) está obrigado a escolher uma filiação do feminismo em particular para estar contra o machismo – mesmo porque a arma da crítica já está à disposição dos marxistas, seus pressupostos teórico-metodológicos e seus horizontes políticos são mais do que suficientes para a crítica de gênero tornando mesmo a existência de algumas teorizações “ecléticas” verdadeiras formas de apagar o horizonte de classes da abordagem feminista. Tal ponto (o de não haver necessidade de ser feminista para estar contra o machismo) passa a ganhar relevância no Brasil já que, segundo nossas observações, nenhuma variante do feminismo dentro das organizações políticas brasileiras faz uma discussão verdadeiramente marxista sobre o tema, infelizmente.

Apoiando-nos nas alas revolucionárias do feminismo, o que podemos enxergar é uma verdadeira confusão e balbúrdia. Para correntes ultra-esquerdistas como a Negação da Negação, não haveria espaço para uma militância contra as opressões diante da óbvia prevalência da questão da luta de classes. Esquece tal setor que o capitalismo é racista, machista e homofóbico e que a luta contra as opressões é uma luta anticapitalista: contra as opressões, os trabalhadores avançam sobre a burguesia e apenas com a vitória final do trabalho sobre o capital (comunismo) haverá uma sociedade não mais cingida em classes sociais e dividida por raça, gênero e orientação sexual. Outra corrente supostamente revolucionária (PSTU) tem uma prática política ainda mais lamentável. Utilizam-se criminosamente da histórica luta das mulheres para caluniar e difamar militantes homens de outras organizações. Defendem escrachos de homens militantes, criando mais divisão e desconfiança com relação à pauta das mulheres, principalmente entre os “escrachados” que deveriam ser “educados”, principalmente quando estão na mesma fileira de classe dos trabalhadores. (Gostaria mesmo de ver a mesma valentia com que certas “feministas” fazem escrachos a estudantes univeritários em territórios livre de ameaça, com a disposição de ir para a periferia e intervir em casos infinitamente mais graves de machismo, como a violência física contra a mulher, praticada cotidianamente por homens da classe trabalhadora). Ocorre que estas feministas do morenismo nunca estiveram, não estão e provavelmente jamais estarão preocupados em combater de fato o machismo – inclusive dentro de suas próprias fileiras e junto a restrita base proletária deste partido. Seu feminismo é pequeno-burguês, tende e jogar homens contra mulheres e dentro do movimento, é antes uma ferramenta divisionista voltada ao jogo da pequena política de gabinete (difamar adversários) e, claro, a auto-construção partidária. Tudo, absolutamente tudo, menos combater o machismo.

Qual Feminismo?

Paulo Freire dizia acertadamente que o oprimido deve ser protagonista na sua luta pela sua emancipação e também pela liberação do opressor de sua condição. Da mesma forma como o proletariado é o sujeito histórico que derruba a classe que o explora (burguesia), as mulheres deverão estar a frente da luta por sua emancipação. Considerando que o autor destas linhas é homem, branco e heterossexual, certamente não sairá deste pequeno texto crítico a fórmula ideal das táticas e do horizonte de luta do feminismo. Esta é uma tarefa exclusiva das mulheres. O que nos cabe aqui é apontar dois pequenos pontos, reiterados pelos feminismos reformistas e revolucionários, com os quais não estamos de acordo.

(i) A guerra de sexos. Para certo feminismo pequeno-burguês, não há ou há quase nenhuma delimitação de classe na análise, interpretação e avaliação de métodos de luta. Trata-se de um feminismo pequeno burguês que, ao não identificar o capitalismo como inimigo central,  volta-se a uma batalha ilusória entre homens (sempre “vilões”) e mulheres (sempre “vítimas”). Para sustentar seus mitos, tentam embalar sua militância com pequenas ou minúsculas supostas manifestações de machismo, transformando episódios banais em objeto de denúncia, escrachos, etc. Uma cantada, uma poesia ou mesmo um xaveco mais tosco transformam-se numa escandalosa ação intencional e premeditada de diminuir a mulher. Esta ou aquela música ou este e aquele conjunto musical apenas são escutados sob sigilo e toda manifestação de arte também passa a ser objeto de críticas duvidosas. Este feminismo pequeno-burguês chega ao ridículo de polemizar com homens que em reuniões políticas públicas erguem o tom de voz – ou seja, a forma como o militante se expressa passa a ser objeto de controle feminista, restando aos homens de voz grave que “falam grosso”, ou calar-se ou quem sabe sugerir que tais “feministas” providenciem remédios que atenuem os efeitos de sua testosterona na voz. Defendemos contra estas feministas que qualquer militante organizado em movimento social ou partido político de esquerda deva ter a liberdade para se expressar da forma como quiser, seja em verso, prosa, com voz em barítono ou não.

(ii) o mito do padrão de beleza. Uma grande falsificação presente em praticamente todas as correntes feministas diz respeito ao fato da mulher ser a maior e exclusiva vítima dos padrões estéticos engendrados pela Indústria Cultural. Algumas responsabilizam os homens (e não a Industria Cultural, a Família, a sociedade capitalista...) pelas mortes por bulimia, anorexia e doenças relacionadas. Em primeiro lugar, contra tais argumentos, respondemos que os homens também são vítimas dos padrões de beleza engendrados pela televisão, cinema, industria de cosméticos, etc. Da mesma forma que existe um padrão feminino (branca, cabelos lisos, magra, etc.), também existe um padrão masculino (branco, cabelos lisos, músculos grandes, etc.). Logo, os problemas emocionais decorrentes dos padrões estéticos também estão presente nos homens: e assim, as academias de musculação estão cheias e já foi noticiado que garotos chegam a usar anabolizante de cavalos para “melhorar a aparência”. Todo o sofrimento decorrente da criação de padrões de beleza inacessíveis para a maioria das pessoas, afeta igualmente homens e mulheres, de formas distintas mas resultando igualmente em sofrimento, isolamento, depressão e atitude anti-sociais.

Por isso Comunista e Não Feminista!

Frente ao problema do machismo e a ausência de alguma corrente feminista que tenha um programa anti-capitalista, revolucionário, comunista e não-oportunista no Brasil, o que é possível dizer é que hoje é possível um comunista brasileiro dizer-se não feminista. Entretanto, não ser feminista não significa adotar uma postura machista. O não feminismo é a não filiação às distintas correntes do feminismo. O não feminismo significa a não confiança nas interpretações dos distintos movimentos de mulheres do que seja “machismo”.  O não feminismo comunista significa a não confiança nas interpretações dos distintos movimentos de mulheres acompanhado de uma preocupação exclusivamente tática acerca da opressão de gênero, aportando para esta questão com a condição de que tal movimento nos aproxime de nosso horizonte estratégico comunista, e não que nos turbe a visão criando uma falsa guerra de sexos que divide a classe trabalhadora e fortalece os nossos adversários.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

“O Marxismo No Mundo Moderno” (Vários autores - Org. Milorad Drachkovitch)


Resenha Livro #70 – “O Marxismo No Mundo Moderno”- (Vários Autores) – Zahar Editores



                Ler e estudar rigorosamente as ideias de Marx e dos distintos marxismos envolverá necessariamente o contato com dois gêneros de obras.

O primeiro gênero corresponderia às “fontes primárias”, provavelmente a leitura mais difícil e que envolverá uma série de esforços extras do estudioso. As fontes primárias do historiador ou cientista social correspondem aos textos originais. As dificuldades aqui vão desde o problema da tradução – que, particularmente no âmbito do marxismo, quase nunca são desinteressadas politicamente, até o problema de edições incompletas. É necessário também contextualizar as fontes primárias sob duas perspectivas. Primeiro destacando-se o cenário histórico e conjuntural dentro do qual o texto foi escrito. Em segundo lugar, destacando o lugar ocupado pela obra dentro da evolução intelectual do autor. No caso de Marx, por exemplo, em uma leitura cuidadosa do Manifesto Comunista (1848), trata-se de relacionar a obra com a militância de Marx e Engels no quadro dos movimentos revolucionários que marcaram a Europa daquele período, para além da construção da I Internacional. De outra monta, um estudo analisado da “Guerra Civil em França” (1871) e os distintos volumes do “Capital” deveria destacar não só o cenário político que contextualiza as publicações, mas o fato de Marx, aqui, já estar em sua fase de maturidade intelectual, menos influenciado pela filosofia clássica alemã e mais influenciado pela economia política inglesa.

O segundo gênero de leituras marxistas pode ser desde já sub dividido em pelo menos 3 espécies distintas[i].  Trata-se aqui das fontes “secundárias”, obras escritas ou por marxistas ou por não marxistas, acerca das ideias de Karl Marx e dos marxismos. Um bom critério para a diferenciação entre uma interpretação marxista e não marxista está estabelecida nas teses de Feuerbach (1845). Ser marxista em primeiro lugar significa, consoante expressão da sociologia alemã, uma “visão social de mundo”. (Weltanschauung). Trata-se nesta perspectiva de reivindicar determinados pressupostos teórico-metodológicos que parte das inovações filosóficas e críticas de Marx e seus seguidores. Ademais, as obras escritas por marxistas são necessariamente textos produzidos por indivíduos que não só adotam a visão social de mundo marxista mas procuram intervir, particularmente no âmbito da batalha das ideias, em favor do trabalho em contraponto ao capital. Nesta perspectiva, poderíamos dizer que Lênin foi um grande marxista deste genero que destacamos, tanto no que se refere aos pressupostos teóricos de suas análises quanto ao fato de ser um militante socialista – consoante a última tese feuerbachiana, o marxista não só interpreta, mas transforma o mundo.

Uma segunda espécie de leitura marxista pode ser chamada  de interpretação não marxista crítica. Dentre as resenhas apresentadas neste blog, um exemplo desta espécie é o manual de marxismo do professor francês André Piettre. Interessa-nos as críticas ao marxismo vindas desde fora do marxismo, especialmente quando formuladas desde bases críticas e com honestidade intelectual.

Uma terceira e última espécie de leitura marxista está enquadrada no “Marxismo no Mundo Moderno”. Trata-se de uma coletânea de oito ensaios sobre marxismo escritos por professores universitários de França e Inglaterra em meados dos anos 1960 – concomitante à guerra fria, este tipo de literatura poderia ser caracterizada como leituras “anti-marxistas”. Há nos ensaios, em maior ou menor intensidade, um objetivo comum de caracterizar todas as experiências socialistas do séc. XX como regimes “totalitários”, em clara oposição ao ocidente capitalista “livre”. Não à toa, os ensaios a todo momento reiteram a luta pela hegemonia soviética dentre o campo socialista (até a ruptura com a China) e cita diversos exemplos de como a URRS ocupava um papel de dominação dentro do campo socialista, ainda que em grau menor após a desestalinização (1956), sem fazer menção aos diversos golpes militares encampados pelo imperialismo norte-americano na América Latina, além das intervenções bélicas na Ásia a favor do “Ocidente”. Trata-se, aqui, portanto, de uma leitura que envolve o contato com fontes hostis às ideias de Marx (batizadas a todo momento como “profissão de fé”, “dogma”, “religião” etc.), bem como a tentativa de deslegitimar os marxismos subsequentes por meio de um tipo de falsificação em que as fontes intelectuais de direita são particularmente especializadas: a busca das origens dos desvios, do “totalitarismo” ou do “autoritarismo” socialista a partir de seus principais líderes e seus traços individuais. Não é à toa que o próprio livro e sua divisão em capítulos dá-se em função de indivíduos que se projetaram como líderes das diversas experiências revolucionárias com conotação socialista do séc. XX. Assim, há capítulos específicos do “leninismo”, do “stalinismo”, do “kruschevismo”, do “titoísmo” (Marechal Tito da Iuguslávia) e “castrismo”. Lênin é pintado como um homem semi-louco, extremamente sectários, com uma autoconfiança inabalável. Stálin como um político profissional sem escrúpulos e princípios. E Kruschev é sintomaticamente pintado com cores menos ofensivas, correspondendo ao seu papel histórico de mudança no regime soviético num sentido de menor hostilidade com relação ao “ocidente”.

Acreditamos que existe interesse por parte dos marxistas de hoje voltarem-se também para a literatura anti-marxista, especialmente neste caso, já que temos boas razões para acreditar que a produção deste livro mobilizou importantes intelectuais anti-marxistas. Os autores  foram professores de Havard (Merle Fainsod e Adam Ulam), Stanford (Theodore Draper) e Universidade de Paris (Raymond Aron). Ou seja, ainda que as análises anti-marxistas sirvam-se de algumas fontes duvidosas e de alguns expedientes discutíveis do ponto de vista teórico-metodológico (como a incessante busca das origens dos sistemas autoritários na psicologia individual dos líderes revolucionários, sem se ater ao fato da interpretação das subjetividades ser também por si incrivelmente subjetiva), ainda assim, a sua leitura ajuda em primeiro lugar a nos situar em que bases estavam a batalha das ideias durante os anos 60 do século passado no mundo. Outrossim, os marxistas estão comprometidos, mais do que qualquer corrente filosófica, com a verdade histórica  e neste sentido, algumas das críticas ocidentais mostraram-se relativamente acertadas. O problema da restauração capitalista (ainda parcial e incipiente) já está contido nas análises sobre N. Kruschev e o capítulo final destinado “às Perspectivas do Comunismo Pluralista”. O problema da política externa desde o âmbito do campo socialista, com as tensões e posterior ruptura sino-soviética também são analisadas no livro, sendo certo que a divisão do movimento comunista mundial ainda nos deve ser fonte de ensinamentos históricos.

Portanto, preparar-se para lutar intelectualmente a favor dos trabalhadores e do povo, em prol do comunismo no séc. XXI, envolve uma atitude não sectária com os livros e obras anti-marxistas. Como procuramos mostrar neste artigo, a leitura de marx e os marxismos implica em distintos gêneros e espécies de textos. Devemos cortejá-los todos nos dias de hoje com o olhar atento da crítica radical (oferecida pela teoria marxista) e sempre buscando a coerência junto aos nossos compromissos históricos: independência de classe, suporte à luta dos trabalhadores pela revolução anticapitalista e socialista.     



[i] Por suposto nossa proposta de ilustração das distintas possibilidades de leitura de Marx e marxismos parte de critérios nossos, inteiramente submetidos às críticas dos nossos eventuais leitores.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

“Karl Marx e os Marxismos” – Iring Fetscher


Resenha Livro # “Karl Marx e os Marxismos” – Iring Fetscher – Ed. Paz e Terra



Ler Marx e os marxismos

Aqueles que se desafiam a estudar e compreender o marxismo, tanto no que se refere aos seus pressupostos teórico- metodológicos, quanto suas implicações na filosofia, política e economia, devem ter de lidar com dois tipos de fontes.

As fontes primárias correspondem às leituras dos escritos originais de Karl Marx: desde suas obras da juventude, ainda bastante influenciado pelo hegelianismo de esquerda, como o Manuscritos Filosóficos de 1844 e a Ideologia Alemã, até as obras consideradas do Marx maduro, como os escritos referentes à experiência da Comuna de Paris reunidos posteriormente sob o nome de “Guerra Civil na França” (1871), até, por suposto, “O Capital”, obra dividida em 4 grandes blocos, sendo que apenas o 1º foi publicado com Marx ainda vivo.

Existem algumas dificuldades a serem enfrentadas aqui: em primeiro lugar é importante verificar as traduções, especialmente das obras mais filosóficas da juventude de Marx. Em segundo lugar é necessário contextualizar historicamente. Como se sabe, os escritos de 1844 e a Ideologia Alemã apenas foram publicados no início dos anos de 1930. Isto quer dizer que um importante expoente do marxismo como Lênin, dirigente da Revolução Russa de 1917, não teve contato com tais obras. A contextualização aqui, portanto, não envolve só buscar descobrir as circunstâncias históricas em que a obra foi produzida mas também como as obras e as ideias de Marx impactaram o movimento real da história. É necessário pois confrontar as teses originárias do marxismo com a sua interpretação ou mesmo aplicação desde a primeira revolução socialista até as demais experiências revolucionárias ao longo do séc. XX.

Outra forma de estudar o marxismo dá-se por meio da leitura de fontes secundárias. Consoante a segunda parte do título da obra de Fetscher, os “marxismos” interpretaram de formas distintas e, no que se refere à cisão entre o reformismo da II Internacional e perspectiva revolucionária da III Internacional, as divergências transformam-se em verdadeiro antagonismo. Ademais, existem obras acerca de Marx e do Marxismo escrita por não-marxistas.

 Desde as teses críticas da filosofia de Feuerbach feita por Marx, subentende-se que a filosofia marxista não se limita a tentar interpretar o mundo, mas transformá-lo. O compromisso com a transformação da realidade é um critério para distinguir as análises marxistas e não-marxistas de Marx. Para o militante marxista, ao contrário do que pode parecer num primeiro momento, as análises não-marxistas também nos interessam.

Análises não-marxistas de Marx e dos Marxismos

Como vimos, um elemento que diferencia a interpretação marxista de qualquer outra forma de avaliar o mundo envolve junto aos primeiros algum grau de comprometimento e coerência com a transformação do mundo. Entrementes, no âmbito das análises não-marxistas, poderíamos fazer uma sub-divisão. Existe certamente uma literatura (marcante no período da guerra fria) que faz uma crítica burguesa do marxismo com graus de maior ou menor militância a favor do capitalismo e do “Ocidente”.

Este não é o caso de Iring Fetscher. O seu estudo é importante por em primeiro lugar abranger um repertório admirável de teses e ideias tanto das fontes primárias (especialmente Marx, Engels e Lênin) quanto das fontes secundárias – o autor dá uma particular ênfase por lado a autores como György Lukács  e Karl Korsch que estão especificamente analisando o que há de continuidade dentre o pensamento de Hegel e Jovem Marx e por outro aos autores soviéticos que, especialmente entre 1930-1954, diante do culto da personalidade de Stálin e da burocratização do regime, descambam para um marxismo de tipo dogmático que sequer pode ser considerado como teoria. O dogmatismo envolvia especialmente a adequação mecânica e vulgar das referências de Marx à realidade social e aos planos econômicos e de produtividade realizados durante o stalinismo. A “teoria” é antes uma justificação tortuosa de uma realidade partindo-se do duvidoso pressuposto de que a eliminação jurídica da propriedade privada na URSS teria solucionado todas  as contradições decorrentes da luta de classes, além da alienação do trabalho, havendo, finalmente, uma espontânea convergência entre as vontades da direção partidária, as vontades dos órgãos de governo e por fim as vontades dos trabalhadores no poder sob o regime socialista.

O ensaio de Iring Fetscher é bastante instrutivo no sentido da obra oferecer um vasto panorama das ideias de Marx e as sua confrontação prática com o desenvolvimento histórico da URSS. Este é o fio condutor da obra. A título de exemplo, poderíamos citar o interessantíssimo capítulo destinado à religião. Nesta passagem, o autor resgata a concepção originária da religião em Marx. Para o filósofo alemão, a religião é o reflexo de um mundo marcado pela alienação do trabalho e pelo fetiche da mercadoria: são as condições materiais do modo de produção capitalista que engendram uma visão deturpada do mundo, sendo mesmo justificável diante da miséria moral e material do capitalismo. Acima de tudo, Marx vê o problema da religião e alienação como questões objetivas decorrente da sociedade de mercadorias e, nesta perspectiva, entende que a religião, como o estado, deixariam de existir na medida em que a vida humana fosse resignificada através do fim da propriedade privada dos meios de produção e da conformação da sociedade não mais cingida em classes sociais (comunismo). Lênin, tendo de confrontar as premissas teóricas do marxismo com os problemas práticos da revolução, adota uma postura distinta com relação à religião. Se em Marx sobressai-se a fórmula “A religião é o ópio do Povo”, em Lênin a frase é transformada em “A religião é o ópio para o Povo”. O que isto significa? Significa que em Lênin há não uma simples constatação da inevitabilidade da alienação religiosa pelo capitalismo, mas uma exigência política de combater as ideias religiosas.

Mesmo até hoje a Rússia é um país extremamente religioso, repleto de igrejas ortodoxas e monastérios que datam desde antes do séx. X d.C. Como se sabe também, a igreja não apoiou mas foi hostil à revolução de outubro e ao comunismo “ateu” e tiveram parte de suas posses e propriedades expropriadas pela revolução. (Diga-se de passagem que uma verdadeira expropriação das propriedades religiosas na Rússia já havia sido encaminhada pela czarina Katarina II no séc. XVIII).

Para Lênin trata-se portanto de combater politicamente as ideias da igreja e disputar consciências. Para Marx, o foco está nas origens do desengano religioso e a “luta contra a religião” é antes uma luta contra o modo de produção capitalista.

Uma injusta crítica a Lênin

Muitas são as passagens em que o ensaio do filósofo alemão pode ser objeto de críticas. Citamos para ilustrar sua análise sobre o advento no nazi-fascismo: Fetscher minimiza bastante o auxilio material dado pelas burguesias industriais ao nazismo e ao fascismo como forma de combater o medo maior do comunismo. Outro tema que nos parece estar em contradição com os fatos é uma crítica injusta de Fetscher à Lênin. Assim expõe o pensador alemão:

“ (Para Lênin) era a “necessidade” de “substituir” o proletariado industrial por um “partido de novo tipo” com tarefa de recrutar “massas” de pequeno burgueses, camponeses e intelectuais para a revolução: este partido substitui a classe revolucionária (pelo menos na sua função e, a seguir, também na sua auto-compreensão). Enquanto Marx achava decisiva a formação de um partido revolucionário próprio de classe, mas enquanto é a classe que, com a ajuda do partido, se constitui como sujeito histórico auto-consciênte, para Lênin é o partido que constitui, com elementos heterogêneos, um substitutivo para a inexistência da classe revolucionária”.

Devemos reconhecer que sim, na revolução russa, o proletariado industrial russo constituía-se em minoria da nação – aliás o fato deste proletariado jovem, concentrado em pequenos centros urbanos e diante de uma burguesia frágil politicamente foi elemento decisivo para a vitória da revolução. Também devemos reconhecer que Marx não poderia teorizar profundamente acerca do partido dos trabalhadores, ao menos até a Comuna de Paris no fim de sua vida. Finalmente, é certo que no “Que Fazer” (1902), Lênin diz textualmente que o partido revolucionário é imprescindível pois as lutas sindicais elevam a consciência do proletariado até o seu momento sindical, sendo necessário um partido político para introjetar no proletariado uma consciência política para destruir o czarismo.

Agora, o erro grave de Fetscher é sua confusão entre leninismo e blanquismo. Não há em Lênin, como procura fazer crer o filósofo alemão, a intenção do partido “substituir” a ação da classe trabalhadora, mas sim de organizá-la e liderá-la. O historiador britânico Perry Anderson em seu “Considerações sobre o marxismo ocidental” inicia seu ensaio com uma citação ilustrativa de como Lênin não é substitucionista. Diz Lênin, “a correta teoria revolucionária só assume forma final em contato estreito com a atividade prática de um movimento verdadeiramente de massas e verdadeiramente revolucionário”. 

Em diversos outros escritos, Lênin pontuou a exigência da vanguarda partidária estar em conexão com as massas. Talvez o que Fetscher busca defender é que as origens do autoritarismo da era stalinista já estão vivas em Lênin. Esta crítica é comum não só nos meios liberais mas dentro do ultra-esquerdismo anarquista. (Noam Chomsky é um expoente desta perspectiva). Estamos em desacordo com as falsificações do leninismo e reivindicamos o aprofundamento dos estudos do grande dirigente da Revolução Russa no século XXI desde que o desafio da organização da classe e da construção do partido revolucionária – necessidade premente numa conjuntura de lutas espontâneas pelo mundo sem uma direção internacional – permanece vivo até hoje.  

terça-feira, 13 de agosto de 2013

“Marxismo do Século XX” – Roger Garandy

Resenha Livro #68 “Marxismo do Século XX” – Roger Garandy – Ed. Paz e Terra



Roger Garandy foi um filósofo francês marxistas que viveu entre 1913 e 2012. Escreveu este ensaio em 1966: como militante do Partido Comunista Francês, certamente redigiu a obra impactado pelas denúncias das arbitrariedades stalinistas durante o XX Congresso do Partido Comunista da URSS. Como se sabe, o então secretário do Partido, Nikita Khrushchov, relatou a  violência, expurgos, assassinatos e as limitações à liberdade impostas pelo regime de seu antecessor, Joseph Stálin.

Levando tal conjuntura particular em consideração, é possível cortejar “Marxismo do Século XX” e os desafios colocados pelos comunistas àquele tempo histórico. Trata-se essencialmente de um livro sobre a dimensão filosófica do marxismo, tendo como fio condutor o rompimento ora com os desvios dogmáticos do marxismo, particularmente decorrentes de um materialismo mecanicistas associado ao pensamento francês do séc. XVIII e por outro lado o rompimento com uma perspectiva mais idealista e romântica do marxismo, desde uma interpretação que põe em relevo as influências da filosofia clássica alemã (Kant, Fichte e, em menor medida, Hegel), para além de outros “sistemas de pensamento” que dialogam com o marxismo, como as ideias do cristianismo, o estruturalismo francês (corrente de pensamento bastante expressiva nos meios acadêmicos do ocidente em meados do séc. XX), para além do existencialismo Sartreano e o marxismo anti-humanista de Althusser.

O ensaio é dividido em capítulos que irão abordar respectivamente as relações entre o marxismo e a ciência (e, num nível mais amplo, o marxismo e a teoria do conhecimento), o marxismo e a religião e o marxismo e a estética/arte.

A teoria do conhecimento em Marx: marxismo e ciência

Separamos uma passagem longa, porém bastante elucidativa das teses referentes à apropriação do conhecimento filosófico desde o ponto de vista do marxismo.

“Longe de estabelecer entre a ideologia e a ciência uma oposição radical, metafísica (Engels deixa isso aos trapeiros de ideias e aos filisteus que comprazem em ostentar sua “superioridade de espírito em face de semelhantes loucuras”), Engels adota em face dela uma atitude verdadeiramente científica: busca nos precursores, sobretudo, as verdades que eles descobriram, desembaraçando-as da ilusão propriamente ideológica, segundo a qual “o socialismo seria a expressão da verdade, da razão e da justiça absolutas (...) independente do tempo, do espaço e do desenvolvimento da história humana”, o que levaria o socialismo a ser concebido como fruto de uma revelação divina ou de uma razão imutável. Essa crença pré-crítica caracteriza o racionalismo dogmático: a teoria platônica das “ideias” (da qual o marxismo dogmático constitui uma variante naturalista) ou o spinozismo (do qual o marxismo dogmático constitui uma variante dinâmica, ao substituir arbitrariamente a “substância” de Spinoza pela “matéria em movimento”, mas conservando a ilusão pré-crítica de poder elevar-se a conceitos religiosos e definitivamente adequados à realidade).

“Para fazer do socialismo uma ciência era preciso de início colocá-lo sobre um terreno real”. E Engels explica: “A tarefa não consistia mais em fabricar um sistema social tão perfeito como fosse possível e sim em estudar o desenvolvimento histórico da economia, que tinha engedrado de modo necessário essas classes e o antagonismo delas, descobrindo na situação econômica assim criada os meios de resolver o conflito”.

Marx, continua o autor, dá a suas ideias um conteúdo verdadeiramente científico a partir de duas descobertas fundamentais: a concepção materialista da história e a revelação da relação de exploração subjacente ao capitalismo desde a extração de mais valia. Por seu turno o materialismo histórico “permite destruir a ilusão da transcendência de revelação ou da transcendência da razão segundo a qual ‘ a história deve ser sempre escrita de acordo com uma norma situada fora dela’”.

Já desde o ponto de vista da teoria do conhecimento, é possível visualizar um salto da especulação ao materialismo crítico, do mito à ciência, da arte enquanto mera reprodução do real à arte dotada de sentido que realiza-se por meio do trabalho, da transformação do homem e do mundo.

Como se percebe, este ensaio do filósofo francês aparenta ser um verdadeiro acerto de contas com o dogmatismo levado a cabo por certo marxismo que implicou especificamente nos signficativos desvios teóricos e práticos da construção do socialismo na URRS. Pelo stalinismo, a ciência marxista fica desprovida de seu potencial crítico e converte-se em dogmas dentro dos quais toda a complexidade da realidade deveria ser encaixada. Vem-nos a imagem de um historiador que “tortura” suas fontes históricas (documentos, relatos, etc.) para contemplar os pressupostos do dogmáticos.

Todavia, o livro restringe-se a abordar o problema do dogmatismo no marxismo sob o viés da filosofia, desconsiderando como a transformação do marxismo na URSS atendia a exigências políticas da conjuntura, para além de se conformar como uma doutrina que justificava a perpetuação da burocracia e o não aprofundamento da revolução. Como em 1966 Garaudy ainda era membro do Partido Comunista Francês, este aspecto silente de seu ensaio pode provavelmente ser explicado por uma expectativa ainda viva da vitória do socialismo e das democracias populares sobre o capitalismo e as democracias liberais.    

terça-feira, 6 de agosto de 2013

“Marxismo” – André Piettre


 
Resenha Livro # 67 “Marxismo” – André Piettre – Ed. Zahar – 3ª Edição



 
 
André Piettre é um acadêmico francês, professor das Faculdades de Direito e Ciências Econômicas pela Universidade de Paris dos anos de 1960. Este livro corresponde a um grande manual do marxismo, identificado, logo ao início do trabalho, como uma corrente particular de um movimento mais amplo, genericamente entendidos como “socialista” que abrange: (i) “o socialismo romântico”, nas palavras do professor, ou, conforme Marx, ao socialismo utópico  essencialmente franco—inglês, de matriz sentimental e imaginativa, propondo sociedades do futuro, dos falanstérios de Fourier às colônias comunistas de Cabet; (ii) o socialismo democrático (reformismo) que tem como estratégia utilizar a democracia parlamentar como meio de se alcançar o socialismo. Tal corrente encontra correspondentes em J. Jaurès e Léon Blum pelo Partido Socialista na França, a social-democracia alemã e o trabalhismo inglês; (iii) finalmente o marxismo, denominado por seus autores como socialismo científico, em oposição ao socialismo utópico que pretende construir à margem da totalidade social experiências práticas de construção de sociedade igualitárias, bem como a estratégia reformista que perde de seu horizonte a revolução e a tomada violenta do poder político das mãos das classes dominantes pelo proletariado.

 

“Marxismo” é um grande manual acerca dos aspectos da filosofia, da economia política e da ação política em Marx e nas experiências históricas subsequentes decorrentes desta orientação teórico-metodológica e, simultaneamente, horizonte de ação política.  Há inicialmente uma breve exposição do contexto de vida de Marx e Engels de forma a situar historicamente suas ideias e dar um panorama de qual era a situação política europeia frente ao desenvolvimento das ideias marxistas. Por meio de tal relato, chega-se a uma primeira síntese, que será analisada detalhadamente nos capítulos subsequentes, justamente dos termos mais essenciais do marxismo. São eles, mais uma vez:

 

“1º (O marxismo) como um panorama geral da história humana (sua filosofia); 2º como uma aplicação mais particular desse panorama geral ao regime capitalista (sua economia); 3º Como um previsão originada das contradições deste regime, de uma inelutável transformação social (sua revolução)”.

 

O que há de mais interessante no trabalho, nesse sentido,  é a sua o cortejar as expressões filosóficas, econômicas e políticas do marxismo frente à sua realização prática àquela conjuntura. Escrito em meados dos anos de 1960, o livro dedica cerca de metade de seu volume analisando a evolução econômica, a sociedade, a política e particularmente a relação entre estado e partido da URSS daqueles anos.

Aqui, não há espaço para neutralidade. Ao final do livro, o autor faz uma síntese que expressa seu posicionamento acerca do problema do socialismo real e das democracias populares do leste europeu. O intelectual tem autonomia para apontar falhas objetivas no regime de planificação econômica, como a falta de abastecimento de produtos, o desperdício frente à burocratização e à introdução de técnicas de matriz capitalista na produção econômica supostamente nova. Fato notório é que o próprio Lênin aprovava o taylorismo e defendeu a aplicação deste método de produção na URSS, particularmente frente ao enorme desafio da construção do comunismo (uma sociedade de abundância) em um país que realizou sua revolução socialista em meio a um desenvolvimento ainda incipiente do capitalismo, dependente de avanços tecnológicos significativos e de maior rendimento da produção tanto na cidade como no campo. Ao final Piettre busca fazer uma síntese que revela ao leitor como o autor se situa politicamente nestas discussões.

 

“Frêmito apaixonado, o marxismo aprendeu, como uma intuição profunda, as grandes esperanças de nossa época. Tentou ultrapassar a visão puramente mecanicista dos fatos econômicos. Apresentou-se como um “humanismo acabado” – revestindo assim seu materialismo original com encantos tirados de uma força “mística”.

 

Mas por isso mesmo não escapou aos erros de suas premissas. No momento mesmo, com efeito, em que proclamava o principado do homem-trabalhador, Prometeu acorrentado, sobre o mundo material, colocava a matéria no coração mesmo do homem. Não exaltava senão para limitá-lo. E foi por isso que seu humanismo truncado aderiu por fim ao desumanismo que denunciava. Sua mística ribombou, por assim dizer, no materialismo.

 

Era inevitável. Quando se procurava resolver o destino do homem estritamente na e pela, economia, corre-se o risco de fazer desta uma finalidade dominante. Acredita-se que produzindo muito é possível “libertar” o homem da matéria, e obriga-se o homem a produzir cada vez mais! O infinito que é recusado é transferido para as coisas. Tanto isso é exato, que, como já se disse, o absoluto não poderia ser extirpado, pode apenas ser degradado. Se recusarmos essa lógica fatal, é necessário dar uma nova fé e uma nova justiça ao mundo.

 

Que se o compreendam bem, com efeito. Em vão, denunciarão as contradições do marxismo, em vão o combaterão pelo espírito ou pelas armas: se os países livres não aplicam todas as suas forças para edificar uma sociedade mais digna de seu próprio ideal, se continuam a desenvolver uma economia de conforto, de riqueza, isto é, de “desperdício”, enquanto persistem entre eles e em torno deles misérias humanas, seus protestos não serão senão “címbalos sonoros”. (P. 236)

 

Com efeito, observa-se que o autor identifica os países “livres” como as democracias-liberais capitalistas, em contraponto à URSS e às Democracias Populares. Reconhece nas experiências do socialismo real um legítimo movimento em busca de uma sociedade mais humana, deformada, entretanto, pela imposição vertical do trabalho combinado com autoritarismo político. Entretanto, reconhece que as mazelas, as contradições do capitalismo engendram as condições para o desenvolvimento do marxismo. Por isso defende reformas no sistema capitalista, sem a qual toda e qualquer propaganda oficial anti-comunista tornar-se-ia inócua. Captar sobre qual ponto de vista disserta o autor facilita o entendimento das diversas intencionalidades da obra e sua melhor compreensão.

 

No que se refere especificamente aos interesses dos lutadores sociais do Séc. XXI, o manual do professor Piettre é relevante como: (i) um manual introdutório das ideias-força do marxismo; (ii) exposição da conjuntura pela qual passavam as experiências socialistas do séc. XX, e as particularidades de URSS, China, Iugoslávia, democracia populares; (iii) uma importante sistematização de anexos, como fragmentos de textos de Marx, Engels, Lênin e documentos oficiais da URSS acerca dos mais diversos temas, da família e da religião no comunismo, até os índices de produção industrial e na agricultura.