quarta-feira, 21 de agosto de 2013

“Karl Marx e os Marxismos” – Iring Fetscher


Resenha Livro # “Karl Marx e os Marxismos” – Iring Fetscher – Ed. Paz e Terra



Ler Marx e os marxismos

Aqueles que se desafiam a estudar e compreender o marxismo, tanto no que se refere aos seus pressupostos teórico- metodológicos, quanto suas implicações na filosofia, política e economia, devem ter de lidar com dois tipos de fontes.

As fontes primárias correspondem às leituras dos escritos originais de Karl Marx: desde suas obras da juventude, ainda bastante influenciado pelo hegelianismo de esquerda, como o Manuscritos Filosóficos de 1844 e a Ideologia Alemã, até as obras consideradas do Marx maduro, como os escritos referentes à experiência da Comuna de Paris reunidos posteriormente sob o nome de “Guerra Civil na França” (1871), até, por suposto, “O Capital”, obra dividida em 4 grandes blocos, sendo que apenas o 1º foi publicado com Marx ainda vivo.

Existem algumas dificuldades a serem enfrentadas aqui: em primeiro lugar é importante verificar as traduções, especialmente das obras mais filosóficas da juventude de Marx. Em segundo lugar é necessário contextualizar historicamente. Como se sabe, os escritos de 1844 e a Ideologia Alemã apenas foram publicados no início dos anos de 1930. Isto quer dizer que um importante expoente do marxismo como Lênin, dirigente da Revolução Russa de 1917, não teve contato com tais obras. A contextualização aqui, portanto, não envolve só buscar descobrir as circunstâncias históricas em que a obra foi produzida mas também como as obras e as ideias de Marx impactaram o movimento real da história. É necessário pois confrontar as teses originárias do marxismo com a sua interpretação ou mesmo aplicação desde a primeira revolução socialista até as demais experiências revolucionárias ao longo do séc. XX.

Outra forma de estudar o marxismo dá-se por meio da leitura de fontes secundárias. Consoante a segunda parte do título da obra de Fetscher, os “marxismos” interpretaram de formas distintas e, no que se refere à cisão entre o reformismo da II Internacional e perspectiva revolucionária da III Internacional, as divergências transformam-se em verdadeiro antagonismo. Ademais, existem obras acerca de Marx e do Marxismo escrita por não-marxistas.

 Desde as teses críticas da filosofia de Feuerbach feita por Marx, subentende-se que a filosofia marxista não se limita a tentar interpretar o mundo, mas transformá-lo. O compromisso com a transformação da realidade é um critério para distinguir as análises marxistas e não-marxistas de Marx. Para o militante marxista, ao contrário do que pode parecer num primeiro momento, as análises não-marxistas também nos interessam.

Análises não-marxistas de Marx e dos Marxismos

Como vimos, um elemento que diferencia a interpretação marxista de qualquer outra forma de avaliar o mundo envolve junto aos primeiros algum grau de comprometimento e coerência com a transformação do mundo. Entrementes, no âmbito das análises não-marxistas, poderíamos fazer uma sub-divisão. Existe certamente uma literatura (marcante no período da guerra fria) que faz uma crítica burguesa do marxismo com graus de maior ou menor militância a favor do capitalismo e do “Ocidente”.

Este não é o caso de Iring Fetscher. O seu estudo é importante por em primeiro lugar abranger um repertório admirável de teses e ideias tanto das fontes primárias (especialmente Marx, Engels e Lênin) quanto das fontes secundárias – o autor dá uma particular ênfase por lado a autores como György Lukács  e Karl Korsch que estão especificamente analisando o que há de continuidade dentre o pensamento de Hegel e Jovem Marx e por outro aos autores soviéticos que, especialmente entre 1930-1954, diante do culto da personalidade de Stálin e da burocratização do regime, descambam para um marxismo de tipo dogmático que sequer pode ser considerado como teoria. O dogmatismo envolvia especialmente a adequação mecânica e vulgar das referências de Marx à realidade social e aos planos econômicos e de produtividade realizados durante o stalinismo. A “teoria” é antes uma justificação tortuosa de uma realidade partindo-se do duvidoso pressuposto de que a eliminação jurídica da propriedade privada na URSS teria solucionado todas  as contradições decorrentes da luta de classes, além da alienação do trabalho, havendo, finalmente, uma espontânea convergência entre as vontades da direção partidária, as vontades dos órgãos de governo e por fim as vontades dos trabalhadores no poder sob o regime socialista.

O ensaio de Iring Fetscher é bastante instrutivo no sentido da obra oferecer um vasto panorama das ideias de Marx e as sua confrontação prática com o desenvolvimento histórico da URSS. Este é o fio condutor da obra. A título de exemplo, poderíamos citar o interessantíssimo capítulo destinado à religião. Nesta passagem, o autor resgata a concepção originária da religião em Marx. Para o filósofo alemão, a religião é o reflexo de um mundo marcado pela alienação do trabalho e pelo fetiche da mercadoria: são as condições materiais do modo de produção capitalista que engendram uma visão deturpada do mundo, sendo mesmo justificável diante da miséria moral e material do capitalismo. Acima de tudo, Marx vê o problema da religião e alienação como questões objetivas decorrente da sociedade de mercadorias e, nesta perspectiva, entende que a religião, como o estado, deixariam de existir na medida em que a vida humana fosse resignificada através do fim da propriedade privada dos meios de produção e da conformação da sociedade não mais cingida em classes sociais (comunismo). Lênin, tendo de confrontar as premissas teóricas do marxismo com os problemas práticos da revolução, adota uma postura distinta com relação à religião. Se em Marx sobressai-se a fórmula “A religião é o ópio do Povo”, em Lênin a frase é transformada em “A religião é o ópio para o Povo”. O que isto significa? Significa que em Lênin há não uma simples constatação da inevitabilidade da alienação religiosa pelo capitalismo, mas uma exigência política de combater as ideias religiosas.

Mesmo até hoje a Rússia é um país extremamente religioso, repleto de igrejas ortodoxas e monastérios que datam desde antes do séx. X d.C. Como se sabe também, a igreja não apoiou mas foi hostil à revolução de outubro e ao comunismo “ateu” e tiveram parte de suas posses e propriedades expropriadas pela revolução. (Diga-se de passagem que uma verdadeira expropriação das propriedades religiosas na Rússia já havia sido encaminhada pela czarina Katarina II no séc. XVIII).

Para Lênin trata-se portanto de combater politicamente as ideias da igreja e disputar consciências. Para Marx, o foco está nas origens do desengano religioso e a “luta contra a religião” é antes uma luta contra o modo de produção capitalista.

Uma injusta crítica a Lênin

Muitas são as passagens em que o ensaio do filósofo alemão pode ser objeto de críticas. Citamos para ilustrar sua análise sobre o advento no nazi-fascismo: Fetscher minimiza bastante o auxilio material dado pelas burguesias industriais ao nazismo e ao fascismo como forma de combater o medo maior do comunismo. Outro tema que nos parece estar em contradição com os fatos é uma crítica injusta de Fetscher à Lênin. Assim expõe o pensador alemão:

“ (Para Lênin) era a “necessidade” de “substituir” o proletariado industrial por um “partido de novo tipo” com tarefa de recrutar “massas” de pequeno burgueses, camponeses e intelectuais para a revolução: este partido substitui a classe revolucionária (pelo menos na sua função e, a seguir, também na sua auto-compreensão). Enquanto Marx achava decisiva a formação de um partido revolucionário próprio de classe, mas enquanto é a classe que, com a ajuda do partido, se constitui como sujeito histórico auto-consciênte, para Lênin é o partido que constitui, com elementos heterogêneos, um substitutivo para a inexistência da classe revolucionária”.

Devemos reconhecer que sim, na revolução russa, o proletariado industrial russo constituía-se em minoria da nação – aliás o fato deste proletariado jovem, concentrado em pequenos centros urbanos e diante de uma burguesia frágil politicamente foi elemento decisivo para a vitória da revolução. Também devemos reconhecer que Marx não poderia teorizar profundamente acerca do partido dos trabalhadores, ao menos até a Comuna de Paris no fim de sua vida. Finalmente, é certo que no “Que Fazer” (1902), Lênin diz textualmente que o partido revolucionário é imprescindível pois as lutas sindicais elevam a consciência do proletariado até o seu momento sindical, sendo necessário um partido político para introjetar no proletariado uma consciência política para destruir o czarismo.

Agora, o erro grave de Fetscher é sua confusão entre leninismo e blanquismo. Não há em Lênin, como procura fazer crer o filósofo alemão, a intenção do partido “substituir” a ação da classe trabalhadora, mas sim de organizá-la e liderá-la. O historiador britânico Perry Anderson em seu “Considerações sobre o marxismo ocidental” inicia seu ensaio com uma citação ilustrativa de como Lênin não é substitucionista. Diz Lênin, “a correta teoria revolucionária só assume forma final em contato estreito com a atividade prática de um movimento verdadeiramente de massas e verdadeiramente revolucionário”. 

Em diversos outros escritos, Lênin pontuou a exigência da vanguarda partidária estar em conexão com as massas. Talvez o que Fetscher busca defender é que as origens do autoritarismo da era stalinista já estão vivas em Lênin. Esta crítica é comum não só nos meios liberais mas dentro do ultra-esquerdismo anarquista. (Noam Chomsky é um expoente desta perspectiva). Estamos em desacordo com as falsificações do leninismo e reivindicamos o aprofundamento dos estudos do grande dirigente da Revolução Russa no século XXI desde que o desafio da organização da classe e da construção do partido revolucionária – necessidade premente numa conjuntura de lutas espontâneas pelo mundo sem uma direção internacional – permanece vivo até hoje.  

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