terça-feira, 13 de agosto de 2013

“Marxismo do Século XX” – Roger Garandy

Resenha Livro #68 “Marxismo do Século XX” – Roger Garandy – Ed. Paz e Terra



Roger Garandy foi um filósofo francês marxistas que viveu entre 1913 e 2012. Escreveu este ensaio em 1966: como militante do Partido Comunista Francês, certamente redigiu a obra impactado pelas denúncias das arbitrariedades stalinistas durante o XX Congresso do Partido Comunista da URSS. Como se sabe, o então secretário do Partido, Nikita Khrushchov, relatou a  violência, expurgos, assassinatos e as limitações à liberdade impostas pelo regime de seu antecessor, Joseph Stálin.

Levando tal conjuntura particular em consideração, é possível cortejar “Marxismo do Século XX” e os desafios colocados pelos comunistas àquele tempo histórico. Trata-se essencialmente de um livro sobre a dimensão filosófica do marxismo, tendo como fio condutor o rompimento ora com os desvios dogmáticos do marxismo, particularmente decorrentes de um materialismo mecanicistas associado ao pensamento francês do séc. XVIII e por outro lado o rompimento com uma perspectiva mais idealista e romântica do marxismo, desde uma interpretação que põe em relevo as influências da filosofia clássica alemã (Kant, Fichte e, em menor medida, Hegel), para além de outros “sistemas de pensamento” que dialogam com o marxismo, como as ideias do cristianismo, o estruturalismo francês (corrente de pensamento bastante expressiva nos meios acadêmicos do ocidente em meados do séc. XX), para além do existencialismo Sartreano e o marxismo anti-humanista de Althusser.

O ensaio é dividido em capítulos que irão abordar respectivamente as relações entre o marxismo e a ciência (e, num nível mais amplo, o marxismo e a teoria do conhecimento), o marxismo e a religião e o marxismo e a estética/arte.

A teoria do conhecimento em Marx: marxismo e ciência

Separamos uma passagem longa, porém bastante elucidativa das teses referentes à apropriação do conhecimento filosófico desde o ponto de vista do marxismo.

“Longe de estabelecer entre a ideologia e a ciência uma oposição radical, metafísica (Engels deixa isso aos trapeiros de ideias e aos filisteus que comprazem em ostentar sua “superioridade de espírito em face de semelhantes loucuras”), Engels adota em face dela uma atitude verdadeiramente científica: busca nos precursores, sobretudo, as verdades que eles descobriram, desembaraçando-as da ilusão propriamente ideológica, segundo a qual “o socialismo seria a expressão da verdade, da razão e da justiça absolutas (...) independente do tempo, do espaço e do desenvolvimento da história humana”, o que levaria o socialismo a ser concebido como fruto de uma revelação divina ou de uma razão imutável. Essa crença pré-crítica caracteriza o racionalismo dogmático: a teoria platônica das “ideias” (da qual o marxismo dogmático constitui uma variante naturalista) ou o spinozismo (do qual o marxismo dogmático constitui uma variante dinâmica, ao substituir arbitrariamente a “substância” de Spinoza pela “matéria em movimento”, mas conservando a ilusão pré-crítica de poder elevar-se a conceitos religiosos e definitivamente adequados à realidade).

“Para fazer do socialismo uma ciência era preciso de início colocá-lo sobre um terreno real”. E Engels explica: “A tarefa não consistia mais em fabricar um sistema social tão perfeito como fosse possível e sim em estudar o desenvolvimento histórico da economia, que tinha engedrado de modo necessário essas classes e o antagonismo delas, descobrindo na situação econômica assim criada os meios de resolver o conflito”.

Marx, continua o autor, dá a suas ideias um conteúdo verdadeiramente científico a partir de duas descobertas fundamentais: a concepção materialista da história e a revelação da relação de exploração subjacente ao capitalismo desde a extração de mais valia. Por seu turno o materialismo histórico “permite destruir a ilusão da transcendência de revelação ou da transcendência da razão segundo a qual ‘ a história deve ser sempre escrita de acordo com uma norma situada fora dela’”.

Já desde o ponto de vista da teoria do conhecimento, é possível visualizar um salto da especulação ao materialismo crítico, do mito à ciência, da arte enquanto mera reprodução do real à arte dotada de sentido que realiza-se por meio do trabalho, da transformação do homem e do mundo.

Como se percebe, este ensaio do filósofo francês aparenta ser um verdadeiro acerto de contas com o dogmatismo levado a cabo por certo marxismo que implicou especificamente nos signficativos desvios teóricos e práticos da construção do socialismo na URRS. Pelo stalinismo, a ciência marxista fica desprovida de seu potencial crítico e converte-se em dogmas dentro dos quais toda a complexidade da realidade deveria ser encaixada. Vem-nos a imagem de um historiador que “tortura” suas fontes históricas (documentos, relatos, etc.) para contemplar os pressupostos do dogmáticos.

Todavia, o livro restringe-se a abordar o problema do dogmatismo no marxismo sob o viés da filosofia, desconsiderando como a transformação do marxismo na URSS atendia a exigências políticas da conjuntura, para além de se conformar como uma doutrina que justificava a perpetuação da burocracia e o não aprofundamento da revolução. Como em 1966 Garaudy ainda era membro do Partido Comunista Francês, este aspecto silente de seu ensaio pode provavelmente ser explicado por uma expectativa ainda viva da vitória do socialismo e das democracias populares sobre o capitalismo e as democracias liberais.    

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