Roger
Garandy foi um filósofo francês marxistas que viveu entre 1913 e 2012. Escreveu
este ensaio em 1966: como militante do Partido Comunista Francês, certamente
redigiu a obra impactado pelas denúncias das arbitrariedades stalinistas durante
o XX Congresso do Partido Comunista da URSS. Como se sabe, o então secretário do Partido, Nikita Khrushchov, relatou a violência, expurgos, assassinatos e as
limitações à liberdade impostas pelo regime de seu antecessor, Joseph Stálin.
Levando tal conjuntura particular em consideração, é
possível cortejar “Marxismo do Século XX” e os desafios colocados pelos
comunistas àquele tempo histórico. Trata-se essencialmente de um livro sobre a
dimensão filosófica do marxismo, tendo como fio condutor o rompimento ora com
os desvios dogmáticos do marxismo, particularmente decorrentes de um
materialismo mecanicistas associado ao pensamento francês do séc. XVIII e por
outro lado o rompimento com uma perspectiva mais idealista e romântica do
marxismo, desde uma interpretação que põe em relevo as influências da filosofia
clássica alemã (Kant, Fichte e, em menor medida, Hegel), para além de outros “sistemas
de pensamento” que dialogam com o marxismo, como as ideias do cristianismo, o
estruturalismo francês (corrente de pensamento bastante expressiva nos meios acadêmicos
do ocidente em meados do séc. XX), para além do existencialismo Sartreano e o
marxismo anti-humanista de Althusser.
O ensaio é dividido em capítulos que irão abordar
respectivamente as relações entre o marxismo e a ciência (e, num nível mais amplo,
o marxismo e a teoria do conhecimento), o marxismo e a religião e o marxismo e
a estética/arte.
A teoria do
conhecimento em Marx: marxismo e ciência
Separamos uma passagem longa, porém bastante elucidativa
das teses referentes à apropriação do conhecimento filosófico desde o ponto de
vista do marxismo.
“Longe de
estabelecer entre a ideologia e a ciência uma oposição radical, metafísica
(Engels deixa isso aos trapeiros de ideias e aos filisteus que comprazem em
ostentar sua “superioridade de espírito em face de semelhantes loucuras”),
Engels adota em face dela uma atitude verdadeiramente científica: busca nos
precursores, sobretudo, as verdades que eles descobriram, desembaraçando-as da
ilusão propriamente ideológica, segundo a qual “o socialismo seria a expressão
da verdade, da razão e da justiça absolutas (...) independente do tempo, do
espaço e do desenvolvimento da história humana”, o que levaria o socialismo a
ser concebido como fruto de uma revelação divina ou de uma razão imutável. Essa
crença pré-crítica caracteriza o racionalismo dogmático: a teoria platônica das
“ideias” (da qual o marxismo dogmático constitui uma variante naturalista) ou o
spinozismo (do qual o marxismo dogmático constitui uma variante dinâmica, ao
substituir arbitrariamente a “substância” de Spinoza pela “matéria em movimento”,
mas conservando a ilusão pré-crítica de poder elevar-se a conceitos religiosos
e definitivamente adequados à realidade).
“Para fazer do
socialismo uma ciência era preciso de início colocá-lo sobre um terreno real”.
E Engels explica: “A tarefa não consistia mais em fabricar um sistema social
tão perfeito como fosse possível e sim em estudar o desenvolvimento histórico
da economia, que tinha engedrado de modo necessário essas classes e o
antagonismo delas, descobrindo na situação econômica assim criada os meios de
resolver o conflito”.
Marx, continua o autor, dá a suas ideias um conteúdo
verdadeiramente científico a partir de duas descobertas fundamentais: a
concepção materialista da história e a revelação da relação de exploração
subjacente ao capitalismo desde a extração de mais valia. Por seu turno o
materialismo histórico “permite destruir
a ilusão da transcendência de revelação ou da transcendência da razão segundo a
qual ‘ a história deve ser sempre escrita de acordo com uma norma situada fora
dela’”.
Já desde o ponto de vista da teoria do conhecimento, é
possível visualizar um salto da especulação ao materialismo crítico, do mito à
ciência, da arte enquanto mera reprodução do real à arte dotada de sentido que
realiza-se por meio do trabalho, da transformação do homem e do mundo.
Como se percebe, este ensaio do filósofo francês aparenta
ser um verdadeiro acerto de contas com o dogmatismo levado a cabo por certo
marxismo que implicou especificamente nos signficativos desvios teóricos e
práticos da construção do socialismo na URRS. Pelo stalinismo, a ciência
marxista fica desprovida de seu potencial crítico e converte-se em dogmas
dentro dos quais toda a complexidade da realidade deveria ser encaixada.
Vem-nos a imagem de um historiador que “tortura” suas fontes históricas
(documentos, relatos, etc.) para contemplar os pressupostos do dogmáticos.
Todavia, o livro restringe-se a abordar o problema do
dogmatismo no marxismo sob o viés da filosofia, desconsiderando como a
transformação do marxismo na URSS atendia a exigências políticas da conjuntura,
para além de se conformar como uma doutrina que justificava a perpetuação da
burocracia e o não aprofundamento da revolução. Como em 1966 Garaudy ainda era
membro do Partido Comunista Francês, este aspecto silente de seu ensaio pode
provavelmente ser explicado por uma expectativa ainda viva da vitória do
socialismo e das democracias populares sobre o capitalismo e as democracias
liberais.
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