Resenha Livro #70 – “O Marxismo No Mundo
Moderno”- (Vários Autores) – Zahar Editores
Ler e estudar rigorosamente as
ideias de Marx e dos distintos marxismos envolverá necessariamente o contato
com dois gêneros de obras.
O
primeiro gênero corresponderia às “fontes primárias”, provavelmente a leitura
mais difícil e que envolverá uma série de esforços extras do estudioso. As
fontes primárias do historiador ou cientista social correspondem aos textos
originais. As dificuldades aqui vão desde o problema da tradução – que,
particularmente no âmbito do marxismo, quase nunca são desinteressadas
politicamente, até o problema de edições incompletas. É necessário também
contextualizar as fontes primárias sob duas perspectivas. Primeiro
destacando-se o cenário histórico e conjuntural dentro do qual o texto foi
escrito. Em segundo lugar, destacando o lugar ocupado pela obra dentro da
evolução intelectual do autor. No caso de Marx, por exemplo, em uma leitura
cuidadosa do Manifesto Comunista (1848), trata-se de relacionar a obra com a
militância de Marx e Engels no quadro dos movimentos revolucionários que
marcaram a Europa daquele período, para além da construção da I Internacional.
De outra monta, um estudo analisado da “Guerra Civil em França” (1871) e os
distintos volumes do “Capital” deveria destacar não só o cenário político que
contextualiza as publicações, mas o fato de Marx, aqui, já estar em sua fase de
maturidade intelectual, menos influenciado pela filosofia clássica alemã e mais
influenciado pela economia política inglesa.
O
segundo gênero de leituras marxistas pode ser desde já sub dividido em pelo
menos 3 espécies distintas[i].
Trata-se aqui das fontes “secundárias”,
obras escritas ou por marxistas ou por não marxistas, acerca das ideias de Karl
Marx e dos marxismos. Um bom critério para a diferenciação entre uma
interpretação marxista e não marxista está estabelecida nas teses de Feuerbach
(1845). Ser marxista em primeiro lugar significa, consoante expressão da
sociologia alemã, uma “visão social de mundo”. (Weltanschauung). Trata-se nesta perspectiva de reivindicar determinados
pressupostos teórico-metodológicos que parte das inovações filosóficas e
críticas de Marx e seus seguidores. Ademais, as obras escritas por marxistas
são necessariamente textos produzidos por indivíduos que não só adotam a visão
social de mundo marxista mas procuram intervir, particularmente no âmbito da
batalha das ideias, em favor do trabalho em contraponto ao capital. Nesta
perspectiva, poderíamos dizer que Lênin foi um grande marxista deste genero que
destacamos, tanto no que se refere aos pressupostos teóricos de suas análises
quanto ao fato de ser um militante socialista – consoante a última tese
feuerbachiana, o marxista não só interpreta, mas transforma o mundo.
Uma segunda espécie de leitura
marxista pode ser chamada de
interpretação não marxista crítica. Dentre as resenhas apresentadas neste blog,
um exemplo desta espécie é o manual de marxismo do professor francês André
Piettre. Interessa-nos as críticas ao marxismo vindas desde fora do marxismo,
especialmente quando formuladas desde bases críticas e com honestidade
intelectual.
Uma terceira e última espécie de
leitura marxista está enquadrada no “Marxismo no Mundo Moderno”. Trata-se de
uma coletânea de oito ensaios sobre marxismo escritos por professores
universitários de França e Inglaterra em meados dos anos 1960 – concomitante à
guerra fria, este tipo de literatura poderia ser caracterizada como leituras “anti-marxistas”.
Há nos ensaios, em maior ou menor intensidade, um objetivo comum de
caracterizar todas as experiências socialistas do séc. XX como regimes “totalitários”,
em clara oposição ao ocidente capitalista “livre”. Não à toa, os ensaios a todo
momento reiteram a luta pela hegemonia soviética dentre o campo socialista (até
a ruptura com a China) e cita diversos exemplos de como a URRS ocupava um papel
de dominação dentro do campo socialista, ainda que em grau menor após a
desestalinização (1956), sem fazer menção aos diversos golpes militares
encampados pelo imperialismo norte-americano na América Latina, além das
intervenções bélicas na Ásia a favor do “Ocidente”. Trata-se, aqui, portanto,
de uma leitura que envolve o contato com fontes hostis às ideias de Marx
(batizadas a todo momento como “profissão de fé”, “dogma”, “religião” etc.), bem
como a tentativa de deslegitimar os marxismos subsequentes por meio de um tipo
de falsificação em que as fontes intelectuais de direita são particularmente
especializadas: a busca das origens dos desvios, do “totalitarismo” ou do “autoritarismo”
socialista a partir de seus principais líderes e seus traços individuais. Não é
à toa que o próprio livro e sua divisão em capítulos dá-se em função de
indivíduos que se projetaram como líderes das diversas experiências
revolucionárias com conotação socialista do séc. XX. Assim, há capítulos específicos
do “leninismo”, do “stalinismo”, do “kruschevismo”, do “titoísmo” (Marechal
Tito da Iuguslávia) e “castrismo”. Lênin é pintado como um homem semi-louco,
extremamente sectários, com uma autoconfiança inabalável. Stálin como um
político profissional sem escrúpulos e princípios. E Kruschev é sintomaticamente
pintado com cores menos ofensivas, correspondendo ao seu papel histórico de
mudança no regime soviético num sentido de menor hostilidade com relação ao “ocidente”.
Acreditamos que existe interesse
por parte dos marxistas de hoje voltarem-se também para a literatura
anti-marxista, especialmente neste caso, já que temos boas razões para
acreditar que a produção deste livro mobilizou importantes intelectuais
anti-marxistas. Os autores foram
professores de Havard (Merle Fainsod e Adam Ulam), Stanford (Theodore Draper) e
Universidade de Paris (Raymond Aron). Ou seja, ainda que as análises
anti-marxistas sirvam-se de algumas fontes duvidosas e de alguns expedientes discutíveis
do ponto de vista teórico-metodológico (como a incessante busca das origens dos
sistemas autoritários na psicologia individual dos líderes revolucionários, sem
se ater ao fato da interpretação das subjetividades ser também por si
incrivelmente subjetiva), ainda assim, a sua leitura ajuda em primeiro lugar a
nos situar em que bases estavam a batalha das ideias durante os anos 60 do
século passado no mundo. Outrossim, os marxistas estão comprometidos, mais do
que qualquer corrente filosófica, com a verdade histórica e neste sentido, algumas das críticas
ocidentais mostraram-se relativamente acertadas. O problema da restauração
capitalista (ainda parcial e incipiente) já está contido nas análises sobre N.
Kruschev e o capítulo final destinado “às Perspectivas do Comunismo Pluralista”.
O problema da política externa desde o âmbito do campo socialista, com as
tensões e posterior ruptura sino-soviética também são analisadas no livro,
sendo certo que a divisão do movimento comunista mundial ainda nos deve ser
fonte de ensinamentos históricos.
Portanto, preparar-se para lutar
intelectualmente a favor dos trabalhadores e do povo, em prol do comunismo no
séc. XXI, envolve uma atitude não sectária com os livros e obras anti-marxistas.
Como procuramos mostrar neste artigo, a leitura de marx e os marxismos implica
em distintos gêneros e espécies de textos. Devemos cortejá-los todos nos dias
de hoje com o olhar atento da crítica radical (oferecida pela teoria marxista) e
sempre buscando a coerência junto aos nossos compromissos históricos:
independência de classe, suporte à luta dos trabalhadores pela revolução
anticapitalista e socialista.
[i] Por
suposto nossa proposta de ilustração das distintas possibilidades de leitura de
Marx e marxismos parte de critérios nossos, inteiramente submetidos às críticas
dos nossos eventuais leitores.
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