sexta-feira, 16 de novembro de 2018

“O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” – Karl Marx


“O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” – Karl Marx



Resenha Livro – “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” – Karl Marx – Editora Boitempo

Durante algum tempo foi comum certa leitura das obras de Marx sem relacionar os seus trabalhos com a evolução do seu próprio pensamento, inicialmente voltado a temas do direito e da filosofia e ao término de sua vida com o estudo mais detido da história e da economia política. Há parcela de estudiosos de Marx, tendo como referência as ideias de Althusser, que entende haver um corte epistemológico entre um jovem Marx e um Marx maduro tendo como divisor o “Ideologia Alemã” de 1846, publicado somente em 1932 na URSS.

Este  “18 de Brumário” foi escrito entre 1851-2, logo após os eventos em França narrados no trabalho. O livro aborda a 2ª República Francesa de 1841-51, um movimento que se iniciou com a deposição do Rei Luís Felipe, a edificação de uma Assembleia Constituinte para, numa dinâmica descendente, fazer com que a revolução tolha paulatinamente socialistas e trabalhadores, pequeno burgueses democratas, republicanos, para a posterior constituição de hegemonia do Partido da Ordem (formado por monarquistas) e o posterior golpe de estado do sobrinho de Napoleão Bonaparte. A história escrita por Marx já revela de forma nítida a aplicação do materialismo histórico e dialético sobre os eventos em França, destacando o movimento de lutas das classes e suas expressões políticas e partidárias.  

“Sob os Bourbons haviam governado a grande propriedade fundiária com os seus padrecos e lacaios, sob os Orleans as altas finanças, a grande indústria, o grande comércio, isto é, o capital com o seu séquito de advogados, professores e grandíloquos. O reinado legitimo foi apenas a expressão política do domínio tradicional dos senhores de terra, assim como a Monarquia de Julho havia sido apenas a expressão política do domínio  usurpado dos “parveneus” (novos ricos) burgueses. Portanto, o que mantinha essas frações separadas não foram os seus assim chamados princípios, mas as suas condições materiais de existência, dois tipos diferentes de propriedade, foi a antiga contraposição de cidade e campo, a rivalidade entre capital e propriedade fundiária”


Por sinal, algo que marca aquele período é uma dinâmica de opostos: o bonapartismo é a forma política do caos e da base social do lumpesinato e sua missão histórica aparente é garantir a ordem; o roubou é a forma de salvar a propriedade burguesa; o sufrágio universal elege um ditador (Bonaparte). Monarquistas dirigem a república e a eleição de Bonaparte pelo sufrágio universal coloca de joelhos a Assembleia Nacional. Nessa dinâmica são representadas as lutas das classes cuja expressão partidária revela frequentemente aspectos distorcidos da real arena de luta. Por exemplo. A crise interna do Partido da Ordem formado por monarquistas defensores das dinastias Bourbon (legitimistas) e Orleans, na revolução, expressam os interesses conflituosos da burguesia da cidade contra a do campo.

O livro em análise igualmente seria frequentemente recorrente no vocabulário dos marxistas quanto à apropriação de conceitos como cretinismo parlamentar e especialmente “bonapartismo”. Alguns inclusive analisam a dinâmica histórica do Brasil com a vitória eleitoral da extrema direita como a possibilidade da dinâmica de uma etapa política bonapartista. Parece-nos que tal conclusão não se sustenta comparando uma aspecto decisivo da constituição histórica francesa: crise da dominação burguesa aberta por um movimento que se inicia revolucionário mas que logo é dirigido pela contra-revolução. A base social do bonapartismo é o lumpesinato, os setores mais atrasados dos camponeses ainda influenciados pelo pensamento medieval, além das forças armadas e das classes burocráticas que possuem um interesse existencial na preservação do regime. Por outro lado, o texto de Marx sugere que a figura simplória e patética de Bonaparte é não só funcional mas necessária para garantir a dominação geral da burguesia e da propriedade. Em outras palavras a luta de classes na França criou as condições próprias para que um personagem medíocre e grotesco seja chamado a desempenhar papel de decisão. Tal fato culmina-se em 01.11.1851 com o golpe contra-revolucionário lupem de Bonaparte através de movimento regado à propina de álcool e salsichas:

“Cromwell, ao dissolver o Parlamento Longo, foi sozinho até o centro deste, tirou o relógio do bolso para que ele não subsistisse nem por um minuto além do prazo por ele estipulado e enxotou cada um dos parlamentares com insultos divertidos e bem humorados. Napoleão, não possuindo a estatura do seu modelo, ao menos foi até o Corpo Legislativo no dia 18 de Brumário e leu em voz alta, ainda que embargada, a sentença de morte dele. O segundo Bonaparte, que, aliás, estava sob um Poder Executivo bem diferente do de Cromwell ou Napoleão, não buscou o seu modelo nos anais da história mundial, mas nos anais da Sociedade 10 de Dezembro, nos anais da jurisprudência criminal. Em seguida, ele roubou 25 milhões de  francos do banco da França, comprou o general Magnan com 1 milhão e os soldados, um por um, com 15 francos e cachaça, encontrou-se secretamente com os seus comparsas como um ladrão durante a noite, mandou invadir a casa dos líderes mais perigosos do Parlamento e sequestrar Cavaignac, Lamoricieree, Le Flo, Changarnier, Charras, Thiers, Baze etc. enquanto dormiam, ordenou que as tropas ocupasses os postos-chave de Paris bem como o prédio do Parlamento, e logo pela manhã mandou afixar cartazes vistosos em todos os muros, anunciando a dissolução da Assembleia Nacional e a decretação do estado de sítio no département de Seine. Pouco depois, inseriu um documento falso no Moniteur segundo o qual nomes influentes do Parlamento teriam se agrupado em torno dele numa consulta oficial”.

Se a história se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa, poderíamos dizer aqui das dinâmicas das duas revoluções francesas – a de 1789 e a de 1848 – como ocasiões em que a classe burguesa na revolução teve direção contraditória. Na primeira a burguesia desempenha um papel histórico revolucionário para a derrubada do antigo regime criando as condições políticas e jurídicas para o desenvolvimento capitalista e se servindo de toda uma tradição filosófica iluminista que desafiou os preconceitos medievais e religiosos em diversos lugares do mundo. Já em 1848, a burguesia francesa teve em sua retaguarda os socialistas e democratas que em fevereiro daquele ano derrubaram a monarquia de Luís Felipe. Em pouco tempo a burguesia assumirá uma linha contra-revolucionário: naquele momento esta classe social não aspira a mudanças societárias  mas à ordem. O sobrinho de Napoleão é uma paródia do tio, uma caricatura que diz respeito à uma nova etapa em que a burguesia revela ao mesmo tempo sua condição de classe dominante e ao mesmo tempo de uma classe frágil, dividida e que eventualmente cede à chantagem de lideranças ocasionais em nome da ordem e da segurança da propriedade. A caricatura de Napoleão deve nos servir como alerta de que já hoje nada de bom e progressivo poderá vir do capitalismo e da proposta societária burguesa.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

“Que Fazer? Problemas Candentes do nosso movimento” – V. I. Lênin


“Que Fazer? Problemas Candentes do nosso movimento” – V. I. Lênin



Resenha Livro – Que fazer? Problemas candentes do nosso movimento” – V. I. Lênin. Ed. Expressão Popular

“Por isso, nossa atenção deve estar voltada principalmente para elevar os operários ao nível dos revolucionários e não para descermos, nós próprios, ao nível da “massa operária” como desejam os economistas, ao nível do operário médio como quer o Svoboda (que, sob este aspecto, eleva ao quadrado a “pedagogia” economista). Longe de mim negar a necessidade de uma literatura popular para os operários, e de uma outra especialmente popular (mas não uma literatura de má qualidade) para os operários atrasados. Mas o que me indigna é essa recorrente mistura da pedagogia com as questões políticas, com as questões de organização. Porque, afinal, os Senhores que se arvoram defensores do “operário médico” insultam, antes de tudo, esse operário, sempre que manifestam o desejo de inclinarem na sua direção , em vez de lhe falarem de política operária ou de organização operária.”  

Se há um denominador comum que informa toda obra de Lênin é a pertinência entre as ideias socialistas e a ciência do marxismo e sua aplicação à certa realidade concreta. As ideias de Lênin são em geral partidárias no sentido de que aqueles que reivindicam de forma coerente o leninismo inevitavelmente estará tomando partido acerca de questões concretas, como um certo modelo de organização partidária, uma certa percepção do capitalismo monopolista consubstanciado no imperialismo e uma prática política que, baseada no enfrentamento à ordem constituída, envolve o realismo político, as palavras mais duras ditas de forma franca por alguém que não se deixa iludir pelo palavrório acerca de “democracia”, “liberdade” ou “pacifismo” com as quais oportunistas e reformistas se opõe ao socialismo revolucionário.O partidarismo no bom sentido de Lênin explica também o silêncio ensurdecedor de professores universitários de Ciência Política ou Teoria Geral do estado sobre a contribuição leninista, com raríssimas exceções.

Florestan Fernandes já dissera que “Lênin converte o marxismo em processo revolucionário real”. Assim em trabalhos de alcance mais teórico como “Estado e Revolução” (1917) ou “Imperialismo Fase Superior do Capitalismo” (1917), as ideias sobre a transição socialista e o papel do estado, bem como a nova etapa histórica imperialista do capitalismo[1], estas questões serão sempre acompanhadas de uma crítica muitas vezes em forma de polêmica que busca intervir objetivamente no movimento revolucionário russo.

Por outro lado, textos mais explicitamente polêmicos de Lênin como “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” (1920) e este “Que Fazer” (1901) envolvem ideias cujo alcance vai muito além do contexto revolucionário das primeiras décadas do séc. XX. Muito do que Lênin propõe acerca dos papeis da organização certamente dirá respeito às condições específicas da Rússia sob o czarismo em que a polícia política exigia uma organização do tipo clandestina de revolucionários profissionais que se credenciassem a atuar com agitadores, propagandistas e tribunos populares. Por outro lado, o tema da consciência operária, a função do partido no sentido de elevar a consciência sindical para a  consciência política revolucionária, a importância da imprensa operária, a superação dos métodos artesanais de organização e atuação ainda são candentes: considerando que o inimigo vem ganhando posições especialmente desde o fim da URSS, bem como se identificando o recrudescimento do autoritarismo e da extrema direita na Europa e na América, é não só possível como em alguns lugares provável ou uma realidade a exigência de organizações políticas adequadas a contextos de perseguição política.

Contexto  

“Que Fazer?” foi livro escrito por Lênin entre 1901-1902. O texto diz respeito à polêmica no seio do Partido Social Democrata Russo acerca de temas como a consciência operária, a organização e as funções do partido, os limites do espontaneísmo, da luta sindical e da imprensa operária reduzida aos problemas locais. O movimento revolucionário russo de então se dividia entre diversas frações – Lênin é chefe diretor da revista Iskra, fundada em 1900, e defende as posições deste grupo.

O contexto que vai das últimas décadas do XIX (19870) e início do XX (1905-7) é rico de mobilizações nas fábricas mas também de um despreparo da social democracia no sentido de fazer evoluir movimentos espontâneos para a mobilização contra o inimigo direto da luta política operária: o governo russo tzarista. O chamado ensaio geral da Revolução Russa correspondente ao período revolucionário que se abre de 1905-07 na verdade foi precedido de outras mobilizações sindicais importantes. Em 1896 houve uma massiva greve em Petersburgo. A primeira organização marxista da Rússia “Emancipação do Trabalho” foi fundada antes, em 1883, com a participação de Plakhanov. O partido operário social democrata russo  foi fundado em 1889. Em 1901, uma nova onda revolucionária perpassa pela Rússia. Ou seja, movimentos espontâneos e organizações diferentes, como os marxistas legais, os sindicalistas- economistas, os populistas adeptos de táticas terroristas e os socialistas revolucionários naquele momento se encontravam abrigados no partido social democrata que posteriormente irá se dividir entre bolcheviques e mencheviques.

Teoria

Para Lênin a organização política tem como função essencial de mediação entre a teoria e a prática revolucionárias. Antes de Lênin, Engels já discutia acerca de três frentes de luta: a econômica, a política e a teórica. Enquanto setores vinculados ao jornal Robotcheie Dielo defendem um modelo de partido que reduza seu alcance e horizonte à luta meramente sindical, Lênin coloca que o trade unismo não só limita os horizontes da luta como pode efetivamente servir de obstáculo no movimento pelo socialismo. O que Lênin coloca como verdade que a primeiro momento pode chocar é que se o movimento russo for o melhor do melhor dos sindicalismos, tanto pior para o povo pois deste modo o czarismo jamais cairá – como demonstra a experiência trade-unionista e diversos exemplos na história, o governo faz concessões para ganhar credibilidade e destruir a ameaça real da elevação da consciência trade-unista no sentido do socialismo pelos trabalhadores e o povo[2].  Neste aspecto, a luta social democrática revolucionária é a única que pode levar de forma consequente e até o fim a luta sindical. O partido deve garantir a unidade ideológica entre os diversos movimentos dos trabalhadores, o que é imprescindível para uma luta geral pelo poder.

Outra questão que merece destaque e tem reiterações na história é a habilidade com que setores oportunistas se apoiam no atraso da consciência dos trabalhadores. Servem-se de críticas aos ideólogos do partido de vanguarda no sentido de que os mesmos seriam substitucionistas, avessos à “liberdade de crítica”, não democráticos, etc. Lênin demonstra como se tratam de críticas demagógicas que no fundo subestimam a capacidade dos próprios operários.

Na situação russa, e não há por que pensar que a atual “democracia” norte americana seja menos autoritária, era extremamente necessária a conformação de um grupo de revolucionários que atuasse na clandestinidade. Seu papel é o de elevar o nível de consciência, de iniciativa e de energia dos trabalhadores e cada quadro deve ser recrutado entre o que há de melhor nas fábricas, escolas e universidades, no campo e nas municipalidades. Enquanto a luta sindical se situa no âmbito de uma ou algumas fábricas, a intervenção dos revolucionários deve-se dar no seio de toda a sociedade russa denunciando e politizando as formas de descontentamento no trabalho, mas também nas cidades, nos estabelecimentos de ensino, nas greves e nas manifestações públicas. Os revolucionários profissionais devem garantir que os ataques da polícia política não impeçam uma solução de continuidade dos trabalhos que frequentemente são abandonados ou começados do zero com outra orientação política.

Em junho de 2013 um movimento acéfalo, inicialmente reformista, que lutava contra o aumento das passagens de ônibus sofreu dura repressão da polícia militar paulista implicando numa onda de mobilizações por todo o país, bem como numa série de greves de trabalhadores no segundo semestre daquele ano. Todavia, houve um momento em que se inverteu o impulso de junho de 2013: dos estudantes e black blocks aos provocadores ultra-direitistas insuflando manifestantes contra o PT, contra os partidos de esquerda e finalmente contra a esquerda em geral. Estamos neste momento colhendo os frutos amargos da derrota de junho de 2013 o que envolveu ilusões de movimentos “apartidários” como o MPL acerca de “democracia” e "assembleísmo”, enquanto os inimigos do povo buscaram se construir e destruir o movimento por dentro. Mais de 100 anos após a publicação de “Que Fazer” os apologistas dos “movimentos”, bem como da crítica “do modelo de partido autoritário” ainda encontram espaço de atuação o que já era denunciado por Lênin a seu tempo.A falta de um preparo estratégico das mobilizações em Junho de 2013 permitiu em primeiro lugar a infiltração de provocadores, culminando na destruição de concessionária de carros numa ação isolado, movida por elementos estranhos aos manifestantes e com intuito claro de desmoralizar a luta. Permitiu em segundo lugar a dispersão da mobilização em torno de pautas confusas e o fortalecimento de elementos direitistas médios que tomaram as ruas e garantiram a derrubada da presidenta do PT pouco depois.

Para além dos métodos artesanais e de discursos demagógicos sobre democracia, a esquerda precisa, para fazer com que os trabalhadores ocupem o espaço que a história lhes reservou, de organizações de tribunos populares, de ativistas profissionais que dediquem suas vidas à Revolução Brasileira, de uma imprensa tanto local quanto nacional, de uma literatura que longe de ser de má qualidade sirva para elevar a consciência de setores médios e atrasados da classe. Lênin de forma sintomática dizia que o pior inimigo da classe operária são os demagogos. Justamente pelo fato dos demagogos serem capazes de ludibriar uma maioria de trabalhadores sob o senso comum e minar o movimento por dentro. Já estamos verificando que o democratismo dos movimentos sociais nos vem levando a derrotas e desmoralização, isso quando não pautados também pelo discurso anti-partido.     


[1] Quando o capitalismo de livro mercado e a revolução industrial são substituídos dialeticamente pelo novo protagonismo dos bancos e dos monopólios/oligopólios. Nas palavras de Lênin a etapa imperialista do capitalismo é uma era de crises, guerras e revoluções.   
[2] A revolução de outubro e o impacto do fim da II Guerra Mundial com a destruição político militar do nazi-fascismo pelo exército vermelho; e o fato dos trabalhadores voltarem da guerra armados e se depararem com patrões que haviam sido colaboracionistas dos nazi-fascistas; estes dois elementos fizeram com que governos burgueses do pós-guerra negociassem o Estado de Bem Estar Social – concessão de direitos para evitar novas revoluções de outubro.