sexta-feira, 24 de abril de 2020

“Dez Dias Que Abalaram o Mundo” – John Reed


“Dez Dias Que Abalaram o Mundo” – John Reed




Resenha Livro - “Dez Dias Que Abalaram o Mundo: História de Uma Revolução” – John Reed – Clássicos de Ouro Ilustrados Ediouro

“Não foi estabelecendo acordos com as classes proprietárias, nem se conciliando com o antigo mecanismo governamental, que os bolcheviques conquistaram o poder. Nem tampouco pela violência organizada de um pequeno grupo. Se as massas por toda a Rússia, não estivessem prontas para a insurreição, esta teria fracassado. A única razão para o sucesso dos bolcheviques reside em sua compreensão dos vastos e simples desejos das mais profundas camadas do povo, chamando-as para o trabalho de demolir o antigo e, em seguida, em meio à poeira das ruínas desabando, erguer as estruturas do novo...”.

A Revolução Russa de 1917 divide-se em duas grandes etapas. Uma primeira revolução democrática que pôs abaixo o regime do Czar, instituindo um governo de colaboração entre a burguesia, cadetes e diferentes partidos socialistas em graus de distinta radicalidade. E a revolução de outubro, objeto deste livro reportagem do periodista norte americano John Reed: uma revolução dirigida pelo partido bolchevique de Lênin que instituiu a paz no contexto da I Guerra Mundial, deu a terra aos camponeses, armou os operários e instituiu o controle dos trabalhadores das fábricas.

Uma versão errada sobre os acontecimentos de Outubro de 1917, disseminada inclusive por esquerdistas como Noam Chomsky[1], seria a de que a segunda revolução russa teria se reduzido a um mero golpe de estado, diminuindo uma vasta revolução social, política, cultural e militar a sua dimensão parlamentar, com a insurreição bolchevique de 7 de Novembro[2] em Petrogrado.

A leitura deste relato de John Reed demonstra como esta versão não se sustenta.

Reed acompanhou presencialmente aqueles dias da revolução em que os tempos históricos aceleram-se de modo que horas e dias valem por anos e décadas. É uma revolução social em que o passado feudal da velha Rússia vê-se confrontado com a mobilização mais ou menos espontânea de massas de operários, soldados e camponeses, subitamente jogados ao mundo da política e decidindo os seus rumos coletivos em plenárias que perduram horas, até a madrugada. Estudantes burgueses debocham nas ruas de operários vermelhos com o mesmo desdém com que os antigos senhores feudais tratavam os mujiques. Uma situação em que se abre a possibilidade da construção de uma nova sociedade, revendo as relações sociais constituídas, ou implica numa derrota, com a consolidação da reação no poder.

A revolução de outubro também não pode ser considerada um mero golpe palaciano desde que houve um efetivo confronto de tipo militar, fruto da brutal radicalização da luta de classes que acompanha todo período revolucionário. A insurreição não se limitou a confrontos em Petrogrado. Houve enfrentamentos simultâneos em Moscou, Kazan e Saratov. Emissários de Petrogrado levavam as novas aos distritos nos rincões da Rússia, implicando na criação de formas de duplo poder, através de soviets de operários, camponeses e soldados. Reed chama atenção como os jornais com as notícias eram disputados nas ruas com a mesma violência do que comida em escassez.

Os junkers e os cossacos eram a expressão militar da direita, acompanhados dos oficiais. Os soldados de baixa batente, as milícias operárias e os guardas vermelhos, a expressão militar da democracia socialista. Os pequenos burgueses histéricos, gritavam pela conciliação e viam o número de seus apoiadores diminuindo paulatinamente. Em todo o caso, a revolução implica em reiterados “acertos de conta”, revelando sempre como os conflitos e a mudança social, como diz literalmente Marx, remetem às “dores de um parto”:

“Às 2 e meia, os junkers levantaram bandeira branca; eles se renderiam sob a garantia de proteção. Prometeram-lhes proteção. Enfurecidos, centenas de soldados e guardas vermelhos entraram pelas janelas, portas e buracos nas paredes. Antes que alguém pudesse impedir, cinco junkers foram mortos a golpes de baioneta. O restante, cerca de duzentos, foi levado sob custódia para a Fortaleza de Pedro e Paulo em pequenos grupos, para não chamar a atenção. No caminho, uma multidão avançou sobre um grupo, matando outros junkers... Mais de cem soldados vermelhos e soldados haviam tombado”.

O desenvolvimento da guerra civil entre as classes logo assumiu contornos de guerra econômica. Após a derrota definitiva da contra-revolução com a dissolução do Governo Provisório de Kerenski em 15 de Novembro, atividades de sabotagem e especulação colocam em risco o abastecimento de alimentos nas cidades e nos fronts. Uma situação particularmente preocupante deu-se com a greve dos funcionários do Banco Estatal da Rússia, inviabilizando o acesso do novo poder às divisas para o pagamento de funcionários. Foram necessários destacamentos militares mandados às províncias para requisitar e punir especuladores que escondiam o trigo, de modo a garantir o fornecimento do pão na cidade e dentre os soldados.

A contra-revolução se articula na Finlândia e na Ucrânia, com apoio dos alemães. A guerra civil perduraria até 1922 com a intervenção militar de nada menos do que 14 outros países, todos mobilizados para por fim à primeira experiência vitoriosa de tomada de poder político pelos trabalhadores da cidade e do campo. O livro demonstra como os partidos adversários de Lênin não acreditavam que os bolcheviques perdurassem mais do que alguns dias ou semanas no poder. Além disso, os documentos e intervenções do próprio partido bolchevique confirmam a convicção dos comunistas russos de que a Revolução Russa seria complementada pela Revolução dos trabalhadores dos países do ocidente, previsão que não se confirmou.    

A narrativa de Reed demonstra que Lênin e Trótsky eram as lideranças mais importantes no contexto da insurreição de 7 de Novembro. Lênin em primeiro lugar. Ocorre que até Abril de 1917, Lênin encontrava-se no exílio, e os bolcheviques eram uma minoria política nos soviets, com suas demais lideranças atuando clandestinamente, mesmo ao longo do governo provisório. Como explicar a virada de jogo? Como os bolcheviques rapidamente alcançaram o apoio da maioria dos trabalhadores de Petrogrado e Moscou, seguido do apoio dos camponeses? Reed não escreveu um livro de história e por isso não discorre sobre como o cansaço da guerra, o anacronismo do antigo regime feudal e as contradições específicas do desenvolvimento do capitalismo em sua fase imperialista num país como a Rússia criaram as condições para a radicalização. Mas seu relato, com belas descrições dos tipos humanos, paisagens e diferenças de conduta entre as classes sociais, chama a atenção para um ponto central: a vitória dos bolcheviques deu-se porque o programa que defendiam efetivamente falava ao coração do povo. Trata-se não de palavras de ordem de tipo meramente propagandísticas, mas dos problemas efetivos dos operários, camponeses e soldados, de modo que amplas as massas puderam incorporar aquele programa como parte de suas vidas. De modo que as massas estavam dispostos a morrer por aquelas ideias.

“Ao raiar do dia, apareceram piquetes de cossacos de Kerenski. Houve troca de tiros e ordens de rendição. Através da planície árida, o ar gelado e parado transportava o som da batalha até os ouvidos dos bandos errantes que, sentados ao redor das fogueiras, esperavam... Estava começando! Eles rumaram para o combate. Nas estradas, hordas de trabalhadores apressavam o passo... De todos os lados, surgiam como que saídos do nada, enxames humanos cheios de raiva, dispostos a lutar, e os comissários lhes atribuíam postos de combate ou outras ocupações. Essa batalha era deles, pelo mundo deles. Os oficiais em comando haviam sido eleitos por eles. Naquele momento, a incoerência das diferentes vontades unia-se em um só desejo”.


[2] Quando dos acontecimentos do livro, a Rússia adotava o calendário Gregoriano, enquanto os países do ocidente adotavam e adotam o calendário Juliano, com uma diferença de 23 dias entre eles. Assim, a “Revolução de Outubro” ocorreu, ao tempo de John Reed que acompanhava os acontecimentos in loco, no dia 7 de Novembro.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

“Casa Grande e Senzala” – Gilberto Freyre


“Casa Grande e Senzala” – Gilberto Freyre



Resenha Livro - “Casa Grande e Senzala” – Gilberto Freyre – Global Editora – 50ª Edição

Antecedentes

Quando do advento da disciplina História no Brasil, com autores como Varhagen e Capistrano de Abreu, havia uma orientação teórico-metodológica de tipo positivista. Ênfase nos grandes eventos, nos feitos políticos e militares. Uma história que se julgava imparcial, voltada ao arrolamento cronológico dos fatos. Pouca atenção aos fatores que determinam os sentidos da história. Quase nenhum relevo ao cotidiano, à cultura, às mentalidades, às ideias e mesmo aos fundamentos sócio econômicos de longa duração. Uma historiografia oficial cujas fontes também são oficiais, às atas de câmara e inventários de cartório.

Quando o livro "Casa Grande e Senzala" foi lançado no ano de 1933 ainda surtia surpresa e novidade uma historiografia amparada na história oral, descrevendo a intimidade de atores sociais que não são percebidos nas fontes oficiais: os negros da casa grande e da senzala, com suas danças, músicas e culinária; os índios, ou ainda, as índias, que possibilitaram momentaneamente resolver o problema da falta de mulher para os colonos[1], dando início à mestiçagem e à sociedade híbrida; a sexualidade; as brincadeiras de infância; o advento de palavras oriundas da mistura do português, do índio e do negro. Do índio, pipoca, pereba, sapeca. Do negro, dengo, cafuné, moleque, bunda.

Importa dizer que este livro de Gilberto Freyre quando lançado em 1933 apontava para novíssimas perspectivas da historiografia, ligadas ao movimento modernista que encontra paralelo na arte com a Vanguarda de 1922. A busca da especificidade brasileira, a necessidade de forjar as bases de uma nação, considerando que aqui o Estado Nacional Independente (1822) antecedeu em muito a constituição da Nação, qual seja, de uma nacionalidade que fosse além das particularidades regionais.

Ora, na maior parte da trajetória histórica brasileira, da Colônia à República, passando pelo Império, a população se viu mais como paulista, ou pernambucana, ou como baiana, do que como brasileira. Coube à geração de grandes historiadores dos anos 1930 buscar os traços de especificidade nacional, o que se fez através do olhar sobre o nosso passado. Ou melhor, o nosso passado colonial. Foram historiadores que aproximaram o estudo da história com as demais ciências sociais: a sociologia, a antropologia, a crítica literária, a economia política.

Foi o caso de Gilberto Freyre e seu Casa Grande e Senzala, aproximando a história dos estudos culturalistas então em voga nos EUA. Foi Sérgio Buarque de Hollanda com seu Raízes do Brasil servindo-se da sociologia webberiana. Foi Caio Prado Jr. com seu Evolução Política do Brasil estabelecendo a mais bem sucedida análise sócio econômica do país através do materialismo histórico e dialético.

Quando Gilberto Freyre lançou o seu Casa Grande e Senzala o autor tinha apenas 33 anos de idade. Desde então a obra consolidou-se como um clássico para a compreensão do passado colonial, da formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal: monocultura, mão de obra escrava, poder inconteste de senhores de engenho, superando mesmo o poder metropolitano. Regime de sociedade híbrida, estabelecendo, segundo o autor, uma relação de equilíbrio de antagonismos e acomodações entre brancos, índios e negros.

“Considerado de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, como já salientamos às primeiras páginas desde ensaio, um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e pastoril. A católica e a herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo”.

Crítica

Passados tantos anos após a publicação da obra, criou-se um certo senso comum com críticas no sentido do ensaio reivindicar uma suposta “democracia racial” no Brasil. Gilberto Freyre supostamente omitindo os momentos de maior conflito social e opressão do branco, primeiramente sobre o índio, e depois sobre o africano. Alguns, mais afoitos ou talvez influenciados pela ideologia identitarista, poderão ter G. F. como um racista, como é comum se ter hoje, de forma anacrônica, um Monteiro Lobato. Tais análises não convencem.

Quando da redação do ensaio ainda estava em voga análises que buscavam associar o atraso cultural e civilizacional do Brasil ao clima e à confluência de raças, bem como à mestiçagem. Já aqui Gilberto Freyre combate estas análises revelando, com fontes convincentes, o enorme peso da alimentação e da doença (especificamente a sífilis) na constituição do brasileiro.

“Da ação da sífilis já não se poderá dizer o mesmo; que esta foi a doença por excelência das casas grandes e das senzalas. A que o filho do senhor de engenho contraía quase brincando entre negras e mulatas ao desvirginar-se precocemente aos doze ou aos treze anos. Pouco depois desta idade já o menino era donzelão. Ridicularizado por não conhecer mulher e levado na troça por não ter marca de sífilis no corpo. A marca do sífilis, notou Martius que o brasileiro a ostentava como quem ostentasse uma ferida de guerra; e cinquenta anos depois de Martius um observador francês, Emile Béringer, negando ao clima do norte do Brasil influência preponderante na morbilidade da região, salientava a importância verdadeiramente trágica da sífilis: “A sífilis produz grandes estragos. A maior parte dos habitantes não a consideram como uma moléstia vergonhosa e não têm grande cuidado. Independentemente de sua influência sobre o desenvolvimento de numerosas afecções especiais, fornece um contingente de dez falecimentos sobre mil”.

No que se refere à higiene, há maior asseio no índio do que no branco. Os primeiros tomam até 10 banhos por dia no rio. Os segundos passam semanas e meses apenas molhando rosto e mãos, utilizando a mesma vestimenta até esfarelar a roupa no corpo. No que se refere à medicina, ela é praticamente inócua, pelo menos até meados do século XIX. No Brasil colonial, afirma um observador da época, é mais fácil e provável curar-se de enfermidade com o pajé do que com um médico vindo da Europa.

Alimentação deficiente e instável, falta de higiene, moléstias incuráveis, estes fatos do Brasil Colônia explicam mais as deformidades físicas e morais do brasileiro do que a influência do clima e das raças. Em outras passagens, como nas análises da sexualidade, demonstra-se como o sadismo, a violência e a imoralidade também não se explicam pelos critérios raciais, mas pelas origens sociais e econômicas. A escravidão e o patriarcalismo da família brasileira. Ontem, um menino que judiava de um pequeno negro da Casa Grande. Amanhã, um homem que violenta sexualmente as negras e manda torturar e matar seus africanos, não sem um certo prazer sádico.

Agora, é certo que o olhar sobre o passado colonial lançado por Gilberto Freyre parece ser oriundo da Casa Branca, talvez enaltecendo um pouco o que era belo e doce do nosso passado colonial. Os cuidados maternais da ama de leite; as festas com comilança de doces nos casamentos e batizados; os batuques alegres da senzala; um certo intimismo festivo da religião muito distinto do ascetismo católico doutrinário predominante na América Espanhola. Doces e quitutes das negras e as brincadeiras de crianças, envolvendo o filho da senzala e o nhonhô.

No intuito de demonstrar a confluência e harmonização das raças, é sintomático que o ensaio faça pouca menção ao pelourinho ou à máscara de flanderes.  

Assim como referências a um fato não menos importante: o fato dos açoites e torturas serem perpetrados de escravo preto contra escravo preto. O mesmo pode-se dizer do capitão do mato: negros e mestiços de origem africana caçado seus iguais fugitivos. O capitão do mato é ignorado no livro e tem expressão no Brasil de hoje na figura do policial militar mal remunerado que perpetra violência nas periferias das grandes cidades. Poucas menções e análises mais detidas sobre os quilombos e outras formas de resistência do escravo negro, como o envenenamento do senhor de engenho, a fuga e o suicídio. Faltou aqui a complementação da Casa Grande para a Senzala. Da Senzala para a Casa Grande.




[1] O grande problema da colonização portuguesa no Brasil foi a falta de gente.


segunda-feira, 6 de abril de 2020

Contos Essenciais de Machado de Assis


“Contos Essenciais” – Machado de Assis



Resenha Livro – Parte II - “Contos Essenciais” – Machado de Assis – Ed. Martin Claret – Seleção e Apresentação: Jean Pierre Chauvin

Machado de Assis transitou por todos os gêneros literários ainda que os seus romances e contos tenham ficado como os mais representativos de sua obra. Advindo de origem social humilde, mulato, gago e inserido no Brasil escravocrata do II Império (1840-1891), o Bruxo do Cosme Velho foi um caso raro de rompimento da rígida pirâmide social brasileira, granjeando reconhecimento ainda em vida. Foi, entre outros, patrono da Academia Brasileira de Letras.

Antes mesmo de se iniciar na vida de jornalista político da corte, Machado de Assis fora tipógrafo, uma espécie de profissão artesanal que congrega o trabalho físico e a proximidade com o trabalho intelectual. Consta que no Brasil uma das primeiras categorias a sindicalizar-se e exercer manifestações políticas foi justamente a dos tipógrafos, dadas aquelas peculiaridades da profissão.

O fato é que mesmo a genialidade do escritor esteve condicionada quanto ao seu reconhecimento ao compadrio e às proteções de editores e homens de letras.

Cumpre assinalar que o compadrio e o favorecimento pessoal foram uma temática constante de alguns contos desta coletânea. É o caso especialmente do conto “O Programa” que nada a patética[1] trajetória de Romualdo, um bacharel de Direito que traça para si metas e objetivos de grandeza material e amorosa, mas cujo “programa” vê gorado pelas vicissitudes do destino. O acaso sempre triunfando sobre o que é minuciosamente planejado.

Se há aqui um denominador comum na narrativa machadiana, é justamente as forças incontornáveis do acaso, da sorte ou do azar. O destino selado pelas contingências da vida.

O desenlace das personagens, por exemplo, sua riqueza, irá depender não do esforço ou do trabalho, mas do acaso: como um testamento e herança oriunda de uma morte inesperada que engendrará a fortuna. Ou o sentido inverso do azar: um casamento movido por interesses pecuniários e o desfazimento do enlace por situações acidentais engendrando o triste fim da pobreza. É o caso, entre outros, de contos como “Luís Soares” e “Rei dos Caiporas[2]”.

Neste contexto onde não há muito espaço para o reconhecimento do mérito e do esforço, predomina a filosofia do conto “Teoria do Medalhão”. “Condeno a aplicação, louvo a denominação”. Este é apenas um dos momentos em que se percebe como a narrativa machadiana dialoga com o patrimonialismo brasileiro, a confusão entre o público e o privado na condução dos negócios do governo e nas empresas particulares.

Raros foram os escritores tão versáteis e imaginativos como Machado de Assis. Além dos já citados romances e contos, o escritor fluminense produziu crônicas, poemas, peças de teatro, crítica literária, além de traduções do francês e do inglês, tudo de forma ininterrupta entre os anos 1850-1900.

O seu “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de 1881 deu início ao realismo literário brasileiro, escola artística baseada na objetividade da descrição das personagens e cenas. Relatos em sua maioria dos extratos emergentes da burguesia citadina do RJ, no transcurso de um período histórico contraditório, quando coexiste no Brasil o atraso dos Sertões e a permanência do regime escravocrata com o advento das cidades, de bulevares e grandes avenidas que expulsam as populações pobres para as periferias, da arquitetura moderna copiada de França, dos jornais, dos bancos, das casas comerciais, dos capitalistas e seus bacharéis, além de escolas filosóficas voltadas ao progresso material e espiritual: o positivismo, o evolucionismo, o liberalismo político e econômico, o republicanismo e até os primeiros ensaios de socialismo.

Foram muitos os observadores do período que viram de forma perspicaz a existência de dois Brasis no fim do séc. XIX. O sertão e a cidade. Os resquícios da economia colonial e o advento de indústria e cidades. O analfabetismo e atraso cultural do povo e uma emergente elite de letrados bacharéis oriundos das escolas de Direito e Medicina.

É indiscutível que Machado de Assis foi, nesse sentido, um escritor que retratou o Brasil das elites. Será apenas com o Modernismo de Mário de Andrade, Jorge Amado, Graciliano Ramos, entre tantos outros, que os sertões e subúrbios merecerão seu devido protagonismo.

(*)     Quadro de Belmiro de Almeida – Arrufos - 1887


[1] Patético no sentido empregado pela língua francesa: engraçado e triste ao mesmo tempo.
[2] Caiporas é uma palavra em desuso e significa azar ou azarado.

domingo, 5 de abril de 2020

“O Grande Mentecapto” – Fernando Sabino


“O Grande Mentecapto” – Fernando Sabino



Resenha Livro – “O Grande Mentecapto” – Fernando Sabino – Ed. Record

Na história da literatura mundial extraem-se exemplos de personagens e autores tão marcantes e significativos que acabaram por engendrar adjetivos com o condão de descrever sentidos de alcance universal.

Quando se diz que determinada pessoa age de forma panglossiana, remete-se ao romance “Cândido” do filósofo e escritor satírico Voltaire, significando portador de um otimismo desmedido e desproporcional. Quando se diz que alguém enfrenta uma situação kafkaniana, a remissão, aqui, é dos romances do escritor Franz Kafka, em particular o seu “O Processo”, no qual o protagonista se vê envolvido numa conspiração judicial inexplicável à luz da razão, com trâmites e procedimentos burocráticos que aniquilam as liberdades individuais.

Neste “O Grande Mentecapto” do escritor mineiro Fernando Sabino o adjetivo mais adequado para caracterizar o protagonista Geraldo Viramundo é Quixotesco. São muitos os paralelos entre a história do cavaleiro andante do escritor M. Cervantes e o Mentecapto mineiro, a começar pelo nome. “Viramundo” significa justamente virar o mundo, a retirada constante do protagonista. O destino errante de percorrer estradas sem fim. Da cidade natal no Rio Acima, para Mariana, onde Viramundo ingressa no seminário; para Ouro Preto onde confraterniza com os estudantes; para Barbacena onde foi candidato (quase) vitorioso à prefeitura; pra Juiz de Fora, onde ingressou no exército; para São João Del Rei; para Tiradentes; para Belo Horizonte, etc. etc.

Como Quixote que combatia moinhos de vento, o Mentecapto mobiliza em Belo Horizonte multidão de loucos, mendigos e prostitutas contra os poderes constituídos. Nota-se a mesma coragem e excentricidade de D. Quixote nas estripulias de Viramundo. Frequentemente, o protagonista traça para si utópicos e inatingíveis planos, como casar-se com a desejada filha do governado da província de Minas Gerais, Governador Ladislão. Geraldo é patético na medida em que é ao mesmo tempo engraçado e triste, um pouco, neste sentido específico, como o nosso povo. Talvez, Viramundo seja mesmo um parente distante do Policarpo Quaresmo, do escritor carioca Lima Barreto.

Regional e Nacional

Em que pese a trajetória de Geraldo Viramundo estar circunscrita a municípios do Estado de Minas Gerais, seria equivocado pensar este romance como uma obra estritamente regional. Em certa passagem, Geraldo Viramundo refere-se a suas múltiplas andanças “pelo Brasil”, ainda que este Brasil estivesse geograficamente circunscrito ao Estado de Minas Gerais. A hospitalidade com que é recebido por desconhecidos do povo, a cordialidade da personagem, a ausência de qualquer tipo de polidez ritualística como a do povo japonês com sua falta de espontaneidade, a fé ritualística e festiva expressa nas romarias e nas crenças de milagres operados pelos santos, a festividade e jovialidade do povo, a política patrimonialista controlada por pequenos núcleos familiares de poder; tudo isso não são traços específicos de Minas Gerais, mas do Brasil. 

Encerrando

Fernando Sabino nasceu em 1923 na cidade de Belo Horizonte. Cursou Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, concluindo o curso em 1946. Iniciou em Nova Iorque o romance “O Grande Mentecapto”, que só viria a retomar 33 anos depois, para termina-lo em 18 dias e lança-lo em 1976. O romance ganhou o prêmio Jabuti no ano de 1980, tendo sido apreciado positivamente por Tristão de Athayde, Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade. Ao lado de Macunaíma, Geraldo Viramundo é outro legítimo herói brasileiro.

sábado, 4 de abril de 2020

“História das Ideias Políticas no Brasil” – Nelson Nogueira Saldanha


“História das Ideias Políticas no Brasil” – Nelson Nogueira Saldanha



Resenha - “História das Ideias Políticas no Brasil” – Nelson Nogueira Saldanha – Ed. Senado Federal

Nelson Nogueira Saldanha foi jurista, filósofo e professor de Direito da antiga Escola de Recife, primeiras faculdade de leis fundada no país, junto com a Academia de São Paulo, ainda no tempo do Império (11 de Agosto de 1827).

Este livro foi escrito em 1966 e publicado em 1968, durante o período mais duro do regime militar. Abrange a história das ideias políticas desde o Brasil Colônia até a etapa ligada ao pensamento desenvolvimentista, durante o governo JK (1956-1961). Em posfácio redigido em 1999 o autor informa que teve de retirar o último capítulo da obra, em que caracterizava a chamada Revolução de 1964 como a restauração do Antigo Regime.

Ao se falar de ideias políticas, deve-se levar em conta que as mesmas são condicionadas por instituições e determinadas em última análise pelas realidades sócio-econômicas.
Assim, chega a ser mesmo difícil de se cogitar das ideias políticas brasileiras nos 300 primeiros anos de colônia. A imprensa, por exemplo, só surgiria em 1808 com a vinda da família real ao Brasil. Não havia escolas e o ensino era de tipo doutrinário e religioso, levado a cabo pelos jesuítas. O analfabetismo não era só a realidade de índios e negros, mas mesmo dos senhores de engenho, ainda que o poder destes últimos certamente se sobrepunha, via de regra, às determinações do reino.

Neste passado remoto, o que havia de ideias políticas não podia deixar de estar dissociadas das instituições – o Estado Português, as Ordenações do Reino, as Câmaras Municipais.

No pensamento ibérico havia por um lado a permanência medieval da escolástica, mantida pela Igreja e de outro a constituição de Portugal como potência marítima, com regime absolutista.

Aliás, uma tendência mais ou menos constante na trajetória das ideias políticas brasileiras é a forte vinculação das mentalidades a doutrinas estrangeiras. No Brasil Colônia, o absolutismo português. Já a partir de alguns mobilizações de tipo nativistas como a Inconfidência Mineira, passando pela ideia do liberalismo político ao longo do século XIX, as ideias de França. Ainda no transcurso do século XIX também se verifica a influência das ideias políticas inglesas, com o seu parlamentarismo e sua monarquia constitucional. Aos fins do séc. XIX ganha espaço a experiência norte americana, não só sinônimo de uma vivência republicana nas américas, mas suscitando um tema já bastante reivindicado pelas elites provinciais: o federalismo. Entre os anos de 1930-1937 com o enfraquecimento dos modelos de democracia liberal, há maiores interesses pelas ideias políticas, jurídicas e filosóficas de Alemanha e Itália. Correndo em paralelo, as referências oriundas da Revolução Russa em 1917, culminando na criação do PCB em 1922. 

Além de uma fracassada tentativa de insurreição comunista no Brasil em 1935.

Falávamos que as ideias políticas no passado remoto eram mais bem identificadas com as instituições políticas. Contudo, foram em movimentos insurrecionais, ainda no Brasil Colônia, passando pela Regência e Império, em que podemos situar as inquietações do presente e as projeções do futuro. É o caso da Inconfidência Mineira de 1789, da Guerra dos Emboabas relacionada ao advento da mineração, bem como da Guerra dos Mascates opondo Olinda e Recife. Todas elas de cunho nitidamente nativista e já sugerindo de forma bastante pioneira a República, que só foi concretizada em 1889.

A Guerra dos Alfaiates também no séc. XVIII possuía algo a mais: bandeiras de reformas sociais e alguma participação popular, sendo para alguns historiadores nossa primeira revolta social. Posteriormente viria a Revolução Pernambucana de 1817, a Confederação do Equador, a Cabanagem e a Guerra dos Farrapos, com as suas proclamações e manifestos impressos que dão preciosas pistas do desenvolvimento das ideais políticas do Brasil.

Em sendo um livro que busca uma síntese das ideias políticas no Brasil, da Colônia até os anos 1960 é claro que algumas omissões são verificadas. Se o autor chama constantemente a atenção para o fato de que as ideias políticas são suscitadas, discutidas e disseminadas por uma pequena elite dominante, pensante, parece ter passado batido algumas exceções fundamentais. Ao falar do abolicionismo, nenhuma menção a Luiz Gama, ele próprio advindo da escravidão. Não se cita sequer numa nota de rodapé o anarco-sindicalismo oriundo dos imigrantes italianos em São Paulo – trata-se de ideias políticas de trabalhadores livres e pobres.

Omissões justificáveis, não só ante a vastidão do tema, mas às escolhas subjetivas do historiador, inclusive as opões políticas.

Saldanha vê com uma certa má vontade os marxistas brasileiros. Eles tratariam sempre as coisas sob um determinismo econômico de acordo com o nosso autor. Saldanha não suscita Caio Prado Jr. Como um dos expoentes do pensamento social modernista dos anos 1930. Elogia discretamente o Integralismo numa nota de rodapé – movimento “patriótico”. Saldanha é, como ele mesmo se descreve, um “relativista”, o que não se equivale a imparcial. Dá exagerada ênfase à exegese das constituições de 1824, 1891, 1934, 1937 e 1946. Não fala de Canudos, do Contestado ou mesmo mais remotamente dos movimentos de resistência dos negros e índios. Fala muito pouco das greves, desde a geral de 1917, dos sindicatos, dos movimentos campesinos e das formas, ainda que embrionárias, de consciência política do povo brasileiro.      


sexta-feira, 3 de abril de 2020

“O Menino no Espelho” – Fernando Sabino

“O Menino no Espelho” – Fernando Sabino 




Resenha Livro – “O Menino no Espelho” – Fernando Sabino – Ed. Record – 4ª Edição 

“- Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto da sua vida ?
- Quero – respondi
O segredo se resumia em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus ombros e olhos nos meus olhos: 
- Pense nos outros.”

Já foi dito que a criança é o pai do homem. As experiências e cicatrizes da infância condicionam, de fato, o temperamento do adulto. 

Gilberto Freyre no seu clássico “Casa Grande e Senzala” (1933), ao analisar a vida doméstica dos meninos, filhos do senhor de engenho, teve uma percepção interessante sobre a máxima supracitada. O sadismo com que o branco esfolava o negro no pelourinho já advinha das experiências da meninice. Quando criança, o nhonhô tinha o seu pequeno escravo de estimação, a quem já abusava nas brincadeiras em que o chicote era substituído por um pedaço de pau ou galho de uma árvore. Deste passado remoto, incluindo a violência sexual sempre em face do escravo, engendraria-se dois aspectos do temperamento brasileiro – o sadismo, a satisfação ante a humilhação do outro e o masoquismo, no caso, de conotação marcantemente sexual. Mas aqui estamos nos distanciando muito do tema desta resenha. 

Fernando Sabino foi escritor minero, cujas obras mais conhecidas foram “O Grande Mentecapto” e a crônica “O Homem Nú”. 

“O Menino no Espelho” foi escrito entre 16.12.1981 e 20.8.1982, já depois do escritor ser amplamente reconhecido, tendo ganhado àquela época, o prêmio Jabuti de literatura. 

Este “O Menino no Espelho” é um livro que retrata a infância do escritor na cidade de Belo Horizonte, quando tinha entre 7 e 9 anos de idade. Não se trata, por suposto, de uma autobiografia. É um romance, como se narrado pela criança Fernando, e, por isso, recheado de lances de um realismo mágico, desde que, na imaginação da criança, realidade e fantasia se misturam. 

Como bem dito na introdução do livro, a história é do gênero infantil, mas deverá ser lido com o mesmo encanto pelo menino de 9 e de 90 anos. O final comovente – que não relataremos para não frustrar a surpresa – causou a este redator de resenhas uma reação inusitada. Foi um dos poucos livros lidos que, após terminá-lo, não contive algumas lágrimas numa profusão de sentimentos: ternura, nostalgia e esperança. 

Cada capítulo é dedicado a contar algumas das aventuras de Fernando: o dia em que salvou uma galinha no quintal que seria degolada para um jantar importante; a formação da sociedade secreta Olho de Gato e suas aventuras na casa assombrada; a primeira paixão de menino; o acampamento dos escoteiros. 

Quando se fala em literatura infanto juvenil, 9 em cada 10 leitores irão provavelmente suscitar o “Pequeno Príncipe” de  Antoine de Saint-Exupéry. De fato, é uma bela história, que conta com interessantes sacadas filosóficas em linguagem de criança. Mas o livro é francês, não fala da nossa realidade e da nossa cultura. Aliás, seria mesmo interessante imaginar como o pequeno príncipe francês, com o seu tipo meio afetado, reagiria passando um dia que fosse na convivência escolar do menino Fernando. Vejamos como eram as brincadeiras do tempo num tempo não tão remoto, quando não se cogitava da palavra bullying. 

“Para quem não sabe: sardinha é uma chicotada de raspão, com o dedo indicador, em quem quer que ouse arrebitar o traseiro. Costuma doer de verdade, quando pega de jeito. Tostão é uma joelhada de lado na coxa da vítima, também dói muito. Cacholeta é uma pancada na cabeça de um infeliz, com as mãos presas umas nas outras, depois de soprar entre elas como a enche-las de vento. Costuma até tontear. O coque, ou cascudo, é a mesma coisa, só que com uma mão”. 

Mas as brincadeiras mais divertidas eram realizadas em face dos professores e adultos: soltar baratas de caixinhas de fósforo na sala de aula, espetar o traseiro da professora com alfinete e até soltar uma perereca dentro da bolsa de outra educadora, Dona Risoleta, o que culminou no seu pedido de demissão do estabelecimento de ensino. 

Se a criança é o pai do homem importa dizer que vale a pena conservar dentro de si um pouco daquele(a) menino(a) que ficou para trás: o amor e o encanto pelos animais; a solidariedade com o mais fraco; a rebeldia e indignação em face da injustiça, diferente de uma aceitação resignada; o aprendizado com o erro. A alegria e a tristeza conservando aqui uma emotividade que em muitos adultos, calejados pela vida, transforma-se em indiferença. É desta compaixão que o adulto Fernando Sabino ensino o menino Fernando como o segredo da vida: “pense nos outros”.