terça-feira, 13 de outubro de 2020

A Revolução Alemã (1918-1919)

A Revolução Alemã (1918-1919) 

 


 

 

“Houve pouca resistência, violência e pouco derramamento de sangue. Nesses estágios da revolução, o sentimento característico era de perplexidade: perplexidade das autoridades diante de sua repentina e insuspeita perda de poder, perplexidade dos revolucionários diante de sua repentina e insuspeita conquista do poder. Ambos os lados agiam como se estivessem em um sonho. Para os primeiros era um pesadelo, para outros, era um daqueles sonhos em que se pode voar de repente”. (HAFFNER, Sebastian)

 

A Revolução Alemã perdurou de novembro de 1918 até abril de 1919 com a derrubada da República dos Conselhos na Bavária. Não é possível compreender a República de Weimar e a ascensão do nazismo sem entender a Revolução Alemã e, em especial, as razões de sua derrota. Já foi dito que todo o fascismo é o resultado direto de uma revolução derrotada. No caso da Alemanha, esta verdade assumiu contornos dramáticos.

 

Há um tanto de drama e um tanto de comédia na Revolução Alemã.

 

Neste importante estudo sobre os eventos de 1918/1919, Sebastian Haffner, que não é um marxista, afirma de maneira inequívoca: a principal razão da derrota da revolução decorreu da direção política (consciente e premeditada) do principal partido de esquerda da Alemanha, desde o tempo do Império. A revolução nitidamente entregou o poder ao SPD (partido social democrata), expressando o repúdio dos trabalhadores com a monarquia e o militarismo alemão. E desde o primeiro instante, elementos como Friedrich Ebert, Philipp Scheidemann e Gustav Noske, atuaram para aniquilar a revolução, servindo-se finalmente da contrarrevolução e da extrema direita para esmagar os conselhos. Em 15.1.1919, assassinaram Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, não sem antes submetê-los a torturas e maus tratos. O corpo de Rosa foi jogada no córrego e só seria encontrado um mês depois. Liebknecht seria despejado numa cova comum: quando foi assassinato, gritou: “Viva a Revolução Mundial!”.   

 

O contexto de fundo da Revolução Alemã é a profunda crise do Reich ante a derrota militar iminente na I Guerra Mundial. A camarilha militar, e seu quadro mais lúcido Luddendorf, verificaram que um colapso era iminente e a partir de setembro de 1918 manobraram politicamente para entregar o poder aos sociais democratas. Nesta manobra, o SPD assumiria não só o poder mas o ônus da derrota militar. E os sociais democratas, que já em 1914 haviam capitulado ao militarismo alemão e votado a favor dos créditos de guerra, assumiram de bom grado a missão de ser o último baluarte e a última linha de defesa do velho estado alemão, admitindo-se agora o parlamentarismo e o fim da monarquia.

 

É interessante mencionar que a Revolução Alemã não teve um caráter socialista. Ela tinha um forte componente de espontaneísmo, era anti-monarquica e anti-militarista. Talvez o que houvesse de mais revolucionário era a centralidade dada aos conselhos de operários e soldados. Os conselhos representavam uma mudança da natureza de classe no regime político. Significava uma nova legalidade e despertou a fúria de oficiais e burgueses acostumados com a as diferenciações hierárquicas na sociedade.

 

Neste sentido é inequívoco que o movimento era revolucionário desde que ele instaurou durante sua curta duração uma nova legalidade baseada em conselhos de trabalhadores e operários (ou trabalhadores, operários e camponeses na Baviera). O SPD desde o primeiro momento buscou sufocar os conselhos e preservar o velho estado: em que pese estes conselhos de base serem dirigidos por operários e soldados... social democratas. A luta pela manutenção do velho estado imperial e o armamento da contrarrevolução de direita que culminou numa violência desenfreada contra as experiências revolucionárias, nitidamente em Berlin e Munique, foram as principais formas de atuação do SPD.

 

Ebert e Noske suscitavam as Freikorps, forças de tipo paramilitar da extrema direita que mais tarde dariam origem as SS do regime nazista.

 

Aliás, muitos correligionários de Hitler formaram-se politicamente naquele movimento contrarrevolucionário extremamente violento perpetrado pela reação em aliança (provisória) com os sociais democratas. Na verdade a direita apenas tolerou os socialdemocratas por um tempo, mas não os respeitavam, mesmo com a total capitulação e bajulação de seus líderes.

 

Após a derrota da revolução, o SPD passou a ser um elemento dispensável à burguesia alemã: a revolução se rende à Ebert e Ebert entregou a Alemanha à contrarrevolução.

 

“De novembro de 1918 ao verão de 1919, tratava-se da seguinte questão na Alemanha: revolução ou contrarrevolução? Depois a questão era apenas: restauração burguesa ou contrarrevolução? (Dez anos mais tarde, a questão seria: qual tipo de contrarrevolução”?) (HAFFNER, Sebastian)

 

Em que pese a Revolução Alemã de 1918/1919 ser praticamente contemporânea ao fevereiro e outubro Russos de 1917, as diferenças entre as duas experiências é gritante. Não havia um partido bolchevique na Alemanha com uma direção inequivocamente voltada à revolução e à ditadura do proletariado. Em que pese a propaganda e a histeria da direita em caracterizar os levantes como “espartaquistas”, não havia de fato qualquer risco de bolchevização nos movimentos em Kiel, Berlin e Munique. Enquanto o partido bolchevique temperou-se durante anos a fio na luta revolucionária russa, em oposição aos setores reformistas, na Alemanha, a ala comunista do movimento revolucionário era bastante minoritária. Sequer tinham inserção nos novos conselhos de soldados e operários.

 

Até abril de 1917, apenas existia o SPD como partido de esquerda na Alemanha. O sua referência não era Karl Marx, mas Lassale, um reformista. Em abril de 1917 formou-se o USPD, os “independentes” dentre os quais atuavam os espartaquistas, o grupo mais alinhado com o bolchevismo. Apenas em 10.12.1918, já no curso da revolução, os espartaquistas rompem com os independentes e formam o partido comunista alemão (KPD). Rosa Luxemburgo e  Karl Liebknecht eram quando muito agitadores e panfletários, sem qualquer influencia no movimento de massas – a morte dos dois em janeiro pouco alterou os acontecimentos que se desenvolviam então.

 

Muitas foram as razões da derrota da Revolução Alemã, a começar pela traição pela sua própria liderança social democrata, passando pela conhecida violência da contrarrevolução, muito menos benevolente do que a revolução alemã havia sido em face de seus inimigos. Não houve na Alemanha nada parecido com o terror revolucionário vermelho, mas houve sim o terror contrarrevolucionário branco que pavimentou a ascensão do nazismo, constituiu suas milícias e forças paralimitares. 

 

Os preços pelas derrotas históricas são bastante caros.    

 

 

Resenha Livro – “A Revolução Alemã – 1918/1919” – Sebastian Haffner – Ed. Expressão Popular – São Paulo - 2018

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

A CRÔNICA MILITANTE DE LIMA BARRETO

 A CRÔNICA MILITANTE DE LIMA BARRETO

 


 

 

“Se há em nós um fundo de amor, há também um não menos menor de maldade que faz procurar justificativas honestas para as nossas antipatias sem razão. Toda educação tem por fim anulá-lo, mas só o consegue lentamente”. (LIMA BARRETO – “Considerações Oportunas” – ABC – 16.8.1919)

 

Lima Barreto só granjeou o devido reconhecimento artístico depois da morte. Negro, morador do subúrbio carioca, de onde apenas se retirou muito raramente para cidades do interior do Rio de Janeiro, contribui em jornais relativamente modestos, com a publicação de parcela dos seus romances e coletâneas de crônica, só após a sua morte.

 

Já foi dito, e com razão, que é impossível conhecer a vida social e cultural da Primeira República sem conhecer a obra de Lima Barreto. Seu livro mais conhecido é certamente “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” (1911) , talvez a mais bem sucedida sátira política da história da literatura nacional.

 

A crítica contundente da política de favores e da mediocridade intelectual de jornalistas, políticos e bacharéis dos 1900’s, bem como a denúncia do racismo e da opressão em face dos humildes também seriam verificados em “Clara dos Anjos” (publicado postumamente em 1948) e “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” (1911).

 

Diante da crítica à mediocridade intelectual reinante na chamada “República Velha”, alguns podem chegar à conclusão de que o escritor carioca pudesse ser um monarquista, um saudoso do Império. De fato, lendo esta seleção de crônicas “militantes” de Lima Barreto verifica-se por exemplo que o escritor, ao criticar o mais alto espírito burguês dos norte americanos, tem como interlocutor Eduardo Prado, este sim um monarquista inequívoco, autor do panfleto “A Ilusão Americana” (1893).

 

 

No conto “Educação Física” publicado na Revista ABC em 1920, Lima Barreto compara a ostentação dos dirigentes da Primeira Pública com a relativa simplicidade do monarca D. Pedro II:

 

D. Pedro II, que tinha por avós não sei quantos reis e imperadores, tinha três ridículas casas, no Rio de Janeiro, que era da coroa ou da nação; e uma em Petrópolis, que era dele. Um nosso presidente qualquer, bacharel qualquer e filho de um coronel qualquer, tem quatro ou mais palácios suntuosos, recebe vencimentos anualmente quase tanto quanto a antiga dotação-imperial; o Estado paga a sua famulagem (criadagem), enquanto a dele, o imperador pagava, e por muito favor, custeia unicamente o seu feijão com carne seca, prato de luxo que ele não dispensa, porque é hoje iguaria de potestade”

 

 

Contudo, lendo os contos mais militantes de Lima Barreto, verifica-se que o escritor tinha um posicionamento político senão marxista, bastante alinhado com um igualitarismo político, influenciado pelo anarquismo (Kropotkin e seu “Ajuda Mútua” de 1902 são citados nestes textos), com inequívocas (textuais) simpatias a Lênin e a Revolução Russa.

 

Nas palavras do escritor em 1918:

 

“Precisamos deixar de panaceias: a época é de medidas radicais. Não há quem, tendo meditado sobre este estupendo movimento bolcheviquista (bolchevique), não lombrigue nele um alcance de universal amplitude sociológica”.

 

Ou em outro artigo:

 

“...cabe bem aos homens de coração desejar e apelar para uma convulsão violenta que destrone e dissolva de vez essa societas sceleris de políticos, comerciantes, industriais, prostitutas, jornalistas ad hoc, que nos saqueiam, nos esfaimam, emboscados atrás das leis republicanas. É preciso, pois não há outro meio de exterminá-la”.

 

Muitos destes artigos não foram só produto do impacto da Revolução Russa no pais, mas do debate suscitado pela Primeira Guerra Mundial (1914/1918).

 

Lima Barreto relata que no começo do conflito aderiu a uma associação de apoio à Entente, considerando o perigo do militarismo e expansionismo alemães. Posteriormente, abandona a associação e defende a paz entre os povos, sem, contudo, alimentar qualquer ilusão no Tratado de Versalhes e no programa de paz do presidente norte americano Woodrow Wilson.

 

O pacifismo de Lima Barreto leva o escritor a redigir crônicas criticando até mesmo o futebol. Com base nas ideias de Spencer (outro interlocutor frequente de Lima Barreto), o escritor afirma que o papel deste esporte é causar dissensões no seio da sociedade. O esporte empresta à alma humana o amor à luta e à guerra.

 

Ainda que o tema da política seja bastante relevante nas crônicas de Lima Barreto, há um ponto que se espraia do jornalismo para os romances e os textos mais literários do escritor: a vida do povo simples, do trabalhador braçal, do pequeno camponês, da normalista, do humilde amanuense.

 

“O encanto da vida é a candura dos simples e a resignação dos humildes” – por meio desta temática, o escritor releva a vida da população simples que vai além da história oficial voltada aos graúdos da República.

 

 

 

Resenhado do Livro “A Crônica Militante (Seleção)” de Lima Barreto. Ed. Expressão Popular – São Paulo – 2016