Resenha Livro #11: “O Anarquismo: da doutrina à ação” – Daniel Guérin - Ed. Germinal
Algumas informações iniciais
Mesmo na internet há poucas informações sobre vida e trajetória política de Daniel Guérin (1904-1988). Foi ativista político e autor de livros sobre política e história; publicou obras sobre o homossexualismo e a liberação sexual, Rosa Luxemburg e o “espontaneísmo revolucionário” e lutas na América do Norte. Tem contribuição no debate historiográfico da Revolução Francesa, escrevendo na revista Annales sobre o tema.
Foram, ainda, seus diversos livros sobre anarquismo que o fizeram famoso pelo mundo. Segundo prefácio de Roberto das Neves, os textos sobre anarquismo do escritor francês eram amplamente conhecidos pela juventude européia durante as lutas do maio de 1968; Daniel Cohn-Bendit, referência daquele movimento, dizia-se discípulo e amigo pessoal de Guérin. “Posso afirmar que raramente encontrei um jovem que houvesse lido Marcuse, mas a cada passo via nas mãos dos jovens L’Anarchisme de Daniel Guérin, calorosamente discutido nos centros escolares e sindicais”.
Politicamente, transitou entre o anarco-sindicalismo e o socialismo independente. No âmbito do socialismo libertário, Guérin militou em uma organização pouco conhecida, o PSOP (Parti Socialiste Ouvrier et Paysan): este pequeno agrupamento reunia dissidentes do Partido Comunista Francês, trotskistas, luxemburguistas e socialistas libertários, correspondendo à mesma seção internacional do POUM [Partido Obrero de Unificación Marxista]espanhol. Para Pietro Ferrua (diretor-fundador do Centro Internacional de Pesquisas Sobre Anarquismo), o pensamento de Guérin está no meio termo entre o anarquismo e o marxismo. O anarquismo mantém sua atualidade a partir de sua crítica radical à burocracia e ao autoritarismo. Já o marxismo ou o socialismo genérico são reivindicados na medida em que a luta pela “autogestão” significa, aqui, o aprofundamento, a radicalização das lutas revolucionárias. Guérin, ainda segundo Ferrua, mantém-se convicto da conciliação entre anarquismo e marxismo, o que lhe valerá certa posição de isolamento ou mesmo ambigüidade política. (Tece duras críticas ao leninismo, mas dele tira alguma legitimidade, ao associar certas passagens de O Estado e a Revolução às concepções libertárias. Reconhece Trotsky como um “revolucionário honesto”, mas denuncia a repressão sobre a rebelião dos marinheiros de Kronstadt – comandado pelo dirigente bolchevique – como parte do esmagamento da revolução autêntica).
Não sabemos quais obras de Guérin foram publicadas no Brasil. Chegou a nossas mãos, ao acaso (encontrada em um sebo [alfarrabista] em São Paulo), uma edição bastante gasta do Anarquismo, lançada pela editora Germinal de 1968 [*]. A Germinal foi fundada em 1947 no Rio de Janeiro pelo anarquista português Roberto das Neves. Aparentemente, era uma editora independente e provavelmente com enormes dificuldades na promoção e difusão dos livros – identificamos problemas de tradução bastante evidentes, erros de ortografia e ausência de notas de rodapé. De maneira que novas edições de Guérin para o público brasileiro (contando com uma nova tradução e maior trabalho de pesquisa sobre o autor) são necessárias. Reconhecemos, por suposto, a importância e o pioneirismo do trabalho da Germinal – não nos consta existência de outra edição do livro em português.
As idéias força do anarquismo
O propósito de Guérin no ensaio é lançar uma visão panorâmica sobre os principais aspectos teóricos e práticos do anarquismo. Há a intenção de retirar do isolamento intelectual autores e teses ligadas ao “socialismo libertário” (entendido como sinônimo do anarquismo) e estabelecer certo “ajuste de contas”, identificando aspectos em que aquelas teses provaram-se aparentemente corretas – particularmente, a crítica radical da política frente à degeneração do socialismo em capitalismo de Estado no leste da Europa. A reabilitação do anarquismo, oportuna num momento da história onde se reorganizava a esquerda frente às claras evidências de repressão política na URSS, também significa a desconstrução de certos equívocos disseminados dentro e fora do campo da esquerda sobre o que significa anarquismo.
Logo no começo, o autor desconstrói certo senso comum que identifica anarquismo à “bagunça” ou “desordem”. Muito pelo contrário: em Proudhon, Bakunin e demais ideólogos daquele movimento, há propostas as mais diversas de organização política centrada em torno de alguns princípios comuns – que os unem genericamente ao campo do socialismo libertário. É em torno dos aspectos teóricos de organização que as duas primeiras partes do livro se referem: o problema da autogestão, as bases de troca e as formas econômicas dentro do modelo autogestionário, o significado da concorrência e sua afirmação ou negação no anarquismo, o sentido do federalismo no âmbito do anarquismo (uma discussão bastante original e interessante, que vai pensar formas de articulação geral da política e de forma não coercitivas, que relacione os poderes locais aos âmbitos regionais e “internacionais”, ou, melhor dizendo, “mundiais”). Discutindo as particularidades do movimento anarquista no que se refere aos seus princípios de funcionamento e nas suas experiências práticas em Espanha, Iugoslávia ou Argélia, vai sendo desconstruído aquele senso que define como utópicas as formas de organização independentes do Estado.
Especificidades do anarquismo
Guérin identifica anarquismo como uma vertente particular do socialismo: todo anarquismo é socialista, mas nem todo socialismo é anarquista. Ao longo do texto, opõe anarquismo ao “socialismo autoritário”, referente, basicamente, aos momentos em que a burocratização ou a intervenção mais ou menos motivada do Estado socialista implode práticas políticas de autogestão mais ou menos espontâneas. A especificação do “socialismo libertário” refere-se a uma série de características comuns àquela tradição.
“O Anarquista é, em princípio e antes de mais, um revoltado”: a revolta visceral a tudo que remete de alguma forma aos poderes oficiais ou mesmo ao que é regular, lembra Guérin, faz com que o anarquista sinta simpatia pelo o que é irregular. “É muito injustamente, acreditava Bakunin, que Marx e Engels falavam com profundo desprezo do Lumpenproletariat (“proletariado esfarrapado” [ralé]), pois é nele e só nele, e não na camada burguesa da massa operária, que residem o espírito e a força da futura revolução social”. Há, finalmente, maior atenção ao indivíduo, ainda que neste campo haja muitas diferenças internas dentre os autores – o ultra-individualismo de Max Stinner (que remete a uma postura anti-social, anti-socialista) opõe-se a outras tradições coletivistas, que, de forma geral, identificam tendência de harmonia social quando há ausência de aparatos de controle e domínio político. Guérin identifica como fontes de energia do anarquismo tanto o indivíduo quanto as massas.
O problema do Estado e do Governo
As diferentes percepções sobre o Estado são provavelmente o ponto em que mais imediatamente se identificam diferença entre anarquistas e outras tradições socialistas. O “definhamento” ou “extinção” do Estado processado no âmbito da ditadura dos produtores é prontamente denunciado pelos anarquistas como sinal de degeneração, controle e burocratização da insurreição popular. O “horror ao Estado” é emblemático e surge nos textos de forma contundente e radical: vamos transcrever algumas passagens longas, mas muito interessantes, sobre esta percepção. Identificamos dois pontos importantes nestas descrições: a idéia do Estado, sob qualquer forma, como fonte de opressão; o fato de esta opressão do Estado servir, posteriormente, como explicação para os desvios do “socialismo autoritário”.
“(Os burgueses) consideram o povo uma espécie de aglomerados de selvagens, comendo o nariz uns aos outros se o governo não funcionasse mais.”
“O governo do homem pelo homem é a servidão. Quem puser a mão sobre mim, para me governar, é um usurpador e um tirano. Declaro-o meu inimigo. Ser governado é ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, parqueado, endoutrinado, predicado, controlado, calculado, apreciado, censurado, comandado por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude […]. Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, registrado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, corrigido. É, sob pretexto de utilidade pública e em nome do interesse geral, ser submetido à contribuição, utilizado, resgatado, explorado, monopolizado, extorquido, mistificado, roubado […]. Oh!, personalidade humana! Como foi possível deixares-te afundar, durante sessenta séculos, nesta abjeção?”
“[O Estado] é uma abstração devoradora da vida popular, um imenso cemitério aonde, sobre e sob o pretexto desta abstração, vêm generosamente, com beatitude, sacrificar-se, envilecer-se todas as aspirações reais, todas as forças vivas de um país”.
“Longe de ser criador de energia, o governo desperdiça, paralisa e destrói, por seus métodos de ação, forças enormes”.
Limites do horror ao Estado e Governo
Em que pese a intenção propagandista das frases, reconhecemos que elas sinalizam os problema da transição política socialista, e em parte antecipam, como procura ressaltar Guérin, a burocratização e conformação de revoluções populares e/ou socialistas aos marcos do capitalismo de Estado. O problema, no nosso entendimento, é que a premissa para aquelas críticas à política refere-se não raras vezes a certo entendimento de que toda direção política acaba tendo uma natureza contra-revolucionária por ser uma direção: a posição de direção – seja em qual circunstância – cria condições para a sua própria degeneração. Tony Cliff afirmava que não é o poder político aquilo que irá “corromper” ou “degenerar” as lutas, mas o seu contrário: a falta de poder político, a impotência das massas e de mecanismos de controle político pela base e radicalmente democráticos é que criam condições para a degeneração.
O caráter ideológico da democracia burguesa, esta sim, no nosso entendimento, estaria contemplada pela tese do “horror ao Estado” – a forma burguesa de Estado é logo abolida pelos socialistas, combinando-se com a generalização de formas de poder popular fincadas na generalização da socialização produtiva. Na crítica à democracia burguesa, Guérin aponta idéia similar: “A teoria da soberania do povo encerra a sua própria negação. Se o povo fosse soberano, não haveria mais governo nem governadores. O soberano seria reduzido a zero. O Estado não teria mais razão de existir, identificar-se-ia com a sociedade, desapareceria na organização industrial”. Ficamos tentados a localizar a tese do “horror ao Estado” no “horror ao Estado burguês”, destacando o caráter anticapitalista e revolucionário (sem ilusões no reformismo estatal) das lutas, hoje.
Encerrando
Não é nossa intenção aqui chegar a alguma conclusão sobre o grau de pertinência das teses anarquistas ou do que entendemos ser a transição do capitalismo ao socialismo e comunismo. Nossa intenção aqui é chamar atenção para um livro pouco conhecido e provocar eventuais interessados em pesquisar, ler, discutir e socializar idéias concorrentes ao tema. Finalizamos este – já longo – artigo com uma passagem, à guiza de conclusão.
“Graças a estas experiências, as idéias libertárias lograram ressurgir recentemente do cone de sombra a que os seus detratores as havia relegado. O homem contemporâneo, que serviu de cobaia ao comunismo estatal em grande parte do globo, começa, meio aturdido ainda, a inclinar-se, com viva curiosidade e freqüentemente em seu benefício, para as novas formas de sociedade regida por autogestão, propostas, no século passado, pelos pioneiros da anarquia. É certo que ele não as aceita em bloco; todavia, extrai delas ensinamentos e nelas se inspira para tentar conduzir a bom termo a tarefa que se impõe nesta segunda metade do século: romper, no plano econômico, como no político, os grilhões que, de modo indefinido, se designam por “estalinismo”, sem contudo renunciar aos princípios fundamentais do socialismo – antes, ao contrário, descobrindo ou reencontrando as fórmulas de um socialismo autêntico, isto é, com liberdade”.
Muito bom, Paulo. Há muitas e sérias divergências entre marxistas e anarquistas. Inclusive, no encaminhamento das lutas, que para a grande maioria dos anarquistas deve priorizar a frente econômica. Mas os tempos estão tão chacoalhados que pode surgir um bom debate.
ResponderExcluirAbraço