quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

“História da Civilização Brasileira” – Pedro Calmon

“História da Civilização Brasileira” – Pedro Calmon

"Anchieta" - C. Portinari - 1954

Resenha livro - “História da Civilização Brasileira” – Pedro Calmon – Coleção Biblioteca Básica Brasileira – 2002

“Um punhado de farinha e um caranguejo nunca nos pode faltar no Brasil”, havia de dizer o Padre Vieira.

Esta ideia de vida nova é a impressão inicial do colono ao embarcar para a sua longa travessia. O oceano era mais do que uma distância; era uma cisão. Desde as primeiras expedições, o europeu que migrou  fez na América uma vida em tudo diversa da que tivera até então.  De acordo com o meio, o clima, a gente que encontrou na América. Ultra equinoctialem non peccari. – Ele transformou-se”

Pedro Calmon

Consta que esta “História da Civilização Brasileira” foi um livro muito popular no seu tempo. A 1ª edição data de 1933 quando o seu autor era um jovem intelectual baiano recém chegado ao Rio de Janeiro. Ainda em 1963 a obra seria reeditada desde a coleção brasiliana atingindo a 6ª edição, além de publicações em Argentina e Itália. Posteriormente, o livro parece cair no esquecimento o que provavelmente se dá em face do procedimento puramente descritivo da obra, do seu enfoque nos “grandes homens” e “grandes eventos” quando a historiografia brasileira através das inovações suscitadas pela geração modernista – Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Gilberto Freire[1] – valorizava as interfaces entre história e ciência social, cada qual através de orientações teórico metodológicas distintas.

Longe de tal “esquecimento” representar um interesse meramente bibliográfico do curioso especialista historiador.

A “História da Civilização Brasileira” é tributária de uma tradição historiográfica que remete a Vernhagen (marco inicial da historiografia brasileira) e Capistrano de Abreu. Todavia em face do período em que o livro foi escrito, há influência também dos modernistas, cogitando a obra, de forma pioneira, temas da história da cultura, como a literatura no Brasil colonial, sua arquitetura com a análise do barroco e da intervenção de Aleijadinho, a família e sua constituição na colônia; aspectos da história econômica ainda que em termos bastante quantitativos com uma abundância de dados sobre a produção agrícola do açúcar, do fumo, do cacau, do café e do algodão, a introdução das linhas férreas e o sentido do desenvolvimento das comunicações na produção, além de uma atenção específica às revoltas, rebeliões e revoluções que informam a história do Brasil desde a colônia, como a Guerra dos Emboabas – relacionada à disputa pelas descobertas auríferas entre paulistas e forasteiros, a Revolta de “Bequimã”, as Conjurações Mineiras e Baianas, entre outros.

Sobre a orientação teórico-metodológica do autor e obra, discorre Arno Wehling:

“Em matéria de concepção historiográfica, em estudo sobre seu pensamento histórico, nós o filiamos à matriz historicista, ou historicista romântico-erudita, da historiografia brasileira, que teve em Vernhagen sua principal expressão. Isso sem embargo de suas aproximações à obra de Capistrano de Abreu e às concepções modernistas das quais foi contemporâneo, o que, entretanto não alterou sua fidelidade pessoal”.

Certamente o contexto intelectual da década de 1930, já posterior à Semana da Arte Moderna (1922) e contemporâneo da nova historiografia brasileira, faz deste trabalho um relato eminentemente descritivo mas contemplando de maneira mais detida a historia social, cultural e econômica. Se por exemplo em Capistrano de Abreu o elemento indígena aparece na formação do Brasil como um elemento quase paisagístico e de pouca relevância no desenvolvimento histórico do país, Pedro Calmon faz análise mais atenta do índio, responsável por dificuldades na instalação do homem europeu em face da denominada “guerra justa” contra o elemento indomável, a importância da intervenção jesuítica contrária à escravidão do índio e a própria conformação de um sentimento de nação através do agrupamento do negro, do branco e do índio. Sentimento forjado nas lutas pela reconquista das províncias ocupadas pelos Holandeses no nordeste (séc. XVII). Mesmo no aspecto cultural, o hábito de dormir em redes pelo colono, os pés descalços e a nova alimentação com base na farinha de mandioca são decorrentes desta fusão de grupos humanos diferentes que informarão as particularidades do brasileiro. O homem brasileiro era o português – “marinheiro das armadas, o colono, camponês loiro do norte de Portugal, negociante moreno, judeu ou mouro, homem d’armas de Lisboa, braquióde, nervoso e inquieto”. Era o homem negro que  através de Henrique Dias, herói da luta de reconquista do nordeste, representava um ideal romântico da posição do negro na colônia em face de um país escravocrata e contrabandista de cativos. E era o indígena que nesta obra é analisado com mais atenção que a tradicional historiografia:

“O índio falava, na maior extensão da costa, uma língua comum: o tupi. Mas as suas procedências eram vastas, seus tipos antropológicos diversos, como distinta a sua cor (havia “abajus” e “abaúnas”, claros e escuros), peculiares os seus costumes, o idioma inconfundível. O tupi litorâneo foi inimigo virtual do tapuia sertanejo, que ele vencera nas regiões ribeirinhas, repelindo-o para o interior. O tapuia era o gentio das línguas travadas, o que não pertencia à comunidade tupi e vivia mais barbaramente do que o índio da costa, posto em entendimento com os brancos, e por estes influenciado desde as primeiras viagens”.  

Já os índios distinguem brasileiros e franceses pela cor da barba: barba preta para lusitanos e barba loira para os de França.

Há de se destacar como outro aspecto distintivo da obra um certo determinismo geográfico, de resto não incomum dentre as reflexões sobre o problema do Brasil em fins do XIX e início do XX. Assim, se explicou a ocupação territorial e as razões mesmo de revoltas. Por exemplo, explica-se o ciclo da Borracha no norte (1879-1912), constituindo a opulência da cidade de Manaus, entre outros pela grave seca do Ceará em fins do século XIX pavimentando a migração; as correntes de vento explicam em grande medida os contatos marítimos dentre as regiões com destaque do Rio São Francisco, do Rio Amazonas e do Paraná na difusão do povoamento; ou até a explicação de Canudos a partir das condições geo-climáticas do sertão além do contexto de religiosidade local, não se podendo falar que o movimento de Antônio Conselheiro era uma ação política consciente de restituição da Monarquia. Mesmo a vinda de imigrantes europeus em substituição à mão de obra negra envolve aspectos climáticos: os imigrantes preferem o clima mais ameno da região meridional, o que explica os graves problemas econômicos enfrentados pelas províncias do norte em face das paulatinas leis de restrição/abolição da escravatura – abolição do tráfico em 1850, lei do ventre livre (1871), lei dos sexagenários (1885) e a abolição da escravidão em 1888.

Como se sabe o problema da escravidão e o seu questionamento é um problema político pelo qual se debatem conservadores, liberais, proprietários  rurais e mesmo militares ao longo do século XIX. Em 1831 com a primeira lei formal de abolição do tráfico, informa Calmon, os Brasileiros se habituam com a ideia de que um dia não haverá mais escravos. A mocidade acadêmica, influenciada por pensadores franceses e pela experiência norte americana que através de Guerra Civil conquistou a abolição, representaria uma vanguarda daquele movimento. Luiz Gama e J. Patrocínio os elementos negros à frente dos abolicionistas. Esta mudança de mentalidade é revelada pelas práticas de alforria – entre 1872 e 1876 houve 3000 libertações espontâneas; a província do Ceará promove a abolição da escravatura já em 1884; criam-se caixas para doação com o intuito de alforriar escravos; até a libertação plena dos cativos quando o Barão de Cotegipe  alertara de forma profética a Princesa Isabel: “Vossa Alteza ganhou a partida mas perdeu o trono”.

A civilização brasileira é obra de cerca de 300 páginas que percorre 300 anos de Brasil Colonial, da Independência, do 1º reinado, das Regências,  do 2º Reinado,  da Proclamação da República até o 2º mandato de Rodrigues Alves. Há para o leitor uma perspectiva ampla e sintética da história do Brasil em contraponto à certa tendência das pesquisas historiográficas em nível acadêmico de se reduzir o objeto de estudo a períodos relativamente curtos aduzindo problemas bastante específicos, como “A história da culinária na Província de Rio de Janeiro entre 1808-1821”, a título de exemplo. Se estas pesquisas mais específicas ganham por um lado em profundidade, perdem por outro lado em envergadura, sendo necessários os relatos panorâmicos e extensos da história de modo a melhor sugerir, aqui, o sentido histórico da “civilização brasileira”.  É uma obra que vale a pena ser conhecido por tal visão panorâmica, além da riqueza de informações a partir de fontes primárias. A síntese a que Pedro Calmon chega após percorrer 4 séculos da história brasileira é do desenvolvimento combinado com pendências, uma espécie de história inconclusa:

“Constituímos um êxito positivo, em todos os domínios da atividade do povo. Entretanto ainda nos sobrava a impressão de que tudo estava por fazer – tão grande é o âmbito geográfico desta civilização que apenas esboçou as suas tendências ou diferenciou a sua fisionomia”!




[1] Produziu-se em poucos anos obras de alto interesse para a historiografia brasileira num sentido de, através do olhar sobre o passado do país, constituir os elementos que informam a nacionalidade. As obras mais importantes são: “Casa Grande e Senzala” (1933) de Gilberto Freire, “Evolução Política do Brasil” (1933) de Caio Prado Jr., “Raízes do Brasil” (1936) de Sérgio Buarque de Holanda e “História Econômica do Brasil” (1936) de Roberto S.   

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