“História da Civilização Brasileira” – Pedro Calmon
"Anchieta" - C. Portinari - 1954
Resenha livro - “História da Civilização Brasileira” – Pedro
Calmon – Coleção Biblioteca Básica Brasileira – 2002
“Um punhado de farinha e um caranguejo nunca nos pode faltar
no Brasil”, havia de dizer o Padre Vieira.
Esta ideia de vida nova é a impressão inicial do colono ao
embarcar para a sua longa travessia. O oceano era mais do que uma distância;
era uma cisão. Desde as primeiras expedições, o europeu que migrou fez na América uma vida em tudo diversa da
que tivera até então. De acordo com o
meio, o clima, a gente que encontrou na América. Ultra equinoctialem non
peccari. – Ele transformou-se” .
Pedro Calmon
Consta que esta “História da Civilização Brasileira” foi um
livro muito popular no seu tempo. A 1ª edição data de 1933 quando o seu autor
era um jovem intelectual baiano recém chegado ao Rio de Janeiro. Ainda em 1963
a obra seria reeditada desde a coleção brasiliana atingindo a 6ª edição, além
de publicações em Argentina e Itália. Posteriormente, o livro parece cair no
esquecimento o que provavelmente se dá em face do procedimento puramente
descritivo da obra, do seu enfoque nos “grandes homens” e “grandes eventos”
quando a historiografia brasileira através das inovações suscitadas pela
geração modernista – Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. e Gilberto
Freire[1]
– valorizava as interfaces entre história e ciência social, cada qual através
de orientações teórico metodológicas distintas.
Longe de tal “esquecimento” representar um interesse meramente
bibliográfico do curioso especialista historiador.
A “História da Civilização Brasileira” é tributária de uma
tradição historiográfica que remete a Vernhagen (marco inicial da
historiografia brasileira) e Capistrano de Abreu. Todavia em face do período em
que o livro foi escrito, há influência também dos modernistas, cogitando a
obra, de forma pioneira, temas da história da cultura, como a literatura no
Brasil colonial, sua arquitetura com a análise do barroco e da intervenção de
Aleijadinho, a família e sua constituição na colônia; aspectos da história
econômica ainda que em termos bastante quantitativos com uma abundância de
dados sobre a produção agrícola do açúcar, do fumo, do cacau, do café e do
algodão, a introdução das linhas férreas e o sentido do desenvolvimento das
comunicações na produção, além de uma atenção específica às revoltas, rebeliões
e revoluções que informam a história do Brasil desde a colônia, como a Guerra
dos Emboabas – relacionada à disputa pelas descobertas auríferas entre
paulistas e forasteiros, a Revolta de “Bequimã”, as Conjurações Mineiras e Baianas,
entre outros.
Sobre a orientação
teórico-metodológica do autor e obra, discorre Arno Wehling:
“Em matéria de concepção historiográfica, em estudo sobre
seu pensamento histórico, nós o filiamos à matriz historicista, ou historicista
romântico-erudita, da historiografia brasileira, que teve em Vernhagen sua
principal expressão. Isso sem embargo de suas aproximações à obra de Capistrano
de Abreu e às concepções modernistas das quais foi contemporâneo, o que, entretanto
não alterou sua fidelidade pessoal”.
Certamente o contexto intelectual da década de 1930, já
posterior à Semana da Arte Moderna (1922) e contemporâneo da nova
historiografia brasileira, faz deste trabalho um relato eminentemente
descritivo mas contemplando de maneira mais detida a historia social, cultural
e econômica. Se por exemplo em Capistrano de Abreu o elemento indígena aparece
na formação do Brasil como um elemento quase paisagístico e de pouca relevância
no desenvolvimento histórico do país, Pedro Calmon faz análise mais atenta do
índio, responsável por dificuldades na instalação do homem europeu em face da
denominada “guerra justa” contra o elemento indomável, a importância da
intervenção jesuítica contrária à escravidão do índio e a própria conformação
de um sentimento de nação através do agrupamento do negro, do branco e do índio.
Sentimento forjado nas lutas pela reconquista das províncias ocupadas pelos
Holandeses no nordeste (séc. XVII). Mesmo no aspecto cultural, o hábito de
dormir em redes pelo colono, os pés descalços e a nova alimentação com base na farinha
de mandioca são decorrentes desta fusão de grupos humanos diferentes que
informarão as particularidades do brasileiro. O homem brasileiro era o
português – “marinheiro das armadas, o colono, camponês loiro do norte de Portugal,
negociante moreno, judeu ou mouro, homem d’armas de Lisboa, braquióde, nervoso
e inquieto”. Era o homem negro que através de Henrique Dias, herói da luta de
reconquista do nordeste, representava um ideal romântico da posição do negro na
colônia em face de um país escravocrata e contrabandista de cativos. E era o
indígena que nesta obra é analisado com mais atenção que a tradicional
historiografia:
“O índio falava, na maior extensão da costa, uma língua
comum: o tupi. Mas as suas procedências eram vastas, seus tipos antropológicos
diversos, como distinta a sua cor (havia “abajus” e “abaúnas”, claros e
escuros), peculiares os seus costumes, o idioma inconfundível. O tupi litorâneo
foi inimigo virtual do tapuia sertanejo, que ele vencera nas regiões
ribeirinhas, repelindo-o para o interior. O tapuia era o gentio das línguas
travadas, o que não pertencia à comunidade tupi e vivia mais barbaramente do
que o índio da costa, posto em entendimento com os brancos, e por estes
influenciado desde as primeiras viagens”.
Já os índios distinguem brasileiros e
franceses pela cor da barba: barba preta para lusitanos e barba loira para os
de França.
Há de se destacar como outro aspecto distintivo da obra um
certo determinismo geográfico, de resto não incomum dentre as reflexões sobre o
problema do Brasil em fins do XIX e início do XX. Assim, se explicou a ocupação
territorial e as razões mesmo de revoltas. Por exemplo, explica-se o ciclo da
Borracha no norte (1879-1912), constituindo a opulência da cidade de Manaus, entre
outros pela grave seca do Ceará em fins do século XIX pavimentando a migração;
as correntes de vento explicam em grande medida os contatos marítimos dentre as
regiões com destaque do Rio São Francisco, do Rio Amazonas e do Paraná na difusão
do povoamento; ou até a explicação de Canudos a partir das condições geo-climáticas
do sertão além do contexto de religiosidade local, não se podendo falar que o
movimento de Antônio Conselheiro era uma ação política consciente de
restituição da Monarquia. Mesmo a vinda de imigrantes europeus em substituição
à mão de obra negra envolve aspectos climáticos: os imigrantes preferem o clima
mais ameno da região meridional, o que explica os graves problemas econômicos
enfrentados pelas províncias do norte em face das paulatinas leis de
restrição/abolição da escravatura – abolição do tráfico em 1850, lei do ventre
livre (1871), lei dos sexagenários (1885) e a abolição da escravidão em 1888.
Como se sabe o problema da escravidão e o seu questionamento
é um problema político pelo qual se debatem conservadores, liberais,
proprietários rurais e mesmo militares
ao longo do século XIX. Em 1831 com a primeira lei formal de abolição do
tráfico, informa Calmon, os Brasileiros se habituam com a ideia de que um dia
não haverá mais escravos. A mocidade acadêmica, influenciada por pensadores
franceses e pela experiência norte americana que através de Guerra Civil
conquistou a abolição, representaria uma vanguarda daquele movimento. Luiz Gama
e J. Patrocínio os elementos negros à frente dos abolicionistas. Esta mudança
de mentalidade é revelada pelas práticas de alforria – entre 1872 e 1876 houve
3000 libertações espontâneas; a província do Ceará promove a abolição da
escravatura já em 1884; criam-se caixas para doação com o intuito de alforriar
escravos; até a libertação plena dos cativos quando o Barão de Cotegipe alertara de forma profética a Princesa
Isabel: “Vossa Alteza ganhou a partida mas perdeu o trono”.
A civilização brasileira é obra de cerca de 300 páginas que
percorre 300 anos de Brasil Colonial, da Independência, do 1º reinado, das Regências,
do 2º Reinado, da Proclamação da República até o 2º mandato
de Rodrigues Alves. Há para o leitor uma perspectiva ampla e sintética da história
do Brasil em contraponto à certa tendência das pesquisas historiográficas em
nível acadêmico de se reduzir o objeto de estudo a períodos relativamente
curtos aduzindo problemas bastante específicos, como “A história da culinária
na Província de Rio de Janeiro entre 1808-1821”, a título de exemplo. Se estas
pesquisas mais específicas ganham por um lado em profundidade, perdem por outro
lado em envergadura, sendo necessários os relatos panorâmicos e extensos da
história de modo a melhor sugerir, aqui, o sentido histórico da “civilização
brasileira”. É uma obra que vale a pena
ser conhecido por tal visão panorâmica, além da riqueza de informações a partir
de fontes primárias. A síntese a que Pedro Calmon chega após percorrer 4 séculos
da história brasileira é do desenvolvimento combinado com pendências, uma
espécie de história inconclusa:
“Constituímos um êxito positivo, em todos os domínios da
atividade do povo. Entretanto ainda nos sobrava a impressão de que tudo estava
por fazer – tão grande é o âmbito geográfico desta civilização que apenas
esboçou as suas tendências ou diferenciou a sua fisionomia”!
[1]
Produziu-se em poucos anos obras de alto interesse para a historiografia
brasileira num sentido de, através do olhar sobre o passado do país, constituir
os elementos que informam a nacionalidade. As obras mais importantes são: “Casa
Grande e Senzala” (1933) de Gilberto Freire, “Evolução Política do Brasil”
(1933) de Caio Prado Jr., “Raízes do Brasil” (1936) de Sérgio Buarque de
Holanda e “História Econômica do Brasil” (1936) de Roberto S.
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