“Helena” – Machado de Assis
Resenha Livro - “Helena” – Machado de Assis – Iba Mendes Editor Digital
Existe
uma forma tradicional de se deliminar a obra de Machado de Assis em duas
grandes fases.
Num
primeiro momento, de acordo com essa teoria, seus romances estiveram circunscritos
ao romantismo literário. E, com a publicação de “Memórias Póstumas de Brás
Cubas” (1881), teria havido o grande salto qualitativo do escritor, quando foram
estabelecidas as bases do realismo-naturalismo literário em terras brasileiras.
Essa
forma tradicional de caracterizar a obra do escritor deve ser vista com alguma
ressalva.
Vistos
todos os livros, de conjunto, é possível de se perceber todas as tendências
intelectuais e artísticas do seu próprio tempo. Tanto na condição e escritor,
como em seu trabalho como crítico literário, deu contribuições para o
romantismo, realismo, naturalismo, impressionismo, parnasianismo e simbolismo,
sem se filiar a nenhuma destas escolas em particular, delas, por outro lado,
extraindo elementos para a criação de um estilo próprio[1].
Válido
ainda mencionar que a forma tradicional de delimitar uma fase romântica e outra
realista em Machado de Assis acaba desconsiderando que o escritor transitou por
outros gêneros literários que não só o romance. Publicou poemas, peças de
teatro, crítica literária e crônicas jornalísticas.
Em
todo o caso, também não parecer haver dúvidas de que a literatura de Machado de
Assis passa por duas etapas bem diferenciadas.
Poderíamos
falar de uma “fase de aprendizagem”, quando de fato predominam os elementos
românticos e sua obra tem um caráter mais convencional.
Dessa
primeira fase fazem parte os quatro primeiros romances do escritor fluminense: “Ressurreição”
(1872), “A Mão e a Luva” (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1876).
O
divisor de águas entre a fase de maturação e o pleno vigor intelectual do artista
deu—se, como dito, a partir do “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881).
A
partir daqui vemos aquele desencanto pessimista misturado com o humor e a
ironia que se opõem às tendências de idealização da vida e do amor, que por sua
vez marcaram as obras de juventude.
A pouco
verossímil qualidade atribuída aos personagens românticos, que constantemente
renunciam aos seus interesses individuais em detrimento de convicções morais ou
exigências sociais, como se dá com a personagem Helena em seu romance homônimo,
é substituída agora pelo desnudamento do homem dotado de fraqueza, incoerência
e oportunismo, como evidenciado no protagonista Brás Cubas do Memórias
Póstumas.
Em
ambas as fases, contudo, verifica-se um denominador comum: a arte deve exprimir
a vida e em particular o universo moral dos indivíduos.
A
arte exprimindo a vida seja para idealizá-la, como ocorre na dita “fase
romântica” como para copiá-la na chamada fase “realista”.
Num
primeiro momento, a descrição da vida tem fins nitidamente moralizantes, sem
pretensão de desafiar as regras sociais vigentes e, de certa maneira, dentro de
um conformismo político.
Num
segundo momento, essa descrição da vida
terá fins mais filosóficos, ao buscar desnudar as contradições do indivíduo e criticá-lo
impiedosamente, autorizando, com isso, o questionamento das regras sociais
vigentes.
Neste
marco, também se escuta bastante daqueles que estudam a obra de Machado de
Assis um certo “apoliticismo” do escritor, que inclusive pode ser visto de uma
forma negativa, especialmente nos romances da primeira etapa, que remontam ao
universo burguês citadino, e, frequentemente, desconsideram as desigualdades sociais e a
principal chaga social da época: a escravidão.
Esse
ponto de vista também é discutível.
Mesmo
em “Helena” (1876), um livro tipicamente romântico, voltado um público feminino
da classe dominante do Brasil do II Império, tanto o tema da escravidão como o
da pobreza estão presentes na obra, ainda que de forma tangencial.
Pode-se
dizer que a história social está presente na narrativa machadiana mas via de
regra é apenas captada como um reflexo do universo moral das individualidades –
há, neste sentido, uma descrição incidental do Brasil do II Império e sua
transição para a República, inclusive na sua chamada “fase romântica”. Mas,
evidentemente, o romance de Machado de Assis pode ser caracterizado de diversas
formas, menos como arte voltada ao proselitismo político.
Sobre
o Romance Helena.
“Helena”
foi publicado em folhetins entre agosto e setembro de 1876 pelo jornal “O Globo”.
Foi reunido naquele mesmo ano num volume único pelo editor Baptiste-Louis
Garnier.
Consta
ter sido um sucesso de público: foi, aliás, escrito quando o escritor já era
conhecido e consagrado pelo pequeno público leitor da época.
A
história se passa em meados do século XIX na cidade do Rio de Janeiro.
Após
a morte por apoplexia do Conselheiro Vale, um rico potentado do Rio de Janeiro,
seu filho e herdeiro Estácio recebe através do testamento a informação de que
seu pai, conhecido em vida pela infidelidade conjugal, deixara uma filha oriunda
de relacionamento ilícito. Como última disposição, o morto manifestou a vontade
de que essa descendente fosse acolhida como filha legítima e parte da família.
Esta
filha é Helena, a protagonista da história.
Ao
chegar à casa do falecido Conselheiro, aos dezessete anos de idade, é vista com
reservas, não tanto pelo seu meio irmão, mas por D. Úrsula, senhora de idade,
beata e irmã do Conselheiro. Contudo, as qualidades morais de Helena e mesmo a
sua beleza vão aos poucos desconstituindo todas as reservas, inclusive da severa
tia de Estácio:
“Helena
tinha os predicados próprios a captar a confiança e a afeição da família. Era
dócio, afável, inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os
seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava superior e lhe dava probabilidade
de triunfo, era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento e toda a
casta de espíritos, arte preciosa, que faz hábeis os homens e estimáveis as
mulheres”.
A
afeição entre a protagonista e o seu meio irmão vão se acentuando ao ponto de
sugerir cada vez mais ao leitor a existência de um amor proibido, posto que
incestuoso.
Helena
e Estácio cresceram em famílias separadas: não aprenderam a falar pelos lábios
da mesma mãe. Quis a fortuna que entre os dois não houvesse a imagem da infância
comum e a comunhão dos primeiros anos. Em plena mocidade, passaram, do total desconhecimento
um do outro para a intimidade de todos os dias no lar comum. Circunstâncias que
fizeram brotar um amor impossível, que, aliás, não era sequer percebido de
forma consciente por Estácio.
Posteriormente,
este sentimento terá outros desdobramentos diante da impactante notícia de que
o Conselheiro Vale não fora efetivamente o pai biológico de Helena.
Essa
descoberta se deu após Estácio confrontar Salvador, um homem em situação de
miséria que morava numa chácara próxima da residência do Conselheiro.
Helena
de forma clandestina diariamente visitava aquela casa, até quando seu irmão,
voltando de uma caçada, viu a protagonista se despedindo daquele homem velho, naquela palhoça em situação de abandono. Num
primeiro momento, pensa se tratar de um enlace amoroso que levaria à desgraça e
desmoralização de Helena, até então vista como a mais cândida das criaturas. De
uma forma previsível, ao melhor estilo romântico, a pureza de intenções da
protagonista será depois confirmada: Salvador era de fato o pai de Helena e não
o seu amante. Já a mãe de Helena abandonou Salvador para viver em melhores
condições na companhia do Conselheiro Vale, ainda que na forma de uma relação extraconjugal
e clandestina. Àquele momento, Helena era uma criança: Salvador aceita o triste
destino, com a esperança, depois confirmada, de que o Conselheiro premiaria sua
filha pobre com um bom legado.
Após
a descoberta do segredo envolvendo o passado da protagonista, fica também
evidenciada a possibilidade do amor entre Estácio e Helena: ambos não são
irmãos. Mas, mesmo deixando de ser um amor incestuoso, ainda havia a barreira social,
esta tão intransponível quanto a barreira moral. Reconhecida até então como
filha do Conselheiro, passaria a ser identificada como descendente de um
simples artesão.
Ao
término da história, Helena falece após a forte comoção oriunda da revelação da
do seu passado. O amor impossível entre
ela e Estácio apenas poderia se resolver através desta forma.
Machado
de Assis no prefácio do livro reforça aquilo que expusemos anteriormente:
Helena é uma obra de juventude, parte da fase de maturação artística.
Ainda
assim, demonstrou alguma satisfação com o resultado do livro:
“Esta
nova edição de Helena sai com várias emendas de linguagem e outras, que não
alteram a feição do livro. Ele é o mesmo da data em que o compus e imprimi,
diverso do que o tempo me foi depois, correspondendo assim ao capítulo da
história do meu espírito, naquele ano de 1876.
Não
me culpeis pelo que lhe achardes romanesco. Dos que então fiz, este me era
particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes
páginas, ouço um eco remoto ao reler estas, eco da mocidade e fé ingênua. É
claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao
seu tempo.
[1] de
Moraes, V. L. A. (2008). Helena: Construções e contradições. Revista Da Anpoll,
1(24). https://doi.org/10.18309/anp.v1i24.16
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