O Teatro Popular de Ariano Suassuna
SIMÃO PEDRO
Há um ócio criador;
Há outro ócio danado,
Há uma preguiça com asas,
Outra com chifres e rabo!
MIGUEL ARCANJO
Há uma preguiça de Deus,
E outra do Diabo!
MANUEL CARPINTEIRO
E então, a moral é essa,
Que mostremos à porfia!
SIMÃO PEDRO
Viva a preguiça de Deus
Que criou a harmonia,
Que criou o mundo e a vida,
Que criou tudo o que cria!
MANUEL CARPINTEIRO
Viva o ócio dos Poetas
Que tece a beleza e fia!
No próximo dia 23 de Julho vai
completar dez anos da morte do romancista, dramaturgo e artista plástico Ariano Vilar
Suassuna (1927/2014). Morreu aos oitenta e sete anos de idade, pouco depois de
concluir um romance ao qual havia se dedicado havia mais de vinte anos, chamado
“O Romance de Dom Panteiro no Palco dos Pescadores”.
Transitou pela literatura e pelas
artes plásticas. Foi professor da Universidade do Recife (atual Universidade
Federal de Pernambuco) onde lecionou diversas disciplinas ligadas à arte e
cultura. Mas foi certamente no teatro, reproduzindo jogos de cena dos espetáculos
populares nordestinos e temas da dramaturgia universal, que se tornou conhecido
do público e consagrou-se como um dos principais artistas da história do teatro
do Brasil.
A primeira peça teatral escrita por
Ariano Suassuna foi uma tragédia chamada “Uma Mulher Vestida de Sol” (1947)
redigida quando o autor tinha 20 anos e ainda era estudante de Direito da
Faculdade de Recife.
Depois de formado, Suassuna retornou
à cidade de Taperoá para cuidar de um problema no pulmão. Era uma pequena
comarca situada no sertão da Paraíba onde passara a infância: lá retoma o
contato com a cultura popular, o que iria marcar a sua produção literária
subsequente.
Deixando de lado a tragédia, o
escritor dedicar-se-ia às comédias que o deixaram famoso. E dentre elas a mais
famosa sem sobra de dúvidas foi o “Auto da Compadecida” (1955).
As aventuras de João Grilo e Chicó
são conhecidas e amadas pelo povo brasileiro, não só por conta das três versões
cinematográficas produzidas no país, mas especialmente pela capacidade do
escritor de muito bem captar aspectos da psicologia do brasileiro.
O humor com que encaramos os
problemas da vida. A esperteza e sagacidade que orientam a ação dos personagens
quando confrontados com situações extremas. Um sentimento religioso mestiço,
envolvendo santos da igreja católica que nos aparecem em sua forma mais íntima
e humana, conversando como gente, inclusive apresentando um Jesus Cristo negro
de pele. A não presença de heróis, mas de homens com as suas fragilidades e
pecados, apenas compreensíveis e perdoáveis pela misericórdia divina.
Estas características seriam
posteriormente sintetizadas pelo Movimento Armorial (1970) idealizado pelo
escritor para propor realização de uma arte erudita brasileira a partir da
cultura popular, ou mais especificamente a cultura nordestina, com a sua
literatura de cordel, o seu teatro de mamelungos (aqueles conhecidos fantoches
de pano que servem de atores e são conduzidos por varas e barbantes por pessoas
que dão voz e movimento aos bonecos) e ilustrações de xilografia.
Os folhetos populares de literatura
nordestina já congregavam em si diferentes expressões artísticas. Deles constam
a poesia, o teatro e as imagens de xilografia que ilustram as suas capas.
Também agregam dentro de si a música, já que encerram espetáculos populares, encenados
ao ar livre, com acompanhamento musical - o musical dos cantos e músicas que
acompanham a leitura ou a recitação do texto.
Também estavam relacionados à
história oral e às primeiras formas de sedimentação e divulgação dessas
histórias do povo, contadas pela primeira vez na forma impressa em pequenos
folhetos, expostos para venda pendurados em cordas, barbantes ou “cordéis”,
atraindo o nome “Literatura de cordel”.
A Farsa da Boa Preguiça
Quando perguntado qual era a sua peça
de teatro favorita, Suassuna respondia sem pestanejar: “A Farsa da Boa Preguiça”.
Trata—se de uma comédia encenada pela primeira vez em 1961, no Recife, quando o
escritor já havia se consagrado nacionalmente com o seu “Auto da Compadecida”
(1955). Ambas as peças retomam o tema do trovadorismo português representado
pelo “Auto da Barca do Inferno” (1517) de Gil Vicente.
Nessas obras, as ações humanas são
acompanhadas pelo escrutínio de Deus e do Diabo, e seu séquitos de anjos, que
irão, ao final, dar à cada personagem o fim a que fizeram jus pelos seus atos
em vida. O conhecido “Julgamento Final” que irá levar os bons ao céu e os maus
ao inferno segue uma convenção que advém do teatro antigo conhecida como “licença”
ou “moralidade”. Por essa convenção, no fim da história, o autor podia dar a
sua opinião sobre o que acontecera no palco, o que poderíamos chamar de “lição
da história” ou “moral da história”.
A “Farsa da Boa Preguiça” foi acusada
ao seu tempo pelos intelectuais de esquerda como uma apologia reacionária à
preguiça.
A peça data dos anos 1960, momento em
que o pensamento de esquerda era majoritário nos meios intelectuais e artísticos
do país. De acordo com esses intelectuais, o autor de peça estaria aconselhando
o povo ao conformismo, à renúncia ao trabalho duro, e, supostamente, fazendo
com isso o jogo daqueles que desejavam entravar a luta de emancipação dos
trabalhadores e camponeses.
No prefácio da obra, o escritor
desmonta esta interpretação artificial, típica da forma unilateral do militante
ver a arte, seja na década de 1960, seja hoje através do identitarismo.
Diz Suassuna:
“Na verdade, o elogio que eu queria fazer na peça era, em primeiro lugar,
o do ócio criador do Poeta. (...) Em segundo lugar, o que eu desejava
ressaltar, na peça, era a diferença da visão inicial que nós, povos morenos e
magros, temos do Mundo e da vida, em face da tal “cosmovisão” dos povos
nórdicos. Não escondo que tenho um certo ‘preconceito de raça ao contrário’.
Sempre olhei, meio desconfiado, para essa galegada que, de vez em quando, nos
aparece por aqui, como quem não quer nada, que entra sem cerimônia e vai
mandando para fora amostras de nossa terras, de nossas pedras, do subsolo, da
água e até do ar, sem que os generosos Brasileiros estranhem nada. (...) Ora,
na minha arbitrária e talvez torcida opinião de brasileiro que nunca saiu de
sua terra, esses Povos nórdicos são raça com mais vocação para burro de carga
que conheço. Nós, Povos castanhos do mundo, sabemos, ao contrário, que o único
verdadeiro objetivo do Trabalho é a Preguiça que ele proporciona depois, e na
qual podemos nos entregar à alegria do único trabalho verdadeiramente digno, o
trabalho criador, livre e gratuito”.
Esta oposição entre a visão social de
mundo dos “povos mestiços” e dos “povos nórdicos” é representada na peça pelo
poeta popular Joaquim Simão e o ricaço Aderaldo. O primeiro de coração bom, mas
que rejeita sempre que pode o trabalho duro para se dedicar ao descanso e ao fazer
poesia, ao ócio criador. E o segundo, dedicado ao trabalho predatório de
explorar os outros e acumular riquezas.
Dentro deste embate, participam como
coadjuvantes anjos e demônios que irão tentar os personagens para o bem e para
o mal.
Joaquim Simão, predisposto ao bem,
acaba sendo seduzido por Clarabela, esposa infiel de Aderaldo; comete uma falta,
mas se arrepende sinceramente depois. Já Aderaldo e sua mulher Clarabela, ambos
convertidos ao ateísmo materialista, são ao final da peça confrontados pelos
demônios que irão cobrar o preço por suas más condutas em vida.
Através do “trabalho”, acumularam o
dinheiro. Desprezaram os pobres e miseráveis que lhes pediram esmola ou um
pedaço de pão.
E ao final, são desafiados pelos
anjos do mau: irão para o inferno se dentro de sete horas não encontrarem
alguém que rezasse por suas almas o “pai nosso” e o “ave maria”.
Neste momento, todo o dinheiro que
conquistaram não lhes serviu para a salvação da alma. Apenas a caridade do bom Simão
e sua mulher Neivinha, através de um ato puro de amor, sem busca de benefícios,
salvam os ricos. Ambos conseguem fazer a reza dentro do tempo estipulado pelo Diabo, e
garantem que os vilões passem do inferno ao purgatório.
Talvez poderíamos aqui incluir um
novo ponto de diferenciação entre nós, “povos mestiços” e “povos nórdicos”,
agora, no que diz respeito ao problema de Deus. Na tradição estrangeira, de tipo
puritana, prevalece o castigo sem a possibilidade do perdão divino. E, na nossa
tradição, que é o que vemos na peça, prevalece a justiça não dissociada do amor
e da infinita misericórdia de Deus.

Nenhum comentário:
Postar um comentário