Resenha Livro #33 “O Idiota” – Editora 34 – Tradução Paulo Bezerra
“O Idiota” (1868) foi escrito sob determinadas circunstâncias da vida de Dostoiévski, de maneira que a história narrada e, particularmente, a forma como é contada, ecoa a vida pessoal do escritor. Fugindo de credores, em meio a dívidas e crises de convulsão, o volume (682 páginas) parece ter sido escrito com compulsão, acessos de ímpetos e refluxos por parte das personagens, além de um nível de tensão dramática alto e permanente – situações limites desatam as personagens ora a rir e gargalhar, ora a chorar, ora a discutir e humilhar, ora a confraternizar, num pequeno espaço de tempo.
Para quem não está habituado ao texto do escritor, pode haver estranhamentos. Parágrafos com a extensão de páginas, repetições de palavras e reiterações de expressões do tipo “não obstante”, “ainda que”, “quero dizer...”, “por outro lado”, “por exemplo” “etc.”, expressam, aqui, a forma como a palavra sai de forma fugidia (e, nesse sentido, polissêmica) da boca dos personagens.
A despeito de alguns que julgam Dostoiévski um mal escritor, destacamos justamente o texto truncado, as palavras fugidias e polissêmicas das personagens, as longas orações e a falta de objetividade como aspectos que antes tornam “O Idiota” uma obra de arte de valor incomum do que manifestação de prolixidade. Ao longo da leitura, percebe-se certo domínio do narrador/escritor acerca dos fatos e, particularmente, das reações emotivas particulares de cada personagem. O “fugidio” e a “falta de objetividade” parecem antes ser manifestação de certo realismo do autor: o mesmo, de acordo com algumas notas de rodapé do livro, entendia ser o realismo antes produto de situações fantásticas do que de momentos ordinários, relatos objetivos de fatos cotidianos.
Na verdade, a intensidade dramática do texto, combinada com uma linguagem truncada que contempla fluxos de pensamentos e sentimentos irracionais, sugere-nos, antes, um completo domínio do autor sobre sua obra: o “realismo” em Dostoiévsky dá-se antes pela sua capacidade de descrever sentimentos contraditórios e ambíguos (igualmente expressos em palavras e ações “fantásticas”) tal qual eles (sentimentos) surgem-nos, muitas vezes: de forma indefinida, confusa e irracional.
O “realismo” aqui se deve, em sentido análogo, à provável percepção do autor de que a realidade fática antes se assemelha ao “fantástico” do que o que se pode entender como rotina. Mesmo diante daquelas circunstâncias em que o livro fora escrito (em meio a crises de saúde e cobranças financeiras), “O Idiota”, pareceu-nos, tratar-se de um relato fiel (e “realista”) da sociedade burguesa e aristocrática da Rússia do sec. XIX. As situações de elevada carga emocional, em Dostoiévski, parecer servir para criar condições para o leitor perceber e conhecer melhor o mundo descrito. A mesma intensidade dramática resulta tanto em uma forma textual diferente da habitual, quanto, mais importante, numa profunda viagem no coração e mente das personagens que vivenciam aquele momento histórico a partir das respectivas classes sociais (burgueses, pequenos burgueses e aristocratas).
O enigmático Príncipe Míchkin e questões políticas
Ora entendido como um louco, ora como uma criança, ora como um gênio, o protagonista de “O idiota” representa um contraponto às expectativas e aspirações comuns da sociedade russa do séc. XIX. Por meio do Príncipe (que faz lembrar Dom Quixote e Jesus Cristo), Dostoiévsky faz mostrar como na alta e média sociedade russa do séc. XIX um personagem com boas intenções pessoais é, antes de mais nada, um incompreendido.
Há um certo pessimismo aqui, havendo a ideia de que as ações boas e altruístas não encontram espaços em meios onde vigoram os valores burgueses e urbanos importados da Europa, co-existindo, não obstante, com o tradicionalismo Russo. A divisão de opinião acerca da modernização política e cultural da Rússia, pela via “ocidental” (“ocidentalistas”) ou por uma via tipicamente russa (“eslavófilos”) era objeto de debate, então. Não temos elementos suficientes para afirmar com segurança a qual grupo Dostoipevsky se filiava. Segundo informações bibliográficas – contidas na edição da “34” – o escritor era sim um crítico da linha ocidentalista, sem com isso ser um adepto sectário e sem críticas da linha eslavófila.
Seja como for, em “O idiota”, o Príncipe vê-se diante de uma sociedade em transformação, que importa valores e ideias liberais (havendo controvertidos diálogos acerca da “questão feminina”) e, não obstante, conserva entre alguns personagens valores e práticas antigas, como sinaliza as lembranças do general Ívolguin e algumas falas da velha Lisavieta Prokófievna. Excluído daquela sociedade por meios certamente injustos aos olhos do leitor, o Príncipe pode, hoje, retratar de maneira alegórica os limites dos discursos da ética, da justiça e do bem fazer em meio a um mundo movido pela busca incessante do lucro pessoal. O pessimismo dostoiésvkiano dá pistas da política de “O Idiota”.
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