sábado, 4 de dezembro de 2021

O DEMÔNIO FAMILIAR DE JOSÉ DE ALENCAR

 O DEMÔNIO FAMILIAR DE JOSÉ DE ALENCAR






“EDUARDO – Os antigos acreditavam que toda a casa era habitada por um demônio familiar, do qual dependia o sossego e a tranquilidade das pessoas que nela viviam. Nós, os brasileiros, realizamos infelizmente esta crença; temos no nosso lar doméstico esse demônio familiar. Quantas vezes não partilha conosco as carícias de nossas mães, os folguedos de nossos irmãos e uma parte das atenções da família! Mas vem um dia como hoje, em que ele na sua ignorância ou na sua malícia, perturba a paz doméstica; e faz do amor, da amizade, da reputação, de todos esses objetos santos, um jogo de criança. Este demônio familiar de nossas casas, que todos conhecemos, ei-lo.”. 

 

José Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, que na época era um povoado nas cercanias de Fortaleza. Seu pai fora padre, mas largou a batina para dedicar-se à vida política. José de Alencar estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em São Paulo, onde foi colega de Álvares de Azevedo (1831-1852) e Bernardo Guimarães (1825-1884).

 

Exerceu o jornalismo, a crítica literária e a política. Foi deputado pelo partido conservador e ocupou o cargo de ministro da justiça no gabinete Itaboraí. Defendeu a escravidão. Para os heróis do identitarismo que defendem a censura de Monteiro Lobato e o fogo nas estátuas, é possível que este fato os autorize a deixar de conhecer nosso escritor, sem grandes remorsos.

 

Na literatura, é muito lembrado como o escritor romântico de obras com centralidade na figura do índio. Seria um primeiro movimento literário nacionalista, senão na forma, que ainda se baseava na tradição literária francesa, no conteúdo.

 

Ficaram conhecidos do público as obras indianistas deste nosso escritor: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874).

 

Na sua crítica à Gonçalves Magalhães, o escritor cearense dizia que a forma literária dos épicos era meio inadequado de retratar a nacionalidade: havia muito pouco tempo desde o fim da colônia e início da constituição da nação para se cogitar uma mitologia brasileira.

 

 

Também não se filiava Alencar à perspectiva dos cronistas que intentaram retratar de forma documental os índios brasileiros. Para o escritor, os índios deveriam ser retratados através do romance.

 

A idealização do bom selvagem, decorrência do pensamento romântico e com referência clara a Jean-Jacques Rousseau, geraria críticas já no tempo de Alencar. Manifestou-se o entendimento de que o autor era um artista de gabinete, que buscava retratar realidades regionais sem nunca tê-las conhecido de perto. Estas críticas tinham sua razão de ser: de fato, nunca se propôs a fazer uma antropologia dos índios brasileiros.

 

Talvez não seja tão conhecida do público sua peça de teatro “O Demônio Familiar” escrita em 1817 e que de certa forma já antecipa alguns temas do movimento abolicionistas, a despeito do nosso escritor cearense ter sido ele próprio do partido conservador e partidário da escravidão.

 

A história se passa no seio familiar do Dr. Eduardo, sua irmã Carlotinha, sua amiga Henriqueta, e outras figuras de uma ascendente burguesia citadina situada no Rio De Janeiro.

 

Carlotinha ama Alfredo, mas é induzida a casar com Azevedo. Henriqueta ama Eduardo, mas tem os seus intentos igualmente frustrados por uma aparente força oculta. Alfredo intenta casar por interesse com Henriqueta, mas deseja Carlotinha. Por de trás dos desencontros amorosos opera Pedro, um escravo doméstico, que lança mão de uma série de artifícios para manipular as relações entre as personagens de acordo com os seus caprichos. Troca as cartas de um para destinatários de outro. Mente e manipula.

 

Pedro neste caso é o próprio Demônio Familiar: tem o desejo íntimo de ascender de escravo doméstico para cocheiro, possibilitando usar belas roupas e transitar pela cidade conduzindo os cavalos e sendo observado por todos. Diante deste desejo, Pedro busca induzir os demais personagens ao casamento dentro dos seus interesses pessoais, puramente pecuniários. No caso, o enlace não dizia respeito às verdadeiras intenções das partes, mas ao que era possivelmente mais conveniente do ponto de vista financeiro ao escravo. Com casamentos bem sucedidos financeiramente, garantiria o seu sonho de ascensão social.

 

É como se Pedro traçasse durante a peça diversos nós com as suas mentiras, quase implicando na desagregação do seio familiar. No último instante da peça, Eduardo desfaz todos estes nós, chamando a atenção dos parentes e dos amigos de que os desencontros não decorrem de um problema pessoal de mal caráter do escravo, mas da própria inconveniência da escravidão, ao menos no seio da família.

 

Na trilha da tradição romântica, o seio familiar “deve ser tão sagrado como um túmulo.”.

 

Mais de 50 anos depois, outro escritor retomaria esta tese, já com um conteúdo inequivocamente abolicionista. No seu “Vítimas Algozes” (1869), Joaquim Manuel de Macedo retoma o tema da influência negativa da escravidão nas famílias proprietárias. Os paralelos entre Pedro do Demônio Familiar e Lucrécia na sua relação com Cândida do Vítimas Algozes são patentes.

 

Crescia a percepção de que a escravidão já envolvia prejuízos culturais e morais muito maiores  do que os seus eventuais proveitos financeiros. Diríamos hoje, com um certo anacronismo, tratar-se de livros “racistas” que defendem a abolição da escravatura menos pela situação de miséria do escravo e mais pelos efeitos desta tragédia na vida dos proprietários, dos brancos.  

 

No final da peça, Eduardo, após descobrir as mentiras do seu escravo, pune-o com a sua liberdade.

 

Diz ao Demônio Familiar, após entregar sua carta de alforria:

 

“EDUARDO - Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes. (Pedro beija-lhe a mão).”.   

sábado, 27 de novembro de 2021

OS "CONTOS AMAZÔNICOS" DE INGLÊS DE SOUSA

 OS "CONTOS AMAZÔNICOS" DE INGLÊS DE SOUSA



 



É naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Face a face toda a vida com a natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e distante da agitação social, concentra-se a alma num apático recolhimento, que se traduz externamente pela tristeza do semblante e pela gravidade do gesto.

O caboclo não ri, sorri apenas; e a sua natureza contemplativa revela-se no olhar fixo e vago em que leem os devaneios íntimos, nascidos da sujeição da inteligência ao mundo objetivo, e dele assoberbada. Os seus pensamentos não se manifestam em palavras por lhes faltar, a esses pobres tapuios, a expressão comunicativa, atrofiada pelo silêncio forçado da solidão.”

 

Nascido em Óbidos, no oeste do Pará, na data de 28/12/1853, Herculano Marcos Inglês de Sousa ainda não é suficientemente conhecido pelo público, especialmente do sul e sudeste do Brasil, sempre tão ignorantes como somos sobre o que se passa na Amazônia.

 

Foi um intelectual, parlamentar e escritor, sendo um dos precursores do naturalismo literário.

 

Há muitos traços comuns entre os tapuias paraenses e os tipo sociais do Maranhão retratados pelo mais conhecido escritor deste corrente literária, Aluísio Azevedo e seu Mulato (1881). A mesma objetividade da narrativa e um então pouco usual enfoque e protagonismo de personagens dos extratos mais baixos da sociedade.

 

No caso de Inglês de Sousa, são os caboclos, os tapuias, os mestiços, os sertanistas ou, como se diziam de si próprios os cabanos, “os brasileiros”.

 

Aos 26 seis anos, o escritor iniciou o curso de Direito no Recife, tendo terminado o bacharelado em 1876 pela Faculdade de São Paulo.

 

Chegou a ser professor e diretor da mesma Faculdade de Direito do Largo São Francisco, até iniciar sua carreira como político. Deputado provincial em São Paulo, deputado geral pelo Pará, foi ainda presidente das províncias de Sergipe e Espírito Santo. Esta condição de homem de governo certamente radicalizaria aquele objetivismo dos naturalistas, fazendo com que algumas de suas narrativas possam ser consideradas fontes históricas da história do Amazonas.

 

Quando do movimento da Cabanagem retratada no conto “O Rebelde”, o escritor vai ao ponto de descrever como aqueles tapuias se vestiam, como se comunicavam, qual era a divisão de tarefas entre os homens e mulheres do bando, e as razões da insurreição: o ódio contra os portugueses e os maçons.

 

“Paulo da Rocha dissertou longamente sobre as causas da cabanagem, a miséria ordinária das populações inferiores, a escravidão dos índios, a crueldade dos brancos, os inqualificáveis abusos que esmagam o pobre tapuio, a longa paciência destes. Disse da sujeição em que traziam os brasileiros, apesar da proclamação da independência do país, que fora um ato puramente político, precisando de seu complemento social. Mostrou que os portugueses continuavam a ser senhores do Pará, dispunham do dinheiro, dos cargos públicos, da maçonaria, de todas as fontes de influência; nem na política, nem no comércio o brasileiro nato podia concorrer com eles. Que enquanto durasse o predomínio despótico do estrangeiro, o negro no sul e o tapuio no norte continuariam vítimas de todas as prepotências, pois que eram brasileiros, e como tais condenados a sustentar com o suor do rosto e a raça dos conquistadores.”.

 

Ainda que neste conto ficam claras as origens populares e os sentimentos de rivalidade e nativismo na cabanagem, o livro não faz proselitismo político: sua objetividade não afasta a análise do drama sob os olhares de um menino, filho de um juiz de paz, que vê sua família ser perseguia e seu pai ser morto não em crueldade por bandos cabanos.

 

Os cabanos matavam velhos, mulheres e crianças, invadiam e saqueavam povoados e, na visão do herói do conto, um veterano da Revolução Pernambucana de 1817, derramava inutilmente o sangue de brasileiros irmãos. Os movimentos populares também tem as suas imperfeições, os seus abusos e injustiças.

 

Além de captar a realidade conforme sua complexidade, sem partidarismo político, as histórias envolvem o folclore, a cultura e a fisionomia psicológica da população da Amazônia.

 

O amazonense tem um semblante triste, contemplativo e gravidade nos gestos. Sua alma é tão fatalista quanto as determinações da natureza que, naquele lugar, assumem a mais absoluta exuberância e radicalidade. No que se refere ao imaginário local, temos contos como A Feiticeira ou Acauã, em que se afirmam histórias e crendices populares, semelhantes às histórias contadas no interior paulista e reproduzidas por Monteiro Lobato.

 

No caso do tapuia do norte, a possibilidade de uma tragédia (natural ou social) imanente parecem fazer com que este povo seja naturalmente mais introspectivo e menos expansivo.

 

O caboclo não ri, apenas sorri, diz Inglês de Sousa.

 

Bibliografia:

“Contos Amazônicos” – Inglês de Sousa – Iba Mendes Editor Digital – www.poeteiro.com  

sábado, 20 de novembro de 2021

A CORTE DE D. JOÃO NO RIO DE JANEIRO

 A CORTE DE D. JOÃO NO RIO DE JANEIRO POR LUIZ EDMUNDO




 

Resenha Livro – “A Corte de D. João no Rio de Janeiro” – Luiz Edmundo – 1º Volume – 2ª Edição – Ed. Conquista.

 

“D. João tinha um tipo vulgar. Era curto, era grosso, a cabeça larga e vermelha, surgindo de um conflito de roscas e papadas.

Quando aqui chegou contava quarenta anos de idade. Parecia, porém, um velho de sessenta; o ventre em bola, desentocando de duas grossíssimas coxas que faziam estalar a seda de seus calções cor de pérola. Ar tímido, gestos amolengados. A marchar, marchava como pensava, devagar. Garante-nos o escritor português Oliveira Martins na sua História de Portugal, que ele era homem de pouco asseio, “de resto, como toda a família”, acrescenta, para dizer, logo depois que, ele, que andava, sempre às turras com a mulher, pensando de modo diverso, contrariando-a, em tudo, na hora do banho, com ela, logo ficava de acordo.”.

  

A transferência da Corte Portuguesa no Brasil, decorrência das Guerras Napoleônicas e de uma estratégia, traçada de forma intempestiva, de salvar a Dinastia dos Bragança, manter a aliança política e militar de Portugal com a Inglaterra e abandonar o território do Reino e sua população aos invasores franceses liderados pelo comandante Junot, teve diversas implicações na história do Brasil.

 

Mais exato seria dizer que a fuga da família Real e a instalação extemporânea  da Monarquia no Brasil traria como benefícios aos brasileiros:

 

1   A elevação do Estado do Brasil à condição de Reino Unido de Portugal e Algavres, criando as condições políticas e jurídicas da independência de 1822;

2-      A abertura dos portos às nações amigas, decisão tomada por D. João VI ainda na Bahia, antes mesmo da sua chegada no Rio de Janeiro onde se instalaria até o fim da Guerra Europeia.

3-      Benefícios de ordem cultural como a vinda da missão artística francesa, a fundação da Academia de Belas Artes, a fundação do Banco do Brasil, a criação de escolas de medicina na Bahia e no Rio de Janeiro, o Jardim Botânico e as obras de melhoramento urbano no Rio de Janeiro, que receberia de um dia para a noite cerca de 15.000 pessoas da corte portuguesa, na sua maior parte nobres e seus funcionários particulares.

4-      A criação da imprensa Régia em 13 de maio de 1808, dia do aniversário do príncipe regente D. João (1767-1826). Nela foi editado o primeiro jornal da colônia americana chamado a “Gazeta do Rio de Janeiro”.

 

Tão importantes como as condições geopolíticas da Europa que levaram a fuga da Família Real para o Brasil e os seus efeitos políticos, econômicos, sociais e culturais, é conhecer os bastidores desta grande operação, a intervenção não só do Príncipe Regente, mas das pessoas que o influenciavam, das repercussões destes fatos diante dos olhos do povo, ou melhor, dos povos de Brasil e de Portugal.

 

Quando da saída dos Barcos do Tejo em 1807, caia uma chuva triste e monótona e os portugueses tentavam esconder sua completa indignação diante do abandono de suas elites ante o invasor francês:

 

“- Patifes! Cobardes! Súcia! Então o povo é que fica? Nós o que somos? Abandonam-nos como se fossemos cães!

Há punhos no ar e os monitores do Sr. Intendente da Polícia suplicando calma.”.

 

Já a reação do povo brasileiro à chegada da Corte foi o exato oposto:  festas e folganças, clamores e vivas, foguetes e festas verdadeiramente populares com o povo “cantando, berrando, em meio à patuleia tumultuosa”.

 

Neste livro do escritor carioca Luís Edmundo de Melo Pereira da Costa, o que vemos é uma versão verdadeiramente brasileira dos fatos. A narrativa se parece com um romance, ou uma reportagem, tendo como fontes os arquivos históricos da cidade do Rio de Janeiro e as memórias de pessoas da nobreza e da elite política que tiveram contato direto com D. João IV, sua mãe, Maria I a louca, a libertina Carlota Joaquina, e os filhos D. Pedro e D. Miguel.

 

O livro é de fácil leitura e traz informações sobre os detalhes da viagem, o cotidiano do Rei e de sua família no Rio de Janeiro, as festas e cerimônias, dentre elas, a mais relevante: o beija mão, momento em que todos os tipos sociais, ricos e pobres, podiam fazer requerimentos diretos ao grande Rei.

 

Por expressar um ponto de vista brasileiro, e não português, o livro é de certa forma simpático ao D. João IV, retratado como aquela figura já conhecida: meio grotesca, glutão, pusilânime, mas com um bom coração, misericordioso, amante do Brasil, desconfiado, supersticioso, com medos de trovões, amante da comida (especialmente frangos), triste por ser obrigado pelas Cortes de Lisboa a retornar ao Reino.

 

Um Rei sem nenhuma originalidade ou ideias políticas próprias, levado a tomar decisões pelas pressões e forças dos acontecimentos. Mas, um monarca que não inspirava medo nos seu súditos, mas franca simpatia.  

 

SOBRE O AUTOR

 

Luís Edmundo foi jornalista, poeta, cronista, memorialista, teatrólogo e historiador. Nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 26 de junho de 1878, e faleceu na mesma cidade em 8 de dezembro de 1961. Era definitivamente apaixonado por sua cidade, dedicando boa parte do seu trabalho na pesquisa e publicações de crônicas sobre a cidade. Voltou seu interesse para o século XVIII e imaginou um vasto painel do Rio de Janeiro no tempo dos Vice-reis. Foi a Portugal, pesquisou em arquivos, bibliotecas e conventos de província, depois à Espanha, reunindo material, inclusive iconográfico, para as obras que iria escrever.

 

 

domingo, 14 de novembro de 2021

SOBRE O ROMANCE “PHILOMENA BORGES” DE ALUÍSIO AZEVEDO

 SOBRE O ROMANCE “PHILOMENA BORGES” DE ALUÍSIO AZEVEDO

 




Aluísio Azevedo é inequivocamente o maior expoente do naturalismo literário no Brasil.

 

 

Esta etapa da evolução histórica da literatura acentuou um sentido geral de objetividade que advinha já da 3ª Fase do Romantismo e do Realismo. No caso do naturalismo, a objetividade ganha contornos de cientificidade, havendo mesmo uma proposta de fusão entre a arte e a ciência. Enquanto na escola romântica, a salvação humana está no retorno do homem ao seu estado natural, no Naturalismo, a salvação dá-se em torno da explicação científica do mundo, mediante a descrição empírica dos fenômenos sociais. Não raramente, fatos sociais se equivalem aos fatos da natureza, revestidos da mesma fatalidade.

 

Este tipo de arte suscita evidentes fontes históricas para o leitor dos dias de hoje. A descrição do Cortiço no mais famoso romance de Aluísio Azevedo possibilita um contato direto com a realidade do subúrbio do Rio de Janeiro do século XIX, descrevendo os tipos populares, como o taverneiro português João Romão, a quintandeira Bertoleza ou a mulata sensual Rita Baiana.

 

É certo, contudo, que este protagonismo dos tipos populares ainda é parcial neste romance, publicado em 1890. O grande protagonista d’o Cortiço é o próprio espaço territorial, que se apresenta ao leitor como um organismo social, com uma vida própria, tendo, ironicamente, os personagens o caráter mais paisagístico. A comparação com um formigueiro, dentro da perspectiva naturalista, não seria de todo errada.

 

Além disso, os personagens do Cortiço são retratados de uma maneira caricatural, havendo um evidente diálogo entre a escrita de Azevedo e o seu trabalho anterior como chargista de jornal. A sátira e a comédia dão o tom do pouco conhecido romance “Philomena Borges”.

 

“Philomena Borges”

 

“Estranha existência a dessas duas criaturas que a natureza fez tão diversas, tão contrárias, mas que o acaso laçou no mesmo destino, abraçadas a uma só onda, sofrendo e gozando promiscuamente, sem nunca poderem determinar onde principiava a dor, onde terminava o gozo.

A mesma cousa, que a um fazia padecer, dava ao outro transportes de alegria. Daí esse equilíbrio da lágrima e do riso, que era a fonte de toda a sua coragem e de toda a sua força. Não podia sucumbir nunca, porque um deles estava sempre de pé para amparar o companheiro, quando este por ventura vacilasse.”.

 

“Philomena Borges” é um livro menos conhecido do nosso escritor naturalista, cujo estilo está mais próximo da sátira e das caricaturas, do que dos projetos literários inequivocamente naturalistas. Trata-se de uma comédia divulgada em Folhetim na “Gazeta de Notícias” no começo do ano de 1884.

 

A história descreve a vida de um casal improvável pela completa oposição de personalidades: de um lado Borges, um quarentão pacato, até mesmo cândido, todo ele dedicado ao trabalho como mestre de obras, à rotina e à avareza. Já Philomena, filha de um Conselheiro de Estado que, antes de morrer, gastara toda a fortuna da família “no jogo e nas confeitarias”, desde pequena herdaria uma tendência à ambição pelas grandes realizações, uma altivez aristocrática, um gosto estético refinado, tudo em oposição ao pragmatismo burguês de seu marido.

 

Esta oposição de gênios, no início do romance, leva o leitor erroneamente à ideia de que o casamento redundaria num fracasso: mas esta oposição leva gradualmente as partes a um amor verdadeiro, que é colocado à prova diante de momentos de riqueza e miséria, como quando o casal, fugindo de credores, chega ao limite da fome, na província de São Paulo.

 

Philomena Borges, no primeiro dia do casamento, fecha-se no quarto onde se dariam as primeiras núpcias e mantém desde então uma atitude de reserva em relação ao marido, que teria de provar ser digno de seu amor. A dedicação do marido, o “João Touro” levava-o ao cômico de aprender, aos quarenta anos, a dançar, a encenar peças de teatro ou até mesmo experimentar pela primeira vez o charuto, abandonando o hábito do rapé.

 

A bela Philomena, por outro lado, prova o seu amor ao Borges acompanhando-o nos momentos de dificuldade financeira, recusando todos os cortejos, e sempre incentivando o marido aos mais altos voos: de capitalista à bancarrota comercial, de ator de circo à diretor de  representações teatrais na Europa, de Barão à Visconde de Itassu, de conselheiro de D. Pedro II à, finalmente, derrotado pelo Partido Conservador. É o final do livro, em 1878, quando o João Touro, finalmente se vê livre da política (que ele odeia) e retorna a sua querida Paquetá. Infelizmente, sua derrota na política implicaria, para Philomena, o fim das ilusões em torno das suas próprias ambições e sonhos grandiloquentes, representada por sua morte.

 

A história de temperamentos tão diferentes que, num primeiro momento parece improvável e com o tempo, convence e comove o leitor acerca do enlace, também seria retratado em outro romance pouco conhecido do nosso escritor maranhense, o “Coruja”, cuja resenha, remetemos o nosso leitor: http://esperandopaulo.blogspot.com/2019/05/o-coruja-aluisio-azevedo.html

sábado, 30 de outubro de 2021

SOBRE O ROMANCE “ABDIAS” DE CYRO DOS ANJOS

 SOBRE O ROMANCE “ABDIAS” DE CYRO DOS ANJOS




 

Resenha Livro - “Abdias” – Cyro dos Anjos – Livraria José Olympio Editora

 

“Vivemos num mundo imaginário, construído segundo os conceitos apriorísticos que formamos das pessoas e coisas que nos cercam. Neste sentido, a vida será efetivamente como um sonho. Veremos as coisas não como são mas conforme nosso espírito as concebe. Muitas vezes nos é dado, no curso dos dias, retificar alguns desses erros do conhecimento. Mas quantos outros, e às veze substanciais, nos acompanharão até a morte?”.

 

SOBRE O AUTOR

                                                                     

Cyro Versaini dos Anjos nasceu em 5 de Outubro de 1906 na cidade de Montes Claros/MG. É um dos muitos exemplos representativos de uma bela tradição escritores mineiros: Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e, mais recentemente, Fernando Sabino, produziram obras não necessariamente regionalistas, mas que trazem nos seus textos referências ao seu Estado natal.

 

Cyro dos Anjos permaneceu em Montes Claros até os 18 anos. Naquela cidade, iniciou os estudos numa Escola Normal e ainda jovem teve contato com Machado de Assis, Eça de Queiróz e Camilo Castelo Branco. Como veremos na análise do romance, não são poucos os críticos que ressaltam um tom tipicamente machadiano nas confissões de “Abdias” e do “Amauense Belmiro”.

 

Em 1924, nosso escritor fixou-se em Belo Horizonte onde começou a trabalhar como jornalista, além de iniciar o curso de Direito, concluindo a graduação em 1932.

 

Na imprensa mineira, Cyro dos Anjos escreveu no Diário da Tarde (1927), Diário do Comércio (1928), Diário da Manhã (1929), Diário de Minas (1929/1930), além de contribuído no “A Tribuna” (1932) sob o pseudônimo de Belmiro Borba, produzindo as crônicas que seriam o germe do seu primeiro livro, “O Amanuense Belmiro” (1937).   

 

Faleceu em 4 de Agosto de 1994 na cidade do Rio de Janeiro.

 

ABDIAS

 

Este é o segundo livro do nosso romancista, publicado em 1945. Nas palavras do próprio narrador, se trata de um “caderno de confissões” de um professor de letras e diretor do Arquivo Histórico na cidade de Belo Horizonte.

 

O romance é efetivamente escrito na forma de um diário íntimo em que Abdias, homem de 40 anos, casado e pai de três filhos, relata o seu ingresso como professor de literatura brasileira num Liceu ou, como se dizia antigamente, Escola Normal. Tratava-se de instituições de ensino exclusiva para as mulheres, neste caso dirigido por freiras de origem francesa.

 

A despeito de a história decorrer de um diário pessoal, não se verifica no estilo literário a subjetividade típica de uma confissão e muito menos o sentimentalismo. Pelo contrário, o autor busca a fidelidade da exposição, inclusive se corrigindo quando deixa transparecer palavras desnecessárias ou retóricas, sempre conduzindo a narrativa dentro de um certo realismo literário, que efetivamente remete a esta escola literária:

 

“O amor é uma forma de loucura e, como a loucura, tem alternativas: agrava-se subitamente hoje, amanhã se atenua sem sabermos por quê. No estado em que ontem me achava, teria sido capaz de pôr fogo a uma cidade, só para ver Gabriela. Mau... Começo a usar da linguagem hiperbólica dos namorados. Há nisso, sem dúvida, espantoso exagero. Por certo, eu não atearia fogo nem a um monte de alfafa.”. (Fls. 290).

 

Como professor de letras, Abdias conhece Gabriela, uma graciosa normalista filha da tradicional família de políticos de sua cidade natal, em Várzea dos Buritis. Mesmo casado e com idade para ser o pai aluna, gradualmente Abdias vai deixando-se tomar pelo coração até o ponto de acreditar amar a estudante e, nos recônditos da consciência, onde predomina o egoísmo, desejar a morte de sua dedicada esposa Carlota.

 

A história se passa nos anos 30 e em algumas passagens o autor lança luz sobre este contexto histórico de ascensão do nazismo e risco iminente de deflagração da Guerra Mundial.

 

Com a Guerra Civil Espanhola em curso, ainda havia, no meio intelectual frequentado por Abadias, a crença de que Inglaterra e França seriam capazes de deter o expansionismo alemão.

 

O professor, pessoalmente, não compartilhava destas ilusões:

 

“Respondi que, infelizmente, a coisa parecia apenas questão de tempo. A anexação da Áustria, os discursos do Herr Hitler, sua interferência na guerra civil da Espanha eram indícios de que já se preparara a máquina bélica para realizar o sonho germânico de conquista do mundo.”. (Fls. 278)

 

Talvez mais interessante do que o enredo e a trajetória dos fatos envolvendo Abadias, o livro certamente alcança o que há de mais alto na literatura brasileira por conta das sondagens psicológicas e de consciência do narrador.

 

Em Brás Cubas, Machado de Assis criou um “autor defunto” e “defunto autor” para que o narrador, livre do peso da consciência e do vexame que pesa sobre os vivos, pudesse relatar sua vida de forma cruelmente realista, não raro resvalando no cômico.

 

Em Abdias, como o romance é escrito na forma do diário, a franqueza com que se conta a história produz efeito parecido, talvez sem os lances de humor do Bruxo do Cosme Velho, mas ainda mantendo compromisso com a objetividade. Realista, sem, com isso, deixar de traduzir o poço de contradição que é a alma humana.  

sábado, 9 de outubro de 2021

“Anjo Negro” – Nelson Rodrigues

 “Anjo Negro” – Nelson Rodrigues




 

Resenha Livro - “Anjo Negro: drama em três atos. Peça Mística. 1948” – Nelson Rodrigues – Ed. Nova Fronteira – 5ª Edição.

 

“SENHORA – Ó branca Virgínia!

SENHORA (rápido) – Mãe de pouco amor!

SENHORA – Vossos quadris já descansam!

SENHORA – Em vosso ventre existe um novo filho!

SENHORA – Ainda não é carne, ainda não tem cor!

SENHORA – Futuro anjo negro que morrerá como os outros!

SENHORA – Que matareis com as vossas mãos!

SENHORA – (com voz de contralto) – Vosso amor, vosso ódio não têm fim neste mund!

TODAS (grave e lento) – Branca. Virgínia...

TODAS (grave e lento) – Negro Ismael.”.

 

Nelson Rodrigues nasceu em Recife em 1912, e morreu no Rio de Janeiro no ano de 1980.

 

A produção teatral mais relevante do escritor se situa entre “Vestido de Noiva” (1943) – um ano após a sua estreia, em 1942, com “Mulher Sem Pecado” – e, 1965, ano da estreia de “Toda a Nudez Será Castigado”. O contexto histórico abrange período de rápida transição do Brasil agrário para um país urbano, o que envolveu uma rápida mudança dos comportamentos.

 

Em 1958 o Brasil ganharia sua primeira Copa do Mundo e se tornaria desde então o país do futebol. O jornalismo passa cada vez mais a ser um instrumento de comunicação de massas, contando com o rádio e a televisão. Em certas regiões, a industrialização acelerada engendraria uma nova fisionomia social ao país. Aos poucos, as mulheres vão granjeado maior importância social.

 

Neste contexto, é certo que o teatro do nosso escritor expressa estas mudanças do Brasil. Representou o nascimento do nosso modernismo teatral, com algum atraso em relação ao nosso modernismo literário. Até então, o Teatro brasileiro, iniciado por Martins Pena (1815/1848), limitava-se às comédias de costume, aos dramalhões e ao teatro musicado. O gênero dramático ainda aparece como novidade, o que explica, inclusive, a censura de algumas peças ou as vaias proferidas quando da encenação de “Perdoa-me Por Traíres-me” ainda no ano de 1957.

 

As peças de Nelson Rodrigues, a despeito das diferentes classificações[1], têm alguns traços constantes: predominância do ambiente urbano, ênfase em temas como a virgindade, o ciúmes, o incesto, o impulso à traição e a canalhice humana.  

 

Dentro da classificação de Sábato Magaldi, “Anjo Negro” se situa dentre as “peças místicas” do jornalista carioca. Escrita em 1946, foi dirigida pela primeira vez pelo polonês Ziembiski, refugiado no Brasil da II Guerra Mundial.

 

Uma leitura absolutamente superficial da peça poderia sugerir um racismo inequívoca de Nelson Rodrigues, retratando no personagem negro Ismael, uma referência diametralmente oposta às afirmações em torno do orgulho negro, comuns hoje em dia. O personagem Ismael tem ódio de ser preto, escraviza sua mulher branca e não admite que ela saia de uma casa cheia de muros, com o risco de lançar os olhos sobre um homem não negro.

 

Na verdade, a peça é pioneira ao apresentar o personagem negro fora de um arquétipo desumanizado, coisificado, folclórico e hipersexualizado. Ao explorar as contradições e ambiguidades do racismo brasileiro, o autor revela de forma brutal os efeitos do nosso preconceito dissimulado. Inequivocamente, um racismo diferente do preconceito do norte-americano. Mas, nem por isso, um racismo menos violento.

 

Nos dias de hoje já é quase um senso comum a crítica da tese da “democracia racial” consubstanciada no “Casa Grande & Senzala” (1933) de Gilberto Freyre. Neste livro, que se situa dentro de um conjunto de obras voltadas ao passado colonial brasileiro, com a finalidade de demarcar nossas especificidades e traçar as bases da nacionalidade brasileira, a ênfase do autor pernambucano dá-se não no conflito de raças, mas na mestiçagem.

 

Enquanto na américa do norte predominou as colônias de povoamento, com viés religioso, a colonização brasileira foi um empreendimento comercial pautado pela denominada colônia de exploração. O maior problema dos portugueses que aqui chegaram era a falta de gente e, particularmente, de mulheres. Desde o primeiro momento, a família brasileira foi assim constituída da miscigenação do branco, do negro e do índio.  Além disso, no Brasil, ao contrário dos EUA, a escravidão africana não foi um fenômeno regional, mas uma forma de exploração do trabalho disseminada em todo o território. Ao contrário dos EUA, no Brasil os negros não foram e não são uma minoria populacional.

 

A despeito da mestiçagem ser um fato histórico dificilmente refutável, neste “Anjo Negro” temos acesso a um aspecto do problema racial pouco mencionado por Gilberto Freyre. O afeto do ressentimento, bem como a incorporação, pelo oprimido, dos valores do opressor, perpetrando a violência do racismo no abuso sobre a mulher, e até mesmo na aquiescência do assassinato de crianças de cor. Este afeto envolve uma dinâmica que, curiosamente, faz-se presente dentro de militantes do movimento negro dos dias de hoje, ligados à agenda identitária norte-americano. O ciclo em que o passado de violência autoriza o oprimido a agir com arrogância, e depois, com sadismo e perversão.

 

Neste contexto, a despeito do racismo dissimulado brasileiro, o leitor não deve perdoar Ismael, nem vê-lo como uma vítima, mas encarar sua tragédia como parte da vida (brasileira) como ela é.



[1] Peças psicológicas, pelas místicas e tragédias cariocas.

sábado, 2 de outubro de 2021

“O Beijo No Asfalto: Tragédia Carioca em 3 Atos” – Nelson Rodrigues

 O Beijo No Asfalto: Tragédia Carioca em 3 Atos” – Nelson Rodrigues




 

Resenha Livro - “O Beijo No Asfalto: Tragédia Carioca em 3 Atos” – Nelson Rodrigues – Editora Nova Fronteira

 

Arandir (repetindo para si mesmo) --- ”Nunca mais. Quer dizer que. Me chamam de assassino e. (com súbita ira). Eu sei o que “eles” querem, esses cretinos! (bate no peito com a mão aberta). Querem que eu duvide de mim mesmo! Querem que eu duvide de um beijo que. (baixo e atônito, para a cunhada). Eu não dormi, Dália, não dormi. Passei a noite em claro! Vi amanhecer. (com fundo sentimento). Só pensando no beijo no asfalto! (com mais violência). Perguntei a mim mesmo, a mim, mil vezes: se entrasse aqui, agora, um homem. Um homem. E. (numa espécie de uivo) Não! Nunca! Eu não beijaria na boca um homem que. (Arandir passa as costas da mão na própria boca, com um nojo feroz) Eu não beijaria um homem que não estivesse morrendo! Morrendo aos meus pés! Beijei porque! Alguém morria! “Eles” não percebem que alguém morria”?

 

O Beijo no Asfalto corresponde a décima terceira peça de teatro escrita pelo escritor carioca Nelson Rodrigues.

 

Foi encenada pela primeira vez em 1960 sob a direção de Fernando Torres.

 

Os três atos mantêm um alto nível de tensão, mais ou menos permanente, sempre em torno de diferentes versões acerca do dito “beijo no asfalto”.

Arandir, acompanhado de seu sogro, presencia um atropelamento na Praça da Bandeira no Rio de Janeiro. De uma forma aparentemente inexplicável, Arandir profere um beijo na boca do desconhecido atropelado. Não se sabe se o atropelado estava vivo ou já morto. Desconhece-se se a vítima do acidente solicitou ou não o dito beijo.  

 

O evento desencadeia reações das autoridades policiais, da imprensa e da sociedade carioca. O corrupto delegado Cunho e o jornalista Amado do “Última Hora” se articulam para tirar proveito da notícia conforme seus interesses. No caso do policial, promover um inquérito eficiente que atenuasse o seu histórico de violência e arbitrariedade. E no caso do jornalista, montar uma narrativa escandalosa, que promovesse a venda do seu jornal.

 

Nos dois casos, pouco importava a verdade dos fatos, as razões do beijo no asfalto, mas a versão mais conveniente, especialmente para fazer os “jornais venderem como água” e atribuir respaldo da atividade policial.  

 

Por conta do escândalo, Arandir perde o seu emprego, é abandonado por sua esposa e, ao final, é perseguido pela polícia. Criou-se a versão de que o atropelado mantinha relação extraconjugal com o personagem. Arandir teria empurrado e matado o homem como forma de ocultar o seu homossexualismo e a sua infidelidade conjugal.  

 

Uma leitura superficial desta peça de teatro reduzira a tragédia de Arandir às convenções sociais de um tempo em que o homossexualismo era muito menos tolerado do que nos dias de hoje.

 

Parece-nos que a obra possibilita interpretações mais profundas.

 

Em se tratando de uma encenação, o “beijo na asfalto” corresponde a um momento do obsceno. O prefixo “ob” palavra exprime a noção de oposição, de estar contra. No senso comum, obsceno remete à contrariedade do pudor. No sentido atribuído à peça, podemos relacioná-lo à contrariedade da encenação, não apenas teatral, mas relativa às convenções sociais e às máscaras utilizadas por todos no dia a dia. A encenação dialoga com a “obscenação”.

 

O Beijo no Asfalto corresponde a um momento singular em que algo que advém do substrato da sociedade ganha conteúdo nítido aos olhos do povo, engendrando o escândalo.

 

A obscenidade reprimida está presente em todos os personagens: o delegado da Cunha, desmoralizado por chutar a barriga de uma grávida; o jornalista Amado, que num momento de embriaguez, demonstra seu total descompromisso com a verdade e com a ética do jornalismo; a cunhada Dália que mantem em segredo um amor reprimido pelo seu cunhado; ou o próprio Arandir que, por um acaso doméstico, entra no banheiro da casa e vê sua cunhada nua, desejando-a, a despeito de ser menor de idade e irmã de sua esposa.  

 

A sexualidade contida está subjacente em todos os personagens.  E, simbolicamente, o jornal é alçado como o local de excelência do obsceno. De forma sintomática, quando Arandir é morto pelo seu sogro com tiros de revolver, o seu corpo tomba e se enrola num jornal.

 

Este jogo de representação cênica entre o obsceno e a encenação foi muito bem captada pelo crítico Jonatas Aparecido Guimarães:

 

“Sob esse aspecto, vale retomar a pergunta feita anteriormente: o que motivaria o escândalo em torno do beijo de Arandir? Como mencionado, tal escândalo seria motivado pela própria encenação. Em outras palavras, o escândalo seria ele mesmo uma forma de encenação como resposta ao fato de se colocar em cena algo que deveria ser mantido fora dela, o obsceno. O que importa não é o fato de Arandir ter beijado outro homem na boca, mas ter feito isso em público, como se vê na passagem seguinte. “Amado (exaltadíssimo) – E você olha. Fazer isso em público! Tinha gente para burro lá. Cinco horas da tarde. Praça da Bandeira. Assim de povo. E você dá um show! Uma cidade inteira viu!”.

 

Neste contexto, a grande vantagem da análise da peça em torno da encenação e da “obscenação” é não reduzir o enredo ao problema do preconceito com os homossexuais, deduzindo daí que a peça seria historicamente datada, diante da inequívoca mudança de percepção da sociedade acerca da sexualidade, passados mais de 50 anos.

 

O Beijo no Asfalto segue sendo uma história cruelmente atual.

 

Bibliografia:

GUIMARÃES, Jonatas Aparecido. “Cena e obsceno em O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues”. Escola de Humanidades.

RODRIGUES, Nelson. “O Beijo No Asfalto: tragédia carioca em três atos”. Ed. Nova Fronteira. 9ª Impressão.

sábado, 18 de setembro de 2021

“Auto da Compadecida” – Ariano Suassuna

 “Auto da Compadecida” – Ariano Suassuna

 




Resenha Livro - “Auto da Compadecida” – Ariano Suassuna – 34ª Ed. Nova Fronteira

 

“João Grilo – Jesus?

Manuel – Sim.

João Grilo – Mas espere, o senhor que é Jesus?

Manuel – Sou.

João Grilo – Aquele Jesus a quem chamavam de Cristo?

Jesus – A quem chamavam, não, que era Cristo. Sou, por que?

João Grilo – Porque...não é lhe faltando com o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos queimado.

Bispo – Cala-te, atrevido.

Manuel – Cale-se você. Com que autoridade está repreendendo os outros? Você foi um bispo indigno de minha igreja, mundano, autoritário, soberbo. Seu tempo já passou. Muita oportunidade teve de exercer sua autoridade, santificando-se através dela. Sua obrigação era ser humilde, porque quanto mais alta é a função, mais generosidade e virtude requer. Que direito tem você de repreender João porque falou comigo com certa intimidade? João foi um pobre em vida e provou sua sinceridade exibindo o seu pensamento. Você estava mais espantado do que ele e escondeu essa admiração por prudência mundana. O tempo da mentira já passou.

João Grilo – Muito bem. Falou pouco mas falou bonito. A cor não pode ser das melhores, mas o senhor fala bem que dá gosto”

 

O Auto da Compadecida é peça teatral escrita pelo paraibano Ariano Suassuna no ano de 1955. Seria a primeira de uma série de comédias que seriam escritas posteriormente: “O Casamento Suspeitoso” (1957), “O Santo e a Porca” (1957), “A Pena e a Lei” (1959) e “Farsa da Boa Preguiça” (1960).

 

Nas notas do autor que acompanham as falas dos personagens, indicando propostas de encenação, fica patente a intenção de Suassuna na  representação do enredo na forma de circo.

 

É um palhaço que abre o espetáculo e anuncia cada um dos atos, inclusive engajando os atores na arrumação das cenas. O cenário proposto pelo escritor não poderia ser feito de forma mais simples.

 

Logo na introdução, propõe Suassuna:  

 

“O Auto da Compadecida foi escrito com base em romances e histórias populares do Nordeste. Sua encenação deve, portanto, seguia a maior linha de simplicidade, dentro do espírito em que foi concebido e realizado. O cenário (usado na encenação como um picadeiro de circo, numa ideia excelente de Clênio Wanderley, que a peça sugeria) pode apresentar uma entrada de igreja à direita, com uma pequena baulastrada ao fundo, uma vez que o centro do palco representa um desses pátios comuns nas igrejas do interior.”.

 

O paralelo com o circo também pode se referir aos dois personagens principais, João Grilo e Chicó. De certa forma, ele representam aquele modelo circense dos dois palhaços. João Grilo sendo o mais espertalhão, que se mete em situações arriscadas. E Chicó o palhaço mais abobado, que se acovarda e, não raro, atrapalha os planos do seu parceiros.

 

A história suscita uma tradição popular de literatura de cordel. As passagens cômicas do gato que “descome” moedas, a falsa ressurreição de mortos pelo toque de uma gaita e o enterro de um cachorro cantado em latim são todas oriundas da cultura popular nordestina.

 

Neste caso se trata de uma cultura oral: os cordéis, diferentemente dos livros, não foram feitos para serem lidos, mas para serem declamados ao público na praça. A proposta do Teatro de Suassuna é a mesma. Ao término do espetáculo, o palhaço diz que quem não pode pagar pelo show, como recompensa, que pague com aplausos.

 

Mais do que uma fonte história da cultura popular nordestina, a peça é um retrato nítido daquilo que Sérgio Buarque de Holanda denominava a cordialidade do povo Brasileiro:

 

“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial” . A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “ boas maneiras” , civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro” HOLANDA. S. B. Pg 146-7

 

Este sentimento emotivo aparece quando a Compadecida, ao exercer a sua infinita misericórdia, não permite que os personagens, a despeitos dos seus erros, terminem no inferno.

 

Na cena da aparição de um Jesus Cristo de cor negra, João Grilo manifesta o seu preconceito racial. Contudo, Jesus condena em primeiro lugar não Grilo, mas o Bispo, por sua hipocrisia. O mitra ficou igualmente estupefato, mas achou pertinente censurar Grilo por pura prudência mundana, covardia ante Jesus. Que fique de lição ao identitários do nosso atual movimento negro que querem importar ideias políticas do EUA para o Brasil, desconsiderando que o nosso país se baseou não na colônia de povoamento, mas de exploração, que a população negra aqui não é minoria, mas maioria, tendo sido a miscigenação racial, desde o momento que os portugueses chegaram aqui, não a exceção, mas a regra.

 

Que fique também a lição de que o povo brasileiro, a despeito dos seus problemas, tem a virtude de detestar a hipocrisia.