segunda-feira, 30 de novembro de 2020

A Literatura Infantil de Graciliano Ramos

 A Literatura Infantil de Graciliano Ramos




 

O escritor alagoano Graciliano Ramos é reconhecido por uma literatura que se situa no campo do modernismo, já em sua segunda fase. Junto com outros escritores como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Amando Fontes e Jorge Amado, desenvolveu uma arte de tipo regionalista, descrevendo tipos e pessoas dos extratos mais baixos da sociedade, sem com isso cair em caricaturas, ou estereótipos superficiais.

 

Estes escritores foram, neste sentido, muito além da literatura naturalista do século XIX que, se por um lado, foram pioneiros em chamar a atenção e dar protagonismo a personagens oriundos do povo, faziam-no não sem uma certa superficialidade, chegando a definir as personalidades como que condicionadas ao meio social, dentro da perspectiva do determinismo, ou como que determinadas pela raça, sob a influência do darwinismo e o pensamento cientificista típico do período.

 

A perspectiva de Graciliano Ramos e dos demais escritores de sua geração é completamente diferente. Naqueles escritores modernistas, as personagens populares aparecem com suas contradições humanas, suscitam sentimentos e ações que não se explicam apenas pela pobreza do meio ou da raça, os seus atos e palavras não se encerram em lógicas binárias de bem ou mal, certo ou errado, heróis e vilãos.

 

Talvez apenas Jorge Amado, na primeira fase de sua produção literária, chegaria mesmo a dar um colorido de heroísmos aos tipos populares, como nos camponeses dos campos de cacau (“Cacau” – 1933) e nos menores infratores da lei no seu famoso “Capitães de Areia” de 1937.

 

No que se refere a Graciliano Ramos, ficaram na memória dos seus leitores a saga da família retirante de uma seca no sertão nordestino, quando a bestialização dos seres humanos, que se comunicam com grunhidos e interjeições, convive com a humanização da natureza, nitidamente da cachorra, ironicamente designada de Baleia.

 

A seca e a transitoriedade da vida humana surgem como uma fatalidade, ainda que a arbitrariedade do soldado amarelo que agride e prende Fabiano sugira que as coisas não necessariamente deveriam ocorrer da forma como ocorrem.

 

Além dos seu “Vidas Secas” (1938), livros como “São Bernardo” (1934) e “Angústia” (1936) certamente são o que há de melhor em todo a história da literatura em língua portuguesa.  

 

Menos conhecidos são os trabalhos de literatura infantil do nosso escritor. No caso de “Alexandre e Outros Heróis” (1940) e “A Terra dos Meninos Pelados” (1937) descobrimos um tipo de literatura diferente dos romances de adulto supracitados. O realismo da literatura de adulto se confunde com o fantástico, com o pensamento lúdico da criança.

 

Alexandre é um típico contador de histórias dos tempos passados. A sua apresentação é feita logo na introdução:

 

“No Sertão do Nordeste vivia antigamente um homem cheio de conversas, meio caçador e meio vaqueiro, alto, magro, já velho, chamado Alexandre. Tinha um olho torto e falava cuspindo a gente, espumando como um sapo-cururu, mas isto não impedia que os moradores da redondeza, até pessoas de consideração, fossem ouvir as histórias fanhosas que ele contava”.

 

Ainda na introdução, o escritor alerta que as histórias de Alexandre não são originais, mas pertencem ao folclore do Nordeste, sendo possível que algumas tenham sido escritas.

 

Em que pese o contador de história jurar que os eventos narrados são reais, aconteceram de fato, são-nos narrados a história de um papagaio inteligente que defende presos no tribunal, de uma cachorra “moqueca” que fazia compras na feira para o seu dono, identificando e protestando com latidos a entrega de uma nota falsa, histórias de Alexandre montado numa onça que confundira cm cavalo. Há um aspecto de folclórico nas histórias, animais de roça como a cobra e a onça, que frequentemente despertam o medo na imaginação dos camponeses, aparecem em situações inusitadas.   

 

As histórias populares são contadas aos mesmos ouvintes. O cego preto Firmino é incrédulo e questiona detalhes da narrativa de Alexandre, sem, contudo, lograr identificar inequivocamente a falsificação. O mestre Gaudêncio é curandeiro e Libório é cantador de emboadas, desejoso de transformar em música as histórias de Alexandre. Das Dores é afilhada do contador de história e benzedeira de mal olhado. Finalmente, Cesária é a mulher de Alexandre, ratifica e confirma as narrativas do marido ajudando com datas e números. Os ouvintes das histórias são pessoas tão despojadas como Alexandre. Este, por sua vez, cria por sua cabeça um mundo imaginário que compensa a sua penúria.  

 

A “Terra dos Meninos Pelados” também é uma narrativa fantástica, desta vez não oriunda da imaginação de um velho contador de histórias, mas da mente lúdica de uma criança.


Raimundo era careca, tinha um olho azul e outro preto. Cansado da mangação das outras crianças, ingressa mundo mágico em que um carro, quando parecia ir atropelá-lo, para o movimento e explica à criança que naquelas bandas ninguém se machuca. Uma laranjeira gigante é capaz de falar e dá uma laranja à criança. O rio fecha a si mesmo, juntando as suas margens, para facilitar a travessia dos passantes. Finalmente, Raimundo se depara com um mundaréu de crianças que, como ele, são carecas, cada uma com um olho de cor diferente. É interessante observar que mesmo no mundo imaginário da terra dos meninos pelados, há um menino anão que também é objeto de mangação pelas demais crianças – mesmo no mundo da fantasia, existem as dificuldades do mundo real.

 

Se em Alexandre, o real se sobrepõe ao imaginário com a morte do contador de histórias (“não reparem na falta não meus amigos. Vou dormir.”), também no conto dos meninos pelados, Raimundo termina tendo que sair do mundo fantástico ao mundo real:

 

“Raimundo começou a descer a serra de Taquariu. A ladeira se aplanava. E quando ele passava, tornava a inclinar-se. Caminhou muito, olhou para trás e não enxergou os meninos que tinham ficado lá em cima. Ia tão distraído, com tanta pena, que não viu a laranjeira no meio da estrada. A laranjeira se afastou, deixou passagem livre e guardou silêncio para não interromper os pensamentos dele.

 

Agora Raimundo estava no morro conhecido, perto de casa. Foi-se chegando muito devagar. Atravessou o quintal, atravessou o jardim e pisou na calçada.

 

As cigarras chiavam entre as folhas das árvores. E as crianças que embirravam como ele brincavam na rua”.  


Bibliografia 


RAMOS, Graciliano. "Alexandre e Outros Heróis". Ed. Martins Editora. 

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Notas Sobre Maurício Grabois

NOTAS SOBRE MAURÍCIO GRABOIS





É comum ouvir-se um certo dito ou chiste segundo o qual o temperamento revolucionário é um “ímpeto da juventude”, corrigido invariavelmente pelo tempo. Num sentido semelhante, ainda que oposto, Bertold Brecht poetizou: “há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”.

 

Quando Maurício Grabois faleceu em 25 de Dezembro de 1973, tinha 61 anos de idade e um passado de militância incluindo eleição como deputado constituinte pelo PCB no ano de 1946. Morreu em Xambioá, no Pará, depois de 6 (seis) anos lutando de armas nas mãos contra a ditadura militar brasileira na Guerrilha do Araguaia. Levou para lá o seu filho André Grobois, que foi morto em combate pouco antes, em 1972.

 

Trinta e sete anos após a sua morte veio ao público um diário escrito pelo dirigente comunista da guerrilha, cobrindo 605 dias na floresta amazônica, entre abril de 1972 e dezembro de 1973[1].

 

Lendo este diário, nota-se a confiança que guiava aqueles guerrilheiros, em que pese as dificuldades da doença (malária), da falta de comida, da dificuldade de movimentos na densa mata, e da ausência de instrumentos eficazes de comunicação, agitação e propaganda política.

 

Como é cediço, foi no congresso de 1966 que a maioria dos militantes do PCdoB, fundado em 1962, deliberou pela resistência armada ao regime militar.

 

Enquanto grupos como a ALN de Marighella, o MR-8, a VPR e VAR-Palmares optaram pela luta nos centros urbanos, o PCdoB tinha uma tática diferente: acreditavam que o melhor caminho era iniciar uma luta de longa duração, numa área de difícil acesso, afastada dos grandes centros urbanos. 

 

A ideia não era propriamente a de desencadear desde o início uma luta armada contra o estado desde as distantes florestas amazônicas. Os militantes PCdoB tinham a noção de que deveriam começar se instalando nesta região remota e desenvolver um trabalho paciente de mobilização e esclarecimento da população local, de forma a ganha-la aos poucos para a guerrilha.

 

Contudo, a descoberta precoce do movimento pela repressão determinou um enfrentamento militar em condições francamente desfavoráveis: nos diários, Grabóis relata que a repressão envolvia militares da marinha, exército e aeronáutica, polícia federal e a polícia militar do Pará. A ditadura procurou ao máximo ocultara existência da guerrilha, diziam que estavam lá para combater bandidos comuns e contrabandistas.

 

Grabóis fora, antes a guerrilha, um destacado dirigente do PCB, partido no qual ingressou no ano de 1932. Participou do levante comunista de 1935, pejorativamente designado por historiadores como a Intentona Comunista. Quando da conferência da Mantiqueira do PCB em 1943[2], Maurício Grabois foi eleito membro do comitê central do partido.   

 

Dissensões na direção do PCB ocorreriam de forma mais acentuada a partir de 1956, com as denúncias de Kruschov sobre o estalinismo no XX Congresso do PCUS. Jorge Amado, companheiro de Grabois na constituinte de 1946 e amigo do nosso dirigente, diria que àqueles dias foi a primeira vez que observara algum abatimento em Maurício.

 

O artigo “Duas Concepções, Duas Orientações Políticas”, escrito por Maurício Grabois em 1960 antecipa o seu rompimento com o partido e sinaliza críticas que Marighella igualmente faria algum tempo depois, já no momento em que as esquerdas faziam o balanço político da derrota de 1º de abril de 1964.

 

Aqui, Grabois critica a Declaração de Março de 1958, aprovada pelo CC do PCB. De maneira geral, a declaração subordina as tarefas democráticas do partido, como a luta pela reforma agrária, ao fator puramente nacional. Ao ponto de se admitir a aliança dos comunistas com latifundiários e setores da burguesia nacional em contradição (real ou aparente) com o imperialismo norte americano. A subordinação dos comunistas às frações da burguesia nacional, supostamente em contradição com o imperialismo, tirava o protagonismo do partido junto ao proletariado e seu aliado imediato, o campesinato. Seria possível que até mesmo a oposição de direita tirasse proveito do descontentamento popular, ante a apatia dos comunistas.

 

Na prática, afirma Grabois, o PCB afirmava-se como mais um partido nacionalista, não se diferenciando do PTB e da Frente Parlamentar Nacionalista.

 

A Declaração embeleza o capitalismo. Procura mostrar que a indústria brasileira atingiu elevado nível de crescimento e atribui este crescimento ao capital nacional. Mas, na realidade, o imperialismo também participa desse processo de industrialização, domina ramos fundamentais da indústria do país. O exagero na apreciação do papel do desenvolvimento capitalista no processo revolucionário, leva a Declaração a idealizar a burguesia, que é tratada como se fosse força consequente, capaz de defender até o fim os interesses nacionais. Toda a orientação estratégica e a linha tática expostas na Declaração têm em vista quase que exclusivamente os interesses da burguesia, conduzem ao fortalecimento de suas posições políticas, em prejuízo das demais forças revolucionárias”.

 

Nestas críticas à política pcbista de 1958 constam também: a renúncia pelos comunistas da luta pelo poder, substituída pela gradual ocupação de posições no parlamento por políticos progressistas; a defesa da via pacífica para a revolução brasileira, desarmando o proletariado brasileiro para as eventualidades que viriam a seguir.

 

De fato, a tese de uma “democratização crescente da vida política brasileira” mostrou-se um retumbante erro dos comunistas, nitidamente diante do que ocorreria apenas 6 anos depois. Afinal, conclui Grabois em 1960, “embora o país, atualmente, viva num clima de relativa liberdade, não se pode assegurar que a democratização é uma tendência permanente na vida brasileira, uma vez que as forças reacionárias se mantêm no poder e sempre que seus interesses são atingidos, apelam para a violência e atentam contra as liberdades democráticos”.

 

O cometimento de erros, ainda que trágicos, são escusáveis. Não é desculpável aos comunistas, por outro lado, deixar de aprender com os erros do passado.  



[1] O diário de Maurício de Grabois está disponível no link: https://www.marxists.org/portugues/grabois/1973/12/diario.htm - Acesso em 23/11/2020.

[2] “II Conferência Nacional do Partido Comunista do Brasil - PCB, realizada na clandestinidade em 28 e 30 de agosto de 1943, em pleno Estado Novo. Nesta conferência, que reuniu em Engenheiro Passos, RJ, representantes do Distrito Federal, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia, Sergipe e Paraíba, foi decidido que o Partido iria se empenhar para o Brasil entrar na guerra contra o nazismo; Prestes, mesmo encontrando-se preso, foi eleito para o Comitê Central no cargo de Secretário Geral; Foi aprovado uma linha política inspirada nos modelos da união nacional em torno do governo, com o apoio incondicional a Vargas e o fortalecimento ideológico do partido contra as tendências de liquidação do PCB. As resoluções aprovadas serviriam de linha condutora das posições do PCB no período de 1945 a 1947”. - https://www.marxists.org/portugues/dicionario/verbetes/c/conferencia_mantiqueira.htm

NOTAS SOBRE HO CHI MINH

 NOTAS SOBRE HO CHI MINH



 


O Vietnã é um pequeno país situado no sudeste asiático, localizado na península da Indochina. Faz fronteira com a China ao norte, com Laos e Camboja a oeste e com o mar da China Meridional ao leste e sul. Esta pequena nação gravou o seu nome na história da luta anticolonialista do século XX, quando, num período de algumas décadas, derrotou militarmente os imperialismos francês, japonês e norte-americano.

 

A revolução vietnamita, assim como a revolução chinesa, é um evento histórico de longa duração.

 

Desde o século XIX o país esteve integrado na Indochina Francesa. Ho Chi Minh integrou o movimento nacionalista e independentista que surgiu no início do século XX. O futuro líder comunista posteriormente diria que sua aproximação da luta social não se deu em função do marxismo internacionalista, mas do patriotismo anticolonialista:

 

Em primeiro lugar, foi o patriotismo, e não o comunismo, que me levaram a acreditar em Lênin e na Terceira Internacional. Aos poucos, durante a luta e enquanto estudava o marxismo-leninismo paralelamente às minhas participações nas atividades práticas, eu me dei conta de forma gradativa de que somente o socialismo e o comunismo poderiam libertar as nações oprimidas e o povo trabalhador ao redor do mundo, da escravidão” (Abril de 1960).

 

No contexto da II Guerra Mundial, o Japão invadiu o Vietnã e lá instalou bases militares. Os colonialistas franceses não só capitularam ao inimigo da Entente, como prosseguiram com sua perseguição sobre o VIETMINH, movimento revolucionário de libertação nacional criado por Ho Chi Minh em 1941.

 

Em agosto de 1945, com a rendição do Japão, o VIETMIHN tomou o poder, derrubou a monarquia, destituindo o imperador Bao Dai, fantoche dos imperialistas franceses, e proclamou a República Democrática do Vietnã.

 

A partir de então o movimento de libertação nacional vietnamita seguiu na luta armada contra as tentativas francesas de retomar o controle político do país, o que só encontraria desfecho no ano de 1954, quando a independência, proclamada em agosto de 1945, foi efetivamente reconhecida.

 

 

Nguyen Sinh Cung (Ho Chi Minh) nasceu na aldeia de Kim Lien, na região central do Vietnã. Desde cedo, Ho teve contatos com o movimento nacionalista: seu pai, um professor de um pobre vilarejo, manteve estreito contato com Phan Boi Chau (1867-1940), um dos pioneiros do movimento nacionalista vietnamita.

 

Consta que em 1911, Ho Chi Minh emigrou de sua terra natal após conseguir um trabalho como cozinheiro em um navio francês. Depois de contrair uma doença misteriosa no navio, foi abandonado no porto do Rio de Janeiro, residindo por um tempo num bairro na Santa Teresa. Posteriormente, em 1924, ao se encontrar em Moscou com comunista brasileiro Astrogildo Pereira, Ho Chi Minh invocou os dias que passou no Brasil, revelando ter ficado impressionado com a “zona do mangue”, ponto de prostituição e onde grassava extrema pobreza.

 

A MORALIDADE REVOLUCIONÁRIA




 

Fazer a revolução para transformar a sociedade antiga em um anova sociedade é uma obra grandiosa, mas também tarefa pesada, uma luta extremamente complexa, longa e árdua. É preciso ser forte para poder levar grandes cargas e ir longe. Somente tendo a moralidade revolucionária como fundamento é que o revolucionário pode cumprir sua tarefa de maneira honrosa.

 

Tendo nascido na sociedade antiga, cada um de nós conserva em si mais ou menos sequelas dessa sociedade do ponto de vista da ideologia, dos costumes, etc. O aspecto mais negativo e mais perigoso é o individualismo. O individualismo é o antípoda da moral revolucionária. Por menos que reste ainda na pessoa, o individualismo espera a ocasião propícia para desenvolver-se e eclipsar a moral revolucionária, para impedir-nos a inteira devoção à luta pela causa revolucionária.

 

O individualismo é uma coisa astuta e pérfida: atrai insidiosamente o homem para a descida fatal. Sabemos que descer uma ladeira é mais fácil que subi-la novamente, por isso o individualismo é ainda mais perigoso”. (Ho Chi Minh)

 

As palavras supracitadas datam de 1958, se situam no contexto da Guerra do Vietnã que perdurou até 1975, com a vitória dos comunistas e a unificação do país. O socialismo foi construído num contexto de luta militar contra diferentes imperialismos, exigiu a disciplina do povo e sua comunhão com um partido dirigente, sob a linha e orientação do marxismo leninismo.

 

O aspecto da luta como um processo de longa duração é um dos pontos que assemelham a revolução vietnamita e a revolução chinesa.

 

Ademais, Ho Chi Minh no artigo “A Revolução Chinesa e a Revolução Vietnamita” (1961) suscita outros pontos de comunhão:

 

(i) Foi por intermédio da China que a influência da Revolução de Outubro e o marxismo leninismo se propagaram até o Vietnã;

 

(ii) Foi na China que foram organizadas a Associação da Juventude Revolucionária do Vietnã (1925), a Conferência de Unificação dos diferentes grupos comunistas do Vietnã num partido marxista-leninista (1930); e

 

(iii) O primeiro Congresso do Partido Comunista Indochinês (1935) contou com a colaboração chinesa.

 

(iv) O esmagamento pela URSS dos militaristas japoneses na II Guerra Mundial contribuiu para a vitória da resistência chinesa e a vitória desta resistência criou condições favoráveis ao triunfo da revolução democrática vietnamita de 1945.

 

(v) Tanto a China quanto a URSS deram assistência material para a edificação do socialismo no Vietnã.

 

Já no seu testamento de 1969, Ho Chi Minh lamentaria a divergência que então existia entre as direções soviéticas e chinesas. Demonstrou a esperança que estas duas direções se reconciliassem.

 

Consta deste testamento de 10 de maio de 1969 as seguintes palavras:

 

No que diz respeito aos assuntos pessoais, por toda aminha vida servi à minha Pátria, à revolução e ao povo com todas as minhas forças e com todo meu coração. Se agora devo deixar este mundo, não tenho nada de que me lamentar, exceto de não ter sido capaz de servir mais e melhor.

 

Quando já tiver ido, para não desperdiçar o tempo e o dinheiro do povo, devem evitar um funeral oneroso.

 

(...)

 

Meu maior desejo é que nosso Partido e nosso povo, unindo estreitamente seus esforços, construam um Vietnã pacífico, reunificado, independente, democrático, próspero e que dê uma valiosa contribuição à revolução mundial”.

 

Ho Chi Minh faleceria 4 meses depois do seu testamento de uma parada cardíaca, com 79 anos de idade.

 

Há 15 anos existe na cidade mineira de Nova União um assentamento rural do MST denominado Ho Chi Minh.

 

A história deste assentamento pode ser melhor conhecida neste link: https://mst.org.br/2020/09/02/conheca-a-historia-do-assentamento-mineiro-que-homenageia-ho-chi-minh/

domingo, 22 de novembro de 2020

Homens e Coisas do Partido Comunista

"Homens e Coisas do Partido Comunista" - Jorge Amado



É bastante extensa a produção literária do escritor baiano Jorge Amado (1912/2001). Em vida o escritor publicou 49 livros, entre romances, novelas, peças de teatro e biografias. Seus trabalhos foram traduzidos em cerca de 50 idiomas, além de adaptações da obras no teatro, no cinema e na televisão.

 

Convencionou-se dividir a literatura de Jorge Amado em dois grandes períodos. Uma fase de cunho nitidamente político ideológico perpassa sua produção dos anos 1930/1940. É deste período romances como “Cacau” (1932) que descreve a opressão dos trabalhadores rurais nos latifúndios do sul da Bahia, região na qual o escritor nasceu. É também nesta primeira fase que o escritor publica o seu famoso  “Capitães de Areia” (1937) relato da vida de menores abandonados que sobrevivem de pequenos atos de bandidagem nas ruas da Bahia, convivem e descobrem o amor, o sexo e a solidariedade dos oprimidos desde um trapiche onde se refugiam.

 

Estes livros se situam num movimento literário conhecido como segunda fase do modernismo, de cunho nitidamente regionalista e com um forte acento na denúncia das iniquidades sociais. Andam num sentido semelhante aos romances de Graciliano Ramos, Rachel de Queirós e José Lins do Rego. No caso de Jorge Amado, especificamente, os mais humildes e oprimidos são erigidos na condição de heróis, seja os trabalhadores rurais do cacau, seja os “bandidos sociais” do trapiche, para usar a terminologia do historiador Eric Hobsbawm.  

 

Este aspecto militante da primeira fase da obra de Jorge Amado está obviamente relacionada com as convicções políticas do escritor. Filho de latifundiários baianos, Jorge Amado se aproxima das idades comunistas quando vem ao Rio de Janeiro estudar direito na Faculdade Nacional na década de 1930. Naquele período turbulento, dentro do contexto da Revolução que colocara abaixo a Primeira República, Jorge Amado envolveu-se com discussões sobre política, arte e cultura, pelo jornalismo. Tirou diploma de bacharel no ano de 1935, mas jamais exerceria a advocacia.

 

Trabalhou como jornalista e posteriormente mudou-se à São Paulo.

 

É no contexto do pós guerra, em 1945, quando pela primeira vez o Partido Comunista Brasileiro poderia realizar suas reuniões fora da clandestinidade imposta de maneira praticamente ininterrupta desde sua fundação em 1922, que Jorge Amado escreveu o seu hoje esquecido “Homens e Coisas do Partido Comunista”.

 

Este pequeno retrato do movimento comunista brasileiro de meados do século XX foi aparentemente esquecido pelos editores de Jorge Amado. O livro, em todo caso, está disponível para a leitura pela internet pelo link: https://www.marxists.org/portugues/amado/1946/homens/index.htm

 

A narrativa começa descrevendo a instalação da primeira sede legal do Partido Comunista  em 11 de Junho de 1945, na Rua da Glória, em São Paulo.


“Este foi um dia de festa, destas festas tão felizes que recordam natais familiares, as comemorações mais íntimas de parentes que se ama. Era como a lua de mel do povo com o seu Partido. Lágrimas e risos, e gente, gente, muita gente, operários vindos de todo o lado, querendo entrar custasse o que custasse, mesmo que fosse ‘só para dar uma espiada’, como me afirmavam jovens tecelões que forçavam a porta sem passagem. Estas festas assim vão se repetir agora no Brasil”.

 

Esta euforia sinalizava bem a importância e respeito granjeado pelo comunismo e pela União Soviética após a II Guerra Mundial. O exército vermelho ao destruir militarmente o nazifascismo despertou o interesse e a simpatia de milhões de trabalhadores em todo o mundo: no pós II guerra, pela segunda vez no século XX, o capitalismo ficava por um triz.

 

Neste contexto de fortalecimento das aspirações pela democracia e contra o fascismo, o PCB pôde participar das eleições na constituinte de 1945.

 

O PCB chegou a ser a quarta maior força política da Assembleia Constituinte de 1946. Alcançou cerca de 8,6% dos votos válidos: sua bancada era integrada por 1 senador e 15 deputados, totalizando 4,7% dos 338 constituintes (computados titulares e suplentes) que participaram do processo de elaboração constitucional[1].


O PCB elegeu parlamentares em seis unidades da federação (Bahia, Pernambuco, Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul). O próprio Jorge Amado foi eleito por São Paulo. Carlos Marighella foi eleito pela Bahia. Gregório Bezerra foi eleito por Pernambuco. Luiz Carlos Prestes foi eleito senador pelo Rio de Janeiro, então capital do país. Pelo mesmo Rio de Janeiro, foi eleito Maurício Grabois, amigo pessoal de Jorge Amado, que morreria sexagenário, de armas em punho, na Guerrilha do Araguaia.

 

No “Homens e Coisas do Partido Comunista”, Jorge Amado lança luz sobre militantes comunistas hoje desconhecidos mesmo do público mais especializado como Giocondo Dias, o operário Mário Scott e Ramiro, um jovem militante do bairro de São Miguel em São Paulo. O escritor rejeita um culto de personalidade que costuma estar associado ao pensamento comunista da época, diz que é mais difícil viver como um revolucionário do que morrer gloriosamente como tal:

 

"Não quero vos falar apenas dos grandes sacrifícios, das torturas  nas prisões, dos homens queimados a maçarico, das unhas arrancadas, a torquês. Quero falar também dessas pequenas coisas cotidianas, ignoradas e persistentes, desses sacrifícios que quase não se contam e no entanto são tão úteis para a construção das Revoluções e do Partido quanto a trágica condição dos presos, dos emparedados e dos assassinados. Um dia o mestre disse que é bem mais fácil morrer pela Revolução do que viver pela Revolução. Há os que morrem heróis só porque sentiram a vibração de um momento e se jogaram numa trincheira. Muitos destes talvez não resistissem a um mês de vida ilegal, de diária miséria, de trabalho diário, de cabeça contra a parede, tendo que romper o muro da reação e do fascismo com os pobres punhos débeis.”    

 

Dissemos que tradicionalmente se divide a produção literária de Jorge Amado em duas fases. A primeira fase se relaciona com a visão social e política comunista do autor. Consta que um evento teria afastado Jorge Amado daquelas ideias políticas: as denúncias de Nikita Khrushchov sobre o estalinismo no XX Congresso do PCUS no ano de 1956.


São desta segunda fase romances não tão abertamente ideológicos como “Gabriela Cravo e Canela” (1958) e “Dona Flor e Seus Dois Maridos” (1966). O que não significa que não deixa de merecer interesse esta obra mais tardia: há em algumas delas algo de um realismo fantástico com uma continuação no enaltecimento geral da cultura popular, visto na interessantíssima novela “A morte e a morte de Quincas Berro d’Água” de 1959, talvez a mais bem escrita novela da literatura brasileira desde “O Alienista” de Machado de Assis. Em qualquer caso, trata-se de uma obra, seja com maior ou menor conotação política, imprescindível para se conhecer o Brasil e seu povo. Conhecer os humildes em sua intimidade, com as suas contradições, sem com isso deixar de acreditar no seu protagonismo.

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Helenira Resente e a Guerrilha do Araguaia

 

Helenira Resente e a Guerrilha do Araguaia

 




“Apesar de esquecido pela maioria, o nome de Helenira está gravado na memória do povo pobre de Faveira, Caianos e Gameleira, municípios localizados no Estado do Pará e no médio Tocantins, onde se desenvolveu a Guerrilha do Araguaia, o maior foco de resistência à ditadura no Brasil. Helenira Resende foi uma das mais conhecidas combatentes desse movimento que atuou na selva amazônica e travou três grandes combates contra as tropas do governo. Sua coragem, disciplina e bravura fizeram com que ela chegasse a ser vice comandante de um destacamento guerrilheiro. Helenira ressaltou também o papel da mulher brasileira na luta pela liberdade”. Bruno Ribeiro

 

A guerrilha do Araguaia, situada no sul do Pará no meio da floresta amazônica, foi o mais longo episódio de enfrentamento armado à ditadura militar brasileira, constituída no ano de 1964.

 

O PCdoB realizou o seu IV congresso já no ano de 1966, quando a maioria do partido apoiou a tese da luta armada para derrubar a ditadura.

 

Os principais dirigentes do PCdoB eram João Amazonas e Maurício Grabois.  

 

João Amazonas foi feito comandante em chefe da guerrilha: quando morreu em 2002 foi feita a sua vontade de ter suas cinzas depositadas no Araguaia. Maurício Grabois, que já havia participado do levante comunista de 1935 e foi deputado constituinte em 1946, participou pessoalmente da guerrilha, já  sexagenário, e tombou com armas nas mãos no dia 25 de Dezembro de 1973.

 

Participaram da Guerrilha do Araguaia 69 militantes do PCdoB e 30 camponeses apoiadores do movimento. Dos participantes, apenas três saíram vivos, entre eles o futuro dirigente petista José Genoíno. Do lado do exército foram 16 o número de baixas oficiais.

 

Enquanto grupos como a ALN de Marighella, o MR-8, a VPR e VAR-Palmares optaram pela luta nos centros urbanos, o PCdoB tinha uma tática diferente: acreditavam que o melhor caminho era iniciar uma luta de longa duração, numa área de difícil acesso, afastada dos grandes centros urbanos.  

 

É importante lembrar que a Revolução Cubana, baseada na guerrilha camponesa desde a Sierra Maestra, promovia uma significativa influencia na consciência daqueles militantes de esquerda. A experiencia vietnamita, também baseada na guerrilha rural, também contava bastante. A ideia não era propriamente a de desencadear desde o início uma luta armada contra o estado desde as distantes florestas amazônicas. Os militantes PCdoB tinham a noção de que deveriam começar se instalando nesta região e desenvolver um trabalho paciente de mobilização e esclarecimento da população local, de forma a ganha-la aos poucos para a guerrilha.

 

Outro ponto a ser destacado: as guerrilhas foram o resultado direto da violência do regime e não o contrário.

 

O local escolhido pelo partido era inóspito, distante e habitado por camponeses extremamente pobres. Os militantes acreditavam que nestas circunstâncias seria mais fácil conquistar o apoio do povo para uma luta que viria a seguir.

 

A concepção que orientava o Partido era de que a guerra revolucionária só seria possível se um trabalho em longo prazo fosse feito com as massas. Ho Chi-minh, o grande revolucionário vietnamita, era citado nas reuniões: ´É preciso comer, trabalhar e viver com o povo”. Só assim, acreditavam os companheiros, eles conquistariam a confiança da população. Uma confiança que entre os camponeses só podia vir de ações concretas de exemplos diários, e não de discursos ideológicos. Apesar de se diferenciarem dos moradores locais pela aparência e pelo modo de falar, os guerrilheiros – chamados de “paulistas” pela população – não demoraram a se adaptar à vida no interior”. Bruno Ribeiro

 

Helenira Resende foi uma das primeiras militantes a chegar na região designada pelo partido, em 1969. Tinha então 25 anos de idade e alguma experiencia militante atrás de si. Foi eleita vice presidente da UNE no histórico congresso de Ibiúna no ano de 1968. Dois dias após o início do congresso, a polícia cercou a fazenda onde ocorria o evento e prendeu 800 estudantes, entre eles, Helenira. Foi transferida para o odioso Departamento de Ordem Política e Social (DOPs), na região da Luz, em São Paulo. Foi interrogada e torturada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, o mesmo que chefiou a captura e assassinato de Carlos Marighella.   

 

Saiu da prisão e ato contínuo entrou na clandestinidade.

 

Um livro que marcou aquela geração de jovens dispostos a pegar em armas contra a ditadura foi o “Mini Manual do Guerrilheiro Urbano” de Carlos Marighella. Como se sabe, trata-se de um período posterior à ruptura do dirigente baiano com o PCB: igualmente influenciado pelas vitoriosas revoluções em Cuba e China (Marighella esteve pessoalmente nos dois países), rompeu com a direção do maior partido de esquerda brasileiro da época, suscitando críticas relacionadas ao alinhamento irrestrito dos comunistas com figuras burguesas como Goulart, bem como denunciando a  confiança despropositada na legalidade e no dispositivo militar.

 

Palavras como estas eram marcantes para Helenira e outros jovens de sua geração:

 

“O guerrilheiro urbano não é um homem de negócios em uma empresa comercial, nem é um artista numa obra. A guerrilha urbana, assim como a guerrilha rural, é uma promessa que o guerrilheiro se faz a si mesmo. Quando já não pode fazer frente às dificuldades, ou reconhece que lhe falta paciência para esperar, então é melhor entregar seu posto antes de trair sua promessa, já que lhe faltam as qualidades básicas necessárias para ser um guerrilheiro”. Carlos Marighella. 

 

Como dizíamos, a intenção dos guerrilheiros era instalar bases nas áreas rurais e desenvolver um trabalho local de conscientização antes de iniciar o enfrentamento armado com a ditadura. Era certo para os militantes e para a direção do partido que não seria possível uma vitória sem o apoio das massas. Contudo, o processo de trabalho junto ao povo estava apenas no seu início quando o movimento foi descoberto pelos militares. Tiveram que iniciar a luta em condições desfavoráveis.

 

Em 12/04/1972 o exército chegou no Araguaia. Foram ainda assim necessárias 3 grandes ofensivas até o completo aniquilamento da guerrilha, contando com helicópteros e aviões que bombardeavam a área com napalm fornecido pelos EUA. Na terceira campanha de setembro de 1973 a março de 1975 as tropas desencadearam uma forte repressão contra as massas, prendendo todos os homens da região, deixando nas roças apenas as crianças e  mulheres. Muitos inocentes foram torturados e mortos.

 

Helenira foi morta em 29/09/1972 pouco antes da terceira ofensiva, enquanto montava guarda na floresta – resistiu aos policiais  a bala, matando um soldado e ferindo um segundo na perna. Foi barbaramente torturada e assassinada com golpes de baioneta na cabeça. Desde então, os seus restos mortais, como o de seus companheiros, jamais foram encontrados.  

 

Sua história, como a da guerrilha do Araguaia, aguarda ser contada ao nosso povo e inserida em definitivo nos livros de história do Brasil. A pequena biografia escrita pelo jornalista Bruno Ribeiro, pela editora expressão popular, é um passo decisivo neste sentido.   

 

 Bibliografia   

 

RIBEIRO, Bruno. “Helenira Resende e a Guerrilha do Araguaia”. Ed. Expressão Popular . 2007.

Notas Sobre Luiz Gama

 

Notas Sobre Luiz Gama




 

“Para o coração não há códigos; e, se a piedade humana e a caridade cristã se devem enclausurar no peito de cada um, sem se manifestarem por atos, em verdade vos digo aqui, afrontando a lei, que todo o escravo que assassina o seu senhor pratica um ato de legítima defesa”. Luiz Gama

 

Quando Luiz Gama proferiu estas palavras durante um tribunal do Júri na comarca de Araraquara, as palavras provocaram tumulto, a ponto de o juiz determinar a suspensão da sessão.

 

Ex-escravo por 8 anos, alfabetizado aos 17 anos de idade e com conhecimentos jurídicos oriundos de leituras e presença nas aulas de direito da Faculdade de São Paulo na condição ouvinte, Luiz Gama notabilizou-se como precursor do movimento abolicionista no Brasil.

 

Atuava como rábula ou provisionado. No Brasil do século XIX, o rábula era o advogado sem formação acadêmica em Direito, que obtinha autorização junto aos órgãos competentes (judiciário ou o instituto dos advogados), para exercer em primeira instância a postulação em juízo. Luiz Gama atuava em defesa de escravos acusados de crimes ou cativos que postulavam judicialmente a alforria mediante pagamento de indenização.

 

 “Perante o Direito, é justificável o crime de homicídio perpetrado pelo escravo na pessoa do senhor”. Esta ideia que ainda nos dias de hoje suscita uma orientação de radicalidade e intransigência políticas  devia certamente deixar assombrados os membros das classes proprietárias e escravistas do Brasil Imperial.

 

O que vale chamar atenção aqui é que Luiz Gama desenvolveu sua luta em prol de na abolição da escravatura e pela república de maneira pioneira, já nos anos de 1850. Nomes como José do Patrocínio, Castro Alves e Joaquim Nabuco apenas ganhariam projeção 30 anos depois. O Brasil seria o último país das Américas a abolir a escravidão no ano de 1888 – nos livros de história ficou dito que a abolição foi uma concessão generosa da Princesa Isabel, quando é certo que a abolição da escravatura era uma necessidade frente ao risco de uma insurreição popular que colocasse em xeque a dominação da classe proprietária de conjunto.

 

Desde a revolução hatiana em 1791/1804 até a revolta dos malês na Bahia em 1935, já havia sinais de uma situação explosiva. Ações individuais de escravos assassinando seus donos, destruindo fazendas e fugindo do cativeiro eram recorrentes nos tribunais.

 

O medo das elites acerca dos malefícios da escravidão foi objeto de um livro insuspeito de Joaquim Manuel de Macedo chamado “Vítimas Algozes”, que  recomendados a leitura. É uma prova inequívoca de que mesmo um monarquista bastante moderado politicamente já em 1869 defendia ardorosamente a abolição, não pelas razões humanitárias e igualitaristas de Luiz Gama, mas pelos inconvenientes da escravidão para a própria classe dominante brasileira.  

 

VIDA E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Não existem muitos livros e fontes biográficas de Luiz Gama. Além da pequena biografia de Mouzar Benedito publicada pela editora Expressão Popular, ficou ao leitor de hoje a carta escrita pelo próprio Luiz Gama ao jornalista e amigo Lúcio de Mendonça, em 25 de Julho de 1880, dois anos antes de morrer.

Instado pelo amigo, Luiz Gama faz um breve relato de sua vida na carta.

 

O documento nos serve de referência neste artigo.  

 

Luiz Gonzada Pinto da Gama nasceu em Salvador, Bahia, em 21 de Julho de 1830. Sua mãe era uma negra livre chamada Luíza Mahin. Consta que Luíza era quitandeira e idealista, tendo não só participado mas atuado como uma das lideranças da Revolta dos Malês de 1835. Consta que antes de 1835, a Bahia já havia sido palco de levantes negros em 1807, 1809, 1926 e 1830. A revolta dos Malês foi articulada para estourar em 25 de Janeiro, data do fim do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos. Malê é uma corruptela de “imale” que na língua ioruba significa muçulmano – os males eram negros cultos e rebeldes que não aceitavam passivamente a escravidão. Salvador naquela época tinha 20 mil habitantes e estima-se que da rebelião participavam entre 600 e 1.500 pessoas, entre escravos com ou sem origem muçulmana, além de negros libertos. Contudo, antes de a revolta estourar, houve uma delação e no dia 24 janeiro foi desencadeada a repressão estatal – na luta morreram cerca de 70 negros e 10 soldados.

 

O pai de Luiz Gama era de origem portuguesa:

 

“Meu pai, não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste país constituem  perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma injúria dolorosa, e o faço ocultando seu nome”.

 

Consta que o pai de Luiz Gama, reduzido à pobreza, vendeu o filho como escravo a bordo do patacho “Saraiva” remetido ao Rio de Janeiro. Como foi dito, nosso advogado  era filho de uma negra liberta, o que pela legislação da época, impedia que fosse vendido como escravo. Ainda assim, ficou ilicitamente cativo durante 8 anos. Luiz Gama relata que foi rejeitado por interessados e possíveis compradores pelo fato de ser baiano: influenciados pela revolta de 1835, os proprietários viam os escravos baianos como potencialmente rebeldes e encrenqueiros. Na casa do alferes Antônio Pereira Cardoso, foi alfabetizado por um hóspede da casa e estudante. Aos 18 anos, fugiu da casa do alferes e foi assentar praça.

 

Mencionamos que Luiz Gama assistia aulas de Direito na Faculdade do Largo de São Francisco em São Paulo, na condição de ouvinte. A receptividade dos alunos ao negro não foi nada solícita. Segundo Raul Pompeia, “a generosa mocidade acadêmica daquela época entendeu que devia matar as aspirações do pobre rapaz, tratando-as com o Santo Estêvão, e as apedrejaram com meia dúzia de dichotes lorpas. Luiz Gama excluiu-se revoltado da companhia dos moços, horrorizado pela benevolência dos eruditos”.

 

Do ponto de vista político, além do abolicionismo, Luiz Gama defendia o republicanismo. Chegou inclusive a pertencer ao velho Partido Liberal do Império. Participou do primeiro congresso republicano em São Paulo em 1873, mas não aderiu ao movimento vez que dele participavam latifundiários paulistas que não eram favoráveis à abolição. O seu republicanismo dizia respeito antes ao seu igualitarismo e sua inequívoca consciência de justiça e igualdade social, num momento em que socialismo ainda não era parte do vocabulário político: o período de atuação de Luiz Gama coincide com a época da publicação de trabalhos em vida de Marx e Engels, quando os próprios ainda eram minoritários no movimento europeu e praticamente desconhecidos no Brasil.

 

Ainda assim, Luiz Gama já a seu tempo, foi granjeando o respeito e admiração de muitos: negros libertos, escravos e mesmo brancos como Raul Pompeia, escritor naturalista e admirador do advogado. Já por volta de 1880, a saúde debilitada de Luiz Gama, decorrente de uma diabetes, foi afastando o rábula dos tribunais. Há referências de que ao final da vida, passou a ter menos esperança na transformação da realidade por meio dos tribunais e sim  por meio da insurreição.  Sua morte em 25 de agosto de 1882 foi um acontecimento inédito na cidade de São Paulo. Uma multidão toma conta das ruas no enterro: negros, mulatos e brancos, gente simples, intelectuais e até senhores da elite paulistana. Sobre este momento do enterro, narra Raul Pompeia:

 

“O orador reforçou o gesto e intimou a multidão a jurar sobre o cadáver que não se deixaria morrer a ideia pela qual combatera aquele gigante. Um brado surdo, imponente, vasto, levantou-se do cemitério. As mãos estedenderam-se abertas para o cadáver... A multidão jurou”.

 

Bibliografia

BENEDITO, Mouzar. “Luiz Gama – O Libertador de Escravos e Sua Mãe Libertária, Luíza Mahin” – Ed. Expressão Popular – Recortes Perfis – Viva o Povo Brasileiro  

  

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

FIDEL CASTRO E A REVOLUÇÃO CUBANA

 

FIDEL CASTRO E A REVOLUÇÃO CUBANA

 

 


 

“O que primeiro temos que nos perguntar, aos que fizemos esta revolução, é com que intenção a fizemos. Se em algum de nós se escondia a ambição, ânsia de mandar, o propósito desleal. Se em cada um dos combatentes desta revolução havia um idealista, ou se com o pretexto do idealismo, tinha outros fins. Se fizemos esta revolução pensando que, quando a tirania fosse derrotada, desfrutaríamos dos ofícios do poder. Se cada um de nós subiria num carro “rabo de pato”[1], se cada um de nós viveria como um rei, se cada um de nós teria um palacete, e daí para frente a vida, para nós, seria um passeio, já que para isso havíamos sido revolucionários e havíamos derrotado a tirania. Se o que estávamos pensando era tirar uns ministros para colocar outros, se o que estávamos pensando era simplesmente tirar uns homens para colocar outros homens. Ou se, em cada um de nós, havia um verdadeiro desinteresse, se em cada um de nós havia um verdadeiro espírito de sacrifício, se em cada um de nós havia o propósito de dar tudo em troca de nada e se, de antemão, estávamos dispostos a renunciar a tudo que não continuasse cumprindo sacrificadamente com o dever de sinceros revolucionários. Temos que nos fazer essa pergunta porque o futuro de Cuba, o nosso e o do povo, pode depender muito do nosso exame de consciência”. Fidel Castro - 08/01/1959

 

As palavras supracitadas correspondem a parte do discurso pronunciado por Fidel Castro quando da sua chegada a Havana, na Cidade Liberdade, em 08/01/1959.

 

Fazia sete dias que os revolucionários do Movimento 26 de Julho haviam derrotado a ditadura de Batista, que perdurara por 11 anos, desde o golpe de estado de março de 1953.

 

O ditador Batista fugiu de Cuba para a República Dominicana na madrugada de 1 de janeiro de 1959. Fidel tinha então 33 anos: líder inequívoco dos revolucionários cubanos, já tinha atrás de si alguns anos de prisão, exílio e luta revolucionária.

 

Na verdade, foi o mal sucedido ataque ao quartel de Moncada em 26 de julho de 1953, quatro anos antes, portanto, o verdadeiro ponto de partida da Revolução Cubana: o ataque ao quartel militar corresponde ao ponto de partida da luta armada revolucionária na ilha. 43 revolucionários tombaram e Fidel Castro, então um jovem advogado, foi condenado a 15 anos de prisão.

 

Da reclusão, formulou sua conhecida defesa, “A história me absolverá[2]”.

 

Após a saída de Fidel da cadeia em 12/06/1955, foi fundado o Movimento 26 de julho que dirigiria a luta armada a partir da Sierra Maestra. Em Julho daquele mesmo ano, os revolucionários no exílio no México prepararam politicamente e militarmente a luta. Foi neste período que Fidel conheceu Che Guevara, então um jovem médico que, nas palavras de Castro, se dedicava então a dissecar corpos de coelhos para estudo. Aprenderiam a arte militar na prática.

 

O embarque no Gramna no porto mexicano de Tuypaan ocorreu em 24/11/1956, barco que conduziu os 82 revolucionários pioneiros que desencadeariam uma luta guerrilheira no campo durante 3 anos, até a derrubada violenta da ditadura. Estavam no grupo Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e Raul Castro.

 

No dia 18 de dezembro de 1956 ocorre o encontro de Fidel com Raúl e cinco outros expedicionários, em Cinco Palmas. Consta ter havido o seguinte diálogo, após um emocionante abraço:

 

“- Quantos fuzis trazem? – pergunta Fidel

 

- Cinco – responde Raúl.

 

- Com os dois que tenho eu, sete! Agora, sim, ganhamos a guerra!”

 

Muitos anos depois, Fidel Castro, já presidindo Cuba, diria que a política é a arte de tornar possível o impossível. As diversas vitórias que a revolução alcançaria ao longo das décadas subsequentes certamente reafirmam este espírito nitidamente revolucionário de tornar o improvável uma realidade.

 

É certo que a Revolução Cubana de 1959 não foi uma revolução socialista, como o Outubro de 1917 na Rússia.

 

O caráter socialista da revolução foi declarado em 16/04/1961: a proclamação do caráter socialista da revolução é uma resposta à agressão imperialista perpetrada por mercenários articulados pela CIA com a invasão da praia Girón e morte de sete cubanos.

 

O acirramento da violência entre a revolução cubana e o imperialismo norte americana acentuou-se com as medidas democráticas tomadas após a vitória de 1959. Por exemplo, uma lei de reforma agrária estabeleceu a desapropriação de latifúndios e terras detidas por estrangeiros, mediante uma indenização paga pelo estado por títulos públicos de prazo de 10 anos. Houve a nacionalização das refinarias de petróleo, das 36 centrais açucareiras e das companhias telefônicas e de eletricidade, em resposta ao cancelamento da cota açucareira por parte do governo dos EUA.

 

Mesmo com a atuação da contrarrevolução e sob sua ameaça, Cuba conseguiu, no ano de 1961, a proeza de extinguir o analfabetismo na Ilha. Tudo num prazo de um ano! Já a lei da reforma agrária beneficiou 200 mil famílias. Saúde e educação tornaram-se serviços de alcance universal. Até os jogos de basebol, esporte querido dos cubanos, tornaram-se necessariamente gratuitos, estabelecendo-se o direito ao lazer.

 

É certo que Fidel e seus companheiros conheciam o marxismo leninismo antes de 1961. Contudo, mesmo antes como depois da declaração formal do caráter socialista da revolução, parece que aquelas lutas eram mais inspiradas em José Martí e às jornadas de independência latino americana, do que em Marx, Engels e Lênin. Sobre o assunto, talvez seja sintomático que a denominação do partido dirigente revolucionário como Partido Comunista Cubano (PCC) só tenha ocorrido em 01/10/1965.

 

Muitos anos depois, Cuba exportaria especialistas militares e militantes internacionalistas para lutar pela independência de países na África, mesmo contando com críticas e reservas por parte das direções soviéticas. Cuba contribuiu diretamente com a liberação de Argélia, Angola e Guiné Bissau – só em Angola, os cubanos enviaram 300 mil combatentes em face de tropas fascistas sul-africanas, apoiadas pelos EUA.

 

É certo que houveram dificuldades e necessidade de retificações, de modo que a revolução cubana não se diferencia das demais no que se refere a existência de contradições. Nos discursos de Fidel referentes ao período que vai entre 1959/1961 há a defesa da mudança do regime econômico por meio da educação, do sacrifício individual, da disciplina consciente. Em 1961, os dirigentes cubanos, entre eles Che, suscitavam o trabalho voluntário e a necessidade de se criar um novo homem. Posteriormente, em pronunciamentos dos anos 1970, Fidel reconhece que os estímulos materiais podem ser necessários para o incremento da produtividade: para alcançar o comunismo, é necessário desenvolver as forças produtivas, desenvolver a produção para permitir que os produtos cheguem a todos.

 

É certo que o realismo dos dirigentes cubanos nunca foi um impeditivo para que aquele povo lograsse alcançar grandes objetivos, metas que poderiam parecer utópicas. No ano de 2000, Cuba tinha o maior número per capta de médicos e professores do mundo. Mesmo após a derrota do socialismo no leste europeu, os cubanos seguem com sua experiência revolucionária, inclusive após a morte de seu principal dirigente em novembro de 2016. Chamado de ditador por anticomunistas e liberais, Fidel Castro manifestou o desejo, antes de morrer, no sentido que seu nome não fosse inscrito em nenhuma rua, bustos e/ou estátua de Cuba.

 

 Bibliografia: Fidel e a Revolução- Judith Elaine dos Santos e Edgar Jorge Kolling (orgs.). Ed. Expressão Popular. 2017.



[1] “Rabo de pato”: expressão utilizada em Cuba para os luxuosos automóveis dos anos 1950, cuja parte traseira era semelhante a um “rabo de pato” e simbolizava o privilégio das elites dominantes.