Notas Sobre Luiz Gama
“Para o coração não há códigos; e, se
a piedade humana e a caridade cristã se devem enclausurar no peito de cada um,
sem se manifestarem por atos, em verdade vos digo aqui, afrontando a lei, que
todo o escravo que assassina o seu senhor pratica um ato de legítima defesa”. Luiz
Gama
Quando Luiz Gama proferiu estas palavras
durante um tribunal do Júri na comarca de Araraquara, as palavras provocaram
tumulto, a ponto de o juiz determinar a suspensão da sessão.
Ex-escravo por 8 anos, alfabetizado
aos 17 anos de idade e com conhecimentos jurídicos oriundos de leituras e
presença nas aulas de direito da Faculdade de São Paulo na condição ouvinte,
Luiz Gama notabilizou-se como precursor do movimento abolicionista no Brasil.
Atuava como rábula ou provisionado. No
Brasil do século XIX, o rábula era o advogado sem formação acadêmica em
Direito, que obtinha autorização junto aos órgãos competentes (judiciário ou o
instituto dos advogados), para exercer em primeira instância a postulação em
juízo. Luiz Gama atuava em defesa de escravos acusados de crimes ou cativos que
postulavam judicialmente a alforria mediante pagamento de indenização.
“Perante o Direito, é justificável o crime de
homicídio perpetrado pelo escravo na pessoa do senhor”. Esta ideia que ainda
nos dias de hoje suscita uma orientação de radicalidade e intransigência políticas
devia certamente deixar assombrados os
membros das classes proprietárias e escravistas do Brasil Imperial.
O que vale chamar atenção aqui é que
Luiz Gama desenvolveu sua luta em prol de na abolição da escravatura e pela
república de maneira pioneira, já nos anos de 1850. Nomes como José do Patrocínio,
Castro Alves e Joaquim Nabuco apenas ganhariam projeção 30 anos depois. O Brasil
seria o último país das Américas a abolir a escravidão no ano de 1888 – nos
livros de história ficou dito que a abolição foi uma concessão generosa da
Princesa Isabel, quando é certo que a abolição da escravatura era uma
necessidade frente ao risco de uma insurreição popular que colocasse em xeque a
dominação da classe proprietária de conjunto.
Desde a revolução hatiana em 1791/1804
até a revolta dos malês na Bahia em 1935, já havia sinais de uma situação
explosiva. Ações individuais de escravos assassinando seus donos, destruindo
fazendas e fugindo do cativeiro eram recorrentes nos tribunais.
O medo das elites acerca dos
malefícios da escravidão foi objeto de um livro insuspeito de Joaquim Manuel de
Macedo chamado “Vítimas Algozes”, que recomendados a leitura. É uma prova inequívoca
de que mesmo um monarquista bastante moderado politicamente já em 1869 defendia
ardorosamente a abolição, não pelas razões humanitárias e igualitaristas de
Luiz Gama, mas pelos inconvenientes da escravidão para a própria classe
dominante brasileira.
VIDA E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Não existem muitos livros e fontes biográficas
de Luiz Gama. Além da pequena biografia de Mouzar Benedito publicada pela editora
Expressão Popular, ficou ao leitor de hoje a carta escrita pelo próprio Luiz
Gama ao jornalista e amigo Lúcio de Mendonça, em 25 de Julho de 1880, dois anos
antes de morrer.
Instado pelo amigo, Luiz Gama faz um
breve relato de sua vida na carta.
O documento nos serve de referência
neste artigo.
Luiz Gonzada Pinto da Gama nasceu em
Salvador, Bahia, em 21 de Julho de 1830. Sua mãe era uma negra livre chamada Luíza
Mahin. Consta que Luíza era quitandeira e idealista, tendo não só participado mas
atuado como uma das lideranças da Revolta dos Malês de 1835. Consta que antes
de 1835, a Bahia já havia sido palco de levantes negros em 1807, 1809, 1926 e
1830. A revolta dos Malês foi articulada para estourar em 25 de Janeiro, data
do fim do Ramadã, mês sagrado dos muçulmanos. Malê é uma corruptela de “imale” que
na língua ioruba significa muçulmano – os males eram negros cultos e rebeldes
que não aceitavam passivamente a escravidão. Salvador naquela época tinha 20
mil habitantes e estima-se que da rebelião participavam entre 600 e 1.500
pessoas, entre escravos com ou sem origem muçulmana, além de negros libertos.
Contudo, antes de a revolta estourar, houve uma delação e no dia 24 janeiro foi
desencadeada a repressão estatal – na luta morreram cerca de 70 negros e 10
soldados.
O pai de Luiz Gama era de origem
portuguesa:
“Meu pai, não ouso afirmar que fosse
branco, porque tais afirmativas neste país constituem perigo perante a verdade, no que concerne à melindrosa
presunção das cores humanas: era fidalgo; e pertencia a uma das principais
famílias da Bahia, de origem portuguesa. Devo poupar à sua infeliz memória uma
injúria dolorosa, e o faço ocultando seu nome”.
Consta que o pai de Luiz Gama,
reduzido à pobreza, vendeu o filho como escravo a bordo do patacho “Saraiva”
remetido ao Rio de Janeiro. Como foi dito, nosso advogado era filho de uma negra liberta, o que pela
legislação da época, impedia que fosse vendido como escravo. Ainda assim, ficou
ilicitamente cativo durante 8 anos. Luiz Gama relata que foi rejeitado por
interessados e possíveis compradores pelo fato de ser baiano: influenciados
pela revolta de 1835, os proprietários viam os escravos baianos como
potencialmente rebeldes e encrenqueiros. Na casa do alferes Antônio Pereira Cardoso,
foi alfabetizado por um hóspede da casa e estudante. Aos 18 anos, fugiu da casa
do alferes e foi assentar praça.
Mencionamos que Luiz Gama assistia
aulas de Direito na Faculdade do Largo de São Francisco em São Paulo, na
condição de ouvinte. A receptividade dos alunos ao negro não foi nada solícita.
Segundo Raul Pompeia, “a generosa mocidade acadêmica daquela época entendeu que
devia matar as aspirações do pobre rapaz, tratando-as com o Santo Estêvão, e as
apedrejaram com meia dúzia de dichotes lorpas. Luiz Gama excluiu-se revoltado
da companhia dos moços, horrorizado pela benevolência dos eruditos”.
Do ponto de vista político, além do
abolicionismo, Luiz Gama defendia o republicanismo. Chegou inclusive a pertencer
ao velho Partido Liberal do Império. Participou do primeiro congresso
republicano em São Paulo em 1873, mas não aderiu ao movimento vez que dele
participavam latifundiários paulistas que não eram favoráveis à abolição. O seu
republicanismo dizia respeito antes ao seu igualitarismo e sua inequívoca consciência
de justiça e igualdade social, num momento em que socialismo ainda não era parte
do vocabulário político: o período de atuação de Luiz Gama coincide com a época
da publicação de trabalhos em vida de Marx e Engels, quando os próprios ainda
eram minoritários no movimento europeu e praticamente desconhecidos no Brasil.
Ainda assim, Luiz Gama já a seu tempo,
foi granjeando o respeito e admiração de muitos: negros libertos, escravos e
mesmo brancos como Raul Pompeia, escritor naturalista e admirador do advogado.
Já por volta de 1880, a saúde debilitada de Luiz Gama, decorrente de uma
diabetes, foi afastando o rábula dos tribunais. Há referências de que ao final
da vida, passou a ter menos esperança na transformação da realidade por meio
dos tribunais e sim por meio da
insurreição. Sua morte em 25 de agosto
de 1882 foi um acontecimento inédito na cidade de São Paulo. Uma multidão toma
conta das ruas no enterro: negros, mulatos e brancos, gente simples,
intelectuais e até senhores da elite paulistana. Sobre este momento do enterro,
narra Raul Pompeia:
“O orador reforçou o gesto e intimou a
multidão a jurar sobre o cadáver que não se deixaria morrer a ideia pela qual
combatera aquele gigante. Um brado surdo, imponente, vasto, levantou-se do
cemitério. As mãos estedenderam-se abertas para o cadáver... A multidão jurou”.
Bibliografia
BENEDITO, Mouzar. “Luiz Gama – O Libertador
de Escravos e Sua Mãe Libertária, Luíza Mahin” – Ed. Expressão Popular – Recortes
Perfis – Viva o Povo Brasileiro
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