terça-feira, 16 de abril de 2024

“Alguma Poesia” – Carlos Drummond de Andrade

 Resenha Livro – “Alguma Poesia” – Carlos Drummond de Andrade – Ed. Record




 O primeiro livro de poesias publicado por Carlos Drummond de Andrade foi lançado quando o escritor tinha vinte oito anos de idade, o que nos autoriza dizer que o poeta iniciou sua trajetória de forma relativamente tardia.

 Trata-se da coletânea “Alguma Poesia” (1930) que reuniu poemas escritos pelo escritor entre 1925/30, parte deles anteriormente publicados no Jornal Estado de Minas.  

 Essa obra contém poemas que ainda hoje são tão conhecidos que se pode dizer já fazerem parte do imaginário popular brasileiro.

 Quem nunca ouviu falar dos versos do poema “No meio do Caminho”?

 

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

 

O mesmo pode se dizer do poema “Quadrilha”, bastante conhecido mesmo por pessoas não habituadas à leitura da poesia nacional:

 

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.

  

Curiosamente, essa primeira obra do poeta de Itabira, hoje consagrada pelo público e pela crítica literária, foi ao seu tempo bancada do próprio bolso do escritor, denotando não ter sido o livro um grande sucesso ao seu tempo.

 Foram inicialmente tiradas apenas 500 cópias pela Imprensa Oficial de Minas Gerais, onde Drummond trabalhava.

 Antes do lançamento de “Alguma Poesia”, o poeta contou com a colaboração de Mário de Andrade, que não só havia se disposto a ajudá-lo na publicação desse primeiro livro, como havia sido a pessoa que incentivou Drummond a se lançar no mundo literário.

 A amizade entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade iniciou-se no ano de 1924 quando chegou à Belo Horizonte um grupo de intelectuais paulistas que havia liderado o movimento modernista brasileiro, consubstanciado na Semana de Arte Moderna de 1922.

 Dessa comitiva, fizeram parte Oswald de Andrade, Paulo Prado, Tarsila do Amaral, além do citado Mário de Andrade. Pretendiam fazer um périplo pelo Brasil para com isso dar vazão às propostas por eles enunciadas na Semana: o rompimento com a tradição parnasiana e toda literatura que replicava o estilo europeu, em detrimento de uma arte nacional, ainda que incorporando (através da antropofagia) as influências exógenas. Não se tratava de importar a arte estrangeira, mas assimilá-la criticamente, para criar algo novo, especificamente brasileiro, para exportação.

 A viagem às Minas Gerais tinha como escopo assistir à Semana Santa nas cidades históricas mineiras e procurar vestígios do passado que colaborassem com projeto modernista de constituição de uma identidade nacional.

 O que o movimento modernista postulava era a busca daquilo que singularizava o Brasil.

 No nosso país, a independência política antecedeu a conformação da nacionalidade.

 Ao contrário da experiência dos países Europeus, aqui, não foi a nação que criou o Estado, mas o Estado que antecedeu a Nação. Desde a proclamação da independência em 1822 até a Revolução de 1930, o que hoje se denomina Brasil era antes uma somatória dos estados federativos, sem um claro sentido de unidade. E essa busca pela identidade brasileira, uma bandeira central do modernismo dos anos 30, irremediavelmente os levava à busca de nossas especificidades através da História.

 (Não é por acaso que os três principais historiadores dos anos 1930, diretamente relacionados ao movimento modernista, escreveram suas principais obras tratando do Brasil em tempos coloniais. É o caso de Caio Prado Júnior com o seu “Formação Histórica do Brasil” (1942) É o caso de Sérgio Buarque de Holanda com o seu “Raízes do Brasil” (1936) E é o caso de Gilberto Freire com o seu “Casa Grande em Senzala” (1933)

 No estado de Minas Gerais, ou mais exatamente na recém criada capital Belo Horizonte, já existia um grupo de intelectuais que haviam aderido ao movimento modernista iniciado em São Paulo.

 Dele faziam parte Carlos Drummond de Andrade e Cyro dos Anjos, para citarmos os dois mais famosos.  Foi através do contato desse grupo mineiro com a comitiva paulista no ano de 1924 que surgiu a amizade entre Drummond e Mário de Andrade. E através dessa amizade e do incentivo do autor de Macunaíma, que se iniciou a trajetória dequele que foi um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos.

 Nesses poemas de “Alguma Poesia” vê-se uma forte influência do movimento da Semana de 1922. Há aqui a recusa de todo tipo de idealização, a aversão a todo o tipo de retórica, o humor e a ironia que despontam como formas de crítica social, o jogo de palavras que sugere experimentações linguísticas, tais quais aquelas que aparecem em Macunaíma.

Há também a mesma oposição modernista à mera importação da arte estrangeira sem mediações com a realidade Brasileira, o que é bastante explícito no poema “Europa, França e Bahia”:

 

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cães bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.

(...)

Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos,
minha boca procura a 'Canção do Exílio'?
Como era mesmo a 'Canção do Exílio'?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!

 

Outro aspecto da obra diz respeito à própria concepção do artista sobre o que é a poesia e como ela deve ser feita.

 De maneira geral, os poemas fazem alusão à afirmação do presente em detrimento do passado, visto como algo que “cheira mofo” e contém “teias de aranha”. Para se fazer poesia é necessário afirmar a realidade vista na sua imediaticidade, o que também significa ver e estar em contato direto com essa realidade, sentindo-a, criando a arte pela percepção imediata do poeta. Cite-se o poema “Lagoa”:

 

Eu não vi o mar.

Não sei se o mar é bonito,

não sei se êle é bravo.

O mar não me importa.

 

Eu vi a lagoa.

A lagoa, sim.

A lagoa é grande

e calma também.

 

Na chuva de cores

da tarde que explode

a lagoa brilha

a lagoa se pinta

de todas as cores.

Eu não vi o mar.

Eu vi a lagoa. . .

 

O fazer poesia, em Drummond é uma experiência derivada dos sentimentos do poeta deflagrados pelo que ele vê, escuta, percebe ao seu redor. Sitomaticamente, um dos livros do escritor se chama “Sentimento do Mundo”. A poesia de fato nasce dos sentimentos, ela está por isso viva dentro do poeta, nem sempre se torna visível, mas ainda assim inunda a sua alma.  

 

Poema

Gastei uma hora pensando em um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

“Malazarte” – Graça Aranha

 “Malazarte” – Graça Aranha



Resenha Livro - “Malazarte” – Graça Aranha – Ed. Iba Mendes

O trabalho literário mais conhecido do escritor maranhense Graça Aranha certamente é o livro “Canaã”, publicado no ano de 1908.

A história foi elaborada durante o período em que o escritor atuou como juiz municipal de Porto do Cachoeira no estado do Espirito Santo. Naquela Comarca teve contato com os colonos alemães que lá constituíram povoados.

As colônias decorriam de um movimento iniciado ainda no século XIX de estímulo da vinda de imigrantes europeus ao Brasil, não só como meio de substituir o trabalho escravo, cuja abolição deu-se em 1888, mas por conta de considerações raciais relacionadas ao debate intelectual da época.

Os dois principais personagens, os alemães Milkau e Lentz, expressam dois pontos de vista  distintos relacionados às discussões do período em torno de raça, cultura e o futuro do Brasil.

Milkau, desiludido com a Europa, busca no Brasil o recomeço de sua existência na virgindade de um mundo que estava para ser construído. Via na miscigenação brasileira algo positivo, já que pensava a evolução humana relacionada à confluência de raças. Rejeitava o patriotismo alemão e entendia que as guerras e a luta entre os homens, no futuro, seriam superadas pela solidariedade e o amor.

Há quem diga que este personagem fora inspirado em Tolstói e de fato suas intervenções remetem a algo próximo de um socialismo utópico.

Lentz parece ser o exato oposto de seu amigo Milkau. Via a imigração alemã como uma oportunidade de subjugar os negros e mestiços do país. Línguas, culturas e civilizações duelam até a prevalência da raça mais forte, no caso a alemã. Enquanto seu companheiro via beleza na harmonia entre o homem e a exuberância da natureza brasileira, Lentz enxerga a beleza na luta e na vitória do mais forte, na dominação do homem sobre a natureza. Pode-se relacionar as suas ideias com a moral nietzschiana: a apologia do mais forte, o desprezo pelos fracos e pela caridade cristã.  

A temática filosófica, ou mais especificamente a crítica do racionalismo enunciada pelo pensamento de Nietzsche, seria objeto de um tratamento mais acurado na peça de teatro “Malazarte”, encenada pela primeira vez no ano de 1911.

Enquanto “Canaã” foi elaborada no período em que o escritor atuava como juiz numa comarca do Brasil profundo, a peça Malazarte foi criada já num momento posterior, quando o escritor troca a magistratura pela carreira diplomática e passa do interior à vida cosmopolita da Europa.

Serviu em várias missões diplomáticas entre 1900/20 passando por Inglaterra, Itália, Suíça, Noruega, Dinamarca, França e Holanda.

 

 

“Malazarte” foi representada pela primeira vez na França, no Théatre de L’ouvere, fundado por artistas ligados ao movimento simbolista.  

Pode-se dizer que a peça se situa dentro desse movimento literário simbolista.

Tratava-se de escola voltada à crítica da razão e do positivismo. De certa maneira, antecipava o modernismo cujo epicentro deu-se no Brasil na Semana de 1922, movimento do qual Graça Aranha participou ativamente. Esses escritores se opunham àquilo que diziam ser o academicismo, derivado das tradições literárias imediatamente anteriores: romantismo, realismo e naturalismo.  

O que havia naquele período era um esgarçamento e esvaziamento da crença na inefabilidade da razão e do progresso. As diversas inovações tecnológicas da Belle Époque, com os seus  telégrafos, bondes elétricos, fonógrafos, telefone, e cinema,   também criaram as condições para que o pensamento filosófico fosse além do impulso cartesiano e cientificista de fins do século XIX.

O evolucionismo, o determinismo social e o positivismo pavimentaram o caminho do colonialismo europeu em África e Ásia. A missão civilizatória enunciada na ideia do “Fardo do Homem Branco” criou o neocolonismo, o imperialismo, a partilha territorial, o racismo com verniz cientificista e o massacre das populações – estima-se que no Congo, sob ocupação francesa, houve o extermínio de 60% da população. Em China, a Guerra do Ópio (1839-1842 e 1856-1860) levada adiante pelo imperialismo Britânico disseminou em larga escala o uso de entorpecente que adoeceu a sociedade chinesa. A razão e o progresso levaram o mundo à barbárie e ao conflito armado, materializado na Primeira Guerra Mundial (1914/1918).

O protagonista Malazarte é representativo da crítica radical de Nietzsche à tradição filosófica platônica e ao pensamento cristão. Sua figura enuncia os aforismos que tornaram conhecidas as teses relacionadas àquela crítica pioneira à tradição filosófica racionalista. Quando Nietzsche pioneiramente denuncia os limites da razão, estava já se antecipando aqueles eventos dramáticos de guerra e destruição que marcaram o século XX.   

Nessa peça, a existência da ação é praticamente inexistente.  

O cerne dos diálogos não está relacionado a eventos, não se relacionam a um enredo com começo, meio e fim, mas a elucubrações e aforismos filosóficos enunciados por personagens representativos das diferentes perspectivas filosóficas em jogo.

A peça se inicia num dia de Natal, momento do renascimento de Cristo.

Pouco se fala sobre o lugar onde os eventos se passam e o período histórico dos fatos.

Há uma predominância pela figura do mar em detrimento da terra. O protagonista Malazarte está em oposição a tudo o que pode ser considerado telúrico. Para ele “nada é eterno na vida imortal”. Afirma estar sempre em eterna mutação. Prefere o mar à terra justamente por buscar sempre estar em eterna transformação, como as águas do oceano, ora tranquilas ora em forte agitação. Prefere a instabilidade do céu e das nuvens à solidez e imutabilidade da terra.

A personagem “Mãe” chora pela morte recente do seu marido e apela ao seu filho Eduardo que a ampare, após credores do falecido exigirem o pagamento de dívidas pecuniárias, sob pena de penhora da casa. De forma significativa, a Mãe apenas se interessa pelo filho após a morte do seu companheiro. Eduardo por sua vez rejeita as preocupações terrenas da mãe. Aposta sua existência no amor e na afirmação da vida. O seu amor erótico pela mulher amada é o momento de rompimento com os elos maternos.

O personagem Raimundo, filho de Militina, acompanha Malazarte numa pescaria e morre afogado. Sua mãe revolta-se contra a morte, ou mais exatamente contra a natureza das coisas, e por isso torna-se louca.

A loucura, nos exatos termos nietzschianos, dá-se quando o homem se revolta contra a natureza. É a fuga da realidade, da imeaticidade da vida, em torno do ideal, o início da loucura do homem. Ela se expressa quando Militina começa a deitar comida nas águas do mar, buscando alimentar a alma do filho morto:

“Onde está agora? Reponde... O pobrezinho deve estar com fome... (começa a deitar ao mar a comida que trouxe na cesta). Tu não me voltas, mas tu comes... E se estás morto, tua alma não terá fome... Toma mais! Como tens fome, meu filho! Faz frio aí em baixo dágua? Hein? Dize à tua mãezinha....”.

Esses são alguns dos fatos ou ações da peça, que, como dissemos, quase nada tem de importante.

O que deve ser considerado são basicamente os diálogos. Neles vemos uma sequência de aforismos, enunciado por personagens que despontam como pertencentes a dois grupos: os “fortes” (Malazarte, Dionísia), e os “fracos” (Mãe, Militina).

A oposição filosófica se dá nos exatos termos da crítica da filosofia grega traçada por Nietzsche.

Os personagens “fracos” são aqueles que negam a imediaticidade da vida, a afirmação da vontade e da força em oposição ao medo, fraqueza e à loucura, assim descrita como a revolta do homem em face da natureza.  Os personagens “fortes” são aqueles que vão além da alegoria da caverna de Platão. Não estão em busca de um ideal ou de uma teoria que explique as sombras vistas de dentro da caverna. São os seres livres, abertos incondicionalmente às inconstâncias da vida e expressam as forças, o brilho e a vivacidade da natureza. Mais importante do que teorizar sobre a sombra na caverna é vê-la em sua plenitude, sem para isso buscar evadir-se do real.  Não se trata de sair da caverna, mas lá permanecer, de acordo com essa teoria.

Eduardo está a meio passo entre o niilismo criticado por Nietzche (representado pela Mãe e pela sua criada Militina) e o anticristo enaltecido pelo filósofo alemão (representado pelo protagonista Malazarte). Está com um pé no grupo dos “fracos” e outro pé no grupo dos “fortes”.

Este meio termo talvez tenha sido o posicionamento final de Graça Aranha acerca do problema filosófico já traçado em Canaã.

Tanto no romance, quanto na peça de teatro, não fica claro ao leitor qual a filiação exata do escritor acerca das ideias propostas por Nietzsche.

Como boas obras artísticas, este posicionamento fica aberto às indagações do leitor.  

terça-feira, 2 de abril de 2024

“A Mãe” – José de Alencar

 Resenha Livro - “A Mãe” – José de Alencar – José de Alencar – Ed. Iba Mendes Editor Digital




“Mãe,

Em todos os meus livros há uma página que me foi inspirada por ti. É aquela em que fala esse amor sublime que se reparte sem dividir-se e remoça quando todas as afeições caducam.

Desta vez não foi uma página, mas o livro todo.

Escrevi-o com o pensamento em ti, cheio de tua imagem, bebendo em tua alma perfumes que nos vêm do céu pelos lábios maternos. Se, pois, encontrares aí uma dessas palavras que dizendo nada exprimem tanto, deves sorrir-te; porque foste tu, sem o querer e sem o saber quem me ensinou a compreender essa linguagem. “ (Alencar, José. “A Mãe”. 1859)

A trajetória literária do escritor José de Alencar inicia-se no ano de 1853, pouco após ter se formado em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco. Foi convidado por um colega de turma para a redação do Jornal Correio Mercantil, onde publicava crônicas leves, escritas “ao correr da pena”, que era aliás o nome da sua coluna.

Foi contudo a polêmica que iniciou em face do poema épico “A Confederação dos Tamoios” o marco inicial de sua participação direta na vida intelectual do país.

Esse poema de Gonçalves Magalhães foi editado e apoiado pelo próprio Imperador Dom Pedro II e o seu lançamento foi a oportunidade para que Alencar estabelecesse sua crítica àquele que era o maior expoente do romantismo brasileiro. Uma crítica para ele próprio Alencar pudesse depois criar as bases para o seu próprio projeto literário indianista através da publicação do Guarani (1857).

Alencar e Gonçalves Magalhães partilhavam a ideia do indianismo e da poesia épica como eixo de afirmação da nacionalidade Brasileira. O jovem crítico literário criticava o poeta protegido por Pedro II pelo uso abusivo dos cronistas na elaboração do enredo e o fato de a composição de um poema épico ter partido, em Magalhães, por questões triviais relacionadas a assassinato e vingança no bojo da guerra entre os índios Tamoios, aliados aos franceses, em luta contra os portugueses do Rio de Janeiro e São Paulo (1555). No caso do Guarani, esses temas triviais (a guerra e a vingança) se justificavam por se tratar de um romance, e não de um poema fundacional da civilização brasileira.

A polêmica literária de 1856 pode ser considerada o ponto de partida da produção artística e da crítica cultural do autor de Iracema. Sua obra perpassou pelo romance, pelo jornalismo e pelas artes cênicas.

Essa atividade de escritor foi acompanhada a partir do ano de 1860 pela carreira política, quando Alencar foi eleito deputado provincial do Ceará pelo Partido Conservador.  A interface entre política e literatura é destacada por Araripe Júnior, o primeiro biógrafo do escritor com quem conviveu pessoalmente.

Nesta primeira fase da obra do escritor, vemos além do indianista “O Guarani”, peças teatrais como “O Demônio Familiar” (1857) e “A Mãe” (1859) e romances voltados especialmente para o publico feminino como “Lucíola” (1862) e “Diva” (1864), vem as características mais próprias do romantismo, com a sublimação do trivial e o graciosíssimo na descrição dos personagens e da natureza.

A partir de 1870, Araripe Jr.  vê uma mudança no estilo literário que estaria relacionada com a decepção com política: foi naquele ano que José de Alencar sofreu a decepção de ser preterido por D. Pedro II para uma vaga de Senador Vitalício. Teria havido uma profunda mágoa pessoal que não só afastou o escritor da política, como acentuou nos seus textos o caráter polemista e crítico, nem sempre  significando com isso bons resultados estéticos. Nesses livros subsequentes, o biógrafo aponta um viés que se relaciona ao seu humor depressivo e taciturno, após a sua reclusão no bairro da Tijuca.

Falemos agora um pouco da produção teatral de José de Alencar.

A maior parte das suas peças teatrais foram escritas nessa sua primeira fase de “juventude” (1853/1870).Algumas delas foram um sucesso e outras foram um fracasso, como foi o caso de "O Jesuíta" (1875) que correspondeu ao último trabalho e expressou o fim melancólico da carreira do artista.   

A peça “A Mãe” foi anunciada ao público fluminense pelo Correio Mercantil no dia 14 de março de 1860.

Para os padrões da época, o espetáculo foi um sucesso. Foram nove apresentações, além de elogios da crítica, incluindo uma nota positiva de Machado de Assis, que tinha então vinte poucos anos de idade e iniciava sua carreira de crítico literário na imprensa carioca:

“Acaba de publicar-se o drama do Sr. Conselheiro José de Alencar intitulado Mãe, já representado no teatro Ginásio. Por este meio está facilitada a apreciação a frio ee no gabinete das incontestáveis belezas dessa composição. O autor das “Asas de um Anjo” é um dos que melhor reúnem os requisitos necessários a um autor dramático” (Diário do Rio de Janeiro.).

Trata-se de uma tragédia envolvendo os temas da escravidão e da maternidade.

A protagonista Joana aparece como mãe de leite do estudante de medicina Jorge. Ao longo da peça sabemos que a escrava na verdade era a própria mãe de seu senhor, cujo pai de cor branca era então desconhecido, de modo que tal condição desonrosa foi escondida do filho como meio de preservá-lo. Joana e Jorge viveram anos juntos, na visão dele como senhor e escrava, e no coração dela como mãe e filho.

Esse tipo de situação envolvendo enlaces extraconjugais de senhores brancos e escravas são bastantes conhecidos na história do Brasil Colonial, podendo-se dizer o mesmo de outras formas ilícitas de casamento.   O próprio José de Alencar de certa forma tivera experiência parecida com o personagem Jorge. Foi o primeiro dos oitos filhos de um padre e senador com sua prima: filho ilegítimo de padre, preterido em testamento e provocado em vida por seus adversários por causa dessa mancha do seu passado.

Na peça “A Mãe”, Jorge se vê compelido a salvar a honra do pai de sua pretendente Elisa que intentava suicidar-se por não conseguir honrar dívidas pecuniárias junto ao especulador Vicente.

Como meio de salvar o seu futuro genro, Jorge, mesmo tendo a afinidade e amor de filho com sua mãe preta Joana, aceita vender sua escrava provisoriamente até levantar os fundos para quitar a dívida.

Ao mesmo tempo que Jorge desconhecia ser filho de sangue de Joana, intuitivamente a via como tal.

Essa sintonia não era incomum num tempo em que predominava a figura da ama de leite. Acreditava-se que o leite da mulher negra era mais forte do que o da mulher branca.   Por isso, nas fazendas, a escrava que tinha acabado de parir era transferida para a casa de seu senhor para amamentar o recém-nascido branco e tomar conta da criança em tempo integral. Chamava-se essa criança de "nho-nhô". Já o próprio filho escravo dificilmente tinha acesso ao leite materno e era cuidado por outras escravizas que o alimentavam com uma papa de mandioca ou com leite animal não pasteurizado, o que contribuía para o grande número de óbitos. Já os vínculos estabelecidos entre a ama de leite e o filho do dono de Engenho constituíram, como não poderia deixar de ser, um elemento constitutivo da psicologia brasileira. O vínculo afetivo  que contribuiu para a ideia da democracia racial aventada na conhecida tese de Gilberto Freire.

O término da peça “A Mãe” é trágico. Ao fim e ao cabo, Jorge descobre a verdade sobre a sua filiação. Mesmo sendo um estudante de medicina, educado e professor de letras e artes, apenas por ser noticiado ser filho de escrava, vê o seu casamento barrado por Gomes, o mesmo genro que ajudara a quitar a dívida e salvar a honra. Como meio de garantia a felicidade do filho e a manutenção do segredo ao público, a mãe Joana resolve se matar tomando veneno. Sua morte apaga a marca trágica da escravidão na vida do seu filho e garante o seu casamento com a mulher amada.

O sacrifício da mãe pelo filho e martírio sublime da maternidade dão um ar de permanência à peça “A Mãe”. Esse amor incondicional é uma realidade ontem e hoje.

No mais, a obra ainda denota interesse especialmente por seu pioneirismo na descrição e abordagem de personagens dos baixos extratos sociais. Do enredo não há os tipos burgueses citadinos de muitas outras histórias de Alencar, mas o pequeno funcionário público arruinado, o estudante pobre, escrava de ama, o meirinho, o especulador, etc.