sexta-feira, 24 de julho de 2020

“A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” – Friedrich Engels


A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado de Friedrich Engels



Resenha Livro - “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” – Friedrich Engels – Ed. Civilização Brasileira – 2ª Edição

“O Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é ‘a realidade da ideia moral’ nem ‘a imagem e a realidade da razão’ como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da “ordem”. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado”.

A crítica da economia política oriunda do pensamento de Marx e Engels implicou numa reflexão original sobre o problema do Estado. Este não se refere a um fenômeno perene na história, perpétuo e inevitável, bem como não pode ter tido origem na reflexão política de alguns filósofos esclarecidos. O Estado é produto de um desenvolvimento histórico que envolve a divisão social do trabalho, com a correspondente necessidade de um ente mediador dos novos antagonismos de classe. A forma política assume diferentes contornos na história, mas o Estado é transitório, nesta perspectiva. O Estado não existiu na maior parte da história humana e não deverá existir numa sociedade não mais cindida em classes.

Neste livro publicado por Engels no ano de 1884 o autor se serve das mais recentes descobertas na área da pré-histórica para relacionar a gênese da vida humana, das formas de constituição da família e do trabalho, com o advento da propriedade privada e do Estado.

O livro foi publicado um ano após a morte de Karl Marx (1818-1883) e está baseado em escritos não publicados do autor do Capital, de modo que se pode dizer que é um trabalho escrito em co-autoria.

O subtítulo do livro, “trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan” já revela como a obra se baseia nas, então, mais recentes descobertas sobre as gens dos povos antigos, particularmente os gregos e romanos, a partir da pesquisa daquele intelectual norte americano acerca das tribos Iroqueses (estabelecidas no estado de Nova Iorque).

Conforme informa Engels:

“O grande mérito de Morgan é o de ter descoberto e restabelecido em seus traços essenciais esse fundamento pré-histórico da nossa história escrita e o de ter descoberto, nas uniões gentílicas dos índios norte americanos, a chave para decifrar importantíssimos enigmas, ainda não resolvidos, da história antiga da Grécia, Roma e Alemanha. (...) O descobrimento da primitiva gens de direito materno, como etapa anterior à gens de direito paterno dos povo civilizados, tem para a história primitiva, a mesma importância que a teoria da evolução de Darwin para a biologia e a teoria da mais valia enunciada por Marx”.

Engels se serve de uma classificação tradicional da pré história, dividida entre as fases relativas ao estado selvagem, à barbárie e à civilização.

Na infância da humanidade, os homens vivem nas árvores, ao abrigo de grandes feras, vivem da coleta de frutos e raízes. Posteriormente incluem o peixe na alimentação, após o aprendizado do uso do fogo. A caça já se torna possível na fase superior do estado selvagem com o uso regular do arco e flecha.

A fase da barbárie inicia-se com o uso da cerâmica, a domesticação de animais e o plantio de plantas. A etapa superior da barbárie envolve a fundição do ferro, que será utilizado para o arado e para construção de machados e espadas. O arado de ferro tem uma importância pois possibilita pela primeira vez a agricultura, o cultivo da terra em larga escala.

A civilização, a história propriamente dita, nasce com a escrita, quando o homem também desenvolve a indústria e as artes.

A forma familiar dos povos pré históricos encontraram fases mais ou menos condizentes com o desenvolvimento das forças produtivas e da cultura material relacionados nas três grandes fases supracitadas.

A forma mais remota de família são os matrimônios por grupos. Engels chama atenção para como as mulheres tinham um papel de maior consideração social no comunismo primitivo. Em certas passagens o autor sugere uma maior respeitabilidade das mulheres no comunismo primitivo do que no capitalismo moderno.

Enquanto os homens são encarregados da caça e do provento da tribo, as mulheres são responsáveis pelos cuidados domésticos. Não na forma como a conhecemos hoje: os cuidados domésticos eram compartilhados pela coletividade e não por agrupamentos familiares nucleares tal como hoje, cabendo a liderança destes trabalhos à mulher


“Entre todos os selvagens e em todas as tribos que se encontram nas fases inferior, média e até (em parte) superior da barbárie, a mulher não só é livre como também, muito considerada. Artur Wright, que foi durante muitos anos missionário entre os iroqueses-senekas, pode atestar qual é a situação da mulher, ainda no matrimônio sindiásmico: ‘a respeito de suas famílias, na época em que ainda viviam nas antigas casas grandes (domicílios comunistas de muitas famílias)...predominava sempre lá um clã (uma gens) e as mulheres arranjavam maridos em outros clãs (gens)... Habitualmente, as mulheres mandavam na casa; as provisões eram comuns, mas – ai do pobre marido ou amante que fosse preguiçoso ou desajeitado demais para trazer sua parte ao fundo de provisões da comunidade! Por mais filhos ou objetos pessoais que tivesse na casa, podia, a qualquer momento, ver-se obrigado a arrumar a trouxa e sair porta afora”.


BALANÇOS POSITIVOS E NEGATIVOS DA OBRA

Talvez o aspecto mais interessante deste trabalho seja mesmo a apropriação dos estudos de Morgan sobre as gens e a análise da forma reiterada como a sociedade de clãs deu origem à constituição do Estado. Engels faz esta relação nas histórias da Grécia, de Roma e dos povos bárbaros (germanos, normandos, etc.). As formas sociais baseadas nas gens foram sempre se dissolvendo a partir de novas configurações relativas à divisão do trabalho e à luta de classes correspondente. Conforme o homem produz em excedente, iniciam-se as trocas comerciais, surgem as mercadorias e os comerciantes, as transações monetárias, os empréstimos, as hipotecas, o endividamento. A possibilidade de incrementar a produção criou as condições para a utilização mais sistemática da mão de obra escrava. É justamente neste contexto de dissolução das clãs e da divisão social do trabalho superando a divisão em gens e tribos o ponto de partida da constituição do Estado.

Certamente, algumas reservas merecem ser feitas com relação ao livro.

A primeira é a de que as análises materialistas da origem da família, da propriedade privada e do estado, se são pertinentes, ainda se baseavam num estado ainda muito incipiente dos estudos da pré história. Basta dizer que não se cogitava em 1884 os atuais conhecimentos da genética e da arqueogenética.

A forma apologética com que Engels se refere às comunidades gentílicas certamente deveria ser mais bem mediatizadas face ao que a mais recente arqueologia tem a dizer, especialmente, quanto à cultura dos povos da pré-história. Aliás, em que pese a análise materialista corretamente partir das condições econômicas para a explicação mais geral dos processos históricos, Engels prescinde da cultura e generaliza aspectos do problema da família de uma forma pouco convincente. Olhando para o comunismo primitivo e suas formas de sociabilidade doméstica, chega a postular no comunismo do futuro a noção dos cuidados domésticos como questão de ordem pública.

A monogamia para Engels, sempre estará vinculada ao domínio do homem pela mulher, o que é discutível. Provavelmente, no afã de criticar a moralidade burguesa da época, o amigo de Marx forçou a mão quanto às sociedades gentílicas, que parecem até melhores do que a atual civilização. As ressalvas parecem-nos válidas já que o texto pode servir de pretexto para a defesa de políticas identitárias ou esquerdistas que se opõem ideologicamente à família. Não nos parece ser o caso.

domingo, 19 de julho de 2020

Nikolai Bukharin e Sua Teoria do Materialismo Histórico


Nikolai Bukharin e Sua Teoria do Materialismo Histórico



Resenha Livro – “A Teoria do Materialismo Histórico: Manual Popular de Sociologia Marxista” – Nikolai Bukharin

“Na sociedade capitalista mercantil, a empresa trabalha “independentemente” para o mercado desconhecido. No fundo, cada trabalho é aqui uma parcela do trabalho social e todas as partículas dependem umas das outras. Mas isto se passa de tal maneira, que o laço social entre os homens, que trabalham de fato uns para os outros, escape aos olhos humanos. Se tivéssemos diante de nós uma sociedade socialista, onde tudo caminha de acordo com um plano, seria claro para todos que os homens trabalham uns para os outros, que cada aspecto separado do trabalho não é senão uma partícula do conjunto do trabalho social. As relações entre os homens seriam claras, nada os mascararia; mas não é assim no mundo capitalista. Aqui, este laço de trabalho entre os homens é invisível, esconde-se aos homens”.

Muitos anos antes do advento da psicanálise, Karl Marx na sua crítica da economia política suscitou o conceito do fetiche da mercadoria. A noção foi explicitada n’o Capital:

“Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar uma símile, temos que recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantém relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo isto de fetichismo”.

O fetiche é uma palavra oriunda do francês e quer dizer feitiço, encanto. Aplicado nas relações sociais, revela uma ideologia que oculta os laços entre os homens, enlaço fundado no trabalho, bem como atribui qualidades humanas à mercadoria. Na sociedade capitalista anárquica o fenômeno social não coincide com o desejo da maioria.



O fato é que as formas sociais oriundas do capitalismo apareceram para os ideólogos da burguesia como eventos naturais e dotados de imutabilidade. Já o marxismo, através da crítica, trabalha com a ideia de transitoriedade dos fenômenos sociais, extraindo daí o seu caráter revolucionário. Nestes marcos, este “Tratado de Materialismo Histórico” de Bukharin, publicado em 1921, é um manual para popularizar as ideias marxistas, nitidamente no que se refere às ciências sociais, à filosofia e à história.

TRATADO DE MATERIALISMO HISTÓRICO 

Não se trata de uma obra em que o dirigente bolchevique suscita ideias novas, de sua própria autoria. Partindo do quanto assinalado por Engels para quem os fundadores da teoria crítica tinham dado apenas os primeiros passos no domínio do materialismo histórico, Bukharin escreveu um manual extremamente didático e acessível para popularizar a teoria marxista.

O manual vai trabalhar os temas do que Bukharin chama de “sociologia marxista”, sendo certo que a sociologia a que se refere o autor não se reduz à sociologia acadêmica, subgênero das ciências sociais.

O trabalho começa com a reflexão da filosofia e da teoria do conhecimento marxistas. Destaca a importância prática das ciências sociais, suscitando a oposição entre a tradição materialista e o idealismo filosófico. Passa para as ciências sociais e a sociologia, não entendida como um organismo, o que era recorrente no pensamento da época, mas como um sistema de relações recíprocas. Chega ao estudo do materialismo histórico e da teoria da história, se servindo da noção de regularidade (ou leis) dos fenômenos da natureza e dos fenômenos sociais.

Neste ponto, Bukharin destaca que não existe “acaso” nos eventos históricos – tudo está submetido às leis causais. Existem, é certo, causas de maior ou menor prevalência. A I Guerra tem como causa essencial o acirramento das disputas imperialistas e como causa imediata o assassinato do arquiduque da Áustria. Sem a causa essencial, não haveria a guerra. Já a causa imediata poderia ser substituída por qualquer outro estopim, o que não nos autoriza a dizer que o assassinato e o começo da guerra decorrem de um “acaso”.

E o estudo de Bukarin prossegue da teoria da história para os conceitos de classes sociais, dialética, psicologia social e ideologia, estrutura e superestrutura, relações de produção, forças produtivas, revolução e a dinâmica da história.

NOVA POLÍTICA ECONÔMICA 

Escrito em 1921, o “Tratado” foi feito no mesmo ano em que houve uma importante mudança de orientação no desenvolvimento político da URSS e da Revolução Russa.

O país estava exausto da guerra civil, que de 1917 a 1921 mobilizou todas as forças internas contrarrevolucionárias, bem como a intervenção da totalidade das potências imperialistas para esmagar a revolução. A economia do país estava exausta, a fome assolava as cidades e a tática do  comunismo de guerra, a canalização de todos os recursos, agrários e industriais, para o sustento da guerra precisava ser alterada. Ademais, a expectativa que a direção bolchevique nutria de uma revolução socialista no ocidente que pudesse viabilizar a saída da política extremamente defensiva da URSS, esta esperança, viu-se inteiramente frustrada, nitidamente com a derrota da revolução alemã, reforçando a necessidade de uma mudança de rumos.

Como se sabe, Bukharin foi um dos principais propugnadores da chamada Nova Política Econômica ao lado de Lênin. A NEP reintroduziu o dinheiro na economia, fez concessões à propriedade privada e a práticas capitalistas na agricultura e na indústria leve. Este “Tratado” foi escrito no contexto desta mudança tática, razão provável pela qual muitos dos capítulos finais são dedicados ao tema da transição socialista, ao problema da revolução vista sob o ponto de vista da longa duração.

De uma forma mais geral, pode-se dizer que a revolução se produz quando o equilíbrio entre as forças produtivas da sociedade e os traços fundamentais da estrutura econômica (que se cristalizam nas relações de propriedade) se rompem. O conflito de fundo que a revolução deverá resolver será este, o que deverá implicar na passagem de uma forma social a outra nova forma social.

Contudo, afirma Bukarin, “enquanto a estrutura econômica torna possível o desenvolvimento das forças produtivas, as transformações sociais não assumem o caráter de desordem: elas se produzem na “ordem da evolução”’. O modo de produção não pode ser substituído sem que antes esgote todo potencial de desenvolvimento das forças produtivas. No caso da Rússia, verifica-se que a revolução estoura num país ainda predominantemente camponês, relativamente atrasado, onde a revolução deveria ainda promover e induzir o desenvolvimento das forças produtivas.

Ficou famosa uma das assertivas de Bukharin junto aos camponeses: “enriquecei-vos”! Posteriormente, a política da NEP seria substituída por Stálin pela política de coletivização forçada, abrindo o caminho para o isolamento político de Bukharin que ficou caracterizado como a “oposição de direita” de Stálin na direção do partido. No ano de 1929, Bukharin é afastado da direção do Pravda e expulso do Politburo. No ano de 1938, no contexto dos expurgos, Bukharin foi fuzilado na cidade de Moscou.

No ano de 1988, Bukharin foi reabilitado na URSS.
  

segunda-feira, 6 de julho de 2020

“Por que me ufano de meu país” – Afonso Celso


“Por que me ufano de meu país” – Afonso Celso 



Resenha Livro - “Por que me ufano de meu país” – Afonso Celso – Poeteiro Editor Digital – São Paulo – 2014 – www.poeteiro.com

“Nestas condições, o Brasil é um país privilegiado, reunindo elementos que lhe conferem primazia sobre todos os mais. Importa ingratidão para com a Providência invejar outras nações, não nutrir a ufania de ter nascido brasileiro. Foi belo o quinhão que nos coube. Outros povos apenas se avantajam ao nosso naquilo que a idade secular lhes conquistou. O Brasil poderá tornar-se o que eles são. Eles nunca serão o que é o Brasil”.

Já foi dito que o Brasil é o país do futuro. Muito mais do que uma passagem de música do Legião Urbana, a assertiva é recorrente na história culminando até em política de Estado. Do Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek (1956/1961) constava a consigna: fazer o país crescer 50 anos em 5.

Mesmo antes, dentro do movimento modernista, de 1922 à geração de 1930, intelectuais e artistas voltaram-se ao nosso passado colonial com o intuito de criar as bases da nação, uma tarefa em aberto já que a nossa independência política antecedeu em muito à constituição da nossa nacionalidade. Autores como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Hollanda e Gylberto Freire estavam olhando para o passado remoto do país com preocupações acerca do nosso futuro, buscando, de formas diferentes, aferir os sentidos do desenvolvimento histórico.

Se quisermos voltarmos ainda mais, verificamos uma característica frequentemente esquecida do nosso romantismo literário: no seu indianismo não foram poucos os artistas que buscaram atribuir as origens mais remotas dos nossos índios a grandes civilizações do passado, como a egípcia – nossos primitivos habitantes seriam o elo perdido de civilizações milenares do passado e, dentro de si, possuíam a potencialidade de promover grandes civilizações.


Afonso Celso, monarquista, filho do Visconde de Ouro Preto, este último presidente do último conselho de ministros do Império, também é tributário desta ideia de que o Brasil seria o país do futuro.

Nesta sua apologia do Brasil verifica-se por uma lado a ideia de que a nossa nação seria predestinada ao êxito, predestinação revelada em primeiro lugar por Deus que não nos outorgaria tantas belezas naturais para serem desperdiçadas esterilmente. Por outro lado, a história revela um país jovem, ao menos em face da velha Europa, de modo que o Brasil, ainda em sua aurora, teria diante de si um longo caminho em direção ao topo das nações.


SOBRE O AUTOR E A OBRA

Afonso Celso Assis Figueiredo Júnior, natural de Ouro Preto-MG, nasceu em 31 de Março de 1860 e veio a falecer no Rio de Janeiro em 1938. Cursou leis na Faculdade de Direito de São Paulo, na qual colou grau em 1880.

Ingressando na vida política, foi eleito quatro vezes deputado geral por Minas Gerais. Com a proclamação da República em 1889 abandonou a política e acompanhou o pai no exílio, que se seguiu à partida da família imperial para Portugal em novembro daquele ano.

Foi sócio do Instituto Geográfico Brasileiro e um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras.

Este “Por que me ufano de meu país” foi publicado no ano de 1900 por ocasião das comemorações de 400 anos do descobrimento. Ele vale ser lido nem tanto pelos seus argumentos, alguns deles bastante discutíveis a luz da pesquisa histórica científica, mas pelo que ele revela no que se trata da história de nossas ideias.

Este otimismo quanto à nossa nação é bastante revelador do espírito da Belle Epóque que informa o período. Vivia-se um momento notadamente ambíguo na história do país em que o passado e o futuro coexistiam de maneira marcante: nos sertões a permanência da pobreza e seu messianismo expresso em Canudos e Contestado. Nas cidades grandes reformas urbanas voltadas a modernizar o país, com a ampliação de grandes avenidas, ao estilo europeu, e a expulsão dos extratos populares de seus cortiços para as periferias da cidade.  

Este pequeno ensaio é contemporâneo e um primo próximo do “Ilusões Americanas” de Eduardo Prado. Os dois autores são monarquistas e escrevem no contexto da transição do II Império para a Primeira República. O advento republicano se inspirava não só nas ideias iluministas francesas mas na concreta experiência histórica norte-americana: neste contexto, Eduardo Prado desenvolve uma crítica surpreendentemente atual aos EUA, rejeitando as propostas políticas que buscavam copiar as instituições norte americanas e já denunciando o que poderíamos chamar de imperialismo, revisitando por exemplo, a doutrina Monroe[1].  

Afonso Celso, na sua apologia ao Brasil, não polemiza tanto com o sistema republicano, mas não deixa de suscitar os grandes políticos do império, incluindo os dois imperadores, como uma das fontes de engrandecimento nacional.

Qual é a razão para se ufanar do Brasil? Cada capítulo suscita temas que informam a grandeza do país: a sua natureza exuberante, da cachoeira de Paulo Afonso à Baía do Rio de Janeiro, por exemplo. As suas riquezas naturais, notadamente o ouro e diamante, além do seu clima relativamente ameno. O conhecido argumento da ausência de calamidades: no Brasil não há furacões, vulcões e pestes de longa duração. No que se refere à história existem pequenos capítulos dedicados aos jesuítas, aos bandeirantes, às guerras holandesas e palmares.

O livro, em sendo uma apologia do Brasil, incorre em algumas evidentes falsificações grosseiras. Palmares por exemplo é pintada quase como uma república romana. Os indígenas, dentro da tradição do romantismo, são pintados como afidalgados, sempre mantendo sua palavra de honra e possivelmente oriundos de grandes civilizações do passado. O brasileiro é pintado de acordo com um senso comum nitidamente conservador: ordeiro, hospitaleiro, respeitador de hierarquias.

Chega-se ao ponto de afirmar que no Brasil não existem preconceitos de raça e credo religioso!

Evidentemente, muitas das ideias suscitadas pelo autor estão há muito superadas. Ninguém acredita que a escravidão foi benevolente aqui no Brasil em que pese ter durado mais do que qualquer outro país nas américas.

Em todo o caso, a leitura do livro possibilita, quem sabe, uma reconciliação com o Brasil, um despertar sentimental por parte da esquerda que viu, neste último período, a extrema direita apropriar-se indevidamente das cores da bandeira nacional para propugnar um programa de total capitulação aos EUA – neste sentido, é interessante observar como este monarquista observava lá em 1900 que um dos perigos que o Brasil enfrentaria no futuro seria justamente a intervenção de potências estrangeiras nos nossos negócios.

O nacionalismo chauvinista, militarista, xenófobo ou ao menos preconceituoso em face de haitianos e bolivianos, mas não em face de norte americanos residentes na pátria é a face direitista do verde amarelo.

Existe uma outra face, a patriota, a anti-imperialista, a que defenda a soberania nacional, a ligada afetivamente à cultura popular e a internacionalista no que se refere à comunhão universal de interesses da classe trabalhadora: aqui poderia partir uma contraofensiva contra o sequestro de nossa bandeira. Não por causa de sua bandeira verde da casa de Brangança, mas pela efetiva e consequente defesa dos interesses nacionais.   


[1] Resenha – “A Ilusão Americana” – Eduardo Prado - http://esperandopaulo.blogspot.com/2016/10/a-ilusao-americana-eduardo-prado.html

sábado, 4 de julho de 2020

“Uma Breve História do Brasil”


“Uma Breve História do Brasil”



Resenha Livro - “Uma Breve História do Brasil” – Mary Del Priore e Renato Venancio – Ed. Crítica – 2ª Edição

Não foram muitos os trabalhos que tiveram êxito em realizar uma síntese efetivamente representativa dos 520 anos de história da civilização brasileira. Mesmo porque, como se sabe, a tendência das pesquisas de história em nível de ensino superior costuma seguir uma outra orientação: o aprofundamento do estudo em torno de temas muito específicos, a pesquisa de fatos e processos históricos relativos a curtos períodos no tempo e circunscritos no espaço. Se por um lado este tipo de pesquisa acadêmica ganha em profundidade, possibilitando com um objeto de pesquisa bem delimitado a apuração de informações em torno de fontes históricas possivelmente não conhecidas, a pesquisa acadêmica ultraespecializada perde em envergadura, dificulta a constatação dos processos de continuidade e sentidos da história e, no limite, não oferecem uma visão de conjunto que auxilie o historiador a indicar os rumos históricos do país, do presente ao futuro.

Dentre os trabalhos exitosos de síntese da história do Brasil, podemos chamar atenção para duas produções, não por acaso, ligadas ao movimento modernista.

“Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda se serve da história e da sociologia weberiana para discutir temas como o patrimonialismo brasileiro de raízes ibéricas e nossa herança rural, expressos no pessoalismo que se contrapõe à impessoalidade do Estado e da lei, no desleixo com que o colono aqui tratou a agricultura reproduzindo na lavoura de cana os métodos arcaicos dos índios sem o uso de arados. Sérgio Buarque chamou atenção também para nossa cordialidade que envolve não exatamente bondade, mas um sentimentalismo intimista que informa inclusive as relações comerciais, para o espanto de viajantes estrangeiros no país.

Outro trabalho muito interessante de síntese da história do Brasil, menos conhecido, é o “Retrato do Brasil” do amigo de Mário de Andrade e pertencente da tradicional família paulista Silva Prado, Paulo Prado. O autor elenca como fatos constitutivos da História do Brasil a cobiça pelo ouro, a luxuria, o romantismo e a sensualidade para chegar a uma conclusão aparentemente paradoxal: o brasileiro seria um povo triste!

Esta “Uma Breve História do Brasil” por outro lado se propõe a objetivos mais modestos.


Trata-se mesmo de uma síntese da história do país destinada ao grande público, através de uma linguagem não acadêmica e, importante, ainda assim se servindo das referências das mais recentes e autorizadas pesquisas acadêmicas. Assim, além de uma visão de conjunto que possibilita ver as arvores além da floresta, o ensaio desmistifica alguns sensos comuns cristalizadas por uma historiografia mais tradicional, de tipo positivista, que muitos de nós tiveram contato no ensino médio.

É o caso por exemplo dos primeiros capítulos da nossa história, quando do descobrimento. Em que pese o classicismo literário e posteriormente o romantismo ter de certa forma idealizado este passado, hoje se sabe quais foram as péssimas condições sanitárias e de alimentação relativas às grandes navegações.

O banho a bordo era impossível. Não havia sequer hábito de higiene de modo que toda a água potável era destinada ao consumo e ao preparo de alimentos. Nas pessoas e na comida, proliferavam todos os tipos de parasita: piolhos, pulgas e percevejos.

Confinados em cubículos, passageiros satisfazia as necessidades fisiológicas, vomitavam ou escarravam próximos a quem comia.

Os alimentos também eram escassos sendo certo que a falta de víveres é um problema mesmo da metrópole naquele período. Por conta da falta de alimentos eram raros “os soldados que escapam das corrupções das gengivas [escorbuto por falta de vitamina C] febres, fluxos do ventre e outras enfermidades” conforme o depoimento de um contemporâneo[1].    

Consta que em determinados momentos de desespero, os marinheiros ingeriam de tudo: solas de sapato, papeis, biscoito repletos de larvas, ratos e até carne humana. Muitos matavam a sede com a própria urina. Outros preferiam o suicídio.

REVOLTAS SOCIAIS

Um senso comum de nítido caráter ideológico refere-se ao discurso segundo o qual no Brasil habita um povo pacífico, avesso a conflitos e, num sentido deturpado, “cordial”.

Desde o primeiro momento que os portugueses colocaram os pés no nosso atual território verificaram-se conflitos e formas de resistência. A inimizade entre diferentes etnias indígenas era preexistente à chegada dos Portugueses sendo certo que o colonizador aproveitou desta divisão para gradualmente melhor ocupar e dominar.

“Lutas seguiam-se. Em meados do século XVI, a Confederação dos Tamoios, primeiro movimento de resistência a reunir vários povos indígenas, como Tupinambás, Goitacazes e Aimorés, teve apoio de huguenotes franceses, terminando com milhares de índios mortos e escravizados. O conflito, conhecido como Guerra de Paraguaçu (1558-59) destruiu 130 aldeias. Por essa época, multiplicam-se as revoltas do gentio, com assaltos a núcleos de colonização e engenhos, mortes de brancos  e escravos negros”.

Houve mesmo formas de resistência que assimilaram a cultura indígena e católica promovida pelos missionários como a Santidade de Jaguaripe (1580-1586): “em meio a danças, transes, cânticos e à fumaça inebriante do tabaco, os índios afirmavam sua vontade de achar uma terra mítica, onde não houvesse portugueses, lutas e massacres, fome e doença: a “terra sem mal”. O fenômeno incorporava e rechaçava valores de dominação colonial ao misturar Tupã com Nossa Senhora, a doutrina cristã com crenças indígenas, cruzes com ídolos de madeira e juntava índios, mamelucos e brancos em seitas cujos cultos dirigiam-se a ídolos híbridos – um Jesus Comprido, Jesu Pocu, por exemplo”.

No período colonial os motins e conflitos são reiterados.

De forma geral eles decorrem de fatores internos e externos. Fatores internos envolvem rivalidades de grupos sociais locais como na Guerra dos Emboabas (Paulistas e Mineiros) e na Guerra dos Mascates (de um lado os senhores de engenho de Olinda e de outro os comerciantes portugueses de Recife). As mobilizações são produto também de revoltas contra o fisco, a arbitrariedade das autoridades coloniais, o monopólio comercial do sal, da cachaça e do tabaco, além da fome e da pobreza. Já os fatores externos dizem respeito ao recrudescimento das pressões colonialistas de Portugal, particularmente mais acentuada ao longo do século XVIII, implicando na Inconfidência Mineira e na Revolta dos Alfaiatas, primeiro movimento colonial de participação popular que propugnava o fim da escravidão. Os temas da independência e da república já surgem também nestas primeiras revoltas.

PERSPECTIVAS

Este trabalho da historiadora Mary Del Priori percorre da colônia à Primeira República, da Revolução de 1930 até o Estado Novo, da constituinte de 1945 até o retorno e suicídio de Getúlio Vargas, do golpe de 1964 até a redemocratização, culminando na chamada Nova República. 

No posfácio, a autora faz um balanço sobre o problema da corrupção suscitado pela Operação Lava Jato e as políticas conciliatórias e assistencialistas dos governos do PT. Diante dos fatos supervenientes da história, do golpe de estado de 2015/2016 à eleição de Bolsonaro e à profunda crise política oriunda da pandemia do COVID-19, o sentido histórico da experiência brasileira sugere uma transição. De junho de 2013 até 2015/2016, culminando no avanço bonapartista de Bolsonaro em 2020, tudo indica que o ciclo da nova república chegou ao fim. Não existe saída por dentro das instituições, o período de conciliação oriundo dos governos anteriores acabou. Os tempos históricos estão acelerados e os rumos do país serão disputados nas ruas.




[1] Francisco Rodrigues Silveira – Memórias de um Soldado na Índia.