quarta-feira, 31 de agosto de 2016

“Crítica da Legalidade e Do Direito Brasileiro” – Alysson Leandro Mascaro

“Crítica da Legalidade e Do Direito Brasileiro” – Alysson Leandro Mascaro



Resenha Livro - 235 - “Crítica da Legalidade e Do Direito Brasileiro” – Alysson Leandro Mascaro – Ed. Quartier Latin

“Uma vez estabelecida a forma de troca de equivalentes, estabelece-se igualmente a forma do direito, a forma do poder público, isto é, estatal, e, por conseguinte, esta permanece, ainda durante algum tempo, mesmo quando já não exista a divisão de classes. O aniquilamento do direito e com ele o do Estado só acontece, segundo a concepção de Marx, quando “o trabalho não é apenas um meio de viver, mas ele próprio se transforma na primeira necessidade vital”; quando com o desenvolvimento universal do indivíduo tenham aumentado também as próprias forças produtivas; quando todos os indivíduos trabalhem voluntariamente segundo suas capacidades ou, como diz Lênin, quando se tenha ultrapassado “o horizonte limitado do direito burguês que obriga a fazer cálculos com a aspereza de um Shylock: terei eu trabalhado meia hora a mais do que o vizinho?”, numa palavra enfim, quando a forma da relação de equivalências tiver sido definitivamente ultrapassada”. 
PASHUKANIS. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo, Acadêmica, 1988.  

Alysson Leandro Mascaro é Doutor e Livre Docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da USP. É um dos principais expoentes do pensamento crítico do Direito do país.

Este trabalho corresponde à sua tese de doutorado defendida na FDUSP em Outubro de 2002. O tema da dissertação versa sobre a dimensão ideológica do discurso da legalidade em face da sociedade capitalista em sua dinâmica na história: o problema da legalidade confrontado com a reprodução mercantil, à execução dos contratos e à defesa da propriedade privada; o tratamento dado ao direito e legalidade pelo capitalismo; o problema da legalidade em face da evolução histórica brasileira com destaques para o período da redemocratização e para a consolidação de institutos de direito processual que, na década de 1990, sintomaticamente, revelariam a falsa universalidade da qual se reveste o discurso do direito: a lei dos Juizados Especiais Cíveis (Lei 9099/95) e a Lei de Arbitragem (9307/96), ambos institutos com interfaces importantes com as políticas neoliberais hegemônicas daquele período.

Assim, o intuito do trabalho pode ser deduzido:

“Esclarecer as bases últimas das contradições jurídicas de nossos tempos – a legalidade que exalta a igualdade entre todos é, ao mesmo tempo, a chanceladora da desigualdade real – é partir para mais além da denúncia da corrupção dos tempos, dos homens ou de suas funções. Entender os mecanismos históricos e sociais que constroem, ao mesmo tempo, o império da igualdade formal e a miséria da desigualdade social, é buscar os nexos mais fundamentais da estrutura social, a separação que não é só a que a lei não logrou juntar, mas aquela que se dá na própria exploração do trabalho e da produção, no conflito de classes e na desigualdade de condições que faz com que a apropriação não seja conforme as necessidades, e sim calcada no excesso para alguns e na carência para a maioria”. (Pg. 15)

E como método para o desvendar as contradições jurídicas que vislumbre desigualdade flagrante entre igualdade jurídica e igualdade real ou legalidade e justiça, Mascaro certamente não trilha o mesmo caminho da esmagadora maioria dos juristas, o Juspositivismo.

O Juspositismo, corrente jusfilosófica dominante dentre os juristas, equipara o Direito ao “Direito posto”, à legalidade ou à norma emanada pelo Estado. Não é à toa que seu maior expoente é o jurista alemão Hans Kelsen, cujo programa “Teoria Pura do Direito”, propugna uma ideia de Direito axiologicamente neutro, totalmente livre de cogitações relacionadas à ética, à moral e à justiça. Já percebe-se bem aqui uma clara relação entre o programa juspositivista e a dimensão ideológica do direito burguês cuja pretensão de universalidade omite os interesses classistas, considerando a vocação do direito da burguesia de fazer perpetuar uma sociedade profundamente injusta e dividida em classes.

Para a “Crítica da Legalidade”, Mascaro serve-se assim da teoria crítica que remonta em última análise ao Marxismo e a Marx. É certo que é possível falar num pensamento crítico moderno anterior à Marx, presente no iluminismo ou mesmo na filosofia analítica. Mas aqui existe uma enorme distância qualitativa. Na “crítica” dos Iluministas, o horizonte possível restringia-se à “crítica do objeto nos seus próprios termos” ou mesmo na filosofia analítica, num recorte do objeto em inúmeras frações, mas sem com isso romper com estruturas do objeto. O salto qualitativo da noção crítica em Marx dá-se com sua “Contribuição à Crítica da Economia Política” e “O Capital”. Para além de uma crítica do objeto em seus próprios termos, Marx desloca o próprio objeto e vislumbra o problema sob uma nova perspectiva. Considerando sua diferenciação entre a Economia Política Clássica (Ricardo e Smith) e Vulgar (Malthus), Marx se apropria de alguns elementos do que de melhor a burguesia foi capaz de formular em seu momento de ascensão e compreensão, mas sobrepõe a esta compreensão novas categorias fundamentais como as ideias de estrutura e superestrutura (“Contribuição da Crítica da Economia Política”), mais valia relativa, mais valia absoluta (“O capital”) etc.

Dentro da perspectiva crítica, destacando-se uma compreensão em que ganham peso as contradições, a processualidade e o sentido da história, verifica-se que o Direito é um fenômeno essencialmente moderno, que se desenvolve de acordo com as exigências específicas do desenvolvimento do capitalismo.

“Quando o Iluminismo, Rousseau, Kant e outros mais derrubaram na filosofia o absolutismo, chegaram ao cume teórico de um movimento teórico que a prática já havia conquistado. A vitória das leis sobre o arbítrio dos homens acompanhou a vitória do capitalismo sobre as formas econômicas que lhe eram anteriores. A liberdade dentro das leis, princípio da legalidade, era a irmã da liberdade no mercado, no qual se compra ou se vende a partir da própria vontade. A igualdade formal, que serviu de lema das revoluções liberais, é o espelho de um mundo feito um grande mercado, no qual todos se igualam na condição de compradores e de vendedores, no qual até a exploração deixa de ser um mando direto de um senhor sobre um escravo e passa a ser a igual vontade jurídica de patrão e proletário. A vitória da legalidade é a vitória de um mundo feito um grande mercado”. (Pg. 21)

Alguns poderão se opor a estas teses dizendo que sociedades escravagistas como a romana também conheceram o direito sendo latente inclusive a importação de alguns de seus institutos ao nosso atual ordenamento jurídico como o pacta sunt servanda (“os acordos devem ser cumpridos”) que informa o direito dos contratos. Mas o que se sabe é que o Direito Romano pouco se assemelha ao Direito Moderno. O direito dos antigos era uma espécie de direito artesanal, cuja aplicação era dada diante de cada caso, além de ser um direito exercido por pretores, magistrados eleitos que em nada se assemelham aos juízes de hoje. Fala-se que o Direito Moderno é um resultado das exigências de uma economia capitalista porque ele envolve a criação de procedimentos reiterados e assim de previsibilidade e segurança jurídica para as relações comerciais; a criação de um Estado, um elemento terceiro que, dentre outros, execute contratos inadimplidos e proteja a propriedade privada; a criação de figuras jurídicas fundamentais como a de Sujeito de Direito que se equipara no mercado para se vender, na condição de equivalentes, como empregador e empregados; enfim, um governo das leis e não da autoridade real e absoluta, criando condições para uma nova hegemonia política da burguesia.

Tal desenvolvimento histórico no sentido de uma legalidade que se estabelece como contraponto a um poder absoluto e resultante de revoluções burguesas não se observou no Brasil. Todo o problema da legalidade no Brasil surge de forma deformada desde os remotos tempos coloniais em função da dependência externa, do patrimonialismo, do coronelismo no campo, da confusão entre o público e privado, entre outros. Certamente, os capítulos dedicado ao problema Brasileiro e a legalidade são igualmente recompensadores aos leitores do ensaio.

De uma forma geral “Crítica da Legalidade e do Direito Brasileiro” é um livro que está longe de ser restrito ao público leitor de obras jurídicas. Suas reflexões envolvem um instigante desafio no sentido de superar a ideologia da legalidade, percorrendo suas manifestações na história, no seio do marxismo, diante da questão nacional e no capitalismo contemporâneo.        




quinta-feira, 25 de agosto de 2016

“História de Roma” – Pierre Grimal

“História de Roma” – Pierre Grimal



Resenha Livro - 234 - “História de Roma” – Pierre Grimal – Editora Unesp

Pierre Grimal (1912-1996) foi professor de literatura latina da Universidade de Paris IV – Sorbonne e membro da École Françoise de Rome. Neste trabalho, desenvolve uma leitura panorâmica das três fases políticas da história de Roma: monarquia, república e império.

Ao tratar da história de Roma, o historiador de imediato se depara com dificuldades quanto ao problema das fontes históricas. Ao contrário da história contemporânea ou mesmo da história moderna donde abundam fontes primárias como documentos gráficos (relatórios estatais, depoimentos de personagens do respectivo tempo histórico, gravuras e fotografias, etc.), a história da antiguidade carece das fontes primárias. Para tratar da história de Roma, o historiador deverá servir-se amplamente da arqueologia, das tradições e da história oral reproduzida através de gerações: afinal, o início da cidade romana remonta aos 700 a.C, o que dá margem a muitas interfaces entre história e mito.

Dentre os registros escritos daquela época, muito pouco sobreviveu, destacando-se as obras do maior filósofo romano, Sêneca, e, provavelmente, seu maior literato, Lúcio Apuleio.
Origens

Tal interface entre história e mito está presente na origem legendária de Roma, na sua fundação e na conformação de seu primeiro reinado sob o Rei Rômulo.

“Rômulo e Remo eram de origem real, filhos da sobrinha do rei de Alba. Ela os tivera, contava-se, do próprio deus Marte, mas o rei, temendo que essas crianças viessem a destroná-lo um dia, decidiu abandoná-los no rio, persuadido de que o frio, a falta de cuidado, a correnteza não tardariam a desembaraçá-lo desses dois sobrinhos- neto preocupantes. Mas o rei não contara com a vontade dos deuses. O berço flutuante encalhou na margem, a seco; uma loba, o animal de Marte, deitou-se perto dos bebês, deu-lhes calor e leite. Por fim, eles foram recolhidos por Fáustulo, que os levou para sua cabana. Lá, tratou-os como seus próprios filhos e depois, como suspeitava da origem deles, acabou por lhes revelar o segredo de seu nascimento.

Rômulo e Remo, uma vez crescidos e vigorosos, destronam o tio- avô e, no lugar dele, puseram o avô; em seguida, voltaram ao país onde haviam passado a infância para criar um reino. Decidiram fundar, no Palatino, uma cidade a que chamariam Roma”.

Em que pese as dúvidas sobre o que é lenda e o que é história, ao que tudo indica, Rômulo é considerado o fundador da cidade. Para reinar sozinho, matou o irmão. E com o fito de povoar a cidade, toma uma iniciativa sagaz: faz de Roma uma espécie de asilo contra proscritos, fugitivos da lei de outras paragens em decorrências de crimes e dívidas, que se viriam a salvo e protegidos na nova cidade. E para angariar mulheres, promove um evento esportivo na cidade e convida os etruscos, povo situado ao norte do Palatino, aproveitando o momento certo para raptar as mulheres, filhas e esposas, dos estrangeiros.

Sabe-se como já dito que o delineamento político de Roma segue a monarquia, república e império. Logo na fase monárquica desenvolve-se o instituto do Senado que nada mais é do que um conselho formado pelos pais de família mais respeitados pela comunidade. O Senado tem força expressiva na monarquia e ainda maior na República, quando o poder é dividido entre dois cônsules, mas perde expressão na fase Imperial, com a centralização do poder na figura do Imperador – mas o que há de comum nas três fases é uma certa justificação religiosa ou mítica do poder.

Quanto à religião, os Romanos pela maior parte do tempo cultivavam um politeísmo pagão e com o desenvolvimento do cristianismo, perseguiram duramente tal religião. As atividades cristãs e sua visão social de mundo estavam em contradição direta com o poder.

“Mas a religião cristã nascente era mais exigente do que uma crença filosófica ou mesmo do que as práticas das outras religiões orientais; ela acarretava a aceitação total de um gênero de vida que marcava o cristão e fazia dele um ser à parte na “comunidade” romana. Um cristão não podia fazer sacrifícios aos deus nacionais. Também não podia, ao que parece, prestar juramento ao Imperador nas formas habituais. Ademais, em meio a calúnias, os cristão foram acusados de se reunirem secretamente à noite e se entregarem a práticas abomináveis, de matar crianças para interrogar suas entranhas; também foram acusados de serem “inimigos do gênero humano”, porque repetiam que “seu reino não era deste mundo”, e que seu Deus só triunfaria no dia em que, voltando em toda sua glória, Ele destruísse o mundo para dar lugar ao reino da Justiça – onde só os cristãos teriam lugar.

Por todas estas razões, os magistrados, os juízes, mesmo o imperador vieram a considerar cristãos como criminosos de direito comum, conspiradores malfazejos, dos quais era preciso purgar a terra”.

Em que pese as mortes de cristãos impostas pelos magistrados e imperadores, a religião se desenvolveu ao ponto de, quase ao término do Império, ser tornada religião oficial de Roma no Séc. IV por Constantino.

A expansão territorial de Roma foi gradual mas com uma certa continuidade – em 509 a.C há o término de sua fase Monárquica e apenas em 227 a.C Roma conquistaria toda a Península Itálica.

Seria com as Guerras Púnicas envolvendo Roma e Cártago, com os embates junto aos Gauleses e com o desenvolvimento do império que daria ao Império sua máxima expansão, no tempo de Octávio Augusto (27 a.C – 14 d.C) e Trajano (98 d.C – 117 d.C), num amplo território que envolve no oriente Mesopotâmia, península Arábica, Egito/ Alexandria, todo litoral africano do Mar mediterrâneo e na Europa, desde Portugal e Espanha, Gália (França), Britânia (parcela da Inglaterra) até a Grécia.

O amplo território também corroboraria para o fim do Império, segundo o historiador Pierre Grimal. Num vasto Império com uma centralização excessiva do poder, passou a ser comum cada comandante de exército se declarar imperador e marchar para Roma. Desde tempos longínquos, as pressões das fronteiras pelos povos bárbaros se acentuavam, “e os imperadores temporários esgotavam-se lutando contra esses inimigos que renasciam incessantemente”. Observava-se ainda uma certa decadência ao fim do império (séc. IV) de um espírito romano que não mais compartilha de um mesmo ideal e crenças políticas. Todos estes elementos fomentam a queda da cidade.

E por que estudar a história de Roma hoje? O modo de produção predominante naquela sociedade é o escravista. De outro lado, sob estas bases, toda uma civilização desenvolveu-se, com importantes repercussões no âmbito militar, na engenharia, no urbanismo, nas artes, na religião, no direito ou mesmo nos esportes. De outro lado, um Império vasto e supostamente indestrutível ruiu diante especialmente de disputas políticas internas e de uma decadência de sua própria civilização. São, diante destes pontos, muitas as lições para se refletir e extrair. Este pequeno ensaio de Pierre Grimal pode ser uma pequena introdução para eventuais aprofundamentos neste amplo campo do conhecimento da história antiga.    Sêneca - O principal filósofo romano





sexta-feira, 19 de agosto de 2016

“Bandidos” – Eric Hobsbawm

“Bandidos” – Eric Hobsbawm



Resenha Livro - 233 - “Bandidos” – Eric Hobsbawm – Ed. Paz e Terra

“Ele matava de brincadeira
Por pura perversidade
E alimentava os famintos
Com amor e caridade” (Cordel sobre Lampião)

“Como necessitavam de mais apoio, entre outros motivos, para atormentar a vida do governador, os irmãos começaram a ir de uma aldeia a outra, instando os camponeses a não trabalhar nos terrenos atribuídos ao governador e a reparti-los entre eles. Valendo-se de uma mistura de persuasão e de coerção, administrada judiciosamente, convenceram várias aldeias a denunciar os direitos semifeudais, e com isso puseram fim ao direito dos senhores de dispor de terra e mão de obra grátis no distrito de Mareta Sebene. A partir desse momento, deixaram de ser vistos como simples bandidos e passaram a ser considerados bandidos “especiais” ou sociais”. (História dos Irmãos Mesazgi – Etiópia – Autor Anônimo)
                
O historiador britânico Eric Hobsbawm tem uma vasta produção bibliográfica, nos capítulos da História Geral dos séculos XIX e XX em suas Eras da Revolução (ciclo das revoluções burguesas na Europa), Do Capital[1] (fase de expansão do Capital pós 1848), Do Imperialismo[2] e dos Extremos[3] (o curto século XX), além de ensaios importantes sobre o Mundo do Trabalho e Metodologia da História.
                
Cumpre destacar o vastíssimo repertório cultural de Hobsbawm e seus pressupostos teórico-metodológicos.

Quanto ao primeiro, o vasto repertório cultural, seria ele aqui decisivo: como veremos, o banditismo social é na história um fenômeno universal, verificado em todos os continentes, e transmitido na forma da história oral, no folclore, em canções populares, literatura de cordel e outras fontes secundárias que exigiriam do historiador uma pesquisa muito além de um esforço restrito ao âmbito de museus e bibliotecas – seu relato se baseia em entrevistas e contatos pessoais com pessoas em todos os cantos do mundo que desde a sua condição de conferencista e historiador reconhecido internacionalmente puderam lhe proporcionar.

Quanto aos seus pressupostos teórico-metodológicos, Hobsbawm certamente recorre à uma percepção crítica baseada no materialismo histórico e dialético: não há na sua narrativa uma mera exposição sucessiva de fatos, mas um esforço de busca de sentido do processo histórico através de uma análise que busca sempre interpor o tema principal (o banditismo social) com sua contextualização histórica fundamental (as sociedades camponesas pré-capitalistas) e suas interfaces econômicas e políticas. Há portanto uma busca de sentido da história, donde o historiador não faz uma reportagem do passado, mas busca compreendê-lo através de suas contradições.

Banditismo Social

Hobsbawm inaugura os estudos de uma nova categoria social, os bandidos sociais. Não são delinquentes comuns que cometem crimes para seu próprio proveito. O banditismo social é um fenômeno relacionado às sociedades camponesas pré-capitalistas e que costumam se acentuar em momentos de desagregação, como guerras, rivalidades locais relacionadas a disputas familiares, a fome ocasionada por má colheitas ou mesmo o próprio desenvolvimento do capitalismo com a consolidação de Estados Nacionais e a modificação forçada do modos de vida milenares, incluindo a desintegração familiar. Diante de tais condições objetivas o fenômeno do banditismo social tem o condão de surgir e, o que é particularmente interessante, tal tipo ideal vai aparecendo ao longo da história em todos os cantos do mundos.

E quais são os traços subjetivos do bandido ideal? Via de regra podemos ter como ponto de partida a figura de Robin Hood, aquele que tomava dos ricos e dava para os pobres, inimigo do xerife de Nottingham e amigo dos camponeses. Ao contrário da maior parte dos bandidos sociais relatados por Hobsbawm (que de fato existiram), não se sabe ao certo se Robin Hood fora real ou uma ficção. O que se sabe é que sua primeira menção sob a forma escrita remonta ao Séc. XIV e desde a história oral, a memória e o folclore em torno de sua figura, sua lenda progrediu até um primeiro filme norte-americano “As Aventuras de Robin Hood” (1938). Hoje é conhecido por todos.

De todo modo, é possível, segundo Hobsbawm, registrar alguns denominadores comuns do Bandido Social dentro daquilo que chama da “Imagem do Bandido”.

Em primeiro lugar o delinquente nobre inicia sua carreira diante de uma reação legítima a uma ação injusta perpetrada ora pelas autoridades. Ou então é vítima de uma ação reprovada pela comunidade. É o caso de Pancho Villa, vendeta e posteriormente revolucionário mexicano, que teve uma mulher de família estuprada por um fazendeiro local: daí começa sua jornada como bandido social. Em segundo lugar o bandido social corrige agravos, como dar aos pobres o que toma dos ricos. Em terceiro lugar, o bandido social “é admirado, ajudado e mantido por seu povo” – o que envolve duas questões: o bandido social rural se refugia nas montanhas e costuma estar presente em regiões limítrofes interestatais, distantes do poder central, se valendo de sua reputação para manter-se oculto; o bandido social diferencia-se do criminoso comum por não tomar bens de sua gente, que o protege; o bandido social é itinerante, um salteador que evita as estradas e busca as matas fechadas e as montanhas para seu abrigo e liberdade. Boa parte dos salteadores valem-se do assalto justamente de transeuntes das estradas que carregam bens em espécie, ouros e mercadorias que de resto não seriam úteis dentro da economia rural. Seria necessária uma rede de contrabandistas envolvendo pessoas fora do bando para fazer funcionar esta economia do crime. E finalmente, o bandido social, por sua benevolência e reputação, é morto em emboscadas decorrentes de traição, “uma vez que nenhum membro decente da comunidade auxiliaria as autoridades contra ele”.

De qualquer forma, um dos aspectos mais fascinantes do tema do banditismo social é a sua universalidade. Um rápido inventário demonstra bandoleiros reputados em cada canto do mundo. Louise Domenique Cartouche (1693-1791) foi o mais famoso bandido social francês. Salvatore Giuliano (1922-1950) é apenas um dos muitos bandidos sociais italianos, este com uma certa vaidade ao ponto de gostar deixar-se fotografar por jornalistas. No Brasil temos dois grandes expoentes do banditismo. Lampião (1898-1938) é o mais famoso cangaceiro do país. Dizia não respeitar ninguém, a não ser o Padre Cícero, de quem recebeu uma condecoração oficial militar com o objetivo de mobilizá-lo para combater a Coluna Prestes. Outro cangaceiro um pouco menos conhecido chamava-se Antônio Silvino. Payot Hitov representa o banditismo social da Bulgária (Haiduk) e como Pancho Villa, também evoluiria num sentido da luta política, participando do levante nacional búlgaro de 1867. Como já mencionado, o melhor exemplo de uma evolução do banditismo social para a revolução foi Pancho Villa (1872-1923):  de ladrão de gado no norte do México durante dos anos de Porfírio Días, foi recrutado pelos homens de Mederos e adquire status de general a partir de Dezembro de 1913. Consta que ao cabo da Revolução Mexicana, abandona qualquer tipo de atividade política e busca uma vida tranquila como fazendeiro.

Banditismo e Revolução

Pode ser tentador numa primeira leitura fazer uma interpretação segundo a qual o banditismo social seria um embrião de um movimento revolucionário, mesmo camponês. Hobsbawm, com base na história, faz bastante reservas quanto à esta tese.

Em primeiro lugar, constata-se que o bandido social é um elemento anti-social: sua sobrevivência depende de acordos de conveniência, frequentemente com poderes locais, tirando não rara vezes, proveito de disputas e rivalidades regionais, independentes de cogitações políticas. Outras vezes, os bandidos sociais são mesmo recrutados por forças políticas locais para a execução de tarefas militares – se os bandidos sociais serão ou não leias, irá depender muito das circunstâncias, mas o que se observa é uma insubordinação à disciplina, até pelo amor à liberdade que está associada ao estilo de vida dos salteadores.

Ainda assim, existem sim interfaces importantes entre o banditismo social e a revolução. A China foi país com uma cultura quase que milenar do banditismo social. Ao que tudo indica, Mao não só teve clareza deste elemento como realmente acreditava na possibilidade de incorporar os bandidos sociais ao Exército Vermelho mediante uma intensa educação socialista.

Na Rússia, a tradição do banditismo social relaciona-se também há muito tempo desde os cossacos – e desde o séc. XIX com as práticas terroristas narodinkis (populistas) que propugnavam a eliminação física de autoridades bem como as expropriações de bens para as organizações, há uma linha pouco identificável entre banditismo social e movimentos políticos. Quanto às expropriações, Hobsbawm dedica todo um capítulo ao tema. Após a Revolução de 1905, mesmo os bolcheviques, dentro do partido social democrata, defendiam a expropriação, com reservas – Lênin dizia que todo dinheiro deveria ser revertido para o partido e dentro de um quadro de educação e ideologia socialistas, para se diferenciar da mera criminalidade comum. E sabe-se que o Jovem Stálin praticamente iniciou sua carreira menos como um intelectual e mais como um homem de ação, expropriando bens e rublos na região do Cáucaso,  serem revertidos para o partido.

A guisa de conclusão, assim preleciona o historiador sobre o problema do banditismo social e da revolução:

“Assim, a contribuição dos bandidos para as revoluções modernas foi ambígua, duvidosa e breve. Esta foi sua tragédia. Como bandidos, puderam, na melhor das hipóteses, como Moisés, divisar a terra prometida. Não puderam alcançá-la. Quase como se poderia esperar, a guerra de libertação na Argélia começou nas montanhas inóspitas de Aurés, tradicional território de bandidos, mas foi o Exército de Libertação Nacional, que nada tinha em comum com eles, que finalmente conquistou a independência. Na China, o Exército Vermelho logo deixou de ser uma formação baseada em organizações de bandidos. E há mais o que dizer. Houve na revolução mexicana duas grandes formações camponesas: o típico movimento de rebeldes salteadores de Pancho Villa desempenhou um papel incomensuravelmente mais importante no cenário nacional, mas que não modificou nem a configuração física do México, nem a do próprio território norte ocidental de Villa. O movimento de Zapata foi inteiramente regional, seu líder foi morto em 1919, suas forças militares não tinham peso. No entanto foi esse movimento que injetou o elemento da reforma agrária na revolução mexicana”.  
    

sábado, 13 de agosto de 2016

“Cristianismo Libertador” – Alysson Leandro Mascaro

“Cristianismo Libertador” – Alysson Leandro Mascaro



Resenha Livro - 232 - “Cristianismo Libertador” – Alysson Leandro Mascaro – Editora Comenius

“Da mesma forma, o entendimento dos laços passados e futuros do espírito faz desmoronar a ideia de que Deus dê a cada qual uma cruz e que se deve carrega-la inexoravelmente nesta vida. A pobreza e a miséria não são da conta de Deus pai vingador. Instaura-se a responsabilidade da humanidade por si mesma. A partir daí, não há justo título reconhecido pelo altar da divindade: a existência social humana é passível de discussão e de indagação” (A Transformação Humana – Pg. 45)
                
Alysson Leandro Mascaro é professor de Filosofia do Direito da USP e conhecido como um dos principais críticos do fenômeno jurídico desde um horizonte intelectual marxista. Aqui o professor e filósofo diferencia-se da esmagadora parcela dos juristas que mesmo no âmbito das reflexões da filosofia do direito trilham a orientação do juspositivismo. Aliás a hegemonia do juspositivismo está sintomaticamente presente em todos os ramos do direito: trata-se de entender o direito como mero sinônimo de norma emanada pelo estado, restringir o fenômeno jurídico ao direito posto, axiologicamente neutro e desprovido de interesses com relação ao que é justo, à moral, à ética e às suas interfaces com a história.

Não é à toa que Hans Kelsen, talvez o principal expoente do Juspositivismo, escreveu um livro denominado “Teoria Pura do Direito”, buscando justamente concretizar a ideia de que o direito deveria restringir a uma técnica impessoal baseada na aplicação das leis. A perspectiva crítica do direito – que em última análise remete à Marx e sua crítica da Economia Política – desnuda o caráter ideológico do Juspositivismo. Trata-se em primeiro lugar de situar o direito como um fenômeno histórico e o direito tal qual o conhecemos é um fenômeno eminentemente moderno, produto do desenvolvimento capitalista – havia um direito romano, mas que se constitui de forma artesanal, de modo que os conflitos eram resolvidos em suas especificidades e sem a existência dos procedimentos e da impessoalidade que só foram conquistados com o advento do Estado Moderno. Os estudos de Alysson Mascaro e outros autores da teoria crítica nos mostram como o direito exterioriza uma forma coerente com as exigências históricas de desenvolvimento e reprodução capitalista.

A noção de “Sujeito de Direito” surge na modernidade num momento em que o fim do feudalismo põe termo a dominação direta escravista e do servo em relação ao Senhor Feudal, um mundo onde os indivíduos são livres formalmente para a compra e venda da força de trabalho; nessa seara surge o conceito de “autonomia da vontade”, um conceito-chave às relações contratuais que concretizam tanto relações mercantis quanto chancelam os próprios contratos de trabalhos; institutos comerciais que remetem à baixa idade média como a concordata (Direito Estatutário Alemão) e os Títulos de Crédito vão sendo consolidados e desenvolvidos pelo direito privado até a conformação de Códigos Civis, sendo um marco nesse sentido o Código Civil Napoleônico (1804), disseminado pelo mundo.
A teoria crítica é acima de tudo uma perspectiva que desnuda o viés ideológico das estruturas jurídicas. Alguns dos trabalhos mais importantes do jurista de Catanduva nesse sentido são “Estado e Forma Política” (http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/08/estado-e-forma-politica-alysson-leandro.html) e “Introdução ao Estudo do Direito” (http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2013/11/introducao-ao-estudo-do-direito-alysson.html).

O que talvez poucos saibam, inclusive este resenhador até pouco tempo, é que o jurista marxista também tem trabalhos escritos dentro da comunidade espírita. De acordo com o contrapelo da presente obra, é conferencista e escritor espírita, autor de “Introdução ao Estudo do Espiritismo”, além de trabalhos assistenciais na S. E. Caminho da Luz.

E aqui abrimos uma discussão que nos parece interessante. Que tipo de relação do tipo prático e teórico pode se estabelecer entre a religião (e o espiritismo em particular) e o marxismo? Existe uma contradição indissolúvel entre cristianismo e marxismo, ou há interfaces entre ambas perspectivas de mundo?

Um pequeno parênteses

Antes de prosseguirmos, parece-nos importante fazer a seguinte ponderação. Este resenhador reivindica o ponto de vista do marxismo-leninismo. Por uma questão de transparência junto ao leitor, parece-nos necessário que também relatemos muito brevemente a nossa opinião sobre o problema religioso. Como se sabe, Lênin bem definiu o marxismo como uma tradição decorrente de três fontes essenciais: o socialismo francês, a filosofia clássica alemã e a economia política inglesa. Quanto à filosofia clássica alemã e o socialismo francês, da primeira resgata-se a dialética hegeliana e do segundo as filosofias materialistas que são elevadas ambas num estágio superior: o materialismo filosófico e o materialismo dialético. Com isso queremos dizer que a filosofia marxista é amplamente materialista o que desde já a afasta das explicações que desde o céu passam às questões terrenas (o sentido é exatamente o contrário); se afasta de todo idealismo e de toda metafísica.

Não reivindicamos nenhuma religião e não acreditamos em deus. Mas nosso ateísmo é diferente daquele propugnado por Paulo Jonas Piva em seu belo ensaio sobre o padre ateu Meslier (ver: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2015/11/ateismo-e-revolta-paulo-jonas-de-lima_12.html). De acordo com Piva, ateu é aquele que crê piamente na não existência de deus e nestes termos o ateísmo deste resenhador seria melhor enquadrado num “agnosticismo”. Mas não pensamos desta forma. Temos notícia de que o Universo adveio do Big Bang (uma teoria). Mas não temos notícia do que ou de quem criou o Big Bang e muito menos do que havia antes do Big Bang. Em outros termos, a questão da existência de deus parece-nos um problema filosófico tão decisivo que a simples assertiva do tipo “Não acredito em deus” deveria vir acompanhada de argumentos científicos/filosóficos razoáveis.

O problema da Religião no Marxismo

Já no Jovem Marx há um tratamento radical contra a religião na “Questão Judaica”, em que contrapõe a emancipação do Judeu à emancipação humana. Mas seria na “Introdução da Filosofia do Direito” em que haveria uma das mais belas passagens em que se aborda o problema da religião nos termos da alienação e da miséria humana:

“Na Alemanha, a crítica da religião chegou, no essencial, ao fim. A crítica da religião é a premissa de toda crítica.

A existência profana do erro ficou comprometida, uma vez refutada sua celestial oratio pro aris et focis [oração pelo lar e pelo ócio].

O homem que só encontrou o reflexo de si mesmo na realidade fantástica do céu, onde buscava um super-homem, já não se sentirá inclinado a encontrar somente a aparência de si próprio, o não-homem, já que aquilo que busca e deve necessariamente buscar é a sua verdadeira realidade.
A religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a religião: este é o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a autoconsciência e o auto sentimento do homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu. Mas o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram a religião, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão geral de consolo e de justificação. 

É a realização fantástica da essência humana por que a essência humana carece de realidade concreta. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo que tem na religião seu aroma espiritual.

A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espirito. É o ópio do povo”.

É bom desde já fazer constar que boa parte de “Cristianismo Libertador” não está em contradição com a ideia de que a religião, no passado e no presente, é um consolo para uma realidade de exploração e miséria, nos termos supracitados por Marx. Os ensaios reunidos não são especificamente textos de proselitismo religioso, mas reflexões que abordam a história do cristianismo, sua diferenciação com o espiritismo (definido pelo autor como “Ciência do Espírito”) e até um último ensaio bastante interessante, escrito à luz dos eventos do 11 de setembro, acerca da relação histórica de indiferença e dominação do ocidente cristão em face das demais culturas dominadas – “O Cristo do Ocidente”.

O que gostaríamos de destacar são aspectos do que poderia se remeter a um certo cristianismo primitivo que tem alguma interface, se não com o marxismo, talvez com tradições antigas do igualitarismo e que podem sim inspirar as lutas sociais nos dias de hoje. Nesse sentido, uma resposta parcial as primeiras cogitações é: sim, existe um diálogo possível entre o cristianismo e o socialismo, mas que encontra impeditivos importantes na teoria marxista, que é profundamente materialista.

“O amor à humanidade compreende, na sua base, o impulso para a justiça, o impulso para a transformação. Este parece ser um elemento crucial no exemplo de Jesus. O impulso pela transformação e não pela conservação. Há em cristo, latente, o ânimo da contestação, propondo a transformação do dado; Jesus não era absolutamente, o homem do poder. Todas as religiões que se reputaram cristãs, no entanto, foram religiões do poder. Se não do poder político e estatal, do poder econômico certamente. Ao mesmo tempo, do poder de castrar, do poder de submeter. Poder e libertação são dois antípodas. Nossa tendência a trabalhar com o mais confortável à nossa conveniência é que faz com que possamos ver bons poderes e boas submissões. Cristo é a total libertação. Por isso, ainda hoje, ou se vive um cristianismo totalmente adulterado do qual de Cristo só tem o nome, ou, se quisermos viver verdadeiramente como cristãos, devemos ser revolucionários. Os paliativos não bastam; historicamente só fizeram por manchar os altos ideais de Jesus”.



quinta-feira, 11 de agosto de 2016

“Antonio Gramsci – do liberalismo ao “comunismo crítico” – Domenico Losurdo

“Antonio Gramsci – do liberalismo ao “comunismo crítico” – Domenico Losurdo



Resenha Livro - 231 - “Antonio Gramsci – do liberalismo ao “comunismo crítico” – Domenico Losurdo – Ed. Revan
                 
O historiador e filósofo italiano Domenico Losurdo destaca-se pelo seu vasto repertório cultural e particularmente pelo seu peculiar senso crítico. O professor da Universidade de Urbino tem trabalhos importantes publicados no Brasil como sua diferenciada biografia política de Joseph Stálin (“Stálin – História crítica  de uma lenda negra” - Ed. Revan - http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/09/stalin-historia-critica-de-uma-lenda.html) em que revela aspectos ocultos do dirigente soviético negligenciados pela historiografia tradicional, como o papel decisivo de Stálin na estratégia militar que corroborou na vitória soviética na II Guerra Mundial e a indução estratégica dos planos quinquenais para o desenvolvimento das forças produtivas num ritmo jamais visto na história.

Em “Fuga da História” (“Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas hoje” - Editora Revan - http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2016/01/fuga-da-historia-domenico-losurdo.html ), Losurdo descarrega sua munição crítica mesmo junto à historiografia de esquerda que se deixa seduzir pela ideologia dominante diante de diversas passagens da história política da Revolução Russa e Chinesa.

Este ensaio dedicado ao pensamento político do dirigente político e teórico marxista Antônio Gramsci diz respeito à disciplina da História das Ideias[1]. O autor não se remete à trajetória de vida de Gramsci, sua militância no Partido Socialista e posteriormente na construção do Partido Comunista, à atividade de agitação e propaganda junto ao “L’Ordine Nuovo” e aos anos na prisão donde redigiu seus famosos “Cadernos do Cárcere”. Trata-se antes de uma bibliografia intelectual em que Losurdo passa em revista a evolução do pensamento de Gramsci e suas interfaces com o ambiente cultural da Itália de seu tempo, com o desenvolvimento do movimento comunista e operário da primeira metade do século XX e dos fatos políticos mais relevantes, objeto das cogitações das próprias reflexões gramscianas: da carnificina da I Guerra Mundial com a participação Italiana, da aventura imperialista da Itália na Líbia, da Revolução de Outubro na Rússia e da ascensão do Fascismo.

“Reside aqui o fascínio de uma evolução e de uma biografia intelectual que, a partir de dramáticos acontecimentos históricos (o primeiro conflito mundial, a revolução e a eclosão da primeira etapa da guerra, fria e quente, contra a Rússia soviética, o processo de radicalização ideológica e política do movimento operário no Ocidente, o despertar dos povos coloniais e as persistentes ambições imperialistas das grandes potências liberais, o advento do fascismo), aprofunda e radicaliza a crítica ao liberalismo e amadurece, em todos os níveis, a passagem ao comunismo.” (Pg. 144)

Gramsci advém de modesta origem social: em 1914, aos 23 anos, é um humilde provinciano da Sardenha, uma ilha onde “grassam o analfabetismo, a malária, o tracoma, a tuberculose e a inanição”, criando desde jovem uma empatia junto às classes e povos subalternos. O que pode em um primeiro momento surpreender é o fato de que os primeiros intelectuais a influenciar diretamente Gramsci serem Croce e Gentile, expoentes de um pensamento liberal “neoidealista”.

A chave explicativa para tal fato está no relativo atraso cultural da Itália: naquele país ainda restam importantes resquícios do Antigo Regime e no âmbito do mundo das ideias, ainda ganham força o positivismo ou mesmo concepções filosóficas relacionadas à Igreja Católica.

Nesse sentido, Croce e Gentile representavam o pensamento burguês mais avançado naquele momento, uma concepção de mundo cosmopolita que valorizava a história e a transitoriedade dos fatos sociais em detrimento de concepções de mundo teológicas ou até mesmo racistas, como as de Lombroso. Este último é conhecido no âmbito do Direito Penal por fazer associações entre o fenótipo de indivíduos, ou “raças”, e tendências de práticas delituosas. Outros iriam justificar a aventura colonial Italiana dentro da concepção do fardo do Homem Branco, ressaltando perspectivas racistas em que os povos dominados teriam, por sua raça, menor dignidade humana. Pensadores burgueses como Croce vão em sentido contrário e aqui a apropriação de Gramsci ao que há de mais avançado do pensamento burguês de seu tempo remete ao conceito de “herança”: ao seu tempo Marx igualmente fez distinções entre a Economia Política Clássica (Ricardo e Smith) da Economia Política Vulgar (Malthus), sem deixar de se apropriar da teoria do valor trabalho e, com isso, da herança, de uma crítica que se apropria e desloca o objeto. Cogitações nesse sentido poderiam ser feitas a respeito da relação entre Marx e a filosofia hegeliana.

O salto entre liberalismo e comunismo crítico vai se dar com o processo histórico. Em última análise Croce entende ser a I Guerra um fato inevitável. Gramsci faz uma interpretação materialista deste evento histórico colocando-se contra a carnificina. Posteriormente, com a Revolução de Outubro, verifica-se que a Revolução Socialista é uma transformação integral em contraponto à Revolução Burguesa. Assim aduz Gramsci:

“A burguesia, quando fez a revolução, não tinha um programa universal; ela servia a interesses particulares, interesses  da sua classe, e a servia com a mentalidade fechada e mesquinha de todos aqueles que tendem a fins particularistas”. Porém (LOSURDO) não obstante oscilações, pode-se ter como certo um ponto. A revolução burguesa foi uma etapa importante do processo de emancipação que se desenvolve para a conquista de uma universalidade cada vez mais rica e concreta. Os 
Cadernos do Cárcere lembram como, para Pascoli, conquistado para a causa do colonialismo, o socialismo de inspiração marxista tem o defeito de fazer “germinar...o amor universal no lugar do atavismo bestial e belicoso”. Porém, para o Gramsci que aderiu à Revolução de Outubro, o comunismo é precisamente o “humanismo integral”.

Algo importante a se destacar é que o léxico gramsciano transbordou não só as fronteiras do socialismo revolucionário mas mesmo do Marxismo. Conceitos-chave decorrentes do autor como “Intelectual Orgânico”, “Hegemonia” ou “Sociedade Civil” (ampliada no sentido de contemplar o estado) passaram a ser mencionadas não apenas por intelectuais reformistas mas por não marxistas, ou mesmo deturpadas. Um exemplo é a utilização da ideia de hegemonia pelo reformismo que partiria de uma premissa delirante segundo a qual uma “hegemonia” partidária por dentro das instituições burguesas seria um caminho mais curto e seguro no sentido do socialismo, uma tese inteiramente oposta ao revolucionário e apoiador da Revolução Russa. Todavia, destacamos tal fato para ilustrar como Gramsci tornou-se um pensador que efetivamente ganha importância e merece ser reconhecido desde que baseado em suas próprias premissas.

“No âmbito da tradição marxista, Gramsci foi quem, de modo mais radical, colocou o problema da herança, da crítica do mecanicismo e da recusa a qualquer forma de messianismo. O antimecanicismo continua a agir na própria história da fortuna de Gramsci, que não por acaso é alçado à dignidade de “Clássico”. Essa definição acerta se pretende evidenciar o fato de que a lição dos Cadernos do Cárcere e, em parte, dos escritos juvenis ultrapassam as fronteiras do movimento comunista (e da própria esquerda): categorias como as de “hegemonia”, “sociedade civil”, “bloco histórico”, “revolução passiva” são imprescindíveis para quem queira compreender adequadamente os mecanismos do poder e a dialética histórica; estamos na presença de uma obra que enriqueceu e reinterpretou o léxico, reformulou a gramática e a sintaxe do discurso político e histórico”. (Pg. 285)     
   





[1] Para uma biografia que contemple aspectos mais pessoais de Gramsci: GRAMSCI – Um Estudo Sobre Seu Pensamento Político. COUTINHO, Carlos Nelson. Ed. Civilização Brasileira. 

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

“Zhukov” – Frederico Branco


Resenha Livro – 230 - “Zhukov: grandes personagens de todos os tempos” – Biblioteca de História – Ed.Três




“Na Luta contra o Eixo, as nações aliadas não têm dívida maior para com um homem do que a contraída com o marechal Zhukov”. – Eisenhower, 1º Comandante das Forças Aliadas da II Guerra Mundial e Presidente dos EUA (1953-1961)
               
Talvez não há período da história contemporânea com maior repercussão na Indústria Cultural, e no âmbito cinematográfico hollywoodiano em particular, do que a II Guerra Mundial. A título de exemplo, citamos alguns sucessos de público como “O Resgate do Soldado Ryan” de Steven Spielberg e “Pearl Harbor” dirigido por Michael Bay. O que há em comum nestas películas é uma certa orientação ideológica que favorece a intervenção norte-americana como quase que decisiva para a derrota o eixo. Todavia, há de se considerar algumas premissas que são incontroversas mesmo dentre historiadores de distintas orientações políticas: o chamado “Dia D”, a invasão da Normandia em França no ano de 1944 esteve longe de significar o início da derrocada nazista. Em Junho de 1944, os rumos dos acontecimentos já sinalizavam claramente a derrocada do eixo, e há de se destacar que a mobilização desde a França pelos americanos sinalizava a preocupação do alto comando militar norte-americano do rápido avanço soviético (comunista) pelo oriente; ainda mais significativo do ponto de vista político foram as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki em Agosto de 1945, três meses após a rendição da Alemanha e que representavam uma demonstração de força pelos EUA que sairiam da II Guerra como principal potência bélica do planeta, medindo forças com a URSS.

Para uma análise mais detida da queda do III Reich e seus aliados, torna-se necessário um exame de um momento anterior: remetemos o leitor ao ano de 1941. Trata-se de um ano em que a situação parecia perdida para os aliados. No pacífico, o ataque surpresa perpetrado pelo Japão sobre a base naval norte-americana de Pearl Harbour no Pacífico. Os japoneses ocupam no sudeste asiático antigas possessões francesas, britânicas e holandesas, além das Filipinas. Na Europa, os nazistas já haviam concretizado a invasão e ocupação de França, Holanda, Bélgica, Noruega, Dinamarca, Polônia, Grécia, Iugoslávia e Albânia. Os Italianos planejam tomar Alexandria e o Canal de Suez. E é diante da operação voltada a aniquilação da Rússia, quando o exército de Hitler passaria a lutar em duas frentes (oriental e ocidental) que a ascensão militar do Reich irá ser contida. E aqui apresentamos a figura do Marechal Zhukov, o militar mais condecorado e mais popular da história da União Soviética, e que, na II Guerra Mundial, esteve presente na articulação militar dos momentos mais decisivos da luta patriótica contra os invasores nazistas.

Origens

Georgi Konstantinovich Zhukov nasceu a 2 de Dezembro de 1896 na pequena vila de Strelkovka, nas proximidades de Moscou. Era filho de dois simples camponeses que, com muito esforço, conseguiram enviar o filho a uma escola local para o estudo primário. Com 12 anos, Zhukov parte para Moscou onde trabalha de dia como peleteiro e continua seus estudos à noite. E em 1915, quando a Rússia ainda estava submetida ao czarismo, alista-se na Cavalaria do Exército Imperial com o fito de lutar na Primeira Guerra Mundial.

Como se sabe, foi durante a I Guerra, em 1917, que a Rússia viu-se envolvida por uma revolução com uma fase democrático-popular (fevereiro) com a derrubada do czarismo e uma fase socialista (outubro) com a ascensão dos bolcheviques ao poder. As agitações revolucionárias faziam-se sentir nos fronts de batalha e Zhukov adere à causa revolucionária e projeta seus conhecimentos militares à guerra civil subsequente aos eventos de outubro: em 1918 o sargento Zhukov alista-se na Cavalaria da Guarda Vermelha e ingressa no Partido Comunista.

Retidão, disciplina e uma gigantesca disposição de aprendizagem quanto às mais modernas táticas e estratégias militares valeram a Zhukov uma rápida ascensão dentro dos quadros do Exército Vermelho.

“Consequentemente, além de extenso preparo prático e experiência efetiva de combate na Primeira Guerra Mundial e na Guerra Civil, Zhukov chegou a 1930 com excelente preparo teórico. Seu primeiro comando independente foi o da II Brigada de Cavalaria, integrante da divisão comandada por Rokossovsky. Este recorda que Zhukov era sempre o primeiro a chegar ao QG da Brigada que comandava e o último a sair, à noite. Entre seus superiores e comandados era conhecido como uma espécie de raridade – um oficial que levava em devida conta tanto a prática quanto a teoria, que invariavelmente se empenhava ao máximo em tudo o que fazia e que exigia o máximo dos que com ele trabalhavam. As menores falhas não lhe escapavam. Seus elogios eram raros, suas reprimendas frequentes e severas, ainda que justas. Altamente disciplinado, era antes de tudo um disciplinador intolerante em relação a qualquer demonstração de incompetência profissional”.

Herói da II Guerra Mundial

20 Milhões de Russos morreram na II Guerra Mundial. A Invasão alemã em território soviético dava-se em três frentes: ao norte com destino a Leningrado (hoje São Petersburgo); ao centro em direção a Moscou, já naquela época capital e centro operacional do país; e ao sul em direção ao Cáucaso, onde os alemães esperavam encontrar-se com tropas japonesas que subiam rapidamente rumo à Índia e ao golfo pérsico. No caso da frente sul, tratava-se também de uma operação estratégica para privar a URRS de cereais e recursos energéticos provindos daquela região.

Em 1941, após a invasão alemã, Zhukov é enviado a Leningrado com a missão de deter eventual invasão dos nazistas àquela cidade. O que ficou conhecido como o cerco a Leningrado foi uma grande resistência, heroica e trágica pelo número de mortos e pelo drama envolvido, mas que representou um elemento moral importante: foi uma primeira derrota parcial do até então indestrutível exército alemão. E quem organizou militarmente e pormenorizadamente tal resistência, com a mobilização de civis na frente de batalha e em obras como construção de trincheiras ou dinamites, foi Zhukov:

“Zhukov sabia que, se a ameaça imediata estava afastada, os dias de sofrimento impostos a Leningrado ainda estavam muito longe de seu fim. Não havia possibilidade de ampliar a brecha do lago Ladoga no círculo de aço imposto pelos alemães aos defensores. Leningrado continuaria a ser submetida, durante quase três anos, a ataques quase incessantes da aviação e da artilharia – e no terrível inverno de 1941, a fome e o frio cobrariam da população um preço ainda mais elevado do que as balas e granadas alemãs: milhares de pessoas morreram diariamente de fome e de frio, casos de canibalismo seriam registrados; papel de parede, cascas de árvore e couro de cintos velhos e sapatos seriam usados como alimento; faltaria água não contaminada até mesmo para intervenções cirúrgicas de urgência.

Leningrado deveria arcar com sacrifícios indivisíveis até 1944, quando o longo cerco alemão foi finalmente levantado, mas não se deixaria dominar – e mais que ninguém, quem inspirou esse espírito de inquebrantável resistência da guarnição e da população civil da cidade foi Zhukov”.

Se a resistência em Leningrado representara uma derrota parcial sobre os nazista, a primeira vitória efetiva do Exército Vermelho sobre as tropas nazistas deu-se na famosa batalha de Stalingrado onde mais uma vez fez-se presente a presença Zhukov: o marechal planeja a grande operação de cerco ao IV Exército Alemão e posteriormente a derrota dos nazistas em Kursk implicando numa contra-ofensiva cujo destino final será a tomada de Berlin.

Zhukov foi o primeiro militar de carreira a ser incorporado ao comitê central do Partido Comunista da União Soviética. Foi designado como uma espécie de ministro da defesa da URSS e nesta condição dirigiu a repressão ao levante na Hungria em 1956 – uma manifestação anti-soviética que divide opiniões, mesmo dentre os comunistas: para alguns uma atividade contra-revolucionária, liberal e burguesa; para outros, uma manifestação espontânea e injustamente reprimida.


Ao que tudo indica, Zhukov não tinha as mesmas “habilidades” militares que tinha na política: após um pronunciamento público sobre questões relacionadas ao XX Congresso do PCUS foi desacreditado e aposentado de suas funções políticas nos anos 1960, sendo reabilitado apenas 10 anos depois. 

Parece-nos, todavia, que sua impressionante ascensão militar, bem como seus heroicos feitos militares, além de sua impressionante lealdade à URSS, mesmo nos momentos em que foi relegado às sombras, credenciam-no como um personagem de alto relevo da história contemporânea e do movimento comunista em particular.