domingo, 28 de janeiro de 2024

A Literatura de Joaquim Manuel de Macedo

 A Literatura de Joaquim Manuel de Macedo





O romance mais conhecido do escritor carioca Joaquim Manuel de Macedo (1820/1882) é certamente “A Moreninha”, publicado em forma de folhetins e lido predominantemente pelo público feminino nos meados do século XIX.  

 A importância da obra não reside tanto nos seus êxitos literários, mas no seu pioneirismo.

Foi escrita em 1844, quando o Brasil era governado por D. Pedro II (2º Reinado 1840/1889) e não existe muito dissenso entre os especialistas ao entenderem que se tratou do primeiro escrito que podemos chamar de “romance” até então realizado no país.

Não deveria ter sido fácil escrever o romance sem que houvesse até então qualquer tradição literária anterior, que pudesse dar sustentação a uma linguagem ficcional, com tema, enredos, estilos literários, etc.

Até então, as poucas referências literárias existentes eram as histórias de Texeira e Souza (1812/1861) e as novelas francesas publicadas no Brasil a partir de 1817. A influência dos folhetins franceses na literatura Brasileira é notória. Posteriormente, boa parte da produção de Machado de Assis, nitidamente nas suas produções românticas (Ressurreição de 1872, A Mão e a Luva de 1874, Helena de 1876 e Iaiá Garcia de 1878) também seriam tributárias desta literatura associada ao jornalismo, cujos capítulos dos romances eram publicados periodicamente na impressa, e, como dito, na maioria das vezes lidos pelo público feminino.

Em todo o caso, quem teve apenas contato com a obra de Macedo através da leitura do seu romance mais famoso, talvez se deixe enganar pensando se tratar de um escritor meramente convencional, cujo interesse literário se limita ao seu pioneirismo.

Há outros livros que suscitam o interesse do leitor que queira entrar em contato com o pensamento social e político do Brasil do Século XIX. Essas obras menos conhecidas refletem  a trajetória de vida do nosso escritor, que transitou pela política, jornalismo e pelo estudo da História do Brasil.

Formado em medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro em dezembro de 1844, não chegou a atuar como médico, abraçando desde cedo a carreira literária. Como jornalista, colaborou em diversos periódicos fluminenses, escrevendo romances, poemas e peças de teatro. Foi deputado provincial nas legislaturas de 1864/1868 e 1871/1888. Renunciou a uma pasta de gabinete de 1864 e candidatou-se a Senador do Império

Manteve relações com o Imperador Dom Pedro II, chegando a ser preceptor e professor dos filhos do chefe de governo.  

Como historiador, exerceu o magistério no Colégio Pedro II, além de sócio fundador do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB). Tal instituto teve como protetor o próprio Imperador e foi constituído para a coleta e publicação de documentos relevantes da História do Brasil e para o incentivo do ensino dessa disciplina.

Na condição de político do Império, Macedo posicionou-se contra a escravidão no romance “Vítimas Algozes”, publicado em 1869, pouco depois do primeiro mandato como deputado provincial.

O abolicionismo do escritor não se deu propriamente por considerações humanitárias ou por um senso de justiça. Tais premissas aparecem de forma subsidiária no livro. O principal aspecto do problema da escravidão que leva o escritor a se posicionar pela abolição deu-se pelos efeitos maléficos da instituição no seio da sociedade e da família.

Ou seja, tratava-se de uma defesa do regime social vigente, incluindo a família patriarcal, em face dos efeitos desagregadores do regime escravista.  

Em “Vítimas Algozes”, vê-se a influência negativa das escravas domésticas que articulam contatos e namoros entre a sinhá e pretendentes, muitas vezes através do suborno e não raro ensejando a desonra da mulher branca. Aborda-se também a criminalidade subjacente ao regime escravagista: o escravo que se vinga do seu senhor através do assassinato, da destruição das fazendas e do envenenamento. A abolição aqui não é um instrumento de mudança da estrutura social mas, pelo contrário, um meio de preservá-la.

Na condição de historiador, nosso escritor publicou um romance histórico chamado “As Mulheres de Mantilha” (1870) que consiste numa fonte documental fundamental para se conhecer a história do Rio de Janeiro (então chamada São Sebastião do Rio de Janeiro) exatamente no momento em que a cidade foi elevada à condição de Vice-reinado da colônia, passando a ser o centro administrativo do país, em substituição à cidade de Salvador.

A transferência deu-se em dezembro 1763, no bojo das reformas de Marques de Pombal, primeiro ministro do rei Dom José.

A alteração da sede administrativa acompanhou a alteração do eixo econômico da colônia: inicialmente a cana de açúcar e posteriormente o ciclo da mineração, que deslocou  o centro econômico do país para o sudeste. A transferência acompanhou outras reformas de Pombal que impactaram a produção e o controle da atividade mineradora do Brasil, como a expulsão dos jesuítas e uma nova forma de controle de cobrança de impostos.

O romance se passa entre 1763/1767 durante o reinado do conde da Cunha, que foi o primeiro Vice rei mandado para a nova capital da cidade.

“Os quatro anos que correram de 1763/1767 não foram por certo dos mais suaves e agradáveis para os habitantes da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, embora muitos ufanos e orgulhosos devessem eles estar em consequência da definitiva mudança da capital do Brasil que passara da primogênita de Cabral para a bela filha de Mem de Sá, assumindo com caráter de permanência o chefe da grande colônia portuguesa da América a graduação e hierarquia de vice-rei.

Mas o primeiro vice-rei que D. José ou por ele o marquês de Pombal despachou para o Rio de Janeiro, e que governou o Brasil desde 16 de outubro de 1763 até 21 de novembro de 1767, foi D. Antônio da Cunha, conde do mesmo título, homem talvez animado de boas intenções, porém tão facilmente irritável como violento e déspota”.

Àquele momento, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro ainda se constituía como um povoamento simples, a despeito daquele território já ter sido ocupado pelo menos desde os primeiros anos do século XVI.

Os primeiros esforços de reconhecimento e povoamento daquela região, no início dos 1500, foram inicialmente dificultados pela resistência dos bugres tamoios, aliados aos traficantes franceses.

Aos poucos, a cidade foi se constituindo como o principal núcleo urbano da região, sendo estruturada a atividade econômicas em torno de atividades de coleta, pesca e produção de mandioca, cana e gado. Já ao momento da transferência da sede da colônia, o Brasil passava pela internação do seu povoamento após o descobrimento das jazidas de Minas Gerais, período histórico no qual se passa o romance.

A história basicamente retrata a vida da cidade de São Sebastião sob o primeiro vice-reinado do conde da Cunha, período em que a exploração das minas ensejou um recrudescimento de  práticas autoritárias e extorsivas da metrópole sobre a colônia.

A corrupção e violência do regime são levadas adiante principalmente por Alexandre Cardoso,  que era uma espécie de primeiro ministro do Vice Rei.  Enquanto o primeiro vendia cargos no governo a troco de dinheiro, ameaçava os moradores com o recrutamento militar obrigatória e se entregava ao vício do jogo de apostas, o segundo fazia vistas grossas aos abusos do seu assessor, ensejando um clima de descontentamento político. Em se tratando de um regime tirânico, as vítimas não tinham direito à queixa: porque a queixa era insulto e crime punidos imediatamente e com descomedimento brutal. Os moradores serviam então de pasquins e lundus (música popular) em que debochavam anonimamente do poder constituído.  

O enredo segue um estilo folhetinesco característico do autor.

Alexandre Cardoso, externando sua concupiscência sexual, deseja Inês, filha de um honrado comerciante português chamado Jerônimo Lírio. O vilão articula diversos meios (lícitos e ilícitos) de tomá-la em casamento, encontrando óbvia resistência do pai, dado o notório comportamento desregrado do assessor do Vice Rei.

Com a recusa, o vilão engaja alguns colegas do regimento militar para que simulem um ataque de bandoleiros à família de Lírio: no seu plano, imediatamente após o ataque dos militares transvestidos de criminosos, surgiria e salvaria Inês, aparecendo como herói. Assim, franquearia a casa de Jerônimo e se credenciaria como legítimo marido de Inês. Contudo, nesse ataque surge a figura do jovem Isidoro, que combate sozinho os criminosos e salva a pretendente de Alexandre Cardoso. Inês apaixona-se por Isidoro, enquanto Cardoso é denunciado ao Rei que o castiga remetendo-o à Europa, onde morre na miséria

A triangulação amorosa, a derrota e desmoralização do vilão e o casamento de Inês com o homem que ama são elementos típicos do romantismo, com o seu sentimentalismo e suas idealizações do herói, do amor e da mulher. Mesmo sendo um romance convencional (e até certo ponto previsível), sua importância, assim como nas demais obras, reside menos nos méritos literários e mais na forma como retratam o pensamento da época e a história do país.   

 Bibliografia.

“As Mulheres de Mantilha” – Joaquim Manuel de Macedo – Ed. Iba Mendes

“Vítimas Algozes” – Joaquim Manuel de Macedo – Ed. Iba Mendes.

“História do Brasil: geral e regional” – Ernani Silva Bruno. Ed. Cultrix

sábado, 13 de janeiro de 2024

“História do Brasil” – Afrânio Peixoto

 “História do Brasil” – Afrânio Peixoto





Resenha Livro – “História do Brasil” – Afrânio Peixoto – Iba Mendes Editor Digital

 

Afrânio Peixoto publicou a sua História do Brasil em 1944, três anos antes de sua morte. Nascido no interior da Bahia, foi médico, deputado federal por seu estado natal e estudioso da cultura brasileira: de acordo com Pedro Calmon, outro grande historiador brasileiro, foi o nosso principal estudioso da obra de Camões e Castro Alves.

Na sua História do Brasil revela ser um discípulo de um dos nossos maiores historiadores: Capistrano de Abreu. E de fato, compartilhava alguns pontos de vistas comuns ao autor do Capítulos da História Colonial.

Por exemplo, foi um crítico das bandeiras paulistas, ao vê-las essencialmente como atividade fora da legalidade e desumana. Do ponto de vista institucional, estava correto: desde 1605, quando emergem as bandeiras, a Coroa proclama os índios como livres e em 1609 são os nativos equiparados aos colonos, tendo os jesuítas como curadores.

Obviamente, a crítica de Peixoto e de Capistrano em relação às bandeiras não guarda a mais pálida semelhança com iniciativas como a do ataque da estátua do Borba Gato promovida há dois anos pelo setor da esquerda vinculada às ongs estrangeiras. O atual ataque à memória dos bandeirantes é antes de tudo um movimento de propaganda ideológica de destruição do patrimônio imaterial do Brasil:  aniquilamento do passado e da nossa identidade como um primeiro passo para o aprofundamento da espoliação e saque das riquezas nacionais, materializadas principalmente na proposta de internacionalização da Amazônia e balcanização do país, conquanto foram as bandeiras que lançaram as bases da ocupação e consolidação das nossas fronteiras.

Peixoto não deixa de reconhecer a importância das bandeiras na configuração do nosso território e para a estruturação da nossa unidade linguística e cultural. Era porém simpático aos jesuítas que objetivamente se colocavam em oposição aos sertanistas, o que provavelmente explica a antipatia com os bandeirantes. Via as missões jesuíticas como um esteio da civilização não só dos índios, mas dos colonos de vida desregrada: compreendia, em todo o caso, a complexidade do problema e não deixou de reconhecer os méritos das entradas e bandeiras.    

“Essas entradas e bandeiras para descer índios escravos e devassar o sertão em busca de minas, dão endereço ao Brasil colonial predador, agrário, criador e mineiro. Os objetivos saíram um dos outros e misturaram-se. Eles trouxeram a consequência da integração do país além do litoral possuído.

(...)

As entradas despovoadoras, captando o índio, deixavam estradas no deserto, para a civilização: evidentemente o manso processo colonizador dos Jesuítas, de José Bonifácio, do General Rondon, seria preferível: mas a violência dos bandeirantes tem justificações de Varnhagen, de Von Ihering e de todos os coloniais europeus com os povos bárbaros. Aliás nem sempre eles, selvagens, têm a docilidade resignada. O mundo é dos capazes; é a lei de ferro da natureza e da civilização. O mesmo santo e doce Anchieta chegava à exasperação, para catequizar o índio: dizia que para este gênero de gente não há melhor pregação do que a espada e vara de ferros”. (pg. 108/109)

Vê-se portanto que é possível ter uma posição crítica sobre o problema das bandeiras sem com isso levar adiante uma campanha antinacional de destruição da memória brasileira.

Outro aspecto que faz esta História do Brasil estar a anos luz de distância das mais recentes tendências historiográficas diz respeito à centralidade que o Autor dá ao português na constituição do Brasil, ao passo que hodiernamente tem sido o elemento lusitano basicamente desqualificado como um invasor inoportuno e um genocida de índios.

Os capítulos iniciais do ensaio de Peixoto tratam dos primeiros empreendimentos da navegação portuguesa desde 1415 quando da Tomada de Ceuta por Dom João I: o papel dos portugueses é o de derramar a cultura mediterrânea pelo mundo através da navegação, considerando o historiador que as comunicações são  a causa primeira da civilização: nestes contatos, a convivência multiplica ações e reações psicológicas, que se tornam experiências e colaborações inovadoras e afinam o homem em sentimento, inteligência, vontade, como fazem iniciativas, empresas e progresso social.” (Pg. 6).

Gradualmente, os navegadores portugueses vão circunscrevendo o continente Africano como meio alternativo de rota às Índias, o que se tornou necessário particularmente depois da impossibilidade de prosseguimento da via tradicional pela tomada de Constantinopla pelos Turcos em 1453.

Em 1444, Denis Dias atinge o Cabo Verde e no ano sequente Nuno Tristão descobre a Senegâmbia. Em 1469 dá-se a descoberta do golfo da Guiné. Em 1488, Bartolomeu Dias dobra o Cabo da Boa Esperança. Finalmente, Vasco de Gama torna-se o primeiro europeu a atingir a Índia atravessando os oceanos Atlântico e Índico, quando chegou a Calicute, em 20 de maio de 1498, abrindo assim o caminho para as Índias. E, finalmente, em 22 de abril de 1500, numa quarta feira à tarde, Pedro Álvares Cabral avista o Brasil, atingindo o território onde hoje se situa a cidade de Porto Seguro/BA.

Afrânio Peixoto muito propriamente diz ser mais apropriado falar em “achamento” e não “descobrimento” do Brasil. O verbo achar remete à ideia de algo que sabemos existir, mas não sabemos exatamente onde a coisa está. E todas as evidências documentais revelam que antes de 1500 ao menos já se desconfiava da existência do território onde hoje se situa o Brasil.

A própria data da assinatura do Tratado de Tordesilhas, que se deu em 1494, reforça a tese. O tratado não só dividiu entre Portugal e Espanha as terras recém descobertas como “terras a se descobrir”. Fato curioso, e pouco ensinado na escola, é que a própria linha de demarcação, feita seis anos antes da expedição de Cabral, já envolve parte do território brasileiro, como se vê no mapa abaixo descrito:

 

Outra forte evidência do conhecimento do território antes da chegada de Cabral dá-se quando da expedição de Martim Afonso de 1530 para reconhecimento do território, exploração e defesa. Na expedição foram localizados portugueses degredados que possivelmente já aqui estavam antes de Pedro Álvares Cabral. Os mais conhecidos são João Ramalho, patriarca de São Paulo e Caramuru, o seu equivalente baiano, além do bacharel de Cananeia, todos eles possivelmente já estabelecidos aqui antes do 1500. Muito provavelmente, a expedição de Cabral seria o ato de consumação formal da tomada do território: é a certidão de nascimento ou o momento em que nasceu o Brasil oficialmente.

Afrânio Peixoto, ao prefaciar o seu livro, diz ainda não haver, em meados do século XX, uma efetiva História do Brasil. Ele fala em meio milhão de documentos, no arquivo Colonial, em Lisboa, à espera dos pesquisadores.

O que tínhamos até então, segundo o intelectual baiano, são “ensaios” subscritos por aqueles que até hoje melhor escreveram a nossa história: desde Varnhagen, passando por Capistrano de Abreu, Afonso de Taunay, Pedro Calmon e, na história econômica, Simonsen.

Quando se coteja esses grandes pensadores do Brasil com o que tem sido produzido e divulgado em termos de História do Brasil atualmente, temos que concordar com essa tese: a História do Brasil ainda está para ser escrita.

domingo, 7 de janeiro de 2024

As Limitações Constitucionais ao Direito de Propriedade

 As Limitações Constitucionais ao Direito de Propriedade


 


O direito de propriedade é constitucionalmente reconhecido pelo artigo 5º, inciso XXII, que de forma bastante concisa diz ser “ [é] garantido o direito de propriedade”. Contudo, o inciso subsequente do mesmo artigo 5º estabelece um limite geral ao pleno exercício desse direito, vale dizer: “a propriedade atenderá sua função social.”

É da tensão entre o pleno exercício do direito à propriedade e às exigências da coletividade que exsurge as modalidades da intervenção do Estado na propriedade.

Trata-se da relativização do direito à propriedade, cujas hipóteses apenas podem estar determinadas pela própria Constituição Federal, sendo digno de mencionar que mesmo os direitos fundamentais não podem ser entendidos como absolutos. Se o mais absoluto dos direitos, que é o direito à vida, pode ser excepcionado em casos de legítima defesa ou aborto legal, certamente não seria diferente com o direito de propriedade.

A limitação se dá não só nos casos em que a exercício da propriedade não atenda à sua função social mas também em situações em que deve prevalecer o interesse público sobre o interesse do particular.

No que tange às limitações do direito de propriedade decorrentes do não cumprimento da sua função social, pode-se citar a desapropriação para fins de reforma agrária (artigo 184) e a expropriação, que é a tomada da propriedade do particular pelo Estado, sem direito à indenização, onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração do trabalho escravo (artigo 243). Diferentemente da desapropriação, que sempre envolve indenização ao particular.

Já no que toca às limitações do direito de propriedade decorrentes do princípio da supremacia do interesse público, pode-se do tombamento, da servidão administrativa, da requisição administrativa, da limitação administrativa, da ocupação temporária e de algumas espécies da desapropriação.  

A modalidade mais drástica da intervenção do estado na propriedade é a desapropriação, pela qual o Estado retira um bem do patrimônio do particular de forma compulsória e o transfere para o patrimônio estatal.

Trata-se de um meio de aquisição originária de propriedade, pela qual o Estado se torna proprietário do bem livre e desembaraçado de ônus e dívidas. Havendo débitos tributários do imóvel, elas deverão ser deduzidas da indenização devida ao proprietário.

Via de regra, na desapropriação, a indenização dever ser prévia, justa e em dinheiro. Mas a regra geral comporta pelo menos três exceções.

Uma delas, já mencionada acima, é a expropriação do imóvel onde há trabalho escravo ou cultivo de drogas. Neste caso, não há qualquer indenização pela perda da propriedade ao particular.

Há ainda duas outras exceções: (i) a desapropriação para fins de reforma agrária não será prévia e paga em dinheiro, mas paga através de títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão (artigo 184); (ii) a desapropriação extraordinária urbanística dos municípios, quando a edificação não atender ao Plano Diretor e às diretrizes urbanas da cidade, sendo que, neste caso, a indenização é feita por títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas (artigo 182 § 4º).

Nota-se que as três exceções da regra geral de indenização prévia e em dinheiro na desapropriação envolvem situações em que há previamente um exercício abusivo do direito de propriedade pelo particular.  

Na expropriação, pelo uso do imóvel para atividade ilícita (cultivo de droga ou trabalho escravo).

Na desapropriação para fins de reforma agrária, quando não se observa a função social da terra, não sendo autorizada tal desapropriação quando a terra for produtiva ou quando se tratar de pequena e média propriedade, neste último caso desde que se trate do único bem imóvel do titular.

 

E, por fim, na desapropriação extraordinária urbanística, quando o proprietário subutilize, não utilize ou não promova o adequado uso do bem. Sendo ainda válido ressalvar: (i) esta modalidade de desapropriação é exclusiva dos municípios; (ii) a desapropriação é medida subsidiária e só possível depois de sucessivamente se intentar, primeiro o parcelamento ou edificação compulsório e, depois, a instituição de IPTU progressivo no tempo (artigo 182, § 4º, incisos I, II e III.).

Nota-se que no ordenamento jurídico, a desapropriação é medida extrema e de caráter excepcional, mais relacionada às premissas jus filosóficas oriundas do liberalismo, e menos relacionadas a orientações políticas de tipo socialistas. A regra geral é a de que os direitos individuais se sobreponham ao raio de ação do Estado, que apenas de forma pontual e em situações expressamente determinadas na Constituição, poderá fazer valer o seu poder de limitar o exercício da propriedade privada, sempre em favor da coletividade e indenizando o indivíduo, como meio de não autorizar uma distribuição não equânime dos encargos sociais.  

Além da desapropriação, há formas mais brandas de intervenção do Estado na propriedade, pela qual não há a perda total do domínio pelo particular mas uma limitação do exercício de alguns dos poderes inerentes à propriedade.

É o caso da servidão administrativa, que permite a utilização da propriedade imóvel privada, em caráter de perpetuidade, para execução de obras ou serviços de interesse coletivo. A instalação de um gaseoduto por debaixo de uma propriedade de um particular pode ser citada como um exemplo dessa espécie de intervenção.

Outro exemplo comum é o da ocupação temporária: esta, ao contrário da servidão, é fixada por prazo determinado, sem regime de urgência, para a execução de uma obra pública ou a prestação de um serviço público. Pode ser citado como exemplo a utilização de uma escola privada para alocação de urnas e pessoas para promoção das eleições.

 Há igualmente a requisição administrativa, também temporária, mas instituída em caráter de urgência diante de perigo iminente. No caso de um desastre natural, a propriedade de um particular pode ser requisitada para servir de abrigo às vítimas do evento. Por se tratar de medida de urgência, a requisição administrativa pode ser implementada com base no Poder de Polícia, independentemente de consentimento do particular ou de autorização judicial.

As tensões entre o direito de propriedade, o cumprimento da função social da propriedade e a prevalência do interesse público sobre o privado se resolvem através das várias espécies de intervenção  estatal na propriedade, estudadas no Direito Administrativo.

As condições em que elas podem ser impostas necessariamente estão determinadas na própria Constituição Federal, cabendo à lei apenas regulamentar a execução do direito à intervenção pelo Estado. Sendo ainda válido pontuar que, via de regra, o judiciário está impedido de apreciar e julgar a conveniência e oportunidade do decreto de utilidade pública, ou seja, adentrar no mérito administrativo acerca da decisão da administração de intervir na propriedade do particular, sob pena de violação ao princípio de separação de poderes.

 

Quadro: Saturno a devorar o seu filho (Saturn Devouring His Son) Francisco Jose de Goya y Lucientes

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

TUTELA CONSTITUCIONAL DAS LIBERDADES: REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS

 TUTELA CONSTITUCIONAL DAS LIBERDADES: REMÉDIOS CONSTITUCIONAIS



 

A noção de Estado Democrático de Direito está indissociavelmente ligada à concretização efetiva e imediata dos direitos fundamentais, assim entendida como a implementação em níveis reais de igualdade e liberdade.

Um dos instrumentos colocados à disposição dos indivíduos para salvaguarda dos seus direitos fundamentais, o que envolve não apenas o exercício desses direitos mas a salvaguarda do cidadão em face dos abusos do Estado, é aquilo que na doutrina se convencionou chamar de “Remédios Constitucionais”.

Trata-se de medidas judicias e administrativas que essencialmente têm o objetivo de atacar atos ilegais ou abusivos praticados pelo Poder Público.

No âmbito administrativo, pode-se falar do direito de petição e do direito de certidão.

O direito de petição encontra previsão expressa no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a” da CF/88:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.

O direito de petição consiste no direito do cidadão formular uma queixa ou requerimento não jurisdicional perante o Estado, sempre de forma gratuita, ou seja, sem a exigência de pagamento de taxas.

O direito de certidão dá ao indivíduo a certeza de poder obter documento emitido pelo Poder Público que comprove algo ao seu respeito. A certidão também deve ser fornecida gratuitamente, sem exigência de taxa, e abrange documentos para a defesa de direitos e obtenção de esclarecimentos sobre situações de interesse pessoal do indivíduo.

No âmbito jurisdicional, os remédios constitucionais consistem em: habeas corpus, habeas data, mandado de segurança e mandado de injunção.

HABEAS CORPUS

O habeas corpus tutela a liberdade de locomoção, o que compreende o direito de ir, vir e de permanecer. Trata-se de uma ação de natureza penal, de procedimento especial, e gratuita, sendo possível propor a medida independentemente de capacidade postulatória, ou seja, sem necessidade de constituir advogado.

O HC limita-se a tutelar o direito de locomoção.

Por isso, de acordo com o STF, a medida não é cabível para combater ilegalidade ou abuso de direito que não enseje algum tipo de coação ou ameaça ao direito de ir e vir. Veja-se os seguintes exemplos: não cabe HC quando extinta a pena privativa de liberdade (Súmula 695); não cabe HC  contra decisão condenatória em que apenas há a imposição da pena de multa pecuniária (Súmula 694); não cabe HC contra ato normativo em tese (STF, HC 90.364).

HABEAS DATA

O habeas data garante ao interessado o direito ao conhecimento de informação e retificação de dados relativos sempre a sua própria pessoa. Vale dizer: a medida não tem cabimento para assegurar o conhecimento de informações de terceiros, mas sempre relativos ao próprio impetrante.

Também é uma ação gratuita, sem exigência de taxa, e  de rito sumário. Contudo, o interesse processual está condicionado à demonstração de que o interessado anteriormente suscitou pedido de acesso aos dados no âmbito administrativo, como determina a Súmula 2 do STJ: “Não cabe o habeas data (CF, art. 5, LXXII, letra "a") se não houve recusa de informações por parte da autoridade administrativa.”.

O terceiro e um dos remédios constitucionais mais conhecidos consiste no mandado de segurança, que será concedido para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.

Direito líquido e certo é aquele que se apresenta de plano, mediante prova documental pré constituída.

O direito deve ser demonstrado de plano, não se autorizando no procedimento a produção de provas técnicas. Frise-se que o direito líquido e certo diz respeito à matéria de fato e não sobre questões controvertidas de direito. Ou seja, os fatos alegados na petição inicial devem ser demonstrados de forma clara e imediata, por meio de prova documental pré constituída, mas o conhecimento do mandado de segurança não está condicionado à controvérsia  ou complexidade sobre a matéria de direito (Súmula 625 do STF).

O prazo decadencial para se impetrar o mandado de segurança é de 120 dias. Transcorrido o prazo, o interessado deverá socorrer-se de ação pelo procedimento comum.

MANDADO DE INJUNÇÃO

O mandado de injunção trata do suprimento de lacunas de normas que regulamentem direitos e prerrogativas constitucionais relacionadas à nacionalidade, soberania e cidadania. Sempre que houver alguma omissão do Poder Público em editar normas que inviabilizem o exercício das prerrogativas constitucionais, haverá a possibilidade de se servir do mandado de injunção.

A jurisprudência brasileira adota uma teoria concretista em relação ao mandado de injunção. Quando o pedido é acolhido, não haverá apenas a concessão de um prazo razoável para que o ente público promova a edição da norma regulamentadora. Há, além disso, a concretização efetiva do direito, mediante determinação judicial no sentido de estabelecer as condições em que se dará o exercício dos direitos, liberdades e prerrogativas reclamadas, caso o poder público não supra a mora legislativa.

 Há certamente a possibilidade de se discutir se a referida teoria concretista, ao garantir o exercício de direito sem edição de norma regulamentadora por decisão judicial, não ensejaria violação do princípio da separação de poderes.

A despeito da exigência de aplicação imediata dos direitos fundamentais, sua efetivação por meio de decisões judiciais, inclusive por juízo singular, tem como contrapartida o risco da promoção do ativismo judiciário.   

 Paulo Marçaioli | OAB/SP 431.751 | contato: paulomarcaioli@gmail.com

terça-feira, 2 de janeiro de 2024

“Diário de um Homem Supérfluo” – Ivan Turguêniev

 “Diário de um Homem Supérfluo” – Ivan Turguêniev




Resenha livro - “Diário de um Homem Supérfluo” – Ivan Turguêniev – Ed. 34 – Tradução Samuel Junqueira

Ivan Serguêievitch Turguêniev (1818-1883) nasceu na província de Oriol, na vasta propriedade rural de sua mãe, uma mulher autoritária e brutal, que exercia poder tirânico sobre os seus servos e filhos.

O primeiro livro do escritor, denominado “Memórias de um caçador” (1852) reúne contos de denúncia do regime de servidão, já consagrando de imediato o artista perante o público russo.

Neste mesmo ano de 1852, após a divulgação de um panfleto com críticas sociais, por ocasião do enterro do escritor Nikolai Gógol, Turgueniêv foi preso e depois confinado em sua propriedade rural por mais de um ano.

Não seria, contudo, correto, caracterizar a literatura do nosso escritor como um mero instrumento de crítica política.

O que caracteriza sua literatura é um realismo decorrente de estudo cuidadoso da vida comum e popular da Rússia, relacionados com elementos líricos e poéticos. Seus livros envolvem a combinação justa entre a beleza e a realidade na medida em que no escritor existe uma fusão entre um bom poeta e um bom observador.

De acordo com o escritor Harry James, que conheceu pessoalmente Turguêniev, o eixo fundamento das suas histórias era não tanto os enredos, mas a mais profunda representação das personagens.  

“A primeira forma em que um relato surgia para ele era na figura de um indivíduo, ou numa combinação de indivíduos, que ele desejava ver em ação, convicto de que tais pessoas deveriam fazer algo muito especial e interessante. Elas se erguiam à sua frente bem definidas, nítidas, e ele queria conhecer, e mostrar, o mais possível de sua natureza.”.

“Diário de um Homem Supérfluo” foi publicado em 1850, doze anos antes do seu mais famoso romance “Pais e Filhos” 1962.

Consta que o “Diário” não foi recepcionado bem pela crítica, e isso por uma razão simples: a história de Tchulkatúrin narrada em forma de diário foi totalmente alterada e modificada pela censura do czar Nicolau I (1796/1855) tornando o texto publicado totalmente incompreensível à luz do original.

O contexto histórico da Russa daquele período é importante para a compreensão do que o escritor entendia como “homem supérfluo”, no caso, o personagem representativo da intelectualidade daquele país de meados do XIX.

Em 1812, o czar Alexandre I realiza uma grande campanha patriótica para recrutamento de pessoas para a luta contra a invasão napoleônica. Membros de todas as classes sociais foram mobilizados, se tratando da primeira vez em que a sociedade russa se reuniu enquanto nação para engajamento na luta contra o inimigo externo.

A vitória sobre a França e a consequente marcha sobre Paris fez com que os jovens oficiais tivessem contato com a Europa ocidental, que, diferentemente da Rússia, já havia passado pelas Revoluções Liberais, nitidamente em 1789, quando se colocou um fim no regime absolutista. Ao passo que a queda do absolutismo na Rússia se daria apenas em fevereiro de 1917, na primeira etapa da Revolução Russa.

 

Esse acesso daqueles oficiais ao país vizinho europeu criou uma consciência na intelectualidade russa do seu atraso cultural, o que culminou na Revolução Dezembrista (1825) que unificou uma pequena nobreza instruída para um levante contra o regime czarista, exigindo reformas liberais, o fim da servidão e a adoção da constituição.

O homem supérfluo aparece pouco tempo depois: o movimento de 1825 foi massacrado (a abolição da servidão só ocorreria quase quarenta anos depois) e seus líderes foram levados à forca. Na sequência, o czar Nicolau I aumenta a censura e a perseguição política, especialmente a partir de 1845, diante do medo do influxo das revoluções europeias, também conhecidas como a Primavera dos Povos.

O homem supérfluo é o homem paralisado, incapaz de colocar os seus ideais em ação. Diante da feroz repressão do czar, a geração se formou no ceticismo, na amargura e no isolamento. Os valores humanitários aprendidos na Europa pareciam incompreensíveis aos russos. Trata-se de uma pequena aristocracia que se sentia estrangeira em seu próprio país.

O livro em comento corresponde a um diário escrito pelo homem supérfluo Tchulkatúrin, que dá início ao relato de sua vida num dia 20 de março, logo após seu médico informa-lo que sua doença é irremediável e que fatalmente irá morrer.

“O doutor acaba de sair da minha casa. Consegui, afinal, o que queria! Por mais que dissimulasse, não pôde, por fim, continuar escondendo. O certo é que morrerei em breve, muito em breve. Os rios descongelarão e é provável que eu me vá com a última neve.... para onde? Sabe Deus! Também para o mar. Pois bem! Se é para morrer, que seja na Primavera”.

O início da morte do protagonista coincide com o fim do inverno e início da primavera russas. Ou seja, no momento em que a natureza renasce, se inicia a trajetória da morte do homem supérfluo. A cada capítulo do diário, o protagonista percebe o degelo gradual da paisagem: sua vida triste vai se extinguindo aos poucos como o gelo do inverno Russo.  

Tratou-se tanto de uma vida como de uma morte tristes.

Morreu isolado num casebre caindo aos pedaços em meio aos resmungos intermináveis de uma velha criada, que desejava a sua morte veladamente para ficar com o pouco da herança de Tchulkatúrin, que morre sem filhos e sem parentes.

Ao escrever a sua história no Diário, o narrador chega à conclusão de ser um homem supérfluo, ou seja, que não se diferencia em nada de outras pessoas: uma vida de ocupações modestas e prazeres comedidos. Cumpre um papel inútil, de um mero figurante da vida. Compara-se, neste sentido, como um quinto cavalo amarrado numa carroça apenas movida por quatro animais. O não pertencimento à sociedade equipara-se àqueles jovens aristocratas influenciados por ideias liberais mas paralisados e acovardados diante da ditadura czarista.

Sua inabilidade para a tomada de ações contundentes se revela na paralisa perante a mulher que ama e a quem não é correspondido.

De maneira não premeditada, insulta um pretendente da mulher amada e é não intencionalmente lançado num duelo do qual se sai humilhado: não acerta o tiro no oponente que por sua vez, num ato de grandeza, deixa de mata-lo quando teve a oportunidade. Perdoa-o, e para completar a sua humilhação, o oponente ainda conquista o coração da mulher amada.

O homem supérfluo é um precursor de outros personagens da literatura russa, notadamente o protagonista de “Memórias do Subsolo” de Dostoievski. Além do tipo representativa dos intelectuais da época, o livro é uma grande reflexão sobre a morte: as recordações antes do momento final são como cutucar uma ferida, ou seja, pode tanto proporcionar prazer como dor.

Imagem: Gustave Geffroy, 1895 por Paul Cezanne (1839-1906, France)