“Diário de um Homem Supérfluo” – Ivan Turguêniev
Resenha livro - “Diário de um Homem Supérfluo” – Ivan Turguêniev – Ed.
34 – Tradução Samuel Junqueira
Ivan Serguêievitch Turguêniev (1818-1883) nasceu na província de Oriol,
na vasta propriedade rural de sua mãe, uma mulher autoritária e brutal, que
exercia poder tirânico sobre os seus servos e filhos.
O primeiro livro do escritor, denominado “Memórias de um caçador” (1852)
reúne contos de denúncia do regime de servidão, já consagrando de imediato o
artista perante o público russo.
Neste mesmo ano de 1852, após a divulgação de um panfleto com críticas
sociais, por ocasião do enterro do escritor Nikolai Gógol, Turgueniêv foi preso
e depois confinado em sua propriedade rural por mais de um ano.
Não seria, contudo, correto, caracterizar a literatura do nosso escritor
como um mero instrumento de crítica política.
O que caracteriza sua literatura é um realismo decorrente de estudo
cuidadoso da vida comum e popular da Rússia, relacionados com elementos líricos
e poéticos. Seus livros envolvem a combinação justa entre a beleza e a
realidade na medida em que no escritor existe uma fusão entre um bom poeta e um
bom observador.
De acordo com o escritor Harry James, que conheceu pessoalmente
Turguêniev, o eixo fundamento das suas histórias era não tanto os enredos, mas
a mais profunda representação das personagens.
“A primeira forma em que um relato surgia para ele
era na figura de um indivíduo, ou numa combinação de indivíduos, que ele
desejava ver em ação, convicto de que tais pessoas deveriam fazer algo muito
especial e interessante. Elas se erguiam à sua frente bem definidas, nítidas, e
ele queria conhecer, e mostrar, o mais possível de sua natureza.”.
“Diário de um Homem Supérfluo” foi publicado em 1850, doze anos antes do
seu mais famoso romance “Pais e Filhos” 1962.
Consta que o “Diário” não foi recepcionado bem pela crítica, e isso por
uma razão simples: a história de Tchulkatúrin narrada em forma de diário foi
totalmente alterada e modificada pela censura do czar Nicolau I (1796/1855)
tornando o texto publicado totalmente incompreensível à luz do original.
O contexto histórico da Russa daquele período é importante para a
compreensão do que o escritor entendia como “homem supérfluo”, no caso, o
personagem representativo da intelectualidade daquele país de meados do XIX.
Em 1812, o czar Alexandre I realiza uma grande campanha patriótica para
recrutamento de pessoas para a luta contra a invasão napoleônica. Membros de
todas as classes sociais foram mobilizados, se tratando da primeira vez em que
a sociedade russa se reuniu enquanto nação para engajamento na luta contra o
inimigo externo.
A vitória sobre a França e a consequente marcha sobre Paris fez com que
os jovens oficiais tivessem contato com a Europa ocidental, que, diferentemente
da Rússia, já havia passado pelas Revoluções Liberais, nitidamente em 1789, quando
se colocou um fim no regime absolutista. Ao passo que a queda do absolutismo na
Rússia se daria apenas em fevereiro de 1917, na primeira etapa da Revolução
Russa.
Esse acesso daqueles oficiais ao país vizinho europeu criou uma
consciência na intelectualidade russa do seu atraso cultural, o que culminou na
Revolução Dezembrista (1825) que unificou uma pequena nobreza instruída para um
levante contra o regime czarista, exigindo reformas liberais, o fim da servidão
e a adoção da constituição.
O homem supérfluo aparece pouco tempo depois: o movimento de 1825 foi
massacrado (a abolição da servidão só ocorreria quase quarenta anos depois) e
seus líderes foram levados à forca. Na sequência, o czar Nicolau I aumenta a
censura e a perseguição política, especialmente a partir de 1845, diante do
medo do influxo das revoluções europeias, também conhecidas como a Primavera
dos Povos.
O homem supérfluo é o homem paralisado, incapaz de colocar os seus
ideais em ação. Diante da feroz repressão do czar, a geração se formou no
ceticismo, na amargura e no isolamento. Os valores humanitários aprendidos na
Europa pareciam incompreensíveis aos russos. Trata-se de uma pequena
aristocracia que se sentia estrangeira em seu próprio país.
O livro em comento corresponde a um diário escrito pelo homem supérfluo Tchulkatúrin,
que dá início ao relato de sua vida num dia 20 de março, logo após seu médico informa-lo
que sua doença é irremediável e que fatalmente irá morrer.
“O doutor acaba de sair da minha casa. Consegui,
afinal, o que queria! Por mais que dissimulasse, não pôde, por fim, continuar
escondendo. O certo é que morrerei em breve, muito em breve. Os rios
descongelarão e é provável que eu me vá com a última neve.... para onde? Sabe
Deus! Também para o mar. Pois bem! Se é para morrer, que seja na Primavera”.
O início da morte do protagonista coincide com o fim do inverno e início
da primavera russas. Ou seja, no momento em que a natureza renasce, se inicia a
trajetória da morte do homem supérfluo. A cada capítulo do diário, o
protagonista percebe o degelo gradual da paisagem: sua vida triste vai se
extinguindo aos poucos como o gelo do inverno Russo.
Tratou-se tanto de uma vida como de uma morte tristes.
Morreu isolado num casebre caindo aos pedaços em meio aos resmungos
intermináveis de uma velha criada, que desejava a sua morte veladamente para
ficar com o pouco da herança de Tchulkatúrin, que morre sem filhos e sem
parentes.
Ao escrever a sua história no Diário, o narrador chega à conclusão de
ser um homem supérfluo, ou seja, que não se diferencia em nada de outras
pessoas: uma vida de ocupações modestas e prazeres comedidos. Cumpre um papel
inútil, de um mero figurante da vida. Compara-se, neste sentido, como um quinto
cavalo amarrado numa carroça apenas movida por quatro animais. O não
pertencimento à sociedade equipara-se àqueles jovens aristocratas influenciados
por ideias liberais mas paralisados e acovardados diante da ditadura czarista.
Sua inabilidade para a tomada de ações contundentes se revela na
paralisa perante a mulher que ama e a quem não é correspondido.
De maneira não premeditada, insulta um pretendente da mulher amada e é
não intencionalmente lançado num duelo do qual se sai humilhado: não acerta o
tiro no oponente que por sua vez, num ato de grandeza, deixa de mata-lo quando
teve a oportunidade. Perdoa-o, e para completar a sua humilhação, o oponente
ainda conquista o coração da mulher amada.
O homem supérfluo é um precursor de outros personagens da literatura
russa, notadamente o protagonista de “Memórias do Subsolo” de Dostoievski. Além
do tipo representativa dos intelectuais da época, o livro é uma grande reflexão
sobre a morte: as recordações antes do momento final são como cutucar uma
ferida, ou seja, pode tanto proporcionar prazer como dor.
Imagem: Gustave Geffroy, 1895 por Paul Cezanne (1839-1906, France)
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