terça-feira, 5 de julho de 2022

“Os Contos de Lima Barreto”

 “Os Contos de Lima Barreto”




 

Resenha Livro – “O Homem Que Sabia Javanês e Outros Contos” – Lima Barreto – Ed. Principis

 

“Sofrimentos de toda a ordem caíram sobre o pobre povo da roça e do sertão; privações de toda a natureza caíram sobre ele; e colaram-lhe a fria sanguessuga, a ventosa dos impostos, cujo produto era empregado diretamente, num fausto governamental de opereta, e, indiretamente, numa ostentação ridícula de ricos sem educação nem instrução. Para benefício geral, nada!

 

A Bruzunganga era um sarcófago de mármore, ouro e pedrarias, em cujo seio, porém, o cadáver mal embalsamado do povo apodrecia e fermentava.

 

De norte a sul, sucediam-se epidemias de loucuras, umas maiores, outras menores. Para debelar uma, foi preciso um verdadeiro exército de vinte mil homens. No interior era assim; nas cidades, os hospícios e asilos de alienados regurgitavam. O sofrimento e a penúria levavam ao álcool, “para esquecer”; e o álcool levava ao manicômio”.  (“O Falso Henrique V – Episódio da História de Bruzundanga” – Lima Barreto).

 

Afonso Henrique de Lima Barreto nasceu no ano de 1881, mesmo ano, por sinal, do nascimento de Monteiro Lobato e sete anos antes da abolição da escravatura no Brasil.

 

Como se sabe, Lima Barreto foi escritor que não teve o devido reconhecimento do público até a sua morte precoce aos 41 anos de idade, de colapso cardíaco, após constantes crises de depressão e duas internações no Hospício Nacional (em 1914 e em 1919) pelo uso abusivo de bebida alcóolica.

 

Monteiro Lobato foi um dos poucos àquele tempo que já reconhecia plenamente o talento de seu colega escritor carioca: há uma carta do escritor de Taubaté de data de 01/10/1916 endereçada à Godofredo Rangel em que Lobato tece fortes elogios a Lima Barreto, na época solenemente ignorado pela elite intelectual do país por puro preconceito racial.

 

De uma certa maneira, a literatura regionalista de Lobato, retratada nos seus contos para público adulto em livros como “Urupês” e “Cidades Mortas”, teria o mesmo enfoque sobre as condições de vida dos extratos mais baixos da sociedade Brasileira da Velha República.

 

No caso de Lobato, o caipira vexado de doenças causadas pela insalubridade e pelo abandono governamental.

 

No caso de Barreto, esta ênfase se dá em torno das populações do subúrbio carioca, envolvendo tipos populares como o funcionário público de baixo escalão, vendedores ambulantes, vadios de toda a espécie e os demais trabalhadores livres e pobres da cidade do Rio de Janeiro.

 

Nos dois casos, foram precursores do romance social e regionalista da geração de 1930: Rachel de Queiroz, Graciano Ramos, José Lins do Rego, etc.

 

A temática da ascensão social condicionada aos favores e ao nepotismo é frequente na literatura limabarretiana:

 

“Na secretaria dos Cultos, o seu típico e célebre ‘auxiliar de gabinete’ arranjou o sogro dos seus sonhos, num antigo professor do seminário, pessoa muito relacionada com padres, frades, sacristãos, irmãs de caridade, doutores em cânones, definidores, fabriqueiros, fornecedores e mais pessoa eclesiástico.

O sogro ideal, o antigo professor, ensinava no seminário uma física muito própria aos fins do estabelecimento, mas que havia de horripilar o mais medíocre aluno de qualquer estabelecimento leigo.

Tinha ele uma filha a casar e o ‘auxiliar de gabinete’ logo viu, no seu casamento com ela, o mais fácil caminho para arranjar uma barrigazinha estufadinha e uma bengala de ouro.”. (“Três gênios de secretaria”).

 

Esta lógica do favorecimento pessoal caminha pari passo com a mediocridade intelectual de um punhado de bacharéis e jornalistas, adoradores da forma naquilo que havia de pior no parnasianismo, cujo conhecimento não se media pela sua coerência, clareza e correção, mas pelo diploma universitário e pelo favor.  

 

Nas palavras do escritor carioca, o bacharel dá-se a importância de uma sumidade em qualquer departamento do pensamento humano, ao mesmo tempo que odeia os rábulas e os não formados.

 

O próprio Lima Barreto dependeu da proteção pessoal do Visconde de Ouro Preto, que empregara o pai na Imprensa Nacional, e garantiu que o filho matriculasse na Escola Politécnica. Lima Barreto frequentou o curso entre 1897 e 1903, abandonando a faculdade sem conclui-la.

 

Do ponto de vista político, a rebeldia do escritor aproximava-o dos maximalistas, fazendo-o elogiar a revolução russa, ao mesmo tempo que, contraditoriamente, odiava a república e encarava-a como um retrocesso em relação à monarquia.  

 

Nas palavras do escritor em 1918:

 

Precisamos deixar de panaceias: a época é de medidas radicais. Não há quem, tendo meditado sobre este estupendo movimento bolcheviquista (bolchevique), não lombrigue nele um alcance de universal amplitude sociológica”.

 

Ou em outro artigo:

 

“...cabe bem aos homens de coração desejar e apelar para uma convulsão violenta que destrone e dissolva de vez essa societas sceleris de políticos, comerciantes, industriais, prostitutas, jornalistas ad hoc, que nos saqueiam, nos esfaimam, emboscados atrás das leis republicanas. É preciso, pois não há outro meio de exterminá-la[1]”.

 

Em todo o caso, é nítido nos trabalhos de Lima Barreto o ressentimento pessoal do escritor, que em diversos trabalhos projeta suas dificuldades pessoais em personagens como Clara dos Anjos, vítima do racismo, como Policarpo Quaresma, vítima da politicagem da República ou Isaías Caminha, jornalista que convive com a mencionada “elite intelectual” completamente incapaz de deduzir ideias próprias e originais.

 

Contudo, este iconoclastia do escritor se expressava não pelo panfleto político, mas através do humor, da ironia e de uma certa melancolia, que se expressam na figura patética (engraçada e ao mesmo tempo triste) de seu mais famoso personagem, o patriota Policarpo Quaresma.

 

Nas palavras do crítico Alfredo Bosi, “tal duplicidade de planos, o narrativo (relato dos percalços do brasileiro em sua pátria) e o crítico (enfoque dos limites da ideologia) aviva de forma singular a personalidade literária de Lima Barreto, em que se reconhece a inteligência como força sempre atuante.”.

 

BIBLIOGRAFIA

 

BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cultrix.   



[1] “A CRÔNICA MILITANTE DE LIMA BARRETO” – Paulo Marçaioli – In: http://esperandopaulo.blogspot.com/2020/10/a-cronica-militante-de-lima-barreto.html

sábado, 2 de julho de 2022

“As Aventuras de Tibicuera” – Érico Verissimo

 “As Aventuras de Tibicuera” – Érico Verissimo





Resenha Livro - “As Aventuras de Tibicuera” – Érico Verissimo – Companhia das Letras – 6ª Reimpressão.

 

“O nosso espanto foi enorme. Abria-se na nossa frente a grande baía. Dentro dela, balançando-se de leve, estavam pousadas umas doze ou treze embarcações como nunca tínhamos visto em toda a nossa vida. Nós cortávamos os rios e o mar nas nossas igaras, barcos compridos e rasos, feitos em geral de troncos de árvores. Mas agora era diferente.... Tratava-se de barcos altos, compridos, largos, todos cheios de mastros, cordas, panos, bandeiras... Eu estava de boca aberta. Olhava muito admirado para as bandeiras coloridas que ondulavam ao vento no cordame dos navios. E só cem anos depois é que eu iria aprender que aquela era a frota portuguesa que descobria o Brasil! Naquela hora não existia Brasil, mas sim a nossa terra, por nós chamada Pindorama – terra boa e grande, onde nossa tribo e muitas outras corriam livres, acampando aqui e ali, caçando, pescando, dançando, guerreando.”.

 

“As Aventuras de Tibicuera” (1937) é um dos muitos livros destinados ao público infantojuvenil escrito pelo romancista gaúcho Érico Verissimo.

 

O romance faz uma síntese da história do Brasil, desde os anos anteriores à chegada dos Portuguesas, partindo de uma tribo tupinambá, em que nasceu o protagonista Tibicuera, cujo nome significa “cemitério”:

 

“Nasci na taba duma tribo tupinambá. Sei que foi numa meia-noite clara, de lua cheia. Minha mãe viu que eu era magro e feio. Ficou triste mas não disse nada. Meu pai resmungou:

- Filho fraco. Não presta para a guerra.”.  

 

Da chegada dos Portugueses, passa-se aos primeiros momentos da colonização, a evangelização dos índios conduzida pelos jesuítas, que ensinam Tibicuera a ler e escrever, possibilitando escrever suas memórias.

 

Sua vida de 400 e tantos anos não decorre de uma fantasia, que em literatura se trata como “realismo fantástico”, mas da noção indígena de que existe um fio  condutor, uma sequencia e permanência entre a vida e existência de Tibicuera, seus filhos, netos, bisnetos, tataranetos, que, sucessivamente, participam dos grandes eventos do Brasil: a guerra de expulsão dos holandeses, a inconfidência mineira, as guerras de independência do Brasil, as revoltas regenciais, a campanha abolicionista, a proclamação da república.

 

Esta história panorâmica desmente um certo senso comum (sem nenhum fundamento na realidade) de que o povo brasileiro é pacato e pacífico e, por conseguinte, não engajado em lutas sociais com horizontes revolucionários.

 

Se a característica fundamental do índio Tupinambá é o seu traço guerreiro, sua disposição para a luta e para a guerra, temos que a história do protagonista é um constante engajamento em torno das mais diversas lutas de resistência do Brasil.

 

O próprio Tibicuera confessa a todo momento gostar de guerras, ainda que em certos momentos se aborrecesse dos conflitos e buscasse a paz dos livros e das bibliotecas.

 

O protagonista conheceu pessoalmente Tiradentes e Zumbi dos Palmares, com quem lutou e apenas não tombou heroicamente, para poder sobreviver e contar as suas memórias, que são a história do Brasil:

 

“O quilombo dos Palmares era formado por vários núcleos. Passei entre os pretos daqueles aldeamentos alguns anos bem felizes. Havia ali muita ordem e muita paz. Eu gostava de ver as danças, as cantigas, as festas dos quilombolas. Eles se enfarpelavam da maneira mais curiosa, pintavam-se de jeito muito engraçado, de sorte que era um espetáculo divertido vê-los em dia de festa.

 

Às vezes, certas noites, eu ficava de papo para o ar, olhando para as estrelas, pensando na vida e ouvindo a cantiga arrastada, preguiçosa e tristonha dos filhos da África. Quando eles paravam, ficava só o cochicho do vento que contava às palmeiras segredos de outros mundos.”.


Nos momentos de paz, leu os românticos e conheceu no Rio de Janeiro Machado de Assis, o maior escritor brasileiro de todos os tempos!




SOBRE O AUTOR

 

Érico Veríssimo nasceu em Cruz Alta no Rio Grande do Sul no ano de 1905.

 

Quando jovem, foi bancário e sócio de farmácia.

 

Sua estreia literária foi na Revista do Globo, com o conto “Ladrão de gado”. A partir de 1930, já radicado em Porto Alegre, tornou-se redator da revista, iniciando sua carreira de romancista, com trabalhos que se caracterizam por um realismo regionalista, tratando especialmente da história do Rio Grande do Sul, ainda que não se limitando a temas nacionais.

 

Neste sentido, escreveu livros como “O senhor embaixador” (1965) ambientado num hipotético país do Caribe que lembra Cuba. Ou, podemos citar ainda “O prisioneiro”, uma parábola sobre a intervenção dos Estados Unidos no Vietnã.

 

O escritor faleceu em Porto Alegre no ano de 1905.