sábado, 30 de outubro de 2021

SOBRE O ROMANCE “ABDIAS” DE CYRO DOS ANJOS

 SOBRE O ROMANCE “ABDIAS” DE CYRO DOS ANJOS




 

Resenha Livro - “Abdias” – Cyro dos Anjos – Livraria José Olympio Editora

 

“Vivemos num mundo imaginário, construído segundo os conceitos apriorísticos que formamos das pessoas e coisas que nos cercam. Neste sentido, a vida será efetivamente como um sonho. Veremos as coisas não como são mas conforme nosso espírito as concebe. Muitas vezes nos é dado, no curso dos dias, retificar alguns desses erros do conhecimento. Mas quantos outros, e às veze substanciais, nos acompanharão até a morte?”.

 

SOBRE O AUTOR

                                                                     

Cyro Versaini dos Anjos nasceu em 5 de Outubro de 1906 na cidade de Montes Claros/MG. É um dos muitos exemplos representativos de uma bela tradição escritores mineiros: Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e, mais recentemente, Fernando Sabino, produziram obras não necessariamente regionalistas, mas que trazem nos seus textos referências ao seu Estado natal.

 

Cyro dos Anjos permaneceu em Montes Claros até os 18 anos. Naquela cidade, iniciou os estudos numa Escola Normal e ainda jovem teve contato com Machado de Assis, Eça de Queiróz e Camilo Castelo Branco. Como veremos na análise do romance, não são poucos os críticos que ressaltam um tom tipicamente machadiano nas confissões de “Abdias” e do “Amauense Belmiro”.

 

Em 1924, nosso escritor fixou-se em Belo Horizonte onde começou a trabalhar como jornalista, além de iniciar o curso de Direito, concluindo a graduação em 1932.

 

Na imprensa mineira, Cyro dos Anjos escreveu no Diário da Tarde (1927), Diário do Comércio (1928), Diário da Manhã (1929), Diário de Minas (1929/1930), além de contribuído no “A Tribuna” (1932) sob o pseudônimo de Belmiro Borba, produzindo as crônicas que seriam o germe do seu primeiro livro, “O Amanuense Belmiro” (1937).   

 

Faleceu em 4 de Agosto de 1994 na cidade do Rio de Janeiro.

 

ABDIAS

 

Este é o segundo livro do nosso romancista, publicado em 1945. Nas palavras do próprio narrador, se trata de um “caderno de confissões” de um professor de letras e diretor do Arquivo Histórico na cidade de Belo Horizonte.

 

O romance é efetivamente escrito na forma de um diário íntimo em que Abdias, homem de 40 anos, casado e pai de três filhos, relata o seu ingresso como professor de literatura brasileira num Liceu ou, como se dizia antigamente, Escola Normal. Tratava-se de instituições de ensino exclusiva para as mulheres, neste caso dirigido por freiras de origem francesa.

 

A despeito de a história decorrer de um diário pessoal, não se verifica no estilo literário a subjetividade típica de uma confissão e muito menos o sentimentalismo. Pelo contrário, o autor busca a fidelidade da exposição, inclusive se corrigindo quando deixa transparecer palavras desnecessárias ou retóricas, sempre conduzindo a narrativa dentro de um certo realismo literário, que efetivamente remete a esta escola literária:

 

“O amor é uma forma de loucura e, como a loucura, tem alternativas: agrava-se subitamente hoje, amanhã se atenua sem sabermos por quê. No estado em que ontem me achava, teria sido capaz de pôr fogo a uma cidade, só para ver Gabriela. Mau... Começo a usar da linguagem hiperbólica dos namorados. Há nisso, sem dúvida, espantoso exagero. Por certo, eu não atearia fogo nem a um monte de alfafa.”. (Fls. 290).

 

Como professor de letras, Abdias conhece Gabriela, uma graciosa normalista filha da tradicional família de políticos de sua cidade natal, em Várzea dos Buritis. Mesmo casado e com idade para ser o pai aluna, gradualmente Abdias vai deixando-se tomar pelo coração até o ponto de acreditar amar a estudante e, nos recônditos da consciência, onde predomina o egoísmo, desejar a morte de sua dedicada esposa Carlota.

 

A história se passa nos anos 30 e em algumas passagens o autor lança luz sobre este contexto histórico de ascensão do nazismo e risco iminente de deflagração da Guerra Mundial.

 

Com a Guerra Civil Espanhola em curso, ainda havia, no meio intelectual frequentado por Abadias, a crença de que Inglaterra e França seriam capazes de deter o expansionismo alemão.

 

O professor, pessoalmente, não compartilhava destas ilusões:

 

“Respondi que, infelizmente, a coisa parecia apenas questão de tempo. A anexação da Áustria, os discursos do Herr Hitler, sua interferência na guerra civil da Espanha eram indícios de que já se preparara a máquina bélica para realizar o sonho germânico de conquista do mundo.”. (Fls. 278)

 

Talvez mais interessante do que o enredo e a trajetória dos fatos envolvendo Abadias, o livro certamente alcança o que há de mais alto na literatura brasileira por conta das sondagens psicológicas e de consciência do narrador.

 

Em Brás Cubas, Machado de Assis criou um “autor defunto” e “defunto autor” para que o narrador, livre do peso da consciência e do vexame que pesa sobre os vivos, pudesse relatar sua vida de forma cruelmente realista, não raro resvalando no cômico.

 

Em Abdias, como o romance é escrito na forma do diário, a franqueza com que se conta a história produz efeito parecido, talvez sem os lances de humor do Bruxo do Cosme Velho, mas ainda mantendo compromisso com a objetividade. Realista, sem, com isso, deixar de traduzir o poço de contradição que é a alma humana.  

sábado, 9 de outubro de 2021

“Anjo Negro” – Nelson Rodrigues

 “Anjo Negro” – Nelson Rodrigues




 

Resenha Livro - “Anjo Negro: drama em três atos. Peça Mística. 1948” – Nelson Rodrigues – Ed. Nova Fronteira – 5ª Edição.

 

“SENHORA – Ó branca Virgínia!

SENHORA (rápido) – Mãe de pouco amor!

SENHORA – Vossos quadris já descansam!

SENHORA – Em vosso ventre existe um novo filho!

SENHORA – Ainda não é carne, ainda não tem cor!

SENHORA – Futuro anjo negro que morrerá como os outros!

SENHORA – Que matareis com as vossas mãos!

SENHORA – (com voz de contralto) – Vosso amor, vosso ódio não têm fim neste mund!

TODAS (grave e lento) – Branca. Virgínia...

TODAS (grave e lento) – Negro Ismael.”.

 

Nelson Rodrigues nasceu em Recife em 1912, e morreu no Rio de Janeiro no ano de 1980.

 

A produção teatral mais relevante do escritor se situa entre “Vestido de Noiva” (1943) – um ano após a sua estreia, em 1942, com “Mulher Sem Pecado” – e, 1965, ano da estreia de “Toda a Nudez Será Castigado”. O contexto histórico abrange período de rápida transição do Brasil agrário para um país urbano, o que envolveu uma rápida mudança dos comportamentos.

 

Em 1958 o Brasil ganharia sua primeira Copa do Mundo e se tornaria desde então o país do futebol. O jornalismo passa cada vez mais a ser um instrumento de comunicação de massas, contando com o rádio e a televisão. Em certas regiões, a industrialização acelerada engendraria uma nova fisionomia social ao país. Aos poucos, as mulheres vão granjeado maior importância social.

 

Neste contexto, é certo que o teatro do nosso escritor expressa estas mudanças do Brasil. Representou o nascimento do nosso modernismo teatral, com algum atraso em relação ao nosso modernismo literário. Até então, o Teatro brasileiro, iniciado por Martins Pena (1815/1848), limitava-se às comédias de costume, aos dramalhões e ao teatro musicado. O gênero dramático ainda aparece como novidade, o que explica, inclusive, a censura de algumas peças ou as vaias proferidas quando da encenação de “Perdoa-me Por Traíres-me” ainda no ano de 1957.

 

As peças de Nelson Rodrigues, a despeito das diferentes classificações[1], têm alguns traços constantes: predominância do ambiente urbano, ênfase em temas como a virgindade, o ciúmes, o incesto, o impulso à traição e a canalhice humana.  

 

Dentro da classificação de Sábato Magaldi, “Anjo Negro” se situa dentre as “peças místicas” do jornalista carioca. Escrita em 1946, foi dirigida pela primeira vez pelo polonês Ziembiski, refugiado no Brasil da II Guerra Mundial.

 

Uma leitura absolutamente superficial da peça poderia sugerir um racismo inequívoca de Nelson Rodrigues, retratando no personagem negro Ismael, uma referência diametralmente oposta às afirmações em torno do orgulho negro, comuns hoje em dia. O personagem Ismael tem ódio de ser preto, escraviza sua mulher branca e não admite que ela saia de uma casa cheia de muros, com o risco de lançar os olhos sobre um homem não negro.

 

Na verdade, a peça é pioneira ao apresentar o personagem negro fora de um arquétipo desumanizado, coisificado, folclórico e hipersexualizado. Ao explorar as contradições e ambiguidades do racismo brasileiro, o autor revela de forma brutal os efeitos do nosso preconceito dissimulado. Inequivocamente, um racismo diferente do preconceito do norte-americano. Mas, nem por isso, um racismo menos violento.

 

Nos dias de hoje já é quase um senso comum a crítica da tese da “democracia racial” consubstanciada no “Casa Grande & Senzala” (1933) de Gilberto Freyre. Neste livro, que se situa dentro de um conjunto de obras voltadas ao passado colonial brasileiro, com a finalidade de demarcar nossas especificidades e traçar as bases da nacionalidade brasileira, a ênfase do autor pernambucano dá-se não no conflito de raças, mas na mestiçagem.

 

Enquanto na américa do norte predominou as colônias de povoamento, com viés religioso, a colonização brasileira foi um empreendimento comercial pautado pela denominada colônia de exploração. O maior problema dos portugueses que aqui chegaram era a falta de gente e, particularmente, de mulheres. Desde o primeiro momento, a família brasileira foi assim constituída da miscigenação do branco, do negro e do índio.  Além disso, no Brasil, ao contrário dos EUA, a escravidão africana não foi um fenômeno regional, mas uma forma de exploração do trabalho disseminada em todo o território. Ao contrário dos EUA, no Brasil os negros não foram e não são uma minoria populacional.

 

A despeito da mestiçagem ser um fato histórico dificilmente refutável, neste “Anjo Negro” temos acesso a um aspecto do problema racial pouco mencionado por Gilberto Freyre. O afeto do ressentimento, bem como a incorporação, pelo oprimido, dos valores do opressor, perpetrando a violência do racismo no abuso sobre a mulher, e até mesmo na aquiescência do assassinato de crianças de cor. Este afeto envolve uma dinâmica que, curiosamente, faz-se presente dentro de militantes do movimento negro dos dias de hoje, ligados à agenda identitária norte-americano. O ciclo em que o passado de violência autoriza o oprimido a agir com arrogância, e depois, com sadismo e perversão.

 

Neste contexto, a despeito do racismo dissimulado brasileiro, o leitor não deve perdoar Ismael, nem vê-lo como uma vítima, mas encarar sua tragédia como parte da vida (brasileira) como ela é.



[1] Peças psicológicas, pelas místicas e tragédias cariocas.

sábado, 2 de outubro de 2021

“O Beijo No Asfalto: Tragédia Carioca em 3 Atos” – Nelson Rodrigues

 O Beijo No Asfalto: Tragédia Carioca em 3 Atos” – Nelson Rodrigues




 

Resenha Livro - “O Beijo No Asfalto: Tragédia Carioca em 3 Atos” – Nelson Rodrigues – Editora Nova Fronteira

 

Arandir (repetindo para si mesmo) --- ”Nunca mais. Quer dizer que. Me chamam de assassino e. (com súbita ira). Eu sei o que “eles” querem, esses cretinos! (bate no peito com a mão aberta). Querem que eu duvide de mim mesmo! Querem que eu duvide de um beijo que. (baixo e atônito, para a cunhada). Eu não dormi, Dália, não dormi. Passei a noite em claro! Vi amanhecer. (com fundo sentimento). Só pensando no beijo no asfalto! (com mais violência). Perguntei a mim mesmo, a mim, mil vezes: se entrasse aqui, agora, um homem. Um homem. E. (numa espécie de uivo) Não! Nunca! Eu não beijaria na boca um homem que. (Arandir passa as costas da mão na própria boca, com um nojo feroz) Eu não beijaria um homem que não estivesse morrendo! Morrendo aos meus pés! Beijei porque! Alguém morria! “Eles” não percebem que alguém morria”?

 

O Beijo no Asfalto corresponde a décima terceira peça de teatro escrita pelo escritor carioca Nelson Rodrigues.

 

Foi encenada pela primeira vez em 1960 sob a direção de Fernando Torres.

 

Os três atos mantêm um alto nível de tensão, mais ou menos permanente, sempre em torno de diferentes versões acerca do dito “beijo no asfalto”.

Arandir, acompanhado de seu sogro, presencia um atropelamento na Praça da Bandeira no Rio de Janeiro. De uma forma aparentemente inexplicável, Arandir profere um beijo na boca do desconhecido atropelado. Não se sabe se o atropelado estava vivo ou já morto. Desconhece-se se a vítima do acidente solicitou ou não o dito beijo.  

 

O evento desencadeia reações das autoridades policiais, da imprensa e da sociedade carioca. O corrupto delegado Cunho e o jornalista Amado do “Última Hora” se articulam para tirar proveito da notícia conforme seus interesses. No caso do policial, promover um inquérito eficiente que atenuasse o seu histórico de violência e arbitrariedade. E no caso do jornalista, montar uma narrativa escandalosa, que promovesse a venda do seu jornal.

 

Nos dois casos, pouco importava a verdade dos fatos, as razões do beijo no asfalto, mas a versão mais conveniente, especialmente para fazer os “jornais venderem como água” e atribuir respaldo da atividade policial.  

 

Por conta do escândalo, Arandir perde o seu emprego, é abandonado por sua esposa e, ao final, é perseguido pela polícia. Criou-se a versão de que o atropelado mantinha relação extraconjugal com o personagem. Arandir teria empurrado e matado o homem como forma de ocultar o seu homossexualismo e a sua infidelidade conjugal.  

 

Uma leitura superficial desta peça de teatro reduzira a tragédia de Arandir às convenções sociais de um tempo em que o homossexualismo era muito menos tolerado do que nos dias de hoje.

 

Parece-nos que a obra possibilita interpretações mais profundas.

 

Em se tratando de uma encenação, o “beijo na asfalto” corresponde a um momento do obsceno. O prefixo “ob” palavra exprime a noção de oposição, de estar contra. No senso comum, obsceno remete à contrariedade do pudor. No sentido atribuído à peça, podemos relacioná-lo à contrariedade da encenação, não apenas teatral, mas relativa às convenções sociais e às máscaras utilizadas por todos no dia a dia. A encenação dialoga com a “obscenação”.

 

O Beijo no Asfalto corresponde a um momento singular em que algo que advém do substrato da sociedade ganha conteúdo nítido aos olhos do povo, engendrando o escândalo.

 

A obscenidade reprimida está presente em todos os personagens: o delegado da Cunha, desmoralizado por chutar a barriga de uma grávida; o jornalista Amado, que num momento de embriaguez, demonstra seu total descompromisso com a verdade e com a ética do jornalismo; a cunhada Dália que mantem em segredo um amor reprimido pelo seu cunhado; ou o próprio Arandir que, por um acaso doméstico, entra no banheiro da casa e vê sua cunhada nua, desejando-a, a despeito de ser menor de idade e irmã de sua esposa.  

 

A sexualidade contida está subjacente em todos os personagens.  E, simbolicamente, o jornal é alçado como o local de excelência do obsceno. De forma sintomática, quando Arandir é morto pelo seu sogro com tiros de revolver, o seu corpo tomba e se enrola num jornal.

 

Este jogo de representação cênica entre o obsceno e a encenação foi muito bem captada pelo crítico Jonatas Aparecido Guimarães:

 

“Sob esse aspecto, vale retomar a pergunta feita anteriormente: o que motivaria o escândalo em torno do beijo de Arandir? Como mencionado, tal escândalo seria motivado pela própria encenação. Em outras palavras, o escândalo seria ele mesmo uma forma de encenação como resposta ao fato de se colocar em cena algo que deveria ser mantido fora dela, o obsceno. O que importa não é o fato de Arandir ter beijado outro homem na boca, mas ter feito isso em público, como se vê na passagem seguinte. “Amado (exaltadíssimo) – E você olha. Fazer isso em público! Tinha gente para burro lá. Cinco horas da tarde. Praça da Bandeira. Assim de povo. E você dá um show! Uma cidade inteira viu!”.

 

Neste contexto, a grande vantagem da análise da peça em torno da encenação e da “obscenação” é não reduzir o enredo ao problema do preconceito com os homossexuais, deduzindo daí que a peça seria historicamente datada, diante da inequívoca mudança de percepção da sociedade acerca da sexualidade, passados mais de 50 anos.

 

O Beijo no Asfalto segue sendo uma história cruelmente atual.

 

Bibliografia:

GUIMARÃES, Jonatas Aparecido. “Cena e obsceno em O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues”. Escola de Humanidades.

RODRIGUES, Nelson. “O Beijo No Asfalto: tragédia carioca em três atos”. Ed. Nova Fronteira. 9ª Impressão.