“O Beijo No Asfalto: Tragédia Carioca em 3 Atos” – Nelson Rodrigues
Resenha Livro - “O
Beijo No Asfalto: Tragédia Carioca em 3 Atos” – Nelson Rodrigues – Editora Nova
Fronteira
Arandir (repetindo
para si mesmo) --- ”Nunca mais. Quer dizer que. Me chamam de assassino e. (com
súbita ira). Eu sei o que “eles” querem, esses cretinos! (bate no peito com a
mão aberta). Querem que eu duvide de mim mesmo! Querem que eu duvide de um
beijo que. (baixo e atônito, para a cunhada). Eu não dormi, Dália, não dormi.
Passei a noite em claro! Vi amanhecer. (com fundo sentimento). Só pensando no
beijo no asfalto! (com mais violência). Perguntei a mim mesmo, a mim, mil
vezes: se entrasse aqui, agora, um homem. Um homem. E. (numa espécie de uivo)
Não! Nunca! Eu não beijaria na boca um homem que. (Arandir passa as costas da
mão na própria boca, com um nojo feroz) Eu não beijaria um homem que não
estivesse morrendo! Morrendo aos meus pés! Beijei porque! Alguém morria! “Eles”
não percebem que alguém morria”?
O Beijo no Asfalto
corresponde a décima terceira peça de teatro escrita pelo escritor carioca Nelson
Rodrigues.
Foi encenada pela
primeira vez em 1960 sob a direção de Fernando Torres.
Os três atos mantêm um
alto nível de tensão, mais ou menos permanente, sempre em torno de diferentes
versões acerca do dito “beijo no asfalto”.
Arandir, acompanhado de
seu sogro, presencia um atropelamento na Praça da Bandeira no Rio de Janeiro.
De uma forma aparentemente inexplicável, Arandir profere um beijo na boca do
desconhecido atropelado. Não se sabe se o atropelado estava vivo ou já morto.
Desconhece-se se a vítima do acidente solicitou ou não o dito beijo.
O evento desencadeia
reações das autoridades policiais, da imprensa e da sociedade carioca. O corrupto
delegado Cunho e o jornalista Amado do “Última Hora” se articulam para tirar
proveito da notícia conforme seus interesses. No caso do policial, promover um
inquérito eficiente que atenuasse o seu histórico de violência e arbitrariedade.
E no caso do jornalista, montar uma narrativa escandalosa, que promovesse a
venda do seu jornal.
Nos dois casos, pouco
importava a verdade dos fatos, as razões do beijo no asfalto, mas a versão mais
conveniente, especialmente para fazer os “jornais venderem como água” e
atribuir respaldo da atividade policial.
Por conta do escândalo,
Arandir perde o seu emprego, é abandonado por sua esposa e, ao final, é
perseguido pela polícia. Criou-se a versão de que o atropelado mantinha relação
extraconjugal com o personagem. Arandir teria empurrado e matado o homem como
forma de ocultar o seu homossexualismo e a sua infidelidade conjugal.
Uma leitura superficial
desta peça de teatro reduzira a tragédia de Arandir às convenções sociais de um
tempo em que o homossexualismo era muito menos tolerado do que nos dias de
hoje.
Parece-nos que a obra
possibilita interpretações mais profundas.
Em se tratando de uma
encenação, o “beijo na asfalto” corresponde a um momento do obsceno. O prefixo “ob”
palavra exprime a noção de oposição, de estar contra. No senso comum, obsceno
remete à contrariedade do pudor. No sentido atribuído à peça, podemos
relacioná-lo à contrariedade da encenação, não apenas teatral, mas relativa às
convenções sociais e às máscaras utilizadas por todos no dia a dia. A encenação
dialoga com a “obscenação”.
O Beijo no Asfalto
corresponde a um momento singular em que algo que advém do substrato da
sociedade ganha conteúdo nítido aos olhos do povo, engendrando o escândalo.
A obscenidade reprimida
está presente em todos os personagens: o delegado da Cunha, desmoralizado por
chutar a barriga de uma grávida; o jornalista Amado, que num momento de
embriaguez, demonstra seu total descompromisso com a verdade e com a ética do
jornalismo; a cunhada Dália que mantem em segredo um amor reprimido pelo seu cunhado;
ou o próprio Arandir que, por um acaso doméstico, entra no banheiro da casa e
vê sua cunhada nua, desejando-a, a despeito de ser menor de idade e irmã de sua
esposa.
A sexualidade contida
está subjacente em todos os personagens. E, simbolicamente, o jornal é alçado como o
local de excelência do obsceno. De forma sintomática, quando Arandir é morto
pelo seu sogro com tiros de revolver, o seu corpo tomba e se enrola num jornal.
Este jogo de
representação cênica entre o obsceno e a encenação foi muito bem captada pelo
crítico Jonatas Aparecido Guimarães:
“Sob esse aspecto, vale
retomar a pergunta feita anteriormente: o que motivaria o escândalo em torno do
beijo de Arandir? Como mencionado, tal escândalo seria motivado pela própria
encenação. Em outras palavras, o escândalo seria ele mesmo uma forma de
encenação como resposta ao fato de se colocar em cena algo que deveria ser
mantido fora dela, o obsceno. O que importa não é o fato de Arandir ter beijado
outro homem na boca, mas ter feito isso em público, como se vê na passagem
seguinte. “Amado (exaltadíssimo) – E você olha. Fazer isso em público! Tinha
gente para burro lá. Cinco horas da tarde. Praça da Bandeira. Assim de povo. E
você dá um show! Uma cidade inteira viu!”.
Neste contexto, a
grande vantagem da análise da peça em torno da encenação e da “obscenação” é
não reduzir o enredo ao problema do preconceito com os homossexuais, deduzindo
daí que a peça seria historicamente datada, diante da inequívoca mudança de
percepção da sociedade acerca da sexualidade, passados mais de 50 anos.
O Beijo no Asfalto
segue sendo uma história cruelmente atual.
Bibliografia:
GUIMARÃES, Jonatas
Aparecido. “Cena e obsceno em O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues”. Escola
de Humanidades.
RODRIGUES, Nelson. “O Beijo No Asfalto: tragédia carioca em três atos”. Ed. Nova Fronteira. 9ª Impressão.
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