sábado, 2 de outubro de 2021

“O Beijo No Asfalto: Tragédia Carioca em 3 Atos” – Nelson Rodrigues

 O Beijo No Asfalto: Tragédia Carioca em 3 Atos” – Nelson Rodrigues




 

Resenha Livro - “O Beijo No Asfalto: Tragédia Carioca em 3 Atos” – Nelson Rodrigues – Editora Nova Fronteira

 

Arandir (repetindo para si mesmo) --- ”Nunca mais. Quer dizer que. Me chamam de assassino e. (com súbita ira). Eu sei o que “eles” querem, esses cretinos! (bate no peito com a mão aberta). Querem que eu duvide de mim mesmo! Querem que eu duvide de um beijo que. (baixo e atônito, para a cunhada). Eu não dormi, Dália, não dormi. Passei a noite em claro! Vi amanhecer. (com fundo sentimento). Só pensando no beijo no asfalto! (com mais violência). Perguntei a mim mesmo, a mim, mil vezes: se entrasse aqui, agora, um homem. Um homem. E. (numa espécie de uivo) Não! Nunca! Eu não beijaria na boca um homem que. (Arandir passa as costas da mão na própria boca, com um nojo feroz) Eu não beijaria um homem que não estivesse morrendo! Morrendo aos meus pés! Beijei porque! Alguém morria! “Eles” não percebem que alguém morria”?

 

O Beijo no Asfalto corresponde a décima terceira peça de teatro escrita pelo escritor carioca Nelson Rodrigues.

 

Foi encenada pela primeira vez em 1960 sob a direção de Fernando Torres.

 

Os três atos mantêm um alto nível de tensão, mais ou menos permanente, sempre em torno de diferentes versões acerca do dito “beijo no asfalto”.

Arandir, acompanhado de seu sogro, presencia um atropelamento na Praça da Bandeira no Rio de Janeiro. De uma forma aparentemente inexplicável, Arandir profere um beijo na boca do desconhecido atropelado. Não se sabe se o atropelado estava vivo ou já morto. Desconhece-se se a vítima do acidente solicitou ou não o dito beijo.  

 

O evento desencadeia reações das autoridades policiais, da imprensa e da sociedade carioca. O corrupto delegado Cunho e o jornalista Amado do “Última Hora” se articulam para tirar proveito da notícia conforme seus interesses. No caso do policial, promover um inquérito eficiente que atenuasse o seu histórico de violência e arbitrariedade. E no caso do jornalista, montar uma narrativa escandalosa, que promovesse a venda do seu jornal.

 

Nos dois casos, pouco importava a verdade dos fatos, as razões do beijo no asfalto, mas a versão mais conveniente, especialmente para fazer os “jornais venderem como água” e atribuir respaldo da atividade policial.  

 

Por conta do escândalo, Arandir perde o seu emprego, é abandonado por sua esposa e, ao final, é perseguido pela polícia. Criou-se a versão de que o atropelado mantinha relação extraconjugal com o personagem. Arandir teria empurrado e matado o homem como forma de ocultar o seu homossexualismo e a sua infidelidade conjugal.  

 

Uma leitura superficial desta peça de teatro reduzira a tragédia de Arandir às convenções sociais de um tempo em que o homossexualismo era muito menos tolerado do que nos dias de hoje.

 

Parece-nos que a obra possibilita interpretações mais profundas.

 

Em se tratando de uma encenação, o “beijo na asfalto” corresponde a um momento do obsceno. O prefixo “ob” palavra exprime a noção de oposição, de estar contra. No senso comum, obsceno remete à contrariedade do pudor. No sentido atribuído à peça, podemos relacioná-lo à contrariedade da encenação, não apenas teatral, mas relativa às convenções sociais e às máscaras utilizadas por todos no dia a dia. A encenação dialoga com a “obscenação”.

 

O Beijo no Asfalto corresponde a um momento singular em que algo que advém do substrato da sociedade ganha conteúdo nítido aos olhos do povo, engendrando o escândalo.

 

A obscenidade reprimida está presente em todos os personagens: o delegado da Cunha, desmoralizado por chutar a barriga de uma grávida; o jornalista Amado, que num momento de embriaguez, demonstra seu total descompromisso com a verdade e com a ética do jornalismo; a cunhada Dália que mantem em segredo um amor reprimido pelo seu cunhado; ou o próprio Arandir que, por um acaso doméstico, entra no banheiro da casa e vê sua cunhada nua, desejando-a, a despeito de ser menor de idade e irmã de sua esposa.  

 

A sexualidade contida está subjacente em todos os personagens.  E, simbolicamente, o jornal é alçado como o local de excelência do obsceno. De forma sintomática, quando Arandir é morto pelo seu sogro com tiros de revolver, o seu corpo tomba e se enrola num jornal.

 

Este jogo de representação cênica entre o obsceno e a encenação foi muito bem captada pelo crítico Jonatas Aparecido Guimarães:

 

“Sob esse aspecto, vale retomar a pergunta feita anteriormente: o que motivaria o escândalo em torno do beijo de Arandir? Como mencionado, tal escândalo seria motivado pela própria encenação. Em outras palavras, o escândalo seria ele mesmo uma forma de encenação como resposta ao fato de se colocar em cena algo que deveria ser mantido fora dela, o obsceno. O que importa não é o fato de Arandir ter beijado outro homem na boca, mas ter feito isso em público, como se vê na passagem seguinte. “Amado (exaltadíssimo) – E você olha. Fazer isso em público! Tinha gente para burro lá. Cinco horas da tarde. Praça da Bandeira. Assim de povo. E você dá um show! Uma cidade inteira viu!”.

 

Neste contexto, a grande vantagem da análise da peça em torno da encenação e da “obscenação” é não reduzir o enredo ao problema do preconceito com os homossexuais, deduzindo daí que a peça seria historicamente datada, diante da inequívoca mudança de percepção da sociedade acerca da sexualidade, passados mais de 50 anos.

 

O Beijo no Asfalto segue sendo uma história cruelmente atual.

 

Bibliografia:

GUIMARÃES, Jonatas Aparecido. “Cena e obsceno em O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues”. Escola de Humanidades.

RODRIGUES, Nelson. “O Beijo No Asfalto: tragédia carioca em três atos”. Ed. Nova Fronteira. 9ª Impressão.

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