sábado, 30 de maio de 2015

“Ressurreição” – Machado de Assis

“Ressurreição” – Machado de Assis 



Resenha Livro 173 – “Ressurreição” – Machado de Assis – Editora Globo

Estamos diante do primeiro romance publicado por Machado de Assis, lançado em 1872, contando com as características formais da fase romântica do autor, anterior, portanto, ao período realista inaugurado com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Isso implica num tom folhetinesco da narrativa; na concepção do amor não enquanto convenção social relacionada a interesses mesquinhos ou mesmo pecuniários (realismo) mas como objeto da felicidade das personagens (romantismo); num certo moralismo em contraponto à crítica social realista; e na valorização do sentimento em detrimento da razão, o que em “Ressurreição” está bastante explícito na trajetória da personagem principal, o médico Dr. Félix. 

Certamente, nas obras de maturidade de Machado de Assis pode-se dizer que desde lá extraímos os clássicos de sua produção literária: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”(1881), “Dom Casmurro”(1899) ou “Quincas Borbas”(1891) são romances especiais por aprofundarem a análise psicológica das personagem num nível em que os escritos do séc. XIX surgem ao leitor do séc. XX com plena força, além de sacadas filosóficas (recheadas eventualmente com humor) a partir das quais se extrai a feição clássicas das obras de Machado de Assis – trata-se de textos que sensibilizam e tocam-nos ainda hoje, possuem em certo sentido atualidade e abrangem temas universais, requisitos para se poder classificá-los como “Clássicos Universais”. 

Todavia, entendemos que as obras românticas de Machado de Assis têm sido negligenciadas nos currículos escolares e nas bancas dos vestibulares e devem ser conhecidas, superando-se certa ideia de que seria obras “menores” em relação à produção literária realista. Aliás, alguns dos traços característicos do estilo de Machado “maduro” como o diálogo direto com o leitor ou as análises psicológicas já estão presentes em seu primeiro romance. É o caso do protagonista Dr. Felix, um médico que inicialmente tem uma percepção cética com relação ao amor, sempre observando que suas relações afetivas têm duração de 6 meses, quando então naturalmente se dissolve e se rompe. 

“- Eu te digo, respondeu Félix; os meus amores são todos semestrais; duram mais que as rosas, duram duas estações. Para o meu coração um ano é uma eternidade. Não há ternura que vá além de seis meses; ao cabo desse tempo, o amor prepara  as malas  e deixa  o coração  como um viajante deixa o hotel, entra depois o aborrecimento – mau hóspede”.   

Em certo sentido, o personagem Félix antecipa a perspectiva do realismo, sendo um grande cético e mesmo mangando de seus colegas sentimentais. Diz Dr. Felix ao seu colega Meneses, desiludido no amor: 

“Só muito tarde te convencerás de que viver não é obedecer às paixões, mas aborrecê-las ou sufocá-las. Os Maricas, como tu, choram; os homens, esses ou não sentem ou abafam o que sentem”.  

A grande diferença é que estamos na fase romântica de Machado de Assis o que irá engendrar um triste fim ao protagonista – que efetivamente irá conhecer o amor mas não se entregar inteiramente ao sentimento amoroso por uma espécie de covardia de espírito cumulado ao ciúmes doentio. 

Ainda assim, o leitor tem diante de si elementos da análise psicológica do protagonista de molde a identificar as origens de seu ceticismo quanto à realização amorosa: 

“- Não me caíram as ilusões como folhas secas que um débil sopro desprega e leva, foram-me  arrancadas no pleno vigor da vegetação. Não me deixaram essas doces recordações que são para as almas enfermas como que uma aura de vitalidade. Meu espírito ficou árido e seco. Invadiu-me então uma cruel misantropia, a princípio irritada e violenta, depois melancólica e resignada. Calejou-se-me a alma a pouco e pouco, e o meu coração literalmente morreu”. 

Talvez o que poderíamos apontar como o elemento mais ausente neste e em outros romances da fase romântica de Machado de Assis é sua mordaz crítica social que se combina com a ironia e o humor, elementos ausentes no contexto do romance romântico. 

Em contrapartida há elementos descritivos de relações sociais, jantares, convenções sociais, participação do trabalho escravo no âmbito doméstico e demais descrições da cultura e sociedade fluminense burguesa no âmbito do segundo reinado que são fontes históricas preciosas para se ter mais conhecimentos da história social e cultural do Brasil do séc. XIX.     

terça-feira, 26 de maio de 2015

“Dom Casmurro” – Machado de Assis

“Dom Casmurro” – Machado de Assis 



Resenha Livro 172 – “Dom Casmurro” – Machado de Assis - Ed. Record Rio de Janeiro São Paulo


Esta obra de Machado de Assis foi publicada no ano de 1899: estamos diante de romance em que o autor já expressa sua plena maturidade literária, observada a partir de transição que remonta às “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), quando o “Bruxo do Cosme de Velho” inaugura no Brasil o Realismo literário. 

As obras mais remotas de Machado de Assis (romances e contos foram a especialidade do autor, que ainda produziu Poesia, Peças de Teatro e Traduções) podem ser enquadradas no estilo romântico, ou mais especificamente no romantismo em sua terceira fase.  Aqui o foco centra-se nos cenários urbanos e em temas sociais, sem contudo tecer críticas sociais e de costumes, com otimismo no que tange às relações amorosas, bem como na apologia das relações sociais de tipo burguês resultando num narrativa do tipo eventualmente folhetinesco e um pouco superficial.  

A partir de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e nas obras subsequentes, observa-se  uma reorientação no estilo e principalmente na abordagem: o idealismo no amor dá espaço ao objetivismo nas análises conjugais revelando a forma como as relações entre os sexos envolvem convenções sociais ocultas, ou no caso específico de “Dom Casmurro”, o ciúmes doentio de Bentinho e a dissimulação de Capitu; o elogio às formas sociais colocadas pelo romantismo é superado por uma crítica mordaz e sarcástica dos costume implicando na crítica social. A objetividade dos escritores realistas é levada a cabo quase como uma obsessão: no caso de Dom Casmurro, o livro é escrito na forma de um caderno de memórias pelo advogado Santiago Bento em sua velhice, como tentativa (não bem sucedida) de reatar as pontas da infância e da velhice. 

Terminando velho e só numa grande casa no Engenho Novo no Rio de Janeiro e Casmurro (aquele que é fechado, teimoso, caturra) este foi um apelido dado por vizinhos e apropriado pelo autor para título de sua história. Como dizíamos, o esforço pela objetividade perpassa o objeto do livro de Casmurro e resvala em certas passagens mesmo num efeito cômico. Assim Bentinho relata sua ida ao seminário para se fazer padre, se separando da família e de Capitu:

“Meses depois fui para o Seminário de S. José. Se eu pudesse contar as lágrimas que chorei na véspera e na manhã, somaria mais que todas vertidas desde Adão e Eva. Há nisto alguma exageração; mas é bom ser enfático, uma ou outra vez, para compensar este escrúpulo de exatidão que me aflige. Entretanto, se eu me ativer só à lembrança da sensação, não fico longe da verdade; aos quinze anos, tudo é infinito”.

Por outro lado, os mesmos escrúpulos da exatidão engendra a inevitabilidade da mentira. Dom Casmurro já oferece todas as condições, ao redigir suas memorias, para eventualmente poder não só acertar contas com seu passado mas mesmo revelar alguns de seus vícios; vícios como sua sensação de ojeriza quando da morte de Manduca, um colega menos abastado acometido de Lepra e interesse pessoal do narrador-autor em ir ao enterro unicamente para faltar ao seminário e ver Capitu; ou como no instante em que uma febre da mãe levou Bentinho a pensar que a morte da genitora levaria-o a estar livre do seminário culminando num sentimento de culpa logo em seguida. De qualquer forma, os escrúpulos da exatidão ainda podem abarcar uma intenção mentirosa. 

“- Eu só gosto de mamãe   (Bentinho)
Não houve cálculo nesta palavra, mas estimei dizê-la por fazer crer que ela era a minha única afeição; desviava as suspeitas de cima de Capitu. Quantas intenções viciosas há assim que embarcam, a meio caminho, numa frase inocente e pura! Chega a fazer suspeitar que a mentira é, muita vez, tão involuntária como a transpiração”. 

É provável que não haja exagero na afirmação do professor da UFRJ Carlos Sepúlveda ao dizer que Dom Casmurro ombreia textos de Shakespeare, Dante e Camões. Este livro tem uma força humana excepcional, envolvendo as cogitações da vida de um advogado que vive no Rio de Janeiro do Segundo Reinado, sendo tomado pelo ciúmes e por uma espécie de amor não comedido que não seria suprido posteriormente. Machado de Assis é um autor que desde o ponto de vista da história das ideias da arte expressa a culminância da visão social de mundo burguesa, o que se pode demonstrar mesma na analogia entre o amor e uma obrigação pecuniária, o que de resto, retoma a superação do realismo pelo amor romântico:

“Sucedeu que a minha ausência foi logo temperada pela assiduidade de Capitu. Esta começou a fazer-lhe necessária. Pouco a pouco veio-lhe a persuasão de que a pequena me faria feliz. Então (é o final do ponto anuncia-lo), a esperança de que nosso amor, tornando-me incompatível com o seminário, me levasse a não ficar lá nem por Deus, nem pelo diabo, esta esperança íntima e secreta entrou a invadir o coração de minha mãe. Nesse caso eu romperia o contrato sem que ela tivesse culpa. Ela ficava comigo sem ato propriamente seu. Era como se, confiado a alguém a importância de uma dívida para leva-la ao credor, o portador guardasse o dinheiro e não levasse nada. Na vida comum, o ato de terceiro não desobriga o contratante; mas a vantagem de contratar com o céu é que intenção vale dinheiro”. 

Amor, expectativa religiosa e obrigação pecuniário confundem-se tal qual a visão social de mundo da burguesia urbana a qual Machado de Assis e os escritores realistas retratam. Trata-se aqui tanto de um romance muito acima da média (que nos toca pelo seu conteúdo humano) quanto de preciosa fonte histórica. 

sexta-feira, 15 de maio de 2015

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” – Machado de Assis

“Memórias Póstumas de Brás Cubas” – Machado de Assis



Resenha Livro  171- “Memórias Póstumas de Brás Cubas” – Machado de Assis – Ed. Elevação 

Se Machado de Assis é comumente lembrado como maior escritor de romances de origem brasileira, seria com o seu “Memórias Póstumas de Brás Cuba” (1881) que o autor abriria uma nova etapa em sua produção, sendo as memórias o ponto de partida e inaugural da fase realista da literatura nacional. 

Há de se somar à grandeza do livro algumas preliminares referentes à própria trajetória de vida do autor. Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro no Morro do Livramento (região suburbana) no ano de 1839. Era filho de José Machado de Assis (um operário) e Leopoldina Machado de Assis (uma lavandeira), esta última tendo falecido quando o escritor ainda era criança. Desde pequeno demonstrou interesse pelo estudo de  línguas e de forma autodidata aprendeu francês, alemão e inglês, o que se revela nas citações literárias. 

Sua iniciação nas letras deu-se desde baixo como tipógrafo do periódico “Marmota Fluminense”. Obteve proteção de seu dono, Francisco de Paula Brito e ainda aos 16 anos começou a publicar alguns poemas no jornal. Seu primeiro livro de poesias, denominado Crisálidas, seria publicado em 1864. Não há aqui ainda a expressão incomum de um autor que posteriormente seria consagrado na literatura nacional. A poesia e o teatro não são os gêneros literários de especialidade de Machado de Assis. O autor viria a se destacar nos contos e nos romances, em geral publicados da imprensa fluminense. 

O primeiro romance data de 1872 e denomina-se Ressurreição. Corresponde ao que os críticos classificam como obra da 1ª fase ou de juventude de Machado, romances vinculados ao romantismo de terceira geração (condoreirismo). Trata-se de uma fase intermediária entre o romantismo e o realismo propriamente dito, com autores preocupados em descrever a realidade social, além de abordar temas de crítica social como o abolicionismo (daí serem também chamados de geração condoreira, uma ave que vê desde cima, tem uma percepção mais ampla). A diferença é que com o realismo a ruptura com o idealismo romântico é mais profundo engendrando especificamente em Machado de Assis numa perspectiva radicalmente irônica e mordaz, bastante distinta do gosto dos antigos romances românticos lidos preferencialmente pelo público feminino tal qual as novelas dos dias de hoje. Daí o impacto revolucionário de Memórias Póstumas de Brás Cubas. 
Um Defunto Autor

Para alcançar esta finalidade de descrever a sociedade tal qual ela é, desmascarar as convenções sociais, os jogos de interesse, o egoísmo humano como elemento premente das interações sociais, o autor só poderia mesmo fazê-lo na condição de defunto. Brás Cubas narra a história desde “o outro mundo” o que o possibilita lançar um olhar sobre sua vida na terra sem qualquer tipo de preocupação quanto aos julgamentos, os olhares “judiciosos” da crítica – e não se pense que ele não estende sua pena da sinceridade radical dos outros a si próprio, mas, muito pelo contrário, começa a demonstrar os sentimentos que na aparência são grandes mas, na intimidade, medíocres a partir de suas experiências pessoas, quando são melhor observados. 

“Talvez espante o leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a principal virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar  os ragões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embarcar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas na morte, que diferença! Que desabafo! Que liberdade! (...) Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados”.

Tal passagem ganha relevo na narrativa por revelar a estratégia narrativa que na prática culminou no ponto de partida do realismo brasileiro: a posição insólita do narrador permitiu-lhe um ponto de vista inédito sobre a sociedade urbana burguesa carioca de fins do século XIX. A tendência passa do subjetivismo romântico à objetividade, chegando posteriormente com o naturalismo a tangenciar a literatura com as tendências cientificistas que se expressavam no determinismo.   Ainda quanto ao realismo, o amor passa a ser fonte de convenção social e formalidades ou aparências, enquanto no romantismo engendrava a felicidade perpétua. Finalmente, as análises psicológicas das personagens ganham maior importância em detrimento de uma certa superficialidade que marcava mesmo os primeiros romances de Machado de Assis. 

Dentre as rupturas com o passado romântico, certamente a questão do amor e da felicidade conjugal nos parece ser a mais importante. Brás Cubas teve um passado frívolo, se envolveu com mulheres, não casou, não constituiu família e nem por isso sofreu em demasia. Ao fim da vida encontrou um pequeno saldo quanto a tudo isso: não teve filhos a pôr num mundo de misérias, o que é dito num tom em parte em galhofa em parte com alguma seriedade, considerando a mediocridade de sua própria vida. A maior prova porém de que, na morte, Brás Cubas não acreditou no amor foi seu relato de rompimento com Virgília, um relacionamento extraconjugal que mais parece ao leitor remeter a um relacionamento amoroso do personagem em vida. Ao fim e ao cabo, poucas horas após rompimento da relação, Brás Cubas parece indiferente pela partida da amada à província distante junto ao marido em caráter definitivo: 

“Não a vi partir; mas à hora marcada senti alguma coisa que não era dor e não era prazer, uma coisa mista, alívio e saudade, tudo misturado em iguais doses. Não se irrite o leitor com essa confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derrubar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico. A realidade pura é que eu almocei, como nos demais dias, acudindo ao coração com as lembrança da minha aventura, e ao estômago com os acepipes de M. Prudhon” .

Muitas outras passagens são dignas de nota nestas memórias. Os delírios da morte de Brás Cubas (que ineditamente não tem uma morte “triste”  ou “melancólica” dentro de sua percepção pessoal, ao contrário do que senso comum imagina da morte); passagens de reflexão sobre a condição do negro e a escravidão, quando Cubas reencontra o negro Prudêncio apunhalando um escravo seu (engendrando reflexões sobre o tema e desmentindo desde já certa opinião de que a questão do negro escravo foi indiferente ao escritor Machado de Assis); a ideia do Emplasto e a ironia desta ideia fixa tê-lo levado à morte, bem como tantas outras passagens do livro. 

De uma forma geral, pode-se dizer que Machado de Assis e seu realismo sinalizam um período posterior das ideias da burguesia no Brasil, passando de seu momento heroico ao seu momento de consolidação, eventualmente se expressando pela arte à frente de seu tempo, o que aliás é comum no caso das manifestações artísticas. O traço do realismo é a burguesia enquanto classe dominante a se olhar no espelho, com seus vícios e virtudes, passado seu momento heroico e revolucionário, decorrente do romantismo – temos ciência que a burguesia brasileira propriamente não passou por momento revolucionário, mas importou modelos de tal monta da Europa. 

Machado de Assis parece-nos parte desta tradição. Ainda que tenha nascido no subúrbio, conseguiu ascender socialmente apesar de ser mulato (diante de uma sociedade rigorosamente racista) diante do reconhecimento da sua obra. Foi fundador e dono da cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Letras e é reconhecido não por poucos como o maior escritor brasileiro de todos os tempos.  

sábado, 9 de maio de 2015

“Marx, Engels e Lênin: a história em processo” – Florestan Fernandes

“Marx, Engels e Lênin: a história em processo” – Florestan Fernandes 




Resenha Livro 170 - “Marx, Engels e Lênin: a história em processo” – Florestan Fernandes – Ed. Expressão Popular 

O professor Florestan Fernandes foi o nosso maior cientista social de todos os tempos, fato que impressiona levando em consideração sua trajetória de vida. Veio de família pobre, filho de empregada doméstica e superou todas as dificuldades para se graduar e posteriormente lecionar na Universidade de São Paulo. Marxista militante, foi um lutador em defesa da educação e da universidade públicas, além de deputado pelo PT da constituinte que promulgou a Carta Constitucional de 1988. 

Uma das características do texto de Florestan é a alta densidade teórica, o que exige do leitor bastante atenção e uma leitura cuidadosa. O que é curioso é que mesmo trabalhos menos pretensiosos não deixam de postular um rigor científico característico do autor. Tivemos a oportunidade de resenhar um trabalho de Florestan sobre a Revolução Cubana (Ver: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/12/da-guerrilha-ao-socialismo-revolucao.html). Tratava-se de “mera” compilação de anotações para um curso dado sobre aquele acontecimento histórico na FFLCH-USP, o que resultou numa das melhores análises sociológicas e históricas em língua portuguesa sobre a luta na Sierra Mastra, incluindo um estudo inédito entre nós sobre a história colonial cubana. 

Processo semelhante pode ser dito sobre este livro de comentários acerca de textos de Marx, Engels e Lênin organizado pela Expressão Popular. Trata-se na verdade da reunião de prefácios escritos para uma coleção voltada ao público universitário que publicava trechos de obras de grandes pensadores das ciências sociais e históricas. Florestan não só escreveu os prefácios, mas participou da seleção dos textos e dos autores. 

Sobre esta coleção, comenta José Paulo Netto:

“Florestan escolheu, pautado apenas por critérios científicos rigorosos, os autores a serem publicados e os organizadores dos volumes e acompanhou cuidadosamente o processo de elaboração de cada um deles, oferecendo sugestões de várias ordens, sem jamais ferir a autonomia do organizador, que dispunha de inteira liberdade na seleção dos textos e na apresentação que redigia. A coleção, com a marca da seriedade intelectual que caracterizou o conjunto da vida e da obra de Florestan, contribuiu decisivamente para a constituição daquela cultura teórico social a que fiz referência e é, sem sombra de dúvida, uma marco na história das ciências sociais do Brasil”. 
Quanto aos textos de Marx e Engels, os textos selecionados abrangem praticamente a vida toda dos fundadores do socialismo científico. O ponto de partida são os Manuscritos de 1844 e a Ideologia Alemã, onde se dá o acerto de contas e ruptura  com a tradição filosófica idealista da Alemanha e a inauguração do método materialista dialético. 

Existe uma polêmica que divide os marxistas até hoje acerca da relação entre as obras de “juventude” (os manuscritos, a ideologia alemã, o manifesto de 1848) e as obras de “maturidade” (centralmente “O Capital”) em Marx. Para determinada corrente, existe uma clivagem entre estes dois momentos, sendo o Marx da juventude, um Marx humanista ainda não dotado de um ponto de vista científico. Esta é a perspectiva de Althusser, não muito em voga no Brasil, mas com bastante importância na França. Já há outra corrente, da qual Florestan Fernandes definitivamente se filia, que demonstra haver uma relação de continuidade entre as obras de juventude e maturidade, perspectiva que aqui no Brasil ganhou peso com um grande número de adeptos do pensamento do pensador húngaro György Lukács.

Esta consideração é importante, pois se filiando à segunda tradição, boa parte dos textos selecionados por Florestan Fernandes se encontram nos anos de 1844, 1848, 1850, onde o sociólogo já enxerga plenitude e cientificidade, ainda que posteriormente apuradas em Marx e Engels. Particularmente, a inovação dá-se com o materialismo dialético e sua consequente aplicação na interpretação da história: 

“A necessidade teórica levou-os (Marx e Engels) à história. Para ultrapassar as posições da filosofia da história hegeliana e dos seus críticos neo-hegelianos, eles recorreram a uma ciência da história, que era uma síntese das ciências sociais, coroada e presidida pelo ponto de vista histórico. A necessidade prática também os levou à história. Imersos na luta de classes, em um movimento operário internacional em pleno crescimento e na vanguarda das primeiras tentativas revolucionárias, foi para história que se voltaram. Se fossem socialistas ou comunistas utópicos, se se contentassem com a reforma social, poderiam ter paciência e aguardar. Revolucionários de uma nova estirpe, tiveram de buscar respostas nos fatos, investigando as guerras camponesas, as classes operárias na Inglaterra, a revolução e a contrarrevolução na França, na Alemanha e em outros países da Europa, o império de Luís Bonaparte, o significado da Comuna, etc.”

Reitera-se: os fundadores do marxismo não só ofereceram chaves explicativas para a história até então desconhecidas, mas demonstraram na prática que o apenas a passividade, ou nos dias de hoje o “academicismo” é incompatível com a práxis marxista. No mesmo sentido, Florestan aponta:

“Na verdade, a opção e a afirmação da história como ciência correm por dentro da luta de classes e do sentido último da história moderna. Ciência oficial e ideologia dominante são irmãs siameses. O historiador marxista, pelo menos, não pode ignorar esta lição, que procede a vida e do exemplo dos fundadores do materialismo histórico. Existe um padrão de congruência. Ninguém pode aderir a uma concepção materialista e dialética da história e ignorar as implicações morais e práticas do materialismo, da dialética e da história, recolhendo-se ao conforto da ciência oficial e ao silêncio ou ambiguidades”

Em uma palavra, exige-se coerência que poderia ser estendida do historiador a todo intelectual que fez sua opção de classe. Florestan seguiu rigorosamente esta coerência e prova disso foi sua dolorosa morte. Pouca gente talvez conheça esta história. Florestan Fernandes, como intelectual, comunista e parlamentar, sempre a defender os interesses públicos, dentre eles a saúde pública. No final da vida, doente, fez questão de ser tratado num hospital público, mesmo recebendo convites para se tratar nos melhores hospitais no exterior. Em entrevista num documentário sobre a vida de Florestan Fernandes, seu filho falou que, se tivesse aceito tratar seu problema de saúde no exterior,  teria salvo sua vida.  
  

sexta-feira, 1 de maio de 2015

“À Sombra do Libertador – Hugo Chávez Frías e a transformação da Venezuela” – Richard Gott

“À Sombra do Libertador – Hugo Chávez Frías e a transformação da Venezuela” – Richard Gott 

Resenha Livro 169- “À Sombra do Libertador – Hugo Chávez Frías e a transformação da Venezuela” – Richard Gott – Ed. Expressão Popular 





“Nossas leis atuais são relíquias desastrosas de cada regime despótico, antigo ou moderno, que existiu; estejamos certos de que este edifício monstruoso entre em colapso e desmorone, para que possamos construir um templo à justiça, longe destas ruínas, e ditar um novo código legal venezuelano, sob sua influência de sua sagrada inspiração” – Bolívar, no Congresso de Angostura de 1819


Richard Gott é jornalista e escritor britânico e neste trabalho demonstra possuir vasto conhecimento não só sobre a história política venezuelana mas sobre o panorama histórico, social e cultural latino americano como um todo. Conhecimento de alguém que viajou e conheceu de perto o continente e suas transformações já desde os anos de 1960. Nesse sentido, estamos diante de uma obra jornalística em sua mais alta acepção: Gott entrevistou pessoalmente personagens envolvidos na ascensão Chavista – que tem como ponto de partida o mal fadado golpe de estado de fevereiro de 1992 – conheceu pessoalmente o “libertador” e conforme um trabalho investigativo, faz um relato dos dois primeiros anos de mandato de Chávez. 

Ademais, o jornalista relata seu contato com gente do povo, em cenas casuais, como sua viagem ao interior da Venezuela junto a um motorista de Taxi chavista ou sua entrevista a um agenciador de modelos da “Miss Venezuela”, considerando que aquele país é exportador de campeãs de Miss Universos, e considerando também a contradição da “Miss Venezuela” nunca possuir fenótipo indígena ou negro, em que pese a composição racial da população daquele país. 

A experiência política venezuelana deve ser vista em sua singularidade, o que desde já envolve chamar atenção para a centralidade das Forças Armadas que desde o século XIX até Chávez (ele próprio um militar) é chamada a atuar diretamente na vida política do país. Desde Simon Bolívar (herói nacional) até Ezequiel Zamorra, temos aqui uma tradição em que as Forças Armadas são convocadas a desempenhar uma intervenção progressista, em defesa dos mais humildes e contra as oligarquias associadas aos interesses exógenos – ou seja Forças Armadas patrióticas e esquerdizantes. 

Nesta toada, tivemos no continente, no Panamá o general Omar Torrijos que conquistou a devolução do canal do Panamá e no Peru o general Juan Velasco. No Brasil não podemos dizer que os militares golpistas de 1964 eram patriotas, mas quando muito nacionalistas de direita que manobravam esta ideologia “verde e amarela” contra a esquerda, por exemplo, através dos jogos da Copa do Mundo de 1970 e com campanhas como “Brasil ame-o ou deixe-o”. Mas o fato é que não havia contradição entre os militares no Brasil e o imperialismo norte-americano, sendo certo que o golpe de 1º de Abril fora uma conspiração com apoio da Casa Branca.

Já na Venezuela, as Forças Armadas eram cingidas entre uma elite corrupta ligada às forças políticas igualmente corrompidas e oficiais de baixa patente com disposição a intervir na realidade. E com Chávez no poder, os militares foram convocados a sair da caserna e construírem estradas, hospitais e desenvolverem trabalho social. Estes setores  de baixa batente se auto-organizavam nos quartéis, sem vínculos com os partidos políticos tradicionais, desacreditados que estavam, e criaram seus próprios movimentos. 

Mas o fato político de maior relevância que antecedeu a aparição de Chávez no cenário político foi o Caracazo, uma manifestação espontânea que se deu em oportunidade em que os militares liderados por Chávez já estavam se organizando nos bastidores. Relata Gott:

“Como muitas outras grandes cidades da América Latina, Caracas caracteriza-se pela total ausência de lei e de ordem. É uma grande cidade em estado de sítio, onde cada centro comercial está protegido por grades de ferro, cada rua residencial bloqueada por uma guarita de vigilância e uma barreira, e cada edifício de apartamento protegido por guardas armados. Os ricos vivem atrás de paredes altas e têm sua própria guarda particular; os jovens pobres sobrevivem organizando seus próprios grupos armados. A classe média, presa entre ambos, vive temendo, constantemente, por seus bens e por sua vida. 

Há mais de uma década, em fevereiro de 1989, o pior de todos os pesadelos tornou-se realidade. Os pobres dos morros próximos desceram, saqueando indiscriminadamente a cidade, durante uma semana. Centenas de pessoas morreram durante o período seguinte, de feroz repressão militar, como se fosse para ninguém esquecer quão fragilizada estava a capacidade de tolerância mútua entre as classes. O acontecimento, que em seguida foi denominado Caracazo, teve uma causa simples: o preço da gasolina aumentou, o preço da passagem de ônibus aumentou e o descontentamento acumulado transformou-se em rebelião ativa. A polícia estava em greve naquele momento, reclamando aumento de salário e não estava preparada para conter o distúrbio urbano”

Fala-se em milhares de mortos mas não se sabe ao certo. O aumento da gasolina fora de 100% e os gastos repassados no transporte público. Politicamente, seria a esquerda e o movimento popular os maiores derrotados diante da enorme repressão estatal. 

Nem estavam preparados os jovens militares que efetivamente haviam discutido a possibilidade de aproveitar a mobilização popular para dirigi-las. Durante o Caracazo, Chavez estava de cama, com doença contagiosa e alguns de seus camaradas foram convocados a reprimir os protestos. Àquela altura já estava se organizando clandestinamente o MBR-200, Movimento Bolivariano Revolucionário, sendo a próxima etapa do movimento chavista, a tentativa de golpe de estado três anos depois, com o escopo de derrubar o presidente neoliberal e impopular Carlos Perez. 

O que é impressionante neste evento é que os golpistas saíram derrotados apenas militarmente, mas ganharam uma enorme conquista moral junto a uma população. As razões da derrota envolvem basicamente a hesitação de alguns setores que não se dispuseram a lutar no momento decisivo. Por outro lado, a ação do MBR-200 abriu uma enorme divisão dentro das forças armadas com o risco de abrir uma guerra civil. Chávez, líder do movimento, pediu para que lhe permitissem falar pela televisão, com o objetivo de pedir aos oficiais que haviam tomado quartéis e cidades a se renderem pacificamente. Aqui quem relata é Gott

“O aparecimento de Chávez na televisão durou apenas um minuto. Sua consequência inesperada foi a de que passara a ser, de um oficial totalmente desconhecido,  uma figura nacional. Um minuto no ar, em um momento de estrondosa derrota pessoal, transformou-o em uma espécie de salvador da pátria em potencial”.

Temos aqui dois elementos chave da história política venezuelana sem as quais não sem entende de onde veio e para onde segue o chavismo e subsequentemente seu sucessor Maduro. A dura desmoralização perpetrada pela burguesia e classes dominantes com a repressão pós Caracazo ficaria no imaginário daquela povo que veria em Chávez uma alternativa concreta de mudanças. O golpe e seu movimento militar também foram vistos com simpatia, antes de tudo projetaram politicamente Chávez e seu grupo para todo o país. Temos aqui dois fatos constitutivos que concretizariam sua vitória eleitoral com 56,2%  dos votos. Em abril de 1999, um plebiscito organizado para determinar se seria convocada uma assembleia nacional constituinte teve como partidários do “Sim” 88% dos votos. Em Julho de 1999, foram realizadas eleições e os partidários de Chávez receberam 119 dos 131 dos lugares correspondentes a 91% dos votos. Em Dezembro de 1999, um segundo plebiscito ratificou a nova constituição: o “Sim” obteve 71% e o “Não” 28%. A reportagem de Gott se encerra no 2º ano de mandato. Poderíamos citar o dramático ano de 2002 quando um golpe orquestrado pelos EUA derrubou o Governo Chávez por poucos dias e o povo descendo dos bairros e dos morros, junto com as forças armadas exigiram a volta do presidente constitucionalmente eleito, derrotando os golpistas. 

Neste momento, o presidente N. Maduro segue a obra de Chávez na Venezuela, sendo neste momento um dever dos comunistas brasileiros o apoio incondicional àquele país frente a qualquer ação imperialista, seja norte americana seja de Espanha. Acima de tudo, o legado de Chávez refere-se à luta anti-imperialista suscitada pela tradição de Bolívar e do fortalecimento político e cultural latino-americanos. O Brasil também tem uma tradição progressista mesmo dentro das forças armadas a começar pelo movimento tenentista e deve se somar a esta perspectiva de luta antiimperialista em prol do continente sulamericano.