sábado, 9 de maio de 2015

“Marx, Engels e Lênin: a história em processo” – Florestan Fernandes

“Marx, Engels e Lênin: a história em processo” – Florestan Fernandes 




Resenha Livro 170 - “Marx, Engels e Lênin: a história em processo” – Florestan Fernandes – Ed. Expressão Popular 

O professor Florestan Fernandes foi o nosso maior cientista social de todos os tempos, fato que impressiona levando em consideração sua trajetória de vida. Veio de família pobre, filho de empregada doméstica e superou todas as dificuldades para se graduar e posteriormente lecionar na Universidade de São Paulo. Marxista militante, foi um lutador em defesa da educação e da universidade públicas, além de deputado pelo PT da constituinte que promulgou a Carta Constitucional de 1988. 

Uma das características do texto de Florestan é a alta densidade teórica, o que exige do leitor bastante atenção e uma leitura cuidadosa. O que é curioso é que mesmo trabalhos menos pretensiosos não deixam de postular um rigor científico característico do autor. Tivemos a oportunidade de resenhar um trabalho de Florestan sobre a Revolução Cubana (Ver: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/12/da-guerrilha-ao-socialismo-revolucao.html). Tratava-se de “mera” compilação de anotações para um curso dado sobre aquele acontecimento histórico na FFLCH-USP, o que resultou numa das melhores análises sociológicas e históricas em língua portuguesa sobre a luta na Sierra Mastra, incluindo um estudo inédito entre nós sobre a história colonial cubana. 

Processo semelhante pode ser dito sobre este livro de comentários acerca de textos de Marx, Engels e Lênin organizado pela Expressão Popular. Trata-se na verdade da reunião de prefácios escritos para uma coleção voltada ao público universitário que publicava trechos de obras de grandes pensadores das ciências sociais e históricas. Florestan não só escreveu os prefácios, mas participou da seleção dos textos e dos autores. 

Sobre esta coleção, comenta José Paulo Netto:

“Florestan escolheu, pautado apenas por critérios científicos rigorosos, os autores a serem publicados e os organizadores dos volumes e acompanhou cuidadosamente o processo de elaboração de cada um deles, oferecendo sugestões de várias ordens, sem jamais ferir a autonomia do organizador, que dispunha de inteira liberdade na seleção dos textos e na apresentação que redigia. A coleção, com a marca da seriedade intelectual que caracterizou o conjunto da vida e da obra de Florestan, contribuiu decisivamente para a constituição daquela cultura teórico social a que fiz referência e é, sem sombra de dúvida, uma marco na história das ciências sociais do Brasil”. 
Quanto aos textos de Marx e Engels, os textos selecionados abrangem praticamente a vida toda dos fundadores do socialismo científico. O ponto de partida são os Manuscritos de 1844 e a Ideologia Alemã, onde se dá o acerto de contas e ruptura  com a tradição filosófica idealista da Alemanha e a inauguração do método materialista dialético. 

Existe uma polêmica que divide os marxistas até hoje acerca da relação entre as obras de “juventude” (os manuscritos, a ideologia alemã, o manifesto de 1848) e as obras de “maturidade” (centralmente “O Capital”) em Marx. Para determinada corrente, existe uma clivagem entre estes dois momentos, sendo o Marx da juventude, um Marx humanista ainda não dotado de um ponto de vista científico. Esta é a perspectiva de Althusser, não muito em voga no Brasil, mas com bastante importância na França. Já há outra corrente, da qual Florestan Fernandes definitivamente se filia, que demonstra haver uma relação de continuidade entre as obras de juventude e maturidade, perspectiva que aqui no Brasil ganhou peso com um grande número de adeptos do pensamento do pensador húngaro György Lukács.

Esta consideração é importante, pois se filiando à segunda tradição, boa parte dos textos selecionados por Florestan Fernandes se encontram nos anos de 1844, 1848, 1850, onde o sociólogo já enxerga plenitude e cientificidade, ainda que posteriormente apuradas em Marx e Engels. Particularmente, a inovação dá-se com o materialismo dialético e sua consequente aplicação na interpretação da história: 

“A necessidade teórica levou-os (Marx e Engels) à história. Para ultrapassar as posições da filosofia da história hegeliana e dos seus críticos neo-hegelianos, eles recorreram a uma ciência da história, que era uma síntese das ciências sociais, coroada e presidida pelo ponto de vista histórico. A necessidade prática também os levou à história. Imersos na luta de classes, em um movimento operário internacional em pleno crescimento e na vanguarda das primeiras tentativas revolucionárias, foi para história que se voltaram. Se fossem socialistas ou comunistas utópicos, se se contentassem com a reforma social, poderiam ter paciência e aguardar. Revolucionários de uma nova estirpe, tiveram de buscar respostas nos fatos, investigando as guerras camponesas, as classes operárias na Inglaterra, a revolução e a contrarrevolução na França, na Alemanha e em outros países da Europa, o império de Luís Bonaparte, o significado da Comuna, etc.”

Reitera-se: os fundadores do marxismo não só ofereceram chaves explicativas para a história até então desconhecidas, mas demonstraram na prática que o apenas a passividade, ou nos dias de hoje o “academicismo” é incompatível com a práxis marxista. No mesmo sentido, Florestan aponta:

“Na verdade, a opção e a afirmação da história como ciência correm por dentro da luta de classes e do sentido último da história moderna. Ciência oficial e ideologia dominante são irmãs siameses. O historiador marxista, pelo menos, não pode ignorar esta lição, que procede a vida e do exemplo dos fundadores do materialismo histórico. Existe um padrão de congruência. Ninguém pode aderir a uma concepção materialista e dialética da história e ignorar as implicações morais e práticas do materialismo, da dialética e da história, recolhendo-se ao conforto da ciência oficial e ao silêncio ou ambiguidades”

Em uma palavra, exige-se coerência que poderia ser estendida do historiador a todo intelectual que fez sua opção de classe. Florestan seguiu rigorosamente esta coerência e prova disso foi sua dolorosa morte. Pouca gente talvez conheça esta história. Florestan Fernandes, como intelectual, comunista e parlamentar, sempre a defender os interesses públicos, dentre eles a saúde pública. No final da vida, doente, fez questão de ser tratado num hospital público, mesmo recebendo convites para se tratar nos melhores hospitais no exterior. Em entrevista num documentário sobre a vida de Florestan Fernandes, seu filho falou que, se tivesse aceito tratar seu problema de saúde no exterior,  teria salvo sua vida.  
  

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