segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

“Às Portas da Revolução – Escritos de Lênin de 1917” – Slavoj Zizec (Org.)

“Às Portas da Revolução – Escritos de Lênin de 1917” – Slavoj  Zizec (Org.)




Resenha Livro  203- “Às Portas da Revolução – Escritos de Lênin de 1917” – Slavoj  Zizec (Org.) – Ed. Boitempo

A Revolução Russa de 1917, diante das especificidades do desenvolvimento do capitalismo num país extremamente atrasado do ponto de vista social e político, envolveu num mesmo lance histórico duas etapas históricas. Enquanto em 1905, o que se passou no território russo foi um ensaio geral da revolução, os eventos de março e outubro de 1917 fizeram com que dentro de um ano a revolução passasse pela sua etapa burguesa com a derrubada do czarismo (o equivalente russo ao Antigo Regime que fora destruído em 1789 pela Revolução Francesa) e pela sua fase socialista com a tomada do poder político pelos bolcheviques – a revolução socialista propriamente dita envolveu a derrota das forças políticas vacilantes da pequena burguesia, os socialistas revolucionários e os capitalistas que dirigiam o país desde a queda do Czar, não entregaram a terra aos camponeses e não puseram fim à guerra, os principais clamores da população. Tais palavras de ordem seriam cumpridas pelos bolcheviques no poder. 

A seleção de textos de Lênin feita pelo filósofo esloveno Slavoj Zizec envolve justamente os meses que vão do retorno do dirigente bolchevique do exílio com sua chegada na Rússia em abril de 1917 até os momentos anteriores e imediatamente posteriores à tomada do poder pelo partido Bolchevique.

Observamos aqui como a importância da liderança de Lênin se sobressai e se apoia no seu profundo conhecimento das relações entre as classes e partidos da Rússia, ao caráter imperialista da Guerra Mundial, às possibilidades que a conjuntura oferecia para à tomada de poder: em suma àquilo que no jargão dentre os militantes chamamos de “análise de conjuntura” e "análise da correlação de forças" das classes sociais. Pois estes textos selecionados têm como fio comum este esforço de análise da conjuntura, da luta de classes mundial e da revolução na Rússia: são em sua maioria textos a serem divulgados amplamente com a aplicação da justa tática até a assimilação da revolução e da insurreição como uma “arte” em que qualquer vacilação ou recuo podem ser fatais – esta é, aliás, uma lição de Marx extraída de seu estudo sobre a Comuna de Paris. 

De outro lado, mesmo nesta tarefa mais imediata de esclarecimento da vanguarda e da base social que é a do proletariado, algumas passagens também possuem valioso conteúdo teórico. Por exemplo, em sua “Carta à Milícia Operária” datada de 11 (24) de Março de 1917 que deveria ser publicada no Pravda, há alguns apontamentos didáticos a serem destacados sobre o Estado:

“Necessitamos de um poder revolucionário, necessitamos (para um certo período de transição) de um Estado. É nisto que nos distinguimos dos anarquistas. A diferença entre os marxistas revolucionários e os anarquistas não consiste apenas no fato de que os primeiros são pela grande produção comunista centralizada e os segundos pela pequena produção dispersa. Não, a diferença quanto a questão do poder, do Estado, consiste em que nós somos pela utilização revolucionária de formas revolucionárias de Estado para lutar pelo  socialismo e os anarquistas são contra”

Outrossim, prossegue Lênin, os socialistas necessitam do Estado mas não do Estado criado pela burguesia em toda a parte, das monarquias constitucionais às repúblicas constitucionais. Os socialistas não necessitam de um estado com organismos de poder separados do povo e opostos ao povo sob a forma de polícia, exército e burocracia. In Verbis:

“Mas o proletariado, se quiser defender as conquistas da revolução atual e avançar, conquistar a paz, o pão,  e a liberdade, precisa “demolir “ – para usar as palavras de Marx – esta máquina de Estado já pronta e substituí-la por uma nova, fundindo a polícia, o exército e a burocracia com todo o povo armado. Seguindo a via apontada pela experiência da Comuna de Paris de 1871 e da Revolução Russa de 1905, o proletariado deve organizar e armar todos os setores mais pobres e explorados da população, para que eles próprios tomem diretamente nas suas mãos os órgãos do poder de Estado, constituam eles próprios as instituições desse poder”. 

Com relação a sequencia de eventos políticos que marcam o ano de 1917 na Rússia, é possível marcar uma inflexão na tática leninista. Até “Uma das questões fundamentais da revolução” (Setembro) Lênin ainda vê como possível, ainda que cada vez mais remota, uma solução pacífica da crise russa. “Todo Poder aos Soviets” é a única garantia de um futuro gradual, pacífico e tranquilo, sem uma revolução ou uma guerra civil que resolva o impasse civil numa catástrofe. 

A partir de então, com sua carta ao CC de Petrogrado e Moscou, Lênin muda de política: tendo obtido a maioria nos soviets de deputados operários e soldados de ambas as capitais, os bolcheviques podem e devem tomar o poder do estado em suas mãos. 

Por meio de uma tomada insurrecional do poder, os revolucionários devem propor imediatamente  uma paz democrática, entregar a terra aos camponeses, restabelecer as instituições e liberdades democráticas espezinhadas e destruídas por Kerenski. 

Lênin muda sua tática política devido às seguintes razões: cada vez mais o povo simpatiza e adere às políticas bolcheviques diante das vacilações dos partidos centristas, o levante no campo revela que só os bolcheviques podem ser consequentes quanto ao programa camponês  e do ponto de vista militar a composição de forças àquela altura (Outubro) era mais favorável ao partido de Lênin.     

Além da seleção dos textos, coube Slavoj Zizec a redação do prefácio e um longo pósfácio que não necessariamente se restringem ao tema Lênin e Revolução Russa. Os assuntos vão da psicanálise aos filmes de Hollywood,  havendo um especial interesse pela configuração do capitalismo contemporâneo, um capitalismo “cultural” que anuncia o fim da classe do trabalho mas que certamente depende dele, bem como da boa e velha mais valia para persistir. Zizec parece ser alguém que observa e fala desde o primeiro mundo, quando se refere comumente aos países do terceiro mundo, frequentemente utiliza a terceira pessoa do plural, em que pese ele próprio ser natural da Eslovenia. Neste aspecto há muito pouco de leninismo nesta clivagem, já que a lição que a Revolução Russa de 1917 deixou como legado (e o otimismo leninista, em particular ilustra-o bem) é a memória a se manter da possibilidade de se avançar em direção à uma revolução socialista num país relativamente atrasado, contrariando mesmo as previsões de Marx. 

Ainda assim, temos um filósofo que se coloca como comunista com grande repercussão em meios culturais e de comunicação, um pensador com grande repercussão que lança uma seleção de textos de Lênin quando não se constata a aceitação teórica do dirigente fora de círculos militantes.

Contrariando o que a maior parte da “crítica” deverá responder, os marxistas revolucionários deverão antes de tudo reivindicar Lênin como um autor de grande atualidade, particularmente no que se refere às suas atitudes. Diz-se que quando chegou do exílio disfarçado, desde a estação de Trem em Petrogrado, Lenin sabia que na cidade havia escaramuças e tiros. Contrariando o estigma do político oportunista, o revolucionário dirigiu-se ao bonde e solicitou-se que deixassem-no nos locais do conflito, onde a bala comia solta. Lênin representa o casamento mais sólido entre a teoria e a prática o que lhe valeu uma posição de liderança e confiança perante o partido e as massas. Este leninismo decorrente desta indissolúvel práxis é o que há de mais urgente frente às vacilações da esquerda de várias vertentes pós modernas. E ainda consolidava um profundo conhecimento teórico, tanto do marxismo, quanto da questão nacional - tamanha sua contribuição, parece-nos, faz com que hoje seja ainda necessário aos comunistas do séc. XIX reivindicar-se marxista-leninistas.



terça-feira, 24 de novembro de 2015

“Angústia” – Graciliano Ramos

“Angústia” – Graciliano Ramos 




Resenha Livro 202 – “Angústia” – Graciliano Ramos – Ed. Record
O escritor alagoano Graciliano Ramos é provavelmente o principal expoente da assim chamada segunda fase do modernismo literário no Brasil. Pode-se constatar uma solução de continuidade entre a primeira e a segunda geração de escritores do modernismo no que se refere à relação da temática nacional. Desde a Semana de 22 ou mesmo fora do âmbito das artes com a produção intelectual de autores como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda e Gyberto Freire, observa-se nas primeiras décadas do século vinte no Brasil todo um movimento intelectual no sentido de buscar retratar as especificidades do país, as chaves explicativas brasileiras desde nossos ranços coloniais, bem como criar uma nova arte autenticamente nacional. Este último ponto era denominador comum dos modernistas de 1922, que reuniam artistas que saíram em campo em busca de formas de comunicação oral, do folclore e da cultura popular e daí nasceram personagens como Macunaíma ou peças retratando o mundo do trabalho como as de Tarsila do Amaral. 
O escritores da 2ª fase do Modernismo deram uma continuidade a este movimento de descoberta da nação, desta vez a partir do regionalismo e da crítica social. Dentre os livros de Graciliano Ramos, aquele que talvez mais estaria próximo das demais obras produzidas por escritores como Rachel de Queirós, Amando Fontes e José Lins do Rego, certamente seria “Vidas Secas”. Temos aqui os dois aspectos mais marcantes daquela geração de escritores:  um retrato com lances líricos e retratos paisagísticos objetivos do sertão nordestino, uma família de retirantes expulsos da terra, lutando pela vida, diversas passagens que remontam à crítica aos poderes constituídos, incluídos o estado, desde quando Fabiano se insurge contra o soldado amarelo, é escorraçado e preso. E um processo que se perdura ao longo da narrativa de degradação da família ao longo de sua jornada, a redução de diálogos e frases a meras interjeições e a conformação do homem a animal, enquanto a cadela baleia parece sinalizar fenômeno inverso, o último reduto de humanidade naquela triste história de retirantes oprimidos pela natureza e pela sociedade. 

Angústia por outro lado é um romance cujo centro dá-se na cidade, mais especificamente na zona suburbana de Maceió, onde Luís da Silva, solteiro, um escrevinhador de jornal e burocrata, personagem narrador principal cria as bases de uma história de corte psicológico até então não observada nos demais romances de Graciliano Ramos: Caetés, São Bernardo e Vidas Secas. O romance é contado em primeira pessoa, consoante os fluxos de pensamento do autor que frequentemente embaralha suas percepções com o seu passado. Trata-se de uma história de um homem e de um mundo decadentes produto de um período histórico de transição em que todo um mundo rural de coronéis, donos de engenhos e cangaceiros igualmente cairiam por terra com o desenvolvimento gradual da cidade e da modernidade. 

Luís da Silva tem 35 anos e nasceu e viveu recluso na fazenda de propriedade de seu avô, Trajano Pereira de Aquino Cavalcante e Silva. Em tempos pretéritos, seu Trajano fora um típico coronel, dono não só de terra, mas com poder jurisdicional sobre o reduto, com poder de polícia junto aos seus homens (jagunços), cuidando das questões envolvendo terras, direito de família e castigando rapazes que defloravam moças. Em 1888 veio a abolição e os negros abandonaram a fazenda, exceto mestre Domingo que, já com a velhice do coronel, ia recolhe-lo na bodega, bêbedo de aguardente

“- Negro, tu não respeitas teu senhor não, negro”!

Diante das recordações da infância de Luís da Silva, o Avô já se encontrava debilitado pela velhice, pelo álcool e pela senilidade. E o pai de Luís, ao invés de dar trabalho junto à fazenda, passava o dia deitado na rede lendo livros. O resultado era que, na recordação de Luís da Silva, aquele mundo da Fazenda que num passado remoto certamente reunia os atributos de riqueza e poder estavam em plena decadência, com os cupins comendo lentamente o imóvel,  e durante as chuvas, todas as salas se enchendo de poças de água. 

Por todo romance observa-se que Luís da Silva sente-se como alguém deslocado. Em alguns momentos sente-se como um rato. Na rua anda olhando para baixo e isso faz com que a camisa dobre para cima, além de provocar trombadas junto aos demais transeuntes: nestes momentos, sempre pede perdão. Na fazenda do velho Trajano, quando criança, Luís sempre brincou só, até seu pai leva-lo até a escola aos 14 anos de idade “para ensinar este asno” as primeiras letras. O que ocorre é uma falta de pertencimento tanto ao mundo da intelectualidade pequeno burguesa que frequentará os cafés e eventos da cidades e ao mesmo tempo uma falta de identidade com os tipos populares diante da fala rebuscada de Luís, adquirida com o seu trabalho eminentemente intelectual nos jornais e na repartição pública. Em certa medida, Luís é uma expressão de um processo de modernização contraditória que se por um lado traz a lume a cidade, os bondes, as fábricas, os operários e os pequenos burgueses, ainda mantêm o patrimonialismo, a política oligárquica e a brutal segregação social.

“Os bordões do violão gemiam, as gargalhadas sonoras da mulher pintada enchiam a praça. A história que o homem acaboclado, de peito cabeludo e cicatrizes no rosto, contava ao engraxate devia ser interessante. Gestos expressivos, provavelmente façanhas de capueiras. Eu não compreendia a linguagem do narrador, as particularidades que provocavam admiração perdiam-se. As gargalhadas da mulher transformavam-se naquela viagem curta aos meus ouvidos, chegavam-me frias, geladas. E a marcha do carnaval entristecia nos bordões do pinho. Todas aquelas pessoas entendiam-se perfeitamente”. 

A história de Luís da Silva envolve uma série de episódios que vão revelando a personalidade atormentada. Vamos tendo conhecimento de que Luís pode ficar dias sem tomar banho mas tem uma mania doentia de lavar as mãos. Tem um amigo judeu que vive de emprestar dinheiro e é comunista, mas morre de medo de falar do assunto em frente às autoridades. E no que se refere ao amor e às mulheres, valeria tecer alguns comentários à parte. 

Certa feita, fumando e lendo em seu quintal, Luís da Silva observa uma nova vizinha e aos poucos vai conversando com ela. Com o tempo, Luís e Marina travam relações. Marina é uma garota jovem, talvez matreira, mas desperta fortes sentimentos de desejo sexual em Luís. Com o tempo, Luís consegue obter a mão dela em casamento junto aos pais. Faz todo esforço para comprar panos para o enxoval. Dá todo o dinheiro, faz dívidas, e a menina faz pouco caso do pobre escriba, como se esperasse alguém com melhores condições pecuniárias para fazer seu pé de meia. E ele veio, Julião Tavares, filho de um comerciante rico, que simplesmente apareceu como um conhecido de Luís, fez a corte e tomou Marina do protagonista. Não é nossa intenção contar muitos detalhes do livro: desta forma, aqueles que não leram “Angústia” podem se desinteressar pela leitura. Apenas pontuamos aqui esta passagem para sinalizar que as frustrações do narrador/Luís ganham espaço decisivo quanto às mulheres. Por outro lado não parece haver em qualquer passagem sentimentos amorosos em Luís - eventualmente, sua incapacidade de amar começa pela ausência de amor próprio. O que se constata é ciúmes, puros ciúmes por Marina e ódio mortal de seu rival: e o pensamento em Julião Tavares, um capitalista balofo, vem à mente do protagonista de forma obsessiva. Quanto à sentimentos de amor, formalmente são inexistentes em Luís. Sua orientação é a do pessimismo com alguns traços (não muito frequentes) de trágico-cômico:

“Sou tímido: quando me vejo diante de senhoras, emburro, digo besteiras. Trinta e cinco anos, funcionário público, homem de ocupações marcadas pelo regulamento. O Estado não me paga para eu olhar as pernas das garotas. E aquilo era uma garota. Além de tudo sei que sou feio. Perfeitamente, tenho espelho em casa. Os olhos baços, a boca muito grande, o nariz grosso”. 

Ademais, há um singular encontro com uma prostituta esfomeada. Luís passa algumas horas dentro de um quarto sujo com a mulher, sem qualquer contato sexual, logo rejeitado por Luís, que fuma ao seu canto. Passam algumas horas conversando. Ao final, quer pagar a prostituta, que não aceita o dinheiro. Luís da Silva sai com uma prostituta, fica duas horas num quarto sujo conversando com a mulher e grosseiramente aos gritos obriga a mulher a receber o dinheiro, já que ela não tem obrigação de ficar escutando suas lamentações. É um lance que revela sensibilidade de Luís, um temperamento misericordioso que suprime sua ausência de amor. 

Angústia é um dos pontos altos da literatura brasileira. Seu estilo é seco, sem fraseologia, sem senso comum, com palavras minuciosamente escolhidas, bem ao estilo do autor. Ademais, dentre as obras de Graciliano Ramos, é aquela que foi capaz de detalhar os traços íntimos e psicológicos de modo mais profundo de um personagem: tal análise psicológica vem por meio do próprio depoimento de Luís da Silva, um homem atormentado e que aparenta estar sempre remoído por um sentimento de culpa tal como Rodion Raskolnikon de "Crime e Castigo". É um romance que está no patamar das grandes obras literárias universais, motivo de orgulho para todos brasileiros. 

sábado, 14 de novembro de 2015

“João Miguel” – Rachel de Queiroz

“João Miguel” – Rachel de Queiroz 




Resenha Livro – 201 -“João Miguel” – Rachel de Queiroz – Ed. Siciliano


Rachel de Queiroz é um dos principais expoentes da 2ª fase do modernismo literário no Brasil. O modernismo é um movimento artístico que transcende a literatura e que tem como referência a Semana de Arte Moderna de 1922. Representa um marco na cultura Brasileira ao indicar o esforço de escritores, poetas e demais artistas em criarem uma arte genuinamente nacional, não só em sua temática, mas com autonomia quanto ao seu estilo. A título de exemplo podemos citar “Macunaíma” de Mário de Andrade, com a reprodução da oralidade e da forma de expressão popular e mesmo a conformação de um herói brasileiro que remete ao índio preguiçoso que vive conforme as contingências da vida uma aventura perpassando centros urbanos e paisagens de densas florestas tropicais.

A 2ª fase do modernismo de certa forma dá uma solução de continuidade a este nacionalismo, desta vez partindo para o regionalismo literário, especificamente da região nordeste, com uma específica presença da crítica social. São deste período obras de autores como Graciliano Ramos e seu “Vida Secas”, Amando Fontes e seu “Corumbas”, José Lins do Rego e seu “Fogo Morto”, além de Rachel de Queiroz. 

“João Miguel” foi publicado em 1932, é o segundo romance de autoria da escritora, restando evidente os traços mais evidentes dos escritores daquela geração: o foco da narrativa junto a personagens das classes populares, a crítica social (que se remete neste romance especificamente ao instituto da prisão), os traços de oralidade que permeiam a linguagem popular e o regionalismo, de uma forma geral. 

A crítica literária envolve mais do que uma mera atividade de classificação formal das obras dignas de nota. Em primeiro lugar, a crítica literária já deve ter como ponto de partida a escolha de quais obras devem ter alguma cidadania literária, possuir alguma relevância, seja poética, seja histórica, a partir da qual ela deverá ter como ponto de partida para reflexões e posteriores discussões. No caso de Rachel de Queiroz, bem como da maior parte dos autores  daquela geração de 1930 supracitados (Graciliano Ramos, José Lins do Rego, etc.), o resgate de suas obras e interpretação tem estes dois interesse, tanto poéticos quanto históricos. 

Neste último aspecto (histórico) não é muito difícil imaginar os motivos: os modernistas seguem um estilo bastante objetivo, próximo ao realismo literário, especialmente quando descrevem o ambiente das cenas, os traços físicos dos personagens e suas interações. No caso de “João Miguel”, temos uma história de um pobre cabra sem pai nem mãe, que sempre viveu da enxada e que, após uma briga no baile, depois de alguns goles de cachaça, mata outro cabra e é levado à prisão. 

Pelo estilo dos modernistas como Rachel, o leitor é levado a conhecer as instalações da prisão, desde células individuais, presos dormindo em suas redes, ou fazendo trabalhos artesanais, o transito relativamente livre dos detentos conforme um sistema informal de conquista de confiança junto ao “seu Doca”, que seria o equivalente ao Diretor do Estabelecimento, presos homens e mulheres juntos. 

O que queremos concluir aqui é que a objetividade seja na descrição do cenário seja na forma de contar a história cria no leitor atual um grande interesse histórico em conhecer, por exemplo, qual é a realidade carcerária do Brasil numa cidade (Baturité do Riachão) da caatinga nordestina nos idos do início do séc. XX. Aliás, aqui, a leitura do romance se combina com alguns pressupostos da história do Brasil: o ambiente em que se dá a narrativa é de um Brasil ainda distante de qualquer traço de modernidade, em que o poder econômico se funda no poder do latifúndio, o Brasil dos coronéis, onde o próprio João Miguel já reconhece, que apenas o pobre vai para a cadeia. A ausência de modernidade também diz respeito a uma cultura patriarcal baseada em relações de favor: não existe distribuição de comida aos presos, a não ser mediante algum pagamento à cozinheira, a disciplina interna é toda ela centralizada na figura de seu Doca que dirige o estabelecimento baseado em relações de confiança pessoal. 

Como dizíamos, para além do interesse histórico, uma crítica literária pode também ser de interesse quando remete a questões mais universais: trata-se do efeito poético da obra de arte que teria o condão de sensibilizar o leitor, proporcionar cogitações ou reflexões mais ou menos relevantes e que vão além do seu tempo. Grandes obras de arte costumar sobreviver ao tempo justamente em função desta característica particular. João Miguel também é uma romance com passagens psicológicas importantes. Esta é uma característica decisiva de autores como Rachel de Queiroz ou Graciliano Ramos. Foram capazes de promover uma certa cidadania filosófica a personagem de origem popular como retirantes nordestinos, ou no caso de “João Miguel”, a um simples preso, que mesmo sem estudo e com uma fala simples, é atormentado por sentimentos que revelam toda uma complexidade pessoal, provando que todo ser humano é um poço infinito de contradições – e desmentido certa concepção elitista e mesmo reacionária que vai no sentido de folclorizar o povo, entender que aquele que sofre é aquele que tem mais conhecimento e cultura. A título de exemplo, vejamos a passagem em que João Miguel sentia vergonha da sua indiferença pela falta de remorso:

“E então João Miguel sentia, como um remorso, a vergonha da sua indiferença. 
Quer dizer que a gente mata um homem, vira um criminoso – um criminoso! – e não fica diferente, sente a cabeça no mesmo lugar, fica com o mesmo coração?
Quando, antes, pensava que se talvez um dia chegasse a se desgraçar, a matar um vivente, haveria de ficar toda a vida com remorso, com a lembrança do defunto, do sangue, no sentido. E estava ali, sentindo o João Miguel de ontem e de sempre”. 

É de se destacar portanto que por meio do narrador afere-se que João Miguel, alguém que viveu sempre no roçado, abandonado sem pai nem mãe, semi-letrado, diante de um narrador capaz de captar seus pensamentos (oniconsciente) é bastante sensível, um traço de inteligência, aqui entendida em seu sentido específico de capacidade de compreender.  Esta característica de buscar junto ao povo seus protagonistas e dele aferir-se histórias com belas projeções poéticas é o que marca a escola modernista, especialmente desde a sua segunda fase regionalista. 

Ao visitar uma loja de revistas e livros na rodoviária do Terminal Rodoviário do Tietê em São Paulo, ou mesmo ao se constatar em busca de livros mais vendidos (em que pese a seriedade de tais pesquisas) não há autores nacionais e muito menos escritores que têm o condão de mudar a visão social de mundo dos leitores, acrescentar conhecimentos acerta da história social do país, promover cogitações filosóficas de maiores alcances. Livros de Machado de Assis e Graciliano Ramos deveria estar sempre dentre os primeiros mais vendidos, os brasileiros deveriam ter mais orgulho de escritores como Rachel de Queiroz. Este blog é um pequeno, minúsculo, esforço para se reverter esta triste situação. 



quinta-feira, 12 de novembro de 2015

“Ateísmo e Revolta” – Paulo Jonas de Lima Piva

“Ateísmo e Revolta” – Paulo Jonas de Lima Piva 



Resenha Livro – 200 - “Ateísmo e Revolta: os manuscritos do Padre Jean Meslier” – Paulo Jonas de Lima Piva – Ed. Alameda 
Quando pensamos no iluminismo certamente nos vêm à mente filósofos como Montesquieu com seu “O Espírito das Leis”, J. J. Rousseau e seu “Contrato Social”, os enciclopedistas como Diderot e D’alambert e o crítico aristocrata Voltaire, defensor incondicional da liberdade de expressão, o que lhe valeu em mais de uma ocasião a pena de prisão, em que pese sua condição de nobre. 
Poucos devem ter ouvido falar do cura Jean Meslier, autor da famosa frase consignada pelos estudantes do maio de 1968 francês: “O homem só será livre quando o último rei ser enforcado pelas tripas do último padre”.

Jean Meslier foi um cura de uma pequena província francesa entre 1692 e 1729.  Fazia parte do baixo clero francês e lidava cotidianamente com camponeses miseráveis, levando-se em consideração o contexto sócio-econômico da época. Vigorava-se então o Antigo Regime baseado no modo de produção feudal com a ampla penúria da esmagadora maioria da população pela fome e espoliação pelo tributo em pecúnia e em trabalho com a finalidade de sustentar as classes sociais que viviam do ócio, a nobreza e a Igreja. Ao longo de sua vida, Meslier revoltou-se com as condições sociais e iniquidades do povo, com a injusta desigualdade social e com a tirania do reinado absolutista de Luís XIV. Todavia, o cura de Étrépigny não poderia revoltar-se isoladamente desde sua longínqua província, caso contrário  teria uma morte certa. Em vida, consta que apenas teve alguns atos de rebeldia, como recusar-se a celebrar uma missa a um senhor de terras particularmente injusto e perverso com os seus servos, o que lhe valeu uma dura reprimenda dos seus superiores. O fato é que a rebeldia do Padre Meslier não se reduziu às condições sociais e políticas, mas à religião e mesmo à existência de deus. Ateu, anticristão, apologista de tiranocidas, materialista/realista, o padre desenvolveu um verdadeiro ponto de vista filosófico que deveria ser apenas revelado após a sua morte, literalmente como um testamento. 

Este estudo sobre Jean Meslier, de autoria de Paulo Jonas Piva, corresponde à tese de doutorado do filósofo brasileiro junto à Universidade de São Paulo. O intinerário da pesquisa parte de uma reflexão mais geral sobre ateísmo e revolta, para depois ir descendo lance a lance desde aspectos sobre as pesquisas acerca do cura Meslier até sua obra propriamente dita. Neste último ponto, digno de se tocar que Meslier foi inicialmente “decoberto” por Voltaire que teria modificado sensivelmente a obra do cura. Ocorre que obras como aquela, naquele contexto histórica, pertenciam a um gênero de manuscritos proibidos que circulavam clandestinamente e que, na certa, teriam sido modificados das versões originais. 

As principais referências originais que temos em mãos são as “Memórias” de Meslier e as “Cartas aos Curas”, que têm um tom politicamente mais ameno. Outro dado importante é que os estudos mas específicos sobre Meslier em seu país natal datam dos anos 1960-70. Por outro lado, em 1950, a obra dos textos disponíveis de Meslier na URSS já estavam em sua 8ª edição. Do ponto de vista político, podemos situar Meslier como um adversário da propriedade privada e defensor de uma sociedade comunal baseada no trabalho. A intransigente defesa do padre junto aos camponeses e ao trabalho comunal, bem como sua crítica aos tiranos e à relação promíscua entre Igreja e Estado, fez com que em plena URSS fosse construída uma estátua do cura junto a Marx e Engels. Sobre este aspecto do pensamento de Meslier, coloca Paulo Jonas:

“O terceiro abuso de caráter político social consentido pelos cristãos – talvez o mais grave e primordial de todos – que Meslier denuncia com toda a veemência é a apropriação particular dos bens da natureza e das riquezas da terra, ou seja, a propriedade privada dos meios de produção. Para além da posse da terra deveria ser comum, todos os homens deveriam viver em torno do trabalho, repartindo fraternalmente os frutos deste, mas também os dissabores da vida em comunidade. Enfim, os camponeses deveriam  viver como irmãos e irmãs, pacificamente, bem alimentados, bem vestidos e aquecidos, fazendo da sociedade uma grande e mesma família. Já a organização e a condução política dessa comunidade fundamentada na fraternidade e na união deveria ficar a cargo dos mais esclarecidos, dos mais sábios e dos mais bem intencionados no que concerne ao “bem público”, os quais, por suas virtudes, não exerceriam tiranicamente sobre os outros os seus poderes”. 

Outros alvos da crítica do cura é a religião e especificamente o cristianismo. Neste ponto, é importante ressaltar como parte de suas cogitações estão bastante à frente do seu tempo, o que é particularmente importante considerando as condições em que viveu: isolado numa província distinta, sem acesso a livros e aos debates de ideias da capital Paris, sob a vigilância restrita dos superiores no contexto do Absolutismo e da censura. O Padre defende o fim da indissolubilidade do casamento de forma coerente com o seu pensamento materialista, considerando que casais podem não mais terem afinidade, ocasionando conflitos que repercutem especialmente nas crianças, realidade observada desde sua paróquia e constatada pela vontade individual. Quanto à Igreja, sua condição de padre provavelmente deve ter lhe causado grande sofrimento pessoal já que via em todo ritual das missas uma encenação de origem pagã a começar pela hóstia e vinho representando o corpo e sangue de cristo. Em suas memórias, a sua crítica à religião remonta à história da religião apontando incongruências e contradições:

“É nessa direção, portanto, que o pregador ateu e anticristo de Etrépigny procura reconstruir sucintamente a história do cristianismo valendo-se das declarações de historiadores e literatos célebres como Tácito e Luciano, entre outros. Para Luciano, por exemplo, os cristão seriam uns miseráveis que desprezam a vida terrena e a morte em função de uma esperança cega na imortalidade. Meslier lança mão de opiniões como essa para realizar o seu intento de desacreditar o cristianismo e, consequentemente a Igreja. Todos os historiadores citados por ele – ao que tudo indica via Montaigne, diga-se de passagem – são unânimes em sugerir que o cristianismo sempre foi um “vil e desprezível fanatismo”  uma seita nociva e supersticiosa desde os seus primórdios. O ódio, a perseguição, a humilhação e sobretudo o sofrimento marcaram o destino desta religião desde os primeiros cristãos. Estes, aliás, de acordo com Meslier sempre acreditaram em loucuras e que suas ideias grotescas fossem sapiências, que elas representassem no fundo, uma sabedoria de fundo sobrenatural e portanto que fosse  superior às demais crenças e doutrinas". 

E qual tipo de verdade é sustentada pelo Padre? A perspectiva filosófica é de um materialismo do tipo realista e racionalista. Por meio dele, só se afere a existência daquilo que se constata por meio dos sentidos e por meio da razão. O ser confunde-se com a matéria – o que não há materialmente não existe, o que exclui o nada e o que não possibilita a existência de deus. Aliás, o ateísmo do padre não só é justificado como decorrência do seu ponto de vista filosófico mas por meio da razão:

“Ora, pondera Meslier, é absurdo e ridículo pensar que um deus sábio, benevolente e inacessível poderia ser afetado, seja ofendendo-se, seja entristecendo-se por erros triviais ou mesmo por erros mais graves cometidos por nós, ínfimos e imperfeitos seres. Ademais, um ser perfeito não teria paixões, uma vez que este deveria ser, segundo a reta razão, “invulnerável, inalterável e impassível”. Deus, portanto, não poderá jamais indignar-se com o que quer que seja. Estamos desse modo diante de um grandioso contra-senso. Se Deus é impassível, ou seja, se Deus não pode ter nenhuma espécie de paixão, pois do contrário, ele seria vulnerável e alterável, podemos perguntar o seguinte: como então o deus judaico-cristão e dos teólogos pode ser infinitamente misericordioso visto que a misericórdia é uma paixão?”

Em que pese toda a radicalidade política e metafísica do seu pensamento, Jean Meslier ainda não adquiriu a cidadania filosófica dos demais filósofos iluministas que em geral tiveram posições mais moderadas do que a do cura. Ao que tudo indica, nem mesmo Marx teve conhecimento das obras de Meslier e não o citou como parte do arcabouço de pensadores do materialismo francês. Da mesmo forma, Engels igualmente ignorou o cura e poderia o ter situado como um elemento radical dos socialismos utópicos em seu “Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico” de Anti Duhring. De toda a forma, tal arcabouço teórico teria o condão de servir como elemento constitutivo de diversos movimentos que colocariam abaixo o Antigo Regime monárquico por toda a Europa, serviriam de inspiração para a elaboração de constituições e novos movimentos de cunho republicano e avançariam rumo a novas diretrizes socialistas. Meslier deve adquirir cidadania filosófica por seu pioneirismo e sua originalidade, além de ser tributário da tradição igualitarista. Seu horizonte político é a igualdade e a fraternidade, os comunistas devem reivindica-lo desde que se colocou ao lado dos oprimidos de seu tempo.    



terça-feira, 3 de novembro de 2015

“Noite Na Taverna” – Álvares de Azevedo

“Noite Na Taverna” – Álvares de Azevedo 




Resenha Livro –  199 - “Noite Na Taverna” – Álvares de Azevedo – Ed. Francisco Alves

Álvares de Azevedo é nosso principal escritor da assim denominada Segunda Fase do Romantismo. 

O Romantismo Literário (1ª fase) tem no Brasil autores influenciados pelo nacionalismo decorrente da autonomia política desde os eventos políticos da independência, bem como o próprio ufanismo, ressaltando as belezas naturais e o indianismo. A primeira geração romântica é a fase nacionalista com a valorização da natureza pátria, incluindo a figura do índio, tendo como principais representantes na prosa José de Alencar e na poesia Gonçalves dias. 

A segunda fase do Romantismo marca uma mudança de foco. Aqui observa-se a influência do romantismo alemão e de escritores como Lord Byron e Edgar Poe. Ao invés de buscar exaltar a realidade, os poetas românticos se caracterizam pela fuga da realidade, seja por meio da alteração do estado de consciência por via do vinho, ou por narrativas em que a realidade se confunde com o sonho ou mesmo com o desfalecimento/morte. Nesta fase do romantismo, predomina-se o subjetivismo, o pessimismo, a sensualidade e o apelo ao desejo pelo sexo feminino, bem como uma constante cogitação acerca do problema da morte. No plano de sua mística, referem-se bastante à Bacco, o deus do vinho e desde o ponto de vista filosófico  rementem ao filósofo alemão Arthur Shoppenhauer 

Álvares de Azevedo é sem sombra de dúvidas o escritor que melhor sintetiza as características do romantismo em sua segunda fase. E também como muitos escritores de sua geração, teve sua vida imbricada com sua poética, o que iria redundar, infelizmente, em sua morte prematura, aos 20 anos de idade. 

Alvares de Azevedo nasceu em 1831 em São Paulo. Posteriormente sua família iria mudar-se para o Rio Janeiro. Um fato importante e significativo é que aos 4 anos de idade, o futuro escritor perdeu um irmão pequenino. Segundo o crítico literário Hildon Rocha, “a impressão fora tão arrasadora que o menino, até ali sadio e sem inspirar cuidado, adoecera gravemente, perdendo a vivacidade e a boa constituição física”. 

Relata-se que durante o ensino escolar, o estudante teve um rendimento excepcional, exceto nos jogos de esporte físico. Álvares de Azevedo estudou no tradicional Pedro II, recebendo menção honrosa na colação de grau, para em seguida matricular-se na Faculdade de Direito do Largo de São Franscisco em São Paulo. 

Em que pese as histórias de boemias e estudantadas que ronda os alunos da Academia de Direito de São Paulo, ao que tudo indica, Álvares de Azevedo apenas vivenciou em seus sonhos e desde lá em seus contos, poemas e peças de teatros a vida boêmia. Nunca executou na prática, para ficarmos com as relatadas em “Noite na Taverna”, Necrofilia, Antropofagia, Raptos de Mulheres e duelos a bala, ou qualquer coisa do tipo. O aluno Álvares de Azevedo foi um bacharel dedicado, o que resta consignado nas notas e no convite para discursar em evento relacionado ao aniversário da instituição de cursos jurídicos no país. Provavelmente, não haveria tempo para dedicar-se à arruaça e aos estudos e escritos literários, aos estudos curriculares e às leituras extra-curriculares que aquele jovem talento já se voltava como Hegel, Rousseau e Guizot. 

A questão da morte reapareceria durante seus estudos nas Arcadas. Em 1850 e 1851 há a morte consecutiva de dois alunos do quinto ano da Faculdade. Álvares de Azevedo chega a premeditar sua morte: conta-se que na república estudantil onde morava, colocou as datas da morte dos colegas e o ano de 1852 em aberto, ano que seria o da sua morte. Chegou a escrever alguns versos antevendo o evento. E num passeio a cavalo em 1852 leva uma queda sobrevindo um tumor na fossa ilíaca que o levaria à morte no dia 25 de Abril de 1852. 

Certamente foi como que teria tudo para evoluir no sentido de uma carreira literária brilhante. “Noite Na Taverna” não parece ter sido escrito por alguém tão jovem, mesmo porque as histórias relatadas e conversadas numa taverna dentre o vinho e a embriaguez envolvem não só histórias propriamente ditas mas concepções sobre a morte, a existência ou a imortalidade da alma:

“ – Calai-vos malditos! A imortalidade da alma? Pobres doidos! e porque a alma é bela, e porque não concebeis que esse ideal possa tornar-se em Iodo e podrião, como as faces belas de uma virgem morta, não podeis crer que ela morra? Doidos! Nunca velada levastes porventura uma noite à cabeceira de um cadáver? E então não duvidastes que ele não era morto, que aquele peito e aquela fronte iam palpitar de novo, aquelas pálpebras iam-se abrir-se, que era apenas o ópio do sono que emudecia aquele homem?”

Em cada capítulo, nomeado pelo narrador da história, temos um relato que envolve tanto no estilo quanto no conteúdo as diretrizes gerais do romantismo: uma mistura de pessimismo, desolação e ironia diante do destino, histórias com finais trágicos, banhadas de sangue, forte presença do amor pela mulher como força motriz das histórias. 

Um exercício interessante é buscar comparar como o amor é talhado pelos românticos, de forma diametricamente oposta a posterior escola realista. Aqui o amor pela mulher justifica do mais perverso ao mais altruísta dos atos, é quase como um fim em si mesmo e perpassa, basicamente, todas as histórias de “Noite nas Tavernas”. Pela narrativa romântica, o amor quando é real é o único fio de esperança diante de uma vida toda ela sem sentido, valendo-se a pena fazer de tudo, inclusive morrer, pelo....amor. E chegamos a ultrarromantismo, o amor como lado oposto da morte, sempre o amor pela mulher, que vai se desmembrar mesmo em passagens quase grotescas como a necrofilia, ao adultério, ao rapto. Numa virada total, o amor passa pelo crivo da crítica e passaria, desde o realismo, a ser observado em bases mais realistas, ou mesmo irônicas, nos livros de maturidade de Machado de Assis ou Eça de Queirós. 

Todava, em Álvares de Azevedo, trata-se de um sentimentalismo bem assentado, não piegas:

“Ela ajoelhou-se: nem sei o que ela dizia. Não sei que palavras evaporaram daqueles lábios: eram perfumes, porque as rosas do céu só têm perfumes; eram harmoniosas, porque as harpas do céu só têm harmoniosas; e o lábio da mulher bela é uma rosa divina, e seu coração é uma harpa do céu. Eu a escutava, mas não a entendia; sentia só que aquelas falas eram muito doces, que aquela voz tinha um talismã irresistível para minha alma, porque só nos meus sonhos de infante que se ilude de amores, uma voz assim passara. Os gemidos de duas virgens abraçadas no céu, doiradas da luz da face de Deus, empaliçadas pelos beijos mais puros, pelo tremuloso dos abraços mais palpitantes – não seriam tão suaves assim”.

O conhecimento da literatura nacional e a disseminação deste conhecimento, para além do que formalmente consta nos currículos escolares, é de importância fundamental para criar e manter a memória histórica. Sem um consistente conhecimento sobre nosso passado literário e de maneira geral sobre a história da cultura brasileira, restará prejudicado movimentos que se proponham a intervir para alterar e modificar a atual dinâmica cultural embrutecida pela Industria Cultural, seja na literatura, música, etc. 

sábado, 31 de outubro de 2015

“Caio Prado Júnior – O Sentido da Revolução”- Lincoln Secco

“Caio Prado Júnior – O Sentido da Revolução”- Lincoln Secco



Resenha Livro – 198 -  “Caio Prado Júnior – O Sentido da Revolução” – Ed. Boitempo – Coleção Retratos Paulicéia 

Existem diversas formas de se traçar a biografia de um grande vulto da história. Uma possibilidade, talvez de menor valor científico, corresponde a fazer um inventário enciclopédico dos principais feitos do personagem ao longo da história, ficando a cargo do leitor extrair a relevância histórica do biografado. 

Uma biografia como um gênero da história enquanto disciplina é muito mais do que isso. Envolve em primeiro lugar a seleção de indivíduos dignos de serem objeto de uma biografia, o que sem dúvida é o caso de Caio Prado Júnior. Este foi historiador, economista, geógrafo,  filósofo e ativista do partido comunista, além de parlamentar. Destacou-se como historiador do Brasil, praticamente fundado os estudos de nosso passado colonial desde bases materialistas. Projetou-se na história como interlocutor de grandes debates, particularmente sobre a questão agrária, e influenciou o rumo dos acontecimentos da nossa trajetória, como um intelectual orgânico, seja na academia, seja como militante partidário, seja no parlamento. 

Outrossim, não só pela escolha temática uma biografia tem o condão de ser classificada como um ramo da história. Ao lermos sobre a vida, a trajetória pessoal e militante, as ideias e os impactos de pensamento e produção teórica de Caio Prado, o biógrafo Lincoln Secco nos oferece um panorama da história das ideias do Brasil entre os anos de 1930 desde a geração modernista até os anos 1970-1980, até mesmo especificamente a evolução dos embates teóricos específicos da esquerda e do PCB dos quais Caio Prado se envolveu, mais diretamente a partir de sua adesão em 1931 até a casacão de seu mandato em 1948. A biografia é um gênero da história quando a história do indivíduo se confunde com a processualidade ou a dinâmica dos acontecimentos mais gerais em que está inserida, sendo como um ponto cardeal da história das ideias e da cultura, bem como a expressão de diversos contextos históricos aparentemente sem sentido. 

Caio Prado Júnior vem de origem de família rica e tradicional de São Paulo. Por um lado a família Prado, da qual sairiam proprietários de fazendas de cafés, prefeito da cidade e outros parlamentares e também do ramo por parte de avós da família Conde Álvares Penteado, que ainda hoje mantém fundação conhecida na cidade. Importante ressaltar que nas vezes em que esteve preso por envolvimento com atividades políticas ligadas ao PCB, Caio nunca se serviu de suas influências familiares para se safar das penas em detrimento dos demais companheiros – foi preso pela primeira vez em 1935, quatro anos após a adesão ao PCB, em 1948, um ano após sua cassação de deputado constituinte em São Paulo e depois na ditadura militar nos anos 1970. Quando muito, sua ligação com o partido serviu de entreveros na família e fontes de volumosos empréstimos junto ao partido.

É de se colocar que a adesão de Caio Prado, como filho das classes mais abastadas de São Paulo, era vista com desconfiança pelo partido, principalmente em sua fase mais obreirista, durante os anos de 1930, com a ascensão de Prestes na direção do PCB. Lincoln Secco acredita que sua adesão se dava por uma crença de que aquele partido sinalizava um projeto de modernização, uma perspectiva civilizatória, O que tornava explicável aquele aparente paradoxo – um filho da elite mais bastarda, recém saído da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco aderindo ao partido do proletariado:

“Tendo alta origem social, ele (Caio Prado Júnior) mais de uma vez falou acerca do quanto a degradação dos que estavam embaixo degradava igualmente os que estavam em cima. (....) Caio Prado Júnior até o fim na mesma linha daquele discurso antes citado: compreendendo que havia uma relação proporcional entre a miséria moral e cultural da população e o baixo nível político das classes dominantes. Tal situação, para ele, não interessava ambas as classes. Nesse sentido, ele se filia muito mais a uma tradição de contestação intelectual  que remonta a José Bonifácio – que via na degradação do escravo a degradação do próprio senhor – e que passa por Manoel Bonfim e outros  que escolheram a defesa da “ das classes dos desprotegidos”. 

Posteriormente, como deputado, ficaria assombrado como mesmo os supostos representantes da classe dirigente o faziam de modo distorcido, prevalecendo as relações patrimoniais e de compadrio.

Caio Prado Júnior enquanto deputado da constituinte não entendia que o papel dos comunistas era o de mera agitação e denuncia do parlamento burguês. Com formação em direito, passou à minucioso estudo das leis financeiras e tributárias e fez projeto de lei que incidisse tributos sobre as grandes propriedades rurais, e diminuísse a oneração fiscal sobre a circulação de mercadorias, desenvolvendo o consumo interno e inviabilizando economicamente terras ociosas que deveriam ser destinadas ao uso produtivo. Nesse sentido, Caio Prado sempre tinha uma orientação prática, tendo como horizonte estratégico o aumento do nível de renda popular, sem demagogias. Por isso criticou asperamente João Goulart (que neste ponto era apoiado pelo PCB) por sua infrutífera proposta de reforma agrária nas beiras das rodovias. O que se quer destacar aqui é que a originalidade de Caio Prado Jr., que depois se traduziria em seus estudos e análises sobre o Brasil, estava sempre em fazer aquilo que Lênin colocava como “análise concreta da situação concreta” – assim, chegou à conclusão de que não havia feudalismo no Brasil partindo de premissas da nossa realidade e não de premissas teóricas com que Marx analisou a Europa, especificamente o campesinato francês. 

Como se sabe, o marxismo no Brasil foi basicamente recepcionado pelo Partido Comunista do Brasil sob os auspícios da Internacional Comunista. Sob esta perspectiva, nasceram tensões entre o pensamento original de Caio Prado e o partido. A verdade é que, ainda que o historiador tenha sido deputado nos anos 1940, ele nunca exerceu (e nunca pareceu querer exercer) um papel de liderança no PCB. Há depoimentos de que nas reuniões costumava ficar calado ou fazer intervenções pontuais, de cunho prático. Como dito, havia desconfianças em relação a ele no partido  e, quando Caio Prado Jr. já era um intelectual de renome, atuava de forma independente através de uma revista de nome de sua próprio editora, a Brasiliense. 

De qualquer forma, um dos grandes pontos do marxismo em Caio Prado Jr. é a superação das esquematizações de cunho quase positivista do nosso marxismo primitivo:

“Apesar desta tradição intelectual pobre, Caio Prado Júnior partiu desde cedo em busca de interpretar sem copiar. Numa carta a Lívio Xavier, de 20 de setembro de 1933, ele escreveu: ‘ É um critério absolutamente errado este de procurar enquadrar artificialmente os fatos brasileiros nos esquemas que Marx traçou para a Europa”. E foi isso que procurou evitar em sua obra. Mais tarde, diria com exagero: “Somos ainda, no âmago de nossa racionalidade, escolásticos inconscientes. Herdamos isso de nossa mãe pátria portuguesa, esse país que, ao contrário do restante da Europa, não teve Renascimento, e prolongou pelos tempos modernos afora o respeito aristotélico dos textos consagrados”. 

Afora o forte tom irônico, certamente o próprio Marx em vida zombaria de seguidores de sua obra que  dela fizessem uma escolástica, perdendo de vida a preocupação científica que o autor alemão procurou dar ao seu trabalho. O compromisso do historiador paulista bem como ativista do PCB foi com a busca pela verdade, o que aliás fez com que dele nascesse o projeto de lei de incentivo à pesquisa científica que hoje conhecemos em São Paulo como Fapesp. 

Outras grandes contribuições de Caio Prado Júnior envolvem sua interpretação pioneira sobre o passado colonial e o conceito de sentido da colonização – que, segundo  Lincoln Secco ainda é parcialmente válido em pleno séc. XXI, para a infelicidade do país; também citamos o  trabalho como editor na Brasiliense e seu enorme volume de produção acadêmica. Como sempre foi coerente com sua visão social de mundo, a universidade jamais soube aproveitá-lo – Caio Prado foi aprovado como professor para lecionar nas faculdades de Direito da USP e na Faculdade de História e Geografia da mesma instituição mas, com o período de exceção, seu nome foi rejeitado. 

Ainda que não se concorde com suas ideias, os revolucionários devem saudar Caio. Caio Prado Jr. deve ser reivindicado pela somatória de seus predicados (economista, geógrafo, historiador, filósofo, parlamentar, militante do PCB) e, mais importante, como alguém que emana luz pelos caminhos da Revolução Brasileiro, por sinal o título de um se seus mais polêmicos e importantes  livros. 

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

“Contos Novos” – Mário de Andrade

“Contos Novos” – Mário de Andrade 




Resenha Livro – 197 - “Contos Novos” – Mário de Andrade – Ed. Klick

“Contos Novos” foram publicados postumamente, em 1947, dois anos após a morte de Mário de Andrade. Este deve ser reconhecido pelos leitores por sua principal obra, “Macunaíma”, personagem alegórico que representa diversas facetas folclóricas do Brasil, desde o índio até o morador de rua, ora um homem cordial, ora um malandro, sempre com preguiça e se virando diante das vicissitudes da vida. 

Mário de Andrade teve especial participação na Semana da Arte Moderna de 1922 que lançou as bases do movimento artístico modernista no Brasil. Tal movimento teria como pressuposto a criação, pela primeira vez, de uma arte verdadeiramente nacional, não só na temática (que de resto já se observava por exemplo nos românticos de primeira ora, como em José de Alencar e seu indianismo), mas principalmente na forma e no estilo, reivindicando a oralidade e os trejeitos populares, bem como a visão social de mundo brasileira. A Semana de Arte Moderna envolveu nas letras escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Guilherme de Almeida; nas artes plásticas Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti e na música Villa Lobos. A força motriz daquela manifestação artística era a da liberdade e independência artísticas frente às influências externas, e especificamente nas letras, utilização poética de versos livres e reprodução da oralidade nos textos, um traço especificamente marcante na produção de Mário de Andrade. 

Importante destacar que o modernismo resvala também para o estudo das ciências humanas entre 1920-1930. É neste período que autores se defrontaram com o problema da identidade nacional, buscando estudar nossas especificidades e nossas origens remotas. Nesse sentido, três obras e autores são fundamentais. “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda que desde a sociologia revela aspectos genérico do povo brasileiro; Gilberto Freyre com “Casa Grande e Senzala” diante de um estudo culturalista aborda os meandros da vida colonial, desde as relações sociais, culturais ou mesmo religiosas, sexuais, etc; e Caio Prado Júnior com seu “Formação do Brasil Contemporâneo” inaugurará uma historiografia verdadeiramente brasileira estabelecendo os sentidos de nossa colonização. 

“Contos Novos” reúnem 9 histórias já da fase de plena maturidade artística do autor. Aqui, sobressaem menos os elementos de vanguarda que demarcam as obras anteriores e sobressaem certa sobriedade, com enfoque especial aos traços mais humanos de determinados personagens. Em outras palavras, não encontramos nos “Contos Novos” aquela intenção experimental relacionada a um romance de vanguarda como é “Macunaíma” (1928), mas uma orientação narrativa mais contida e sutil, com uma busca maior ora das sondagens da alma humana ora dos efeitos dos encontros e desencontros das personagens. 

“Vestido de Preto” e “O Ladrão” a sua maneira ganham o leitor pelo descompasso e a dinâmica da narrativa. No primeiro conto, narrada em primeira pessoa, conta-se a história de um primeiro beijo de primos na infância, beijo dado pelo narrador, Juca. A riqueza de detalhes do evento, incluindo o impedimento da continuação da “brincadeira” pela Tia Velha revelam como aquele beijo sensibilizou e impactou o narrador – criou-lhe amor pela prima por décadas a fio. Posteriormente a prima cresceu e deixou de reparar no primo. Juca beijou um livro empoeirado e passou a se dedicar com afinco às leituras. Há aqui um corte temporal com um reencontro entre o “casal” décadas depois, quando Maria está morando na Europa e encontra-se de passagem no Brasil em banquete. Juca decidiu-se ir ao evento ainda resistindo ao amor da infância:

“Contemplando a gravura cor-de-rosa, senti de sopetão que tinha mais alguém na saleta, virei. Maria estava na porta, olhando para mim, se rindo, toda vestida de preto. Olhem: eu sei que a gente exagera em amor: não insisto. Mas se eu já tive a sensação da vontade de Deus, foi ver Maria assim, toda de preto vestida, fantasticamente mulher. Meu corpo soluçou todinho e tornei a ficar estarrecido”. 

Como o domínio da narrativa pertence a Juca, ficamos sem saber se houve ou não houve de fato um encontro. O que é certo é que enquanto o amor do narrador persiste, sua prima, mal se lembrando do parente, parte para Europa e ignora sua existência. Esta indefinição que abre a narrativa para distintas possibilidades para interpretações é recorrente nos contos, tornando-os sempre imprevisíveis. 

Expediente semelhante dá-se com “O Ladrão”. O conto inicia com o grito de alarme que mobiliza todo um cortiço em plena noite em busca de um suposto ladrão. Os homens mais valentes dirigidos por um polícia seguem no encalço do larápio e o evento acaba significando certo momento de confraternização entre os moradores: alguns dentro de casa pela janela comentam o fato, outros na rua discutindo o caso e dando (quem sabe inventando) explicações para a disparada, até o ponto em que só resta a vigília. E aos poucos cada qual vai tomando o seu rumo com o fim do “divertimento”: sem se saber de fato se tratar-se-ia de um ladrão:   

“A rua estava deserta de novo quase morta, janelas fechadas. A valsa acabara o bis. Só o violinista estava ali, fumando, fumegando muito, olhando sem ver, totalmente desamparado, sem nenhum sono, agarrando a não sei que que esperança de que alguém, alguma garota linda, um fotógrafo, um milionário disfarçado, lhe pedisse pra tocar mais uma vez. Acabou fechando a janela também. 

Lá na outra esquina do outro quarteirão, ficara um último grupinho de três, conversando. Mas é que lá passava bonde.”

Talvez o conto com conteúdo mais político seja o “1º de Maio”. O protagonista é um operário que trabalha na estação de trem da luz como carregador cujo nome é 35. No feriado do dia do trabalhador acordou eufórico com a intenção de participar das solenidades. Seu nome remete ao ano de 1935 – ano do mal sucedido levante comunista que redundaria na edição do Estado Novo varguista dois anos mais tarde. Da mesma forma que Prestes na Intentona, 35 igualmente teria uma expectativa muito alta de seus camaradas quanto à sua consciência de classe:

“(35) ia devagar porque estava matutando. Era esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas fuças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grande “motins” do primeiro de maio em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri”.

“35” vestiu a sua melhor roupa e dirigiu-se à Sé. No caminho encontra os colegas de trabalho que estão na labuta e mangam dele. Na Sé, tudo vazio, exceto a grande quantidade de policiais. Posteriormente, descobre pelos jornais que em São Paulo a polícia proibira comícios na rua e passeatas. Haveria apenas um discurso do “ilustre” Secretário do Trabalho no Palácio das Indústrias. 

As cogitações internas de 35 envolvem a decepção, ora com o estado de coisas, ora com seus companheiros de trabalho, que mangam de algo que  35 obviamente julga sério, ainda que sua consciência de classe ainda se dê por “leituras de jornais”, sem a participação de mobilizações, ao que tudo indica. Todavia, o término do conto serve como uma luz no fim do túnel: 35 não desiste de sua classe e num ato de solidariedade ajuda um companheiro carregador de malas, num gesto altruísta, remetendo ao que há de mais essencial nas relações entre trabalhadores oprimidos, a camaradagem.  

sábado, 24 de outubro de 2015

“A Ideologia Alemã” – Karl Marx e Friederich Engels

“A Ideologia Alemã” – Karl Marx e Friederich Engels 



Resenha Livro – 196 - “A Ideologia Alemã” – Karl Marx e Friederich Engels – Ed. Martins Fontes 

Os manuscritos reunidos e publicados sob o nome “A Ideologia Alemã” datam de 1845, quando Marx e Engels tinham 30 e poucos anos. Segundo Althusser, os escritos têm a importância de delinear o marco divisório entre o jovem Marx e o Marx maduro, o que de resto é bastante controverso dentre os marxistas: o que o próprio Althusser denomina corte epsitemológico na obra de Marx. 

O que é fato histórico: os dois fundadores do socialismo científico não encontraram editora interessada em publicar o livro, um duro ataque ao hegemônico sistema filosófico idealista alemão (partindo de Hegel, à Bruno Bauer e Max Stiner) e ao materialismo  contemplativo de Feuerbach. 

Nem por isso perderam o bom humor e deixaram os manuscritos engavetados “à crítica dos roedores”.  Eventualmente, mais importante do que a publicação da obra, o que era decisivo aos estudiosos e fundadores da tradição do socialismo científico era cogitar e pensar questões quer seriam posteriormente melhor delineadas em obras posteriores. 

Assim temos em A Ideologia Alemã especialmente presente a ideia do materialismo histórico, o combate ao idealismo da filosofia da história, de tipo especulativa, segundo a qual a Ideia ou o Homem, movem as relações materiais. Entendem por outro lado que as relações entre os modos de troca e o desenvolvimento determinado das forças produtivas é que ao longo da histórica foram engendrando as reprentações da ideia, da noção do homem sobre si mesmo, da religião ou mesmo do estado. Em tempos modernos, este embate entre os modos de troca e o desenvolvimento determinado das forças produtivas são genericamente colocados como sociedade civil. 

Antes de passar aos conceitos, mais algumas considerações sobre a obra. “A Ideologia Alemã” só foi “descoberta” e publicada em 1932. Isso significa que toda uma geração de marxistas (como Lênin) não teve contato com a obra. Não é um fato significativo, já que é um livro que não destoa mas que antecipa conceitos que seriam melhor delineados posteriormente, como a ideia de alienação do trabalho (O Capital) ou mesmo a noção da sociedade comunista que surge nas glosas da crítica do programa de Gotha, entre outros. A edição a que tivemos acesso correspondente à da Ed. Martins Fontes conta com uma introdução do historiador marxista brasileiro Jacob Gorender, ao texto integral de Ideologia Alemã e às 11 teses sobre Feuerbach. 

Como dizíamos, a “Ideologia Alemã” é um livro voltado à polêmica e denota a ruptura de Marx com os jovens hegelianos (que invertem a noção/percepção do mundo sem conceber a centralidade das relações de produção e as forças produtivas como elemento fundante do desenvolvimento histórico) bem como com o materialismo limitado de Feuerbach que se volta contra a religião sem levar em consideração as relações sociais que engendram a alienação religiosa. 

Dentro deste esboço crítico Marx é obrigado a perpassar por uma série de conceitos que ficariam definitivamente associados à sua orientação filosófica. Em Ideologia Alemã, o que há de mais importante é a filosofia/metodologia da história que Marx desenvolve como materialismo histórico. 

Assim sintetiza Marx:

“Eis portanto os fatos: indivíduos determinados com atividades produtivas segundo um modo determinado entram em relações sociais e políticas determinadas. Em cada caso isolado, a observação empírica deve demonstrar nos fatos, e sem nenhuma especulação ou mistificação, a ligação entre a estrutura social e a política e a produção. A estrutura social e o Estado nascem continuamente do processo vital de indivíduos determinados; mas estes indivíduos não são tais como aparecem na representação que fazem de si mesmos ou na representações que fazem os outros deles, mas na sua existência real, isto é , tais como trabalham e produzem materialmente: portanto, do modo como atuam em bases, condições e limites materiais determinados e independentes de sua vontade.

A produção das ideias, das representações e da consciência  está , à princípio, direta intimamente ligada à atividade material e ao comércio dos homens”.

É necessário não subestimar a força destas palavras e a forma como elas antecedem em décadas problemas que a denominada filosofia da história iria se deparar muitos anos depois. Como se sabe, a História como uma disciplina autônoma e independente iria surgir formalmente apenas em fins do século XIX com os estudos do alemão Leopold Von Ranke dentro de uma orientação positivista. 

Predominou-se então uma perspectiva contrária ao materialismo histórico propugnado por Marx, mas à “história dos grandes eventos”, onde se privilegiava os grandes fatos políticos seguidos de forma consecutiva sem grandes cogitações acerca das relações entre o que ocorria nos meandros dos grandes palácios com a queda de príncipes e o desenvolvimentos de rebeliões e revoluções e os problemas terrenos relacionados ao desenvolvimento da sociedade civil, à lute de classes, à escassez econômica e principalmente aos choques entre o modo de produção e o desenvolvimento das forças produtivas. Escrito em 1845, só muito posteriormente as lições do materialismo histórico seriam seriamente assimiladas como uma chave explicativa original e eficaz para os fenômenos de grandes transformações na história, desde a queda de impérios até a ascensão de novas classes sociais ao poder. 

Ainda que o tema da filosofia da história seja predominante em “Ideologia Alemã” outros conceitos chave do marxismo são apresentado nos escritos. Havia ainda muita confusão acerca da compreensão do Estado e seu sucedâneo Direito, o que, diga-se de passagem, permanece como fonte de sérias ilusões mesmo no campo da esquerda no Brasil. Assim preleciona Marx:  

“Por ser uma Classe e não mais um estamento, a burguesia é obrigada a se organizar no plano nacional, e não mais no plano local, e dar uma forma universal aos seus interesses comuns. Com a emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, o Estado adquiriu uma existência particular ao lado da sociedade civil e fora dela; mas este Estado não é outra coisa senão a forma de organização que os burgueses dão a si mesmos por necessidade, para garantir reciprocamente sua propriedade”. 

Temos aqui, portanto, o caráter de transitoriedade histórica que marca o estado conforme sua ligação com a dominação burguesa que também só perdura no tempo até o momento de queda desta sociedade fruto de uma revolução dos trabalhadores.

“Sendo o Estado, portanto, a forma pela qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, conclui-se que todas as instituições civis de uma época passam pela mediação do Estado e recebem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei repousa na vontade e, ainda mais, em uma vontade livre, destacada de sua base concreta. Da mesma maneira o Direito por sua vez reduz-se à lei”

O interessante é que palavras redigidas em 1845 ainda possuem um grau de radicalidade política que mesmo partidos da esquerda pequeno burguesa do país certamente não assumiriam em seu “programa mínimo” tais enunciados ditos em alto e bom som por Marx, sendo ele próprio não só um um ativista do momento dos trabalhadores, mas igualmente um interprete rigoroso desta sociedade. Há de se ponderar certamente que Marx ao identificar a natureza burguesa inevitável do estado nunca propugnou, tal qual os anarquistas, o simples boicote das eleições. Aqui ele identifica as raízes históricas e as imbricações essenciais entre a divisão do trabalho, a forma de propriedade privada e seu condicionamento político sob Estado, com a emergência da burguesia como nova classe dominantes. Ainda assim, Marx sugere sempre uma análise detida das particularidades de cada situação, já que à sua época tal processo ainda não se completara efetivamente à nível global.

A leitura da Ideologia Alemã é fundamental como ponto de partida para um contato posterior do “Marx maduro”. Além dos conceitos de “materialismo histórico” que fazem contraponto ao idealismo da filosofia idealista alemã tributárias de Hegel e o materialismo limitado de Feuerbach, neste livro se prenunciam temas como a alienação do trabalho ou mesmo aspectos da sociedade comunista, diante a abolição da propriedade privada, da ressignificação do trabalho e do controle da produção pela vida.