sábado, 23 de dezembro de 2023

“CIVILIZAÇÃO” – Eça de Queiroz

 “CIVILIZAÇÃO” – Eça de Queiroz




Resenha – “Civilização” – Eça de Queiroz – Iba Mendes Editor Digital

“O homem nas capitais pertence à sua casa, ou se o impelem fortes tendências de sociabilidade, ao seu bairro, tudo o isola e o separa do restante na natureza – os prédios obstrutores de seis andares, a fumaça das chaminés, o rolar moroso e grosso dos ônibus, a trama encarceradora da vida urbana....Mas que diferença, num cimo de monte com Torges! Aí todas essas belas estrelas olham para nós de perto, rebrilhando, à maneira de olhos conscientes, umas fixamente, com sublime indiferença, outras ansiosamente, com uma luz que palpita, uma luz que chama, como se tentassem revelar os seus segredos ou compreender os nossos pobres corpos. Todos são obras da mesma vontade”.

“Civilização” é um conto de pouco mais de vinte páginas que condensa um livro publicado postumamente por Eça de Queiroz: “A Cidade e as Serras” (1901). Nele fica condensada a história de Jacinto e sua transição entre a melancolia e o tédio da cidade e a vida em comunhão com a natureza,  quando se dirige à Serra (ou ao campo) e experimenta uma vida despojada de suas máquinas de escrever, telégrafos, fonógrafos e tecnologias de utilidade discutível.

Trata—se de uma sátira do espírito cientificista típico do pensamento social e literário de fins do XIX e início dos XX, ou seja, o espírito do próprio tempo do escritor português.

Eça de Queiroz (1845/1900), como se sabe, foi o precursor do realismo literário em Portugal, o que se deu mediante a superação da tradição românticas portuguesa e a criação de uma nova literatura, mais crítica e atenta aos problemas sociais. Dentro desse movimento, chegou até mesmo a escandalizar a prosaica sociedade da época, denunciando em tom de comédia o falso moralismo beato no romance “O Crime do Padre Amaro” (1875), que retrata um relacionamento amoroso ilícito envolvendo um clérigo de um povoado do campo. .

Se na chamada Questão Coimbrã, onde se chocou a velha tradição romântica representada por Antônio Feliciano de Castilho e os jovens precursores do realismo, liderados por Antero de Quental, a crítica de Eça de Queroz se dá em torno do passado, em “Civilização” sua crítica se dá em torno do presente: a conjuntura do fim do século XIX marcada pelo mito da função civilizatória da ciência, do determinismo que condiciona a situação social em meio e em raça, o darwinismo social, o positivismo e o seu mito de progresso ininterrupto através do exercício da razão.

Antes o realismo se voltou para o passado, criticando o falso moralismo subjacente ao idealismo romântico e agora atenta-se para novas tendências cientificistas e naturalistas, igualmente sujeitas à crítica na forma de deboche.

A crítica do conto se refere ao mito da civilização, que inclusive alçou o imperialismo britânico, alemão e francês ao neocolonialismo na África e Ásia, já que a sua intervenção espoliadora foi justificada na época como o “fardo do homem branco”.

Já no âmbito da literatura, a convergência entre o cientificismo e a arte encontrou sua mais evidente expressão no naturalismo. Este consiste num desdobramento e numa espécie de radicalização do objetivismo e impessoalismo que marca o realismo literário. Diferencia-se deste último movimento já que a análise psicológica dos personagens e os seus destinos são, no naturalismo, condicionados pelo meio social e por caracteres hereditários. Enquanto no realismo ainda se cogita de algum livre arbítrio, as personagens descritas pelos romances naturalistas têm o seu destino condicionado pelo meio social e pelos caracteres raciais, em consonância com as teorias cientificistas típicas do fim do século XIX. Ademais, há no naturalismo uma pretensão da descrição de pessoas e enredos de maneira parecida com que o cientista descreve fenômenos da natureza.

É este o caldo de cultura contra o qual Eça de Queiroz se insurge na forma de paródia em “Civilização”.

No conto, somos apresentados a um amigo do narrador chamado Jacinto, nascido num palácio, com quarenta contos de renda, terras e fazendas o suficiente para nunca precisar trabalhar e se preocupar com o pão de cada dia.

Mora numa casa nobre na cidade, onde coleciona todo o tipo de utilidade,  esbanjando todas as últimas novidades e tecnologias que informaram aquele espírito imperialista de fins do XIX: colecionava máquinas de escrever, autocopistas, telégrafo morse, fonografo, teatrofone... Tinha uma biblioteca com 1800 obras, e cada cômodo da casa, do banheiro à cozinha, revelava todo tipo de bens que teriam supostamente a finalidade de tornar mais cômoda a vida do homem: diferentes variedades de torneiras, copos, garfos adaptados para cada tipo de comida, campainhas para chamar os criados...

E, com todos os recursos tecnológicos disponíveis, Jacinto parece estar sempre entre a melancolia e o tédio:

“Que faltava a este homem excelente? Ele tinha a sua inabalável saúde de pinheiro bravo, crescido nas dunas; uma luz de inteligência, própria tudo o que a alumiar, firme e clara, sem tremor ou morrão; quarenta magníficos contos de renda; todas as simpatias de uma cidade chasquadora e céptica; uma varrida de sombra, mais librta e lisa do que o céu de Verão... E todavia bocejava constantemente, palpava na face, com os dedos finos, a palidez e as rugas. Aos trinta anos Jacinto corcoveava, como sob um fardo injusto”.

Uma obrigação inadiável obriga Jacinto a passar uma temporada na Serra, o que seria uma zona rural fora da cidade, onde por lá viveram os seus antepassados, de igual origem de nobreza.

Mobiliza uma equipe de trabalhadores para carregar trinta e sete malas com todos os itens e utensílios que guarda na sua casa na cidade. Vai a contragosto e busca levar consigo a própria cidade, para lhe atenuar o sofrimento oriundo do seu afastamento da civilização.

No entanto, um lance de sorte faz com que as coisas ocorram exatamente da forma contrária como planejada: chegaram à fazenda sem as trinta e sete bagagens que foram extraviadas, e sem avisarem a tempo o responsável pela hospedagem, obrigando-os a viver tal qual a gente mais simples do campo.

Não tinham as luzes da cidade, podendo observar de forma diferente as estrelas. Não contavam com as distrações de livros inúteis e máquinas barulhentas. Comiam não se servindo de louça importada mas de uma colher de pau na mesma mesa que o povo da roça.

O contato com a beleza da natureza desperta no protagonismo um sentimento de pertencimento o qual lhe era ausente na cidade. Como mencionado, é possível ao personagem, quando confrontado com a exuberância de uma natureza divina, a percepção de pertencimento a uma só unidade, que pode ser a de um povo em comunhão com o criador. Ao passo que na cidade, o sentimento é de uma mera somatória de indivíduos, estruturados de forma atomizada.

Um ano depois, o amigo irá visitar Jacinto. Descobre que o seu camarada se mudara definitivamente para a Serra. Abandonou as leituras (e o horizonte filosófico) de Schopenhauer, o filósofo alemão pessimista, predecessor de Nietzsche e representativo do pensamento social da época. E agora, mais otimista, tem como horizonte filosófico o bucolismo, podendo ser um leitor de Virgílio.

domingo, 17 de dezembro de 2023

OS PODERES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

                                        OS PODERES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA 


O tema dos poderes administrativos essencialmente se relaciona à análise das prerrogativas de que dispõem os agentes públicos para o exercício do poder do Estado e a consecução dos seus fins sociais.

Trata-se, portanto, de uma das formas da exteriorização daquele que talvez seja o mais famoso princípio do direito administrativo: o da supremacia do interesse público sobre o particular.

Decorre desse princípio que, existindo conflito entre o interesse público e o interesse particular, deverá prevalecer o primeiro, tutelado pelo Estado, respeitados, entretanto, os direitos e garantias individuais expressos na Constituição, ou delas decorrentes.

Os poderes da administração pública, neste contexto, podem ser conceituados como uma prerrogativa especial de Direito Público e instrumento dado aos agentes públicos para o exercício de suas atividades legalmente estabelecidas, tudo no interesse da coletividade.

São sempre irrenunciáveis, ou seja, devem ser obrigatoriamente exercidos por seus titulares.

Em se tratando de prerrogativas que incidem sobre a propriedade e liberdade individuais, o exercício do poder administrativo não deve ultrapassar certos limites definidos em lei, sob pena de abuso de poder, seja por excesso, seja por desvio de finalidade.

Há o excesso de poder pela administração pública quando o agente público, embora detentor legal da competência para a realização de determinado ato, age desbordando os limites de sua competência, invadindo área para a qual não possui competência.

Já o desvio de finalidade ocorre quando o agente público realiza ato desvirtuando os fins que a norma legal almeja. Por exemplo: quando uma autoridade pública decreta a desapropriação de um terreno alegando utilidade pública, mas visando, na realidade, satisfazer interesse pessoal próprio.

Pode-se dizer que os Poderes Administrativos são o gênero dentro do qual há as seguintes espécies: (i) PODER VINCULADO; (ii) PODER DISCRICIONÁRIO; (iii) PODER DISCIPLINAR; (iv) PODER NORMATIVO; e (v) PODER DE POLÍCIA.

O PODER VINCULADO decorre das situações em que a lei de forma exauriente determina que o agente público deve necessariamente intervir de determinada forma, sem margem para discricionariedade. Decorre da descrição exauriente no próprio texto legal que não deixa margem para o agente público agir de forma diversa do que prescrito em lei.

O exemplo mais conhecido é o da concessão de licença. Quando forem cumpridos todos os requisitos legais para a sua concessão, não pode o administrador público negar a entrega da licença, razão pela qual está inteiramente vinculado à norma jurídica. A licença, em outras palavras, não “cria” um direito. O direito à licença é pré-exeistente mas inexequível enquanto  Administração não constatar os requisitos previamente previstos na lei. Havendo a observância dos requisitos pelo particular, a entrega da licença é obrigatória, ou seja, é um ato vinculado.

Já o PODER DISCRICIONÁRIO decorre de autorização legal para que o agente público tenha certa margem de atuação para estabelecer o motivo e o objeto do ato administrativo. Não é possível ao legislador prever todas as situações fáticas que ensejarão a atuação da administração, sendo por isso autorizado pela própria lei a possibilidade do exercício de um poder discricionário, observado sempre o juízo de conveniência, oportunidade, legalidade e proporcionalidade. O exemplo mais conhecido é a concessão de autorização, quando o administrado de forma precária se vê autorizado a exercer determinado Direito que pode a qualquer momento ser revogado, caso seja conveniente e oportuno ao Estado.

Discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. A liberdade dada pelo poder discricionário não autoriza o gestor público agir de forma contrária ou divergente à finalidade da lei e ao interesse público.

O PODER HIERÁRQUICO está relacionado à estruturação dos trabalhos da administração pública. Envolve a distribuição e escalonamento dos órgãos, funções e agentes do Estado. Seus objetivos são o de ordenar, coordenar e controlar as atividades da administração. Servem ainda para corrigir erros através de atividade revisora dos superiores por atos de seus subordinados.

O PODER DISCIPLINAR é aquele que permite a aplicação de sanção ao agente público ou a todo aquele que esteja vinculado à administração pública por relações de qualquer natureza. Trata-se da faculdade de punir internamente as infrações funcionais de servidores e qualquer outra pessoa de alguma forma relacionada à administrador público. A aplicação da penalidade pode se dar não só para um servidor concursado, mas, por exemplo, para particulares que tenham alguma relação com o Estado. É com base no poder disciplinar que uma escola pública pode punir com suspensão ou até expulsão um aluno com conduta inadequada.

O PODER NORMATIVO autoriza a Administração Pública editar normas que explicam, complementam ou facilitam a execução da lei. A norma editada pela administração pública serve para a fiel execução da lei, não podendo ser contra legen ou ultra legen. Não podem essas normas administrativas instituírem direitos e obrigações não previamente determinadas em lei em sentido formal.

Hoje, fala-se igualmente em princípio da juridicidade. Além de o administrador público estar adstrito ao que diz a lei, deve igualmente observar com obrigatoriedade os princípios contidos no ordenamento jurídico.   A edição de um ato normativo, mesmo para regulamentação de lei em sentido estrito, sem observância dos princípios da impessoalidade, moralidade ou eficiência, não deve ser admitida.

Por fim, o PODER DE POLÍCIA consiste na atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos, tudo nos exatos termos do artigo 78 do CNT.

Basicamente, por meio do poder de polícia, a administração limita ou disciplina a ação, o direito ou a utilização de bens em caráter individual em prol do interesse coletivo. Por meio do poder de polícia, o Estado estabelece restrições ao exercício de determinadas atividades ou direitos como a imposição pelo Município de obrigação de construir ou derrubar muros caso haja dificuldade do trânsito em pessoas. Em se tratando de uma limitação de direito individual para a consecução do interesse coletivo, trata-se, novamente, de uma expressão direta da supremacia do interesse público sobre o particular.

O poder de polícia pode ser delegado a particulares?

A jurisprudência tradicionalmente disse não a essa pergunta. Contudo, mais recentemente, o STJ adotou o posicionamento pela possibilidade parcial do exercício do poder de polícia por particulares, no caso, aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista. (RESP 817.534/MG).

Para a Corte, seria possível a delegação quanto aos atos de consentimento e fiscalização, não sendo possível o Estado delegar ao particular os poderes de editar normas e de aplicar sanções.

E, ainda, a delegação do Poder de Polícia só pode ser feita para pessoas que integrem de alguma forma a Administração Pública, como é o caso das empresas estatais.

DELEGAÇÃO DO PODER DE POLÍCIA

Necessariamente por pessoa jurídica que integre a administração pública, incluindo empresas estatais

Somente é possível a delegação dos atos relativos ao consentimento e à fiscalização. Em consequência, os atos relativos à legislação e aplicação de sanção são indelegáveis e permanecem na competência das pessoas jurídicas de direto público.

 

BIBLIOGRAFIA

DAMAZIO, Wagner. “Poderes Administrativos”. 2020.

Quadro: "Estudo Para Frei Caneca" - Antônio Parreiras 

Paulo Marçaioli | OAB/SP 431.751 | Contatos: paulomarcaioli@gmail.com