domingo, 25 de setembro de 2022

“Perdoa-me por me traíres” – Nelson Rodrigues

 Perdoa-me por me traíres” – Nelson Rodrigues



 


Resenha Livro - “Perdoa-me por me traíres” – Nelson Rodrigues – Ed. Nova Fronteira

 

A importância do escritor Nelson Rodrigues no Teatro Brasileiro reside no fato de ter inaugurado e consolidado o modernismo na dramaturgia nacional. Até então, o teatro brasileiro se baseava na comédia de costumes, nos dramalhões e o no teatro musicado herdado do século XIX. Com  a nova dramaturgia do escritor carioca, temos uma expressão mais consistente da psicologia humana, das contradições entre o desejo erótico e as regras sociais, e das frequentes transgressões morais de personagens que deixam de ser caricaturas superficiais para terem uma feição radical do homem comum, com todas as suas contradições.

 

A partir de “A Mulher Sem Pecado” (1942) e principalmente “Vestido de Noiva” 1943, temos um novo tipo de arte, com enfoque nos conflitos psicológicos, sem prejuízo do sarcasmo e da ironia, em que os personagens são frequentemente levados a transgredir os limites da ordem e da moral, particularmente no campo do erotismo.

 

Os elementos essenciais da dramaturgia de Nelson Rodrigues podem ser resumidos, de fato, na expressão “a vida como ela é”. Temas como a virgindade violada, os ciúmes, o incesto, a prostituição, a corrupção política e a canalhice humana denotam uma arte que busca de forma exacerbada a veracidade: a verdade se revela em situações limite, como na descoberta da traição, nos instantes que antecedem a morte ou nos pactos de mortes entre amantes, neste último caso, respondendo ao reconhecimento de que em vida não é possível manter a real  autenticidade, ante as proibições convencionadas socialmente.

 

Outro aspecto característico das peças de teatro do nosso escritor é a sua vinculação com o período histórico do Brasil de meados do século XX. Suas principais peças foram escritas entre a década de 1940/1960, momento em que o país vivia um rápido processo de urbanização, industrialização, transição demográfica do campo para a cidade e, de forma correspondente, uma veloz mudança de padrões comportamentais. O jornalismo de massas, o rádio popular, a expansão do futebol, a criação de Brasília e a nova faceta mais urbana da sociedade brasileira encontram densa  expressão do teatro de Nelson Rodrigues, nitidamente pelo fato de o próprio autor ter atuado com destaque na imprensa carioca, de onde retira inspiração para consecução de suas “tragédias cariocas”.   

 

Ainda que situada em um contexto de mudança de padrões comportamentais,  consta que a estreia de “Perdoa-me Por Me Traíres” foi particularmente marcada por uma intensa polêmica. Vejamos o que o próprio autor conta da estreia da peça, que ocorrei no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 19 de Junho de 1957:

 

“Lembro-me da estreia da minha peça Perdoa-me por me traíres, no Municipal (....). Metade da plateia aplaudia, outra metade vaiava. E, súbito, num os camarotes, ergue-se o então vereador Wilson Leite Passos. Empunhava um revolver como um Tom Mix. Simplesmente, queria caçar meu texto, à bala.”.

 

A peça gira em torno de Glorinha, uma colegial de um colégio de elite do Rio de Janeiro, e que é introduzida à prostituição por sua amiga Nair. A hesitação da personagem, enquanto se dirige ao prostíbulo de Madame Luba, decorre do medo de ser descoberta pelo Tio Raul, que a controla de forma brutal, sendo capaz de matá-la, se descobrisse que estava a gazetear aula da escola.

 

Ao longo da peça, descobre-se que Tio Raul matara a mãe de Glorinha, após descobrir que esta traía o seu irmão Gilberto. Ocorre que Raul coage Judite a tomar veneno, não pela defesa da honra do irmão, mas porque ele próprio amava sua cunhada.

 

O tema da traição é o carro chefe do enredo: a descoberta da traição é o meio com que a verdade vem à tona, particularmente em situações limite.

 

JUDITE (com um riso soluçante) – Um amante? Um só? Sabes de um e não sabes dos outros? (violenta e viril) Olha: vai dizer a tua mãe, a teus irmãos, a tuas tias – fui com muitos, fui com tantos! (subitamente grave e terna) Já me entreguei até por um bom dia! E outra coisa que tu não sabes: adoro meninos na idade das espinhas”

 

Nelson Rodrigues aponta para a fragilidade humana, que consiste numa propensão para aderir ao mal. Adesão que remete a impulsos de destruição e de dominação do outro. A violência sexual contra menores, o sadismo, a infidelidade conjugal e a canalhice daqueles que aparecem socialmente como arautos da moralidade, acabam, ao final, redimidas na morte, a sugerir que a plena autenticidade não é possível em vida.  Não se trata absolutamente de peças moralizantes, nem de crítica diríamos hoje “progressista” dos padrões de comportamento: é antes um esforço de relato objetivo, próximo do jornalismo, da vida em sua dimensão trágica, anda que vinculadas ao cotidiano.

domingo, 18 de setembro de 2022

“MACUNAÍMA” – MÁRIO DE ANDRADE

 “MACUNAÍMA” – MÁRIO DE ANDRADE






 

 

Resenha Livro - “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter” – Mário de Andrade – Ed. Nova Fronteira

 

Macunaíma foi escrito por Mário de Andrade durante 6 dias ininterruptos, durante as férias de Dezembro de 1926, numa chácara em Araraquara/SP. Nas palavras do escritor, uma semana de rede, cigarros e cigarras na Chácara Pio Lourenço, no meio de mangas e abacaxis.

 

Ainda nas palavras do autor, o livro nasceu como um brinquedo, sem qualquer pretensão de estudo do folclore do país:

 

“Entre alusões sem malvadeza ou sequência desfatiguei o espírito nesse capoeirão da fantasia onde a gente não escuta as proibições, os temores, os sustos da ciência ou da realidade – apitos dos polícias, breques por engraxar. Porém, imagino que como todos os outros o meu brinquedo foi útil. Me diverti mostrando talvez tesouros em que ninguém não pensa mais.”.

 

A inspiração da obra partiu da leitura do livro do etnólogo alemão Koch-Gruenberg chamado “Vom Roraima zum Orinoco”, de onde, inclusive, saiu o nome do protagonista do nosso romance.  

 

Certamente, a riqueza de detalhes com que a história menciona aspectos da cultura brasileira, da fauna, da flora, dos mitos, do folclore, dos rituais religiosos, do palavreado indígena e popular, igualmente decorreram das viagens que o escritor fez pelo Brasil.

 

A história de Macunaíma é representativa de aspectos da psicologia brasileira e da trajetória do país. As aventuras do herói/protagonista envolvem cenas representativas da formação histórica do Brasil, da fisionomia e da moral (ou falta dela) do brasileiro.

 

No segundo prefácio do livro, escrito em 27/03/1928, Mário de Andrade nega que sua intenção fosse o de contar, ainda que de forma simbólica, a história do Brasil e os caracteres de sua civilização. Diz expressamente que não imaginou pretender expressar a cultura nacional, mas, depois do livro feito, foi que pareceu descobrir nele um sintoma deste brasilianismo.

 

Em todo o caso, a representação do Brasil se dá não apenas por meio da linguagem, com a existência de expressões indígenas e neologismos típicos da palavra falada no Brasil: “fala mansa”, “ólio”, sabiágongá”, “palavras-feias”, “brincar” (como expressão do ato sexual), “bolo-e-aimpim”, “tem mais não”, entre muitos.

 

A brasilidade está presente através de fatos representativos presentes na trajetória de Macunaíma,  que encontram paralelo evidente com a formação brasileira.

 

A começar pelo fato da vida de Macunaíma consistir num deixar viver. O que impera nas ações do herói não é um plano definido a ser executado, com algum método, mas numa existência aberta a tudo o que contingente e caótico. Ainda que o propósito do herói seja a busca do muiraquitã, mesmo os planos para a recuperação do tesouro não são executados, diante da prevalência da improvisação. Ou da preguiça.

 

Esta falta de rumo não seria uma marca política do Brasil? País que, a despeito de duzentos anos de sua independência política, ainda se caracteriza pelo improviso e falta de um fio condutor que o conduza à situação de plena soberania, aqui entendida também como domínio de seu destino, promotor de alguma previsibilidade.

 

O subtítulo do livro diz que Macunaíma é o “herói sem nenhum caráter”.

 

A ausência de caráter aqui remete a dois sentidos.

 

Em primeiro lugar, a falta de uma fisionomia física (falta de caracteres físicos): Macunaíma nasce preto retinto e filho do medo da noite. Ao longo da história, após contato com uma poça de água mágica, torna-se branco. Por meio de encantos, muda sua fisionomia em diversas passagens da história, sendo em parte índio, em parte preto, em parte branco, denotando a especificidade brasileira da mestiçagem. E a indefinição do fenótipo brasileiro, especialmente se comparado a povos orientais.

 

A passagem de Macunaíma da infância para a vida adulta ocorre após a Currupira jogar uma gamela de caldo envenenado no herói:

 

“Então pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou a lavagem no piá. Macunaíma fastou sarpatando mas só conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortificando e ficou do tamanho dum homem taludo. Porém a cabeça não molhada ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá.”.

 

Um corpo taludo com uma cabeça de criança. Mais uma vez, não estaríamos aqui diante de uma figuração do Brasil, país da primeira infância, se comparado às civilizações europeias e asiáticas, cujo vasto território remetem ao corpo de um adulto?

 

O segundo sentido atribuído ao caráter mencionado no sub-título é o moral. Não exatamente numa acepção pejorativa, mas ainda relacionada à infância do Brasil.

 

Mas uma vez, válido mencionar a explicação do autor dita no prefácio da obra:

 

“O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente ou consciência de séculos tenha auxiliado, o   certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro (não). Está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma.”.

 

Macunaíma foi dedicado ao historiador paulista Paulo Prado, autor do livro “Retrato de Brasil   (1928).

 

Neste livro, mal compreendido na sua época, o escritor chega à conclusão de que o brasileiro é um povo triste. E justifica a sua tese diante de três aspectos constitutivos da psicologia brasileira: a cobiça, a luxúria e o sensualismo.

 

O regime de colonização de exploração, sem povoamento de famílias europeia, criou as condições para mestiçagem e uma vida desregrada, se comparadas ao regime colonial de povoamento com forte presença puritana, que preponderou na américa do norte.

 

Pode-se dizer que Macunaíma, escrito e publicado na mesma época que o Retrato do Brasil, é uma expressão literária daqueles três pontos constitutivos da tristeza brasileira – da busca pelo tesouro Muiraquitã até as “brincadeiras” de Macunaíma, extrai-se três os alicerces da psicologia brasileira: a luxúria, a cobiça e o sensualismo.   

domingo, 11 de setembro de 2022

A FILHA DO CAPITÃO – ALEXANDRE PÚCHKIN

 A FILHA DO CAPITÃO – ALEXANDRE PÚCHKIN

 

 


Iemelian Ivanovich Pugachev (Pugachyovskaya, 1742 — Moscovo, 21 de janeiro de 1775) foi o líder de uma grande rebelião cossaca e camponesa na Rússia (rebelião Pugachov, 1773 - 1775).

 

Na época em que Púchkin nasceu (1799), o czar que reinava sobre a Rússia anda era Paulo I, o filho insano de Catarina II, que viria a ser morto dois anos depois numa conspiração palaciana, da qual tornaria secretamente parte seu filho e sucessor, Alexandre I. Moscou havia se tornado o centro da vida intelectual e artística do país. A alta sociedade, que em São Petersburgo gravitava em volta da Corte, em Moscou, via de regra, entediava-se. Os jovens promissores liam os imitadores russos de Parny, Rousseau, Racine, Voltaire, enquanto as jovens (e velhas) suspiravam com romances sentimentais que apareciam aos montes, todos iguais e de qualidade duvidosa. A mesmice dominava também o cotidiano. De manhã, praticavam equitação e, à noite, em dias certos da semana, quando não havia baile ou carteados, frequentavam salões. Os chefes de família cuidavam da administração de suas propriedades rurais, onde a família passava temporadas anuais, justamente com numerosa criadagem, parentes, servos e agregados. O povo, como sempre, sofria”. (BRNARDI, Aurora. “Púchkin e o Começo da Literatura Rua”. Caderno de Literatura e Cultura Russa. USP).

 

 

Aleksandr Sergeevich Púchkin é aclamado como o maior poeta russo e fundador da moderna literatura daquele país. Transitou pela poesia lírica e épica, pelo teatro e pelo romance, sendo tradicionalmente relacionado ao movimento romântico, com aproximação do realismo, especialmente nas suas obras mais tardias.

 

 

 

Pode-se dizer que sua importância está para literatura Russa de maneira equivalente ao papel de Willian Shakespeare para o teatro Inglês. É tido como iniciador da literatura Russa: inaugurou um novo modelo literário, sem se basear em heranças ou escolas literárias anteriores, posto que inexistentes na Rússia. Ele se inspirava na cultura e na poesia popular medieval russa.

 

O escritor nasceu em 6 de Junho de 1799 em Moscou. Seu pai era um jovem oficial da guarda, mal administrador, colérico e atormentado por dívidas. Sua mãe era neta de Ibraim Hannibal, conhecido como primeiro grande intelectual negro da história do ocidente. Este bisavó de Puchkin, em 1703, foi capturado e vendido ao sultão de Constantinopla, que por sua vez o deu de presente ao czar Pedro, o Grande. O imperador russo adotou Hannibal e o colocou na corte para viver como seu afilhado, posteriormente o enviado para Paris, onde conclui seus estudos, se formando em engenharia militar.

 

Hannibal conheceu em Paris Voltaire, Montesquieu e Diderot, entre outros pensadores, que o chamavam de “estrela negra do iluminismo”.

 

De modo que não é incorreto dizer que o maior dos poetas russos tinha descendência africana!

 

Na biblioteca do pai, Púchkin leu Plutarco, Homero, La Fontaine, Moliére, Corneille, Rancine, Diderot e Voltaire. Seguindo um costume da época, aprendeu francês por meio de seus preceptores, sendo patente a influência da cultura francesa na Rússia, especialmente no período de Catarina II (1762/1796), imperatriz com reputação de mecenas das artes e correspondente dos iluministas Voltaire, Diderot e D’Alambert.

 

 A FILHA DO CAPITÃO

 




“Não me porei a descrever nossa Campanha e o fim da guerra. Direi, brevemente, que a catástrofe chegou ao extremo. Passamos pelos povoados arrasados pelos amotinados e, a contragosto, tirávamos dos pobres habitantes o que tinham conseguido salvar. O governo estava paralisado por toda a parte: os latifundiários escondiam-se nas florestas. As corjas de bandidos faziam o mal por toda a parte; os chefes de destacamentos isolados puniam e perdoavam despoticamente; o estado de toda a ampla região em que o incêndio grassava era horrível... Que Deus não permita ver a revolta russa, insensata e implacável.”.

 

O romance “A Filha do Capitão” se passa no reinado de Katarina II (1762/1796), imperatriz russa que revitalizou o seu país mediante vitórias militares e êxitos em política externa, como a anexação da Crimeia e vitórias nos campos de batalha contra o Império Turco Otomano. Além disso, como já dito, esta Imperatriz valorizou as artes, literatura e a educação. O Museu Hermitage, que ainda pode ser visitado nos dias de Hoje em São Petersburgo, começou com a coleção de arte particular de Katarina II.  

 

O livro retrata fatos históricos da Rússia, mais precisamente a rebelião do Líder cossaco Iemelian Pugachev.

 

A história é contada em primeira pessoa por Piotr Andreivitch, um filho de militar oriundo da região de Simbirsk, que desde o ventre da mãe foi alistado como sargento de regimento da czarina.

 

Aos dezesseis anos, o protagonista é enviado para o exército, quando é remetido para uma remota fortaleza Russa, onde conhece Mária Ivanova, a filha do capitão e chefe militar do local. A história descreve o amor entre Piotr e Mária, cuja relação encontrará todo tipo de percalços e aventuras decorrente das guerras levadas a cabo contra levantes cossacos.

 

Ainda que a literatura de Púschkin esteja situada nos marcos do romantismo, o seu texto prima pela objetividade e realismo, que possibilitam ao leitor conhecer em detalhes os levantes camponeses russos, levadas a cabos por povos tártaros e quirques.

 

“Nesse momento, detrás de uma colina que se encontrava a meia vesta da fortaleza, assomaram novos grupos a cavalo, e logo se alastrou na estepe uma quantidade de homens armados de lanças e arcos. Entre eles, em um cavalo branco, ia um homem de cafetã vermelho, com sabre desembanhado na mão: era Pugatchov.”

 

Ao invadirem as fortalezas militares, os cossacos saqueavam as casas, enforcavam os líderes militares e faziam farras regadas a álcool. A população simples do local acabava por aderir aos revoltosos, seja pela coação seja pela simpatia que nutriam por camponeses que subvertiam o regime social baseado em diferenciações entre nobreza e povo.

 

O historiador britânico Eric Hobsbawm cunhou o conceito de “banditismo social”, que é plenamente aplicável ao levante cossaco descrito por Púschkin.

 

 Não são exatamente delinquentes comuns que cometem crimes para seu próprio proveito. O banditismo social é um fenômeno relacionado às sociedades camponesas pré-capitalistas e que costumam se acentuar em momentos de desagregação, como guerras, rivalidades locais relacionadas a disputas familiares, a fome ocasionada por má colheita ou mesmo o próprio desenvolvimento do capitalismo com a consolidação de Estados Nacionais e a modificação forçada do modos de vida milenares, incluindo a desintegração familiar.

 

Diante de tais condições objetivas o fenômeno do banditismo social tem o condão de surgir e, o que é particularmente interessante, aparece ao longo da história em todos os cantos do mundos.

 

Os cossacos de Pugatchov não são muito diferentes dos bandoleiros dirigidos por Lampião no Brasil. Sem uma consciência política mais apurada, se revoltam contra a elite local, e praticam saques, roubos, incêndios e assassinatos.

 

No romance, ainda que Pugarschov apareça como um vilão, existe uma certa simpatia entre o algoz e o protagonista, que luta nos exércitos de Katarina II, mas de alguma forma reconhece a nobreza e coragem de camponeses que se levantavam, ainda que inconscientemente, contra o regime da servidão.

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

OS CONTOS DE GRACILIANO RAMOS

 OS CONTOS DE GRACILIANO RAMOS



 


Resenha Livro – “Insônia” – Graciliano Ramos – Ed. Record.

 

O realismo de Graciliano não é orgânico nem espontâneo. É crítico. O “herói” é sempre um problema: não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Sofrendo pelas distâncias que o separam da placenta familiar ou grupal, introjeta o conflito numa conduta de extrema dureza que é a sua única máscara possível. E o romancista encontra no trato analítico dessa máscara a melhor fórmula de fixar as tensões sociais como primeiro motor de todos os comportamentos.”. (BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cultrix).  

 

O gênero literário em que o escritor alagoano Graciliano Ramos mais foi bem sucedido é o romance.

 

Seu primeiro livro publicado foi “Caetés” (1933), que já adianta algumas das temáticas recorrentes do escritor: a figura de protagonista marcado pela rejeição social, por sentimentos de culpa e sendo descrito e caracterizado pelo monólogo interior. Na maior parte das vezes, a história é contada em primeira pessoa, com uma forma que economiza adjetivos, dando realismo à narrativa.

 

Nos seus livros subsequentes, São Bernardo (1934), Angústia (1933) e “Vidas Secas” (1938), as sondagens psicológicas dão um salto qualitativo. Seria até mesmo impróprio qualificar estes romances como representativos do modernismo regionalista que tiveram como expoentes Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, Amado Fontes, e outros. Mesmo no livro “Vidas Secas”, que trata da saga de retirantes da seca nordestina, a ênfase se dá nas cogitações dos personagens, e sua relação conflituosa com o meio social. Enquanto na literatura de José Lins do Rego e Jorge Amado se verifica uma harmonia e fio de continuidade entre as personagens e o ambiente do engenho ou das cidades do nordeste, em Graciliano Ramos observa-se movimento oposto: inadequação do pequeno funcionário público diante dos figurões do Estado e da realidade citadina (“Angústia”); a brutalização de Paulo diante da sua condição de Fazendeiro (“São Bernardo”); a  opressão do soldado amarelo (outra figura representativa do Estado) em face de Fabiano (“Vidas Secas”).

 

Se quisermos, por o outro lado, situarmos Graciliano Ramos dentro do movimento literário regionalista, seria possível fazê-lo mediante dos aspectos de sua obra.

 

Em primeiro lugar, a capacidade de fazer do regional, o universal, ao apresentar personagens cujos dilemas dizem respeito ao homem em geral, viabilizando histórias de caráter atemporal.

 

Em segundo lugar, o retrato de alguns aspectos do período histórico dos anos 1930/1945, quando a modernização do país promovida pela eEa Vargas enseja histórias que diziam respeito àquele período da História do Brasil. O início de um processo de longa duração de transição demográfica da cidade para o campo. As arbitrariedades institucionais típicas de regimes políticos autoritários. A permanência do favoritismo nos meios intelectuais, acentuando as rejeições de personagens do baixo escalão do Estado e da imprensa.

 

Menos conhecidas do público são as obras de contos do escritor alagoano.

 

A primeira edição de livro deste gênero apareceu em 1947 pela Editora José Olympio, reunindo contos esparsos do escritor. Estas histórias apareceram em publicações de 1937 (um ano após a liberdade concedida após Graciliano Ramos ter sido preso, acusado de comunista) até 1945. Todas elas escritas quando o autor já residia no Rio de Janeiro, trabalhando na imprensa.

 

Os contos do nosso escritor não se voltam exatamente ao contar histórias, mas descrever os pensamentos de personagens, os seus monólogos interiores que, indiretamente, contam algo de sua trajetória.

 

No conto “O Ladrão” temos uma descrição do que se passa na cabeça do protagonista quando se arrisca assaltar uma casa, mesmo sem ter muita experiência no ofício.

 

“Subiu um degrau, parou arfando, subiu outros, experimentando a sensação de enjoo. A casa mexia-se, a escada mexia-se. A secura da boca desapareceu. Dilatou as bochechas para conter a saliva e pensou no queijo, nauseado. Adiantou-se uns passos, engoliu o cuspo, repugnado, entortando o pescoço.

 

- Tem de ser.

 

Repetiu a frase para não recuar. Apesar de ter alcançado o meio da escada, achava difícil continuar a viagem. E se alguém estivesse a observá-lo no escuro? Lembrou-se do sujeito da loja da fazenda. Talvez fosse ele o dono da casa, estivesse ali perto, vigiante como um gato.”.

 

Contos como “O Relógio de Hospital” e “Paulo”, têm algo de autobiográfico. As histórias retratam o personagem preso ao hospital ou em casa, imobilizado pela doença e eventualmente delirando diante da morte. Passagens que remetem à prisão de Graciliano, marcada pela indefinição quando aos motivos da detenção, sem perspectivas de desfrutar a liberdade, como os doentes descritos na ficção. O mesmo pode ser dito do conto “A Testemunha”, que expressa a ineficiência da jurisdição criminal: o personagem do conto é convocado para uma audiência para apresentar testemunho de um crime que não presenciou.

 

Quando da publicação de “Insônia” (1947), o escritor já tinha se consagrado pelos seus primeiros romances mais conhecidos. No ano de 1952, Graciliano faria uma viagem à União Soviética, ocasião que deu ensejo a um livro relatando a viagem, publicado postumamente.

 

Graciliano Ramos morreu no dia 20 de Março de 1953 no Rio de Janeiro.

 

Em 1980 seus familiares doaram o Arquivo Graciliano Ramos ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, reunindo manuscritos, documentos pessoais, correspondências, fotografias, traduções e alguns livros.