quarta-feira, 23 de setembro de 2020

MAO ZEDONG E A REVOLUÇÃO CHINESA

 MAO ZEDONG E A REVOLUÇÃO CHINESA

 



 

A China é uma civilização milenar. Durante a maior parte da história da humanidade, esta nação foi uma potência mundial. As origens da civilização chinesa remontam a 2.000 a.C. Lá desenvolveram-se tecnologias inovadoras em diferentes épocas, como o papel, a bússola e a pólvora.

 

Por séculos a China foi uma grande exportadora de produtos manufaturados como seda, porcelana e chá. No ano de 1500 quando o Brasil foi ocupado pelos portugueses, a nação chinesa respondia por 25% do PIB global, alcançando 33% no século XIX[1].

 

Contudo, o império milenar não foi capaz de resistir à ofensiva do capitalismo europeu. A primeira Guerra do Ópio (1839-1842) decorreu da negativa da China em abrir o seu comércio para a principal potência da época, a Inglaterra. Com a recusa chinesa, os ingleses passaram a contrabandear ópio para o país, por meio de terceiros, que trocavam a droga pelos produtos de interesse da coroa inglesa. O consumo, que era proibido, cresceu em grandes proporções, tornando-se um problema social. A derrota da China na Guerra do Ópio resultou na perda do território de Hong Kongo, a abertura dos portos e o pagamento de uma indenização à Inglaterra.

 

É neste contexto de intervenção imperialista inglesa (e japonesa) na China que nasce Mao Zedong (Mao Tsé Tung) em 26 de dezembro de 1893. O futuro dirigente da revolução comunista de 1949 adveio da aldeia de Shaoshan, província de Hunan, no sul da China. Filho de camponeses, começou a trabalhar no campo aos 6 anos de idade realizando tarefas como vigiar o gado e alimentar os patos.

 

A REVOLUÇÃO CHINESA

 

A fundação do Partido Comunista Chinês ocorreu em Julho de 1921 por 12 militantes, entre eles, Mao Zedong. O partido foi fundado um ano antes do Partido Comunista Brasileiro (1922).

 

A origem destas duas organizações esteve intimamente relacionadas à vitória da revolução socialista na Rússia em 1917 e à fundação da III Internacional em 1919. Contudo, a experiência do partido chinês se distingue do PCB na medida em que a China, por conta do desgaste político de dinastias milenares, bem como da atuação militar dos imperialismos inglês e japonês no país, vivia uma situação revolucionária que seria prorrogada por décadas.

 

De fato, um dos primeiros aspectos que chamam atenção quando se estuda a Revolução Chinesa é o seu aspecto de longa duração. Poucos meses transcorreram na Rússia entre a revolução democrática que derrubou o czarismo e a tomada do poder pelos bolcheviques em Outubro de 1917. Na China, a revolução socialista de 1949 foi precedida e temperada por 22 anos de lutas, incluindo guerra civil entre o Goumitang e os comunistas, a Guerra Nacional contra o Japão de 1937 a 1945 e a revolução socialista de  1949.

 

Esta peculiaridade da revolução chinesa explica uma certa unidade que se verifica no pensamento de Mao antes e depois de 1949.

 

Mao escreve textos de organização e métodos de direção da luta pelo poder sempre considerando que a própria revolução já está forjando a sociedade do futuro. A necessidade de retificar as concepções erradas no seio do partido e a retificação do estilo do trabalho são suscitados num momento em que os comunistas se organizam no exército guerrilheiro na luta pelo poder. Após a tomada do Estado pelos comunistas, verifica-se a preocupação de se manter o ímpeto e heroísmo revolucionários na nova etapa de edificação de uma nova sociedade.

 

Dentre os textos suscitados por esta coletânea organizada por Miguel Enrique Stédile, destacamos a palestra “RETIFIQUEMOS O ESTILO DE TRABALHO DO PARTIDO” como pronunciamento representativo das ideias de Mao Zedong antes do triunfo da revolução. Trata-se de discurso de abertura de uma escola do partido comunista pronunciado por Mao em 1 de fevereiro de 1942.

 

Dentre as contradições verificados na atuação do partido, Mao Zedong  suscita o subjetivismo. Este subjetivismo se divide em duas políticas igualmente erradas: o dogmatismo e o empirismo.

 

O dogmatismo é a teoria desprovida de prática, o conhecimento do tipo livresco e sem conexão com a realidade. O empirismo peca pelo lado oposto: a prática sem a teoria para guiá-la. Mao equipara o marxismo-leninismo, ou a relação entre a teoria e a prática, como o mirar uma flecha a um determinado alvo e acertá-lo. Os empiristas, por seu turno, atiram as flechas sem mirar ao alvo, de maneira aleatória, desperdiçando munição. Os dogmáticos se limitam a pegar o arco e flecha em suas mãos e dizer: “que belo arco! que bela flecha!”.

 

A superação desta contradição dá-se com a união de empiristas e dos dogmáticos em atividades comuns, exercendo a crítica mútua e a autocrítica.  Tanto o dogmatismo quanto o empirismo são parciais e unilaterais. Mao considera o dogmatismo um erro potencialmente mais grave e pernicioso ao partido que o empirismo. Há muitas passagens dos textos de Mao em que se sugere a ida dos quadros e dos intelectuais às fábricas e ao campo, de forma a estimulá-los ao contato com o trabalho prática e possibilitar a aplicação objetiva do conhecimento teórico.

 

CONSTRUÇÃO DO SOCIALISMO NA CHINA

 

“Um comunista deve perguntar sempre pelos porquês de todas as coisas, usar a própria cabeça para pensá-las em todos os aspectos, ver se correspondem ou não à realidade e se estão verdadeiramente bem fundadas. Em caso algum um comunista deve seguir cegamente os outros ou encorajar a obediência servil”.

 

Estas palavras proferidas na palestra de 1942 seriam reiteradas no novo contexto da construção do socialismo. A Revolução cultural de 1966 igualmente voltou-se à resolução de contradições no seio do povo. Mao Zedong defende que esta revolução cultural corresponde a um experimento para revelar o lado sombrio do partido. Esta etapa da revolução teve início quando Mao ratificou pessoalmente um cartaz de uma professora de filosofia da Universidade de Pequim, denunciando e criticando o cerceamento político por parte dos reitores – quadros do partido na liderança da universidade.

 

A ratificação do cartaz da professora Nie Yuanzi foi o estopim para que milhares de associações estudantis se formassem no país, também reivindicando o direito de criticar diretamente as práticas políticas da liderança partidária e do estado[2]. O objetivo em suma é abrir o controle do estado e do partido pelo povo e o combate à burocratização.

 

Em fins de 1950 e início de 1960 processa-se a crise sino-soviética: ela foi diretamente influenciada pelas denúncias de Kruschev dos “crimes de Stálin” no XX Congresso do PCUS em 1956.

 

O princípio da co-existência pacífica suscitado pela URSS de Kruschev reforçou a oposição entre russos e chineses. Kruschev suspendeu a cooperação nuclear com Pequim e em 1960 ordenou a saída de todos os especialistas estabelecidos na China, cancelando os projetos de cooperação técnica.

 

Mao Zedong, em todo o caso, sempre suscitou a necessidade da revolução chinesa aprender com os erros e acertos da revolução russa. Os primeiros planos de industrialização foram promovidos na China de acordo com a experiência soviética: os comunistas chineses estabeleciam como meta que o seu paíse ultrapassasse em 15 anos a Inglaterra na produção de aço.  

 

A necessidade de aproximar o partido e o estado das massas trabalhando com o método correto as contradições no seio do povo também dizia respeito às políticas junto aos camponeses. Em 1950 a China ainda tem 80% de sua população no campo. A construção do socialismo no campo está relacionada ao trabalho de ajuda mútua, que evolui para as cooperativas semi socialistas e para as cooperativas socialistas. Existe uma necessidade objetiva de tornar estas cooperativas rentosas, de modo que se mantenha o princípio da voluntariedade da adesão. A reforma agrária e a coletivização do campo na China não assumiu contornos de Guerra Civil como na URSS.

 

Mao Zedong reitera que o socialismo, se quer a adesão das massas, deve se focar em aumentar a qualidade de vida das pessoas. A difícil tarefa de institucionalização da revolução, a mudança da etapa da luta militar pelo poder para as novas tarefas da administração e edificação do socialismo, tudo isso processou-se de maneira muito diferente na China e na Rússia.

 

O aspecto de longa duração da revolução chinesa, suas peculiaridades históricas, sua população em meados do séc. XX de 600 milhões de pessoas e a predominância do campesinato são alguns destes aspectos que diferenciam a experiência chinesa.

 
Bibliografia: “Mao Zedong e a Revolução Chinesa – Métodos de Direção e Desafios da Transição ao Socialismo" – Miguel Enrique Stédile (org.) – Editora Expressão Popular – 2019

[1] STÉDILE, Miguel Enrique. 2019.

[2] Andrea Piazzaroli Longobardi. 2019.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

LÊNIN NO PODER – 1917/1923

 LÊNIN NO PODER – 1917/1923

 

 


 

No dia 25 de Outubro de 1917 (7 de Novembro) o comunicado escrito por V. I. Lênin “Aos Cidadãos Russos” informou a população da derrubada do governo provisório. O poder foi tomado pelo Comitê Militar Revolucionário, órgão do Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado.

 

Poucos dias depois a insurreição de outubro se estenderia de Petrogrado à Moscou e às províncias. Uma cruenta guerra civil teria início imediatamente após a Revolução Socialista de Outubro: aliada até então dos imperialismos inglês e francês, a Rússia sairia pouco depois da I Guerra Mundial através de uma paz em separado com os Alemães. Entre 1917-1921, uma guerra civil cruenta mobilizou nada menos do que 14 estados nacionais contra o poder soviético.  

 

Aleksandr Vasiliyevich Kolchak dirigiu a contrarrevolução da Sibéria mobilizando os exércitos brancos de 1917 até a sua derrota em Omsk no ano de 1919. Anton Denikin dirigiu o exército branco desde o sul até a captura de Moscou, sendo derrotado em 1920. Tropas japonesas intervinham pelo oriente e os grupos contrarrevolucionários obtiveram apoio em dinheiro e armas principalmente de Inglaterra, França e EUA.

 

Em uma intervenção Lênin comparou a situação da Rússia após a revolução de outubro à situação de alguém que ao mesmo tempo busca erguer do zero a sua casa e tem de defendê-la dos ataques e torpedos de um assaltante.

 

Quando se analisa as intervenções de Lênin após a tomada do poder, duas questões de imediato surgem: a necessidade de vencer a resistência contrarrevolucionária e a nova questão de aprendizagem quanto à administração do estado soviético.

 

Quanto ao tema da contrarrevolução, a paz de Brest-Litovski de 3 de Março de 1918 cumpriu o importante papel de estabelecer uma trégua, ainda que profundamente desfavorável aos russos, dos inimigos externos possibilitando direcionar as forças vermelhas sobre a contrarrevolução interna (Kolchak, Denikin, socialistas revolucionários, mencheviques, etc.).

 

O programa de paz dos bolcheviques enunciado antes mesmo de Outubro de 1917 se diferencia de uma paz imperialista imposta pelos vencedores da guerra, como foi a Paz de Versalhes de 28 de Junho de 1919. A palavra de ordem bolchevique era uma paz justa e democrática, sem qualquer anexação ou contribuição de guerra.

 

Este tema da Paz foi abordado por Lênin em setembro de 1917 no escrito “As Tarefas da Revolução”:

 

“O governo soviético deverá propor sem demora a todos os povos beligerantes (isso é, a seus governos e, simultaneamente, às massas de operários e camponeses) a conclusão imediata de uma paz geral sobre bases democráticas e, além disso, um armistício imediato (ainda que somente por três meses). A condição fundamental para uma paz democrática é renunciar às anexações, mas não no sentido falso de que todas as potências devam recuperar o que tenham perdido, mas no único sentido justo, ou seja, no sentido se que todo o povo, sem exceção alguma, tanto na Europa, quanto nas colônias, obtenha liberdade e possibilidade de decidir por conta própria se deseja constituir um Estado independente ou participar de qualquer outro. Ao propor estas condições de paz, o governo soviético deverá, por sua vez, coloca-las em prática sem qualquer demora, isto é, deverá tornar público e anular os tratados secretos que ainda nos ligam, tratados concluídos pelo tsar, nos quais se promete aos capitalistas russos o saque da Turquia, Áustria, etc.”.

 

 A vitória da Revolução de Outubro, a Paz de Brest Litovisk e a vitória vermelha na Guerra Civil 1917/1921 marcam a primeira fase de existência do poder soviético, período caracterizado como “comunismo de guerra” (expressão utilizada por Lênin). Nesta primeira etapa, pode-se falar de uma revolução democrática no sentido de acabar com os resquícios feudais da economia, da cultura e das instituições políticas soviéticas. Vencer este atraso medieval, considerando a esmagadora maioria populacional russa de pequenos camponeses, envolveria mesmo o estabelecimento de um capitalismo de estado, caracterizado por Lênin, como uma antecâmara do socialismo . Neste primeiro momento, havia a necessidade urgente de reestabelecer a grande indústria e organizar a troca direta dos seus produtos pelos da pequena agricultura camponesa, contribuindo para a socialização desta; tomar aos camponeses, a título de empréstimos, uma determinada quantidade de víveres e matérias primas através da requisição. Com o fim da Guerra Civil, surge a necessidade de aumentar a circulação de mercadorias através de concessões pontuais ao capitalismo: ao invés das requisições armadas dos tempos da guerra civil, o imposto em espécie.

 

Portanto, uma segunda etapa da revolução tem início com a partir de meados de 1921 e esta nova situação se expressa nas cogitações de Lênin nesta última fase de sua vida.

 

Os comunistas devem colocar a si a tarefa de elevar a produtividade do trabalho social – nesta etapa não há a necessidade de impulsos histéricos, como na fase imediata após outubro, mas uma marcha cadenciada, sabendo avançar e recuar conforme as exigências do momento. “Melhor Menos, Porém Bom” e “Sobre o Cooperação” são textos representativos desta última fase dos escritos de Lênin, quando surge a ideia de uma revolução cultural e mudanças nas instituições soviéticas, como a criação da Inspeção Operário Camponesa para melhorar e reformar o estado soviético.

 

Em cartas direcionadas ao XII Congresso do Partido, Lênin sugere o aumento número de membros do comitê central de 50 até 100 militantes, que deveriam  ser recrutados dentro da base operária. Uma das razões é que Lênin já previa uma cisão no partido e cita nominalmente Trótsky e Stálin como a provável origem da cisão.

 

Desde a segunda metade de 1921, Lênin sofre de dores de cabeça e insônia regulares. Em 30 de agosto de 1918 já havia sido vítima de um atentado a bala, o que debilitou desde então a sua saúde. Em março de 1923 Lênin sofreu um terceiro acidente vascular cerebral e perdeu sua capacidade de fala. No dia 21 de janeiro de 1924 falecia Vladimir Ilyich Ulianov, Lênin.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

LÊNIN A CAMINHO DO PODER

 

LÊNIN A CAMINHO DO PODER

 

 


 

Logo após a chegada de Lênin em Petrogrado em abril de 1917 foi publicado o seu famoso artigo “As Tarefas do Proletariado na presente revolução – Teses de Abril”.

 

O texto foi publicado no jornal Pravda de 7 de abril de 1917 com a assinatura de Lênin e foi escrito provavelmente no trem, na véspera da chegada do dirigente bolchevique a Petrogrado. Lênin leu as teses em duas reuniões realizadas em 4 de abril: na reunião dos bolcheviques e na reunião conjunta de bolcheviques e mencheviques delegados da Conferência de Toda a Rússia de Deputados Operários e Soldados no palácio Taride.

 

A peculiaridade do momento da Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução que deu o poder à burguesia à sua segunda etapa, que iria por o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato. De um lado a continuidade da guerra imperialista e a ameaça da restauração do czarismo. De outro lado, a instauração de uma nova legalidade baseada na tomada do poder político dos operários e camponeses pobres.   

 

A dualidade de poderes se expressa pelo governo provisório burguês de um lado e pelos sovietes de deputados operários e camponeses do outro. Ainda em abril os bolcheviques são minorias no sovietes, o que faz com que os comunistas devam ter uma política de explicar os erros da tática dos conselhos  de um modo paciente, sistemático e adaptado às necessidades práticas das massas. Mesmo sendo minoria, os bolcheviques atuam nos sovietes e desenvolvem um trabalho de crítica e esclarecimento dos erros.

 

A palavra de ordem naquele contexto era a de lutar para quebrar as ilusões do povo no governo burguês. Além de denunciar o governo provisório, combater a influência ideológica da pequeno burguesia sobre o movimento operário. De maneira reiterada, Lênin opõe o governo republicano burguês da nova experiência de poder do sovietes, cuja prima mais próxima fora a Comuna de Paris de 1871. A dissolução da polícia, do exército e da burocracia substituída pelo povo em armas. A constituição de milícias operárias com a participação de homens de mulheres de 15 a 65 anos de idade. O mais absoluto controle e revogabilidade dos cargos de eleição. A necessidade de mudança do nome do partido como forma de se opor à social democracia europeia que capitulou perante a guerra imperialista: de partido social democrata para partido comunista. Finalmente, a necessidade da criação da III Internacional, ante a completa falência da II Internacional, dos social chauvinistas (Plekhanov) e dos centristas (Kautsky).

 

OS BOLCHEVIQUES DEVEM TOMAR O PODER

 

Contudo, no mês de julho, as jornadas contrarrevolucionárias dirigidas por Kornilov colocam em novos termos o desenvolvimento da revolução russa.  A vitória dos operários e soldados sobre a contrarrevolução em Julho coloca na ordem do dia a tomada do poder. Já em setembro de 1917 os bolcheviques já são maioria nos sovietes de deputados operários e soldados de ambas as capitais. Ainda em 12/14 de Setembro, Lênin lança a palavra de ordem que os bolcheviques devem tomar o poder:

 

“Depois  de ter conquistado a maioria dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de ambas as capitais, os bolcheviques podem e devem tomar o poder de Estado em suas mãos. Podem, pois a maioria ativa dos elementos revolucionários do povo de ambas as capitais é suficiente para levar consigo as massas, vencer a resistência do inimigo, derrota-lo, conquistar e manter o poder; podem, pois ao propor no ato a paz democrática, no ato de entregar a terra aos camponeses e restabelecer as instituições e liberdades democráticas, destruídas e destroçadas por Kerensky, os bolcheviques formarão um governo que ninguém poderá derrubar”.

 

Não foi sem vacilação que os demais dirigentes da fração mais consequente e revolucionária da Rússia encaravam a proposta de Lênin da tomada imediata no poder. Uma opinião era de que os bolcheviques devessem aguardar a realização da Assembleia Constituinte do governo provisório. Outra opinião dizia que os bolcheviques devessem aguardar a realização da Conferência Democrática. Mais do que uma mudança na data da insurreição, estavam em jogo diferentes posições táticas com implicações estratégicas: o partido bolchevique deve tomar para si o poder ou deve apenas tomar o poder para imediatamente entrega-lo aos sovietes de toda a Rússia? Quem é o sujeito histórico e quem é o sujeito político da revolução?

 

Neste aspecto, Lênin, seguindo as trilhas de Marx, chama atenção para o fato de que a insurreição deve ser encarada como uma arte: havia o risco objetivo da tomada da capital para contrarrevolução e o atraso da insurreição em Petrogrado e Moscou poderia colocar tudo a perder. A iminente tomada de Petrogrado tornaria as chances cem vezes maiores. Lênin chama a atenção de que não é possível “esperar” a Assembleia Constituinte, pois Kerensky, por conta da rendição de Petrogrado, pode perfeitamente frustrar sua realização.

 

“E para tratar a insurreição de um modo marxista, isto é, como uma arte, devemos, ao mesmo tempo e sem perder sequer um minuto, organizar um Estado-Maior dos destacamentos insurgentes, distribuir as forças, lançar os regimentos de confiança contra os pontos mais importantes, cercar o Teatro Alexandrinki e tomar a Fortaleza de Pedro e Paulo, prender o Estado-Maior general e o governo enviar contra os cadetes e contra a divisão selvagem tropas dispostas a morrer antes de permitir que o inimigo abra passagem em direção aos centros da cidade; devemos mobilizar os operários armados, convocando-lhes a uma luta desesperada, à luta final; devemos ocupar imediatamente as centrais de telégrafos e de telefones, instalar nosso Estado-Maior da insurreição junto à Central de telefones e coloca-los em contato telefônico com todas as fábricas, com todos os regimentos, como todos os pontos em que se desenrole a luta armada, etc.”.  

 

Nos escritos “Conselhos De Um Ausente” de 8 de outubro de 1917 e na “Carta Aos Membros do Comitê Central” de 24 Outubro, Lênin reforça que a demora na ação equivale à morte, que o triunfo da revolução russa e da revolução mundial depende de dois ou três dias de luta.

 

Finalmente, em 25 de Outubro de 1917, às 10 hors da manhã o Comitê Militar revolucionário adjunto ao Soviet de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado anuncia a queda do governo provisório e a vitória da revolução operária, dos soldados e dos camponeses.

 

No próximo artigo, analisaremos as intervenções de Lênin no contexto imediato da tomada do poder, de outubro de 1917 até 1923.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

AS CARTAS DE LONGE DE V. I. LÊNIN

                                         AS CARTAS DE LONGE DE V. I. LÊNIN 

 


 

 

“Nossa revolução é burguesa, e por isso os operários devem apoiar a burguesia – dizem os Potresov, os Gvodiez e os Tcheideze, como dissera antes Plekhanov. Nossa revolução é burguesa – dizemos nós, marxistas, e por isso os operários devem abrir os olhos do povo para que veja a mentira dos políticos burgueses e para ensiná-lo a não acreditar nas palavras, a contar unicamente com suas próprias forças, com sua própria organização, com sua própria união, com seu próprio armamento. (...) Mostraremos em que consiste a especificidade deste momento, da passagem da primeira para a segunda etapa da revolução, e porque a palavra de ordem, a “ordem do dia”, neste momento deve ser: Operários! Vocês realizaram prodígios de heroísmo proletário e popular na guerra civil contra o tzarismo. Vocês devem realizar prodígios de organização do proletariado e de todo o povo para preparar o seu triunfo na segunda etapa da revolução” – CARTAS DE LONGE – Primeira Carta: a primeira etapa da primeira revolução. Escrita a 7 (20) de Março de 1917.  V. I. Lênin

 

Quando Lênin retornou do seu exílio para a Rússia na noite de 3 de Abril de 1917 fazia poucas semanas do triunfo da primeira etapa democrático-burguesa da Revolução, que destituiu o secular czarismo e instituiu um governo provisório de natureza burguesa, com o apoio, por um lado, do imperialismo anglo-francês, e por outro lado, contanto com a mobilização de operários e camponeses pobres consubstanciada no Soviet de Petrogrado.

 

Quando do retorno de Lênin, o dirigente bolchevique tinha 47 anos de idade, estava em sua plena maturidade intelectual e já era então o principal dirigente do partido bolchevique, agrupamento que, ainda em abril de 1917, era minoritário no Soviet.  

 

O contexto daqueles eventos envolvia a participação da Rússia na 1ª Guerra Mundial. Consta que a vinda de Lênin e outros exiliados russos foi objeto de negociação com a Alemanha do Kaiser que tinha interesse no retorno à Rússia de revolucionários internacionalistas cujo programa envolvia a retirada da Rússia da guerra, ou, para ser mais exato, a transformação da guerra entre os imperialismos em guerra civil revolucionária de classes.

 

Sobre o retorno de Lênin à Rússia, muitos detratores buscaram associar este retorno a uma espécie de acordo espúrio de Lênin com os alemães. Contudo, Deutscher relata de forma detalhada como seu deu este retorno:

 

“Lênin cuidou desta viagem (de regresso à Rússia) por meio de bem conhecidos socialistas alemães, suecos, suíços e franceses. A única obrigação que assumiu diante do governo alemão foi fazer o possível para assegurar que um grupo de civis alemães tivesse permissão de sair da Rússia, como quid pro quo. O governo alemão, sabedor da oposição de Lênin à guerra, certamente esperava ganhar com sua propaganda dentro da Rússia. Lênin teve escrúpulos antes de decidir se valer das facilidades para viajar através da Alemanha. Os escrúpulos cederam diante da preocupação principal – estar o mais cedo possível no centro da revolução. Teria preferido ir à Rússia através da Inglaterra, mas o governo britânico recusou-lhe a autorização. Ao chegar, ninguém censurou a viagem. Os dirigentes dos partidos socialistas saudaram-no como um dos velhos e consumados líderes. Algumas semanas mais tarde, Martov e outros mencheviques seguiram o exemplo e viajaram para casa pelo mesmo caminho, sem nunca suscitar nenhuma censura ou crítica. Somente mais tarde, quando a influência de Lênin começou a crescer, foi que o vagão lacrado se viu transformado por alguns adversários num pacto sinistro entre o Estado-Maior alemão e os bolcheviques”. (Deutscher, 2006).

 

Não é difícil cogitar da profunda apreensão que um revolucionário em tempo integral como Lênin devia passar ao acompanhar os eventos revolucionários na Rússia à distância.

 

A primeira das cartas de longe foi escrita em 7 de Março de 1917, uma semana após o êxito da revolução de fevereiro. Começa a carta apontando que a primeira etapa da revolução não será a última, fato confirmado em outubro do mesmo ano.

Nestes escritos Lênin suscita a questão: como foi possível uma monarquia absolutistas secular ser destituída do poder em apenas uma semana? Como explicar este aparente milagre da história?

 

São três os pontos fundamentais que explicam a rápida queda dos Romanov para Lênin. Em primeiro lugar, a revolução russa de 1905-1907. Sem os três anos de formidáveis batalhas de classe não teria sido possível uma segunda revolução tão rápida.

 

“A primeira revolução (1905) revolveu profundamente o terreno, arrancou pela raiz preconceitos seculares, despertou milhões de operários e dezenas de milhões de camponeses para a vida política e para a luta política; revelou a cada classe (e todos os principais partidos) da sociedade russa, a verdadeira correlação de seus interesses, suas forças, seus modos de agir, seus objetivos imediatos e subsequentes”. (Lênin)

 

O segundo fator que determinou a breve vitória da revolução de fevereiro foi a guerra imperialista mundial. A natureza imperialista da guerra acelerou extraordinariamente e recrudesceu a luta de classes do proletariado contra a burguesia, transformando-se em guerra civil entre classes inimigas. O terceiro fator tem natureza política e diz respeito à constituição do Soviet de Deputados Operários de Petrogrado. Lênin neste ponto reforça que os bolcheviques não podem adotar qualquer política de apoio ao governo provisório: é necessário armar o proletariado, consolidar e desenvolver o papel e a importância e a força do soviet, como garantia da liberdade e da impossibilidade de restauração do cazarismo. É dada ênfase à constituição de milícias operárias: conforme as tradições da Comuna de Paris de 1871 e da Revolução Russa de 1905, dissolver e fundir as funções de polícia, exército e burocracia com todo o povo em armas.  

 

Logo após a chegada de Lênin em Petrogrado em abril de 1917 seria publicado o seu famoso artigo “As Tarefas do Proletariado na presente revolução – Teses de Abril”. A análise estas teses será objeto de análise no nosso próximo artigo.