terça-feira, 23 de março de 2021

GEÓRGI DIMITROV E A LUTA ANTIFASCISTA

 GEÓRGI DIMITROV E A LUTA ANTIFASCISTA  




                       XVII Congresso da IC - 1935             


“Camaradas, não é possível representar a subida do fascismo ao Poder de uma forma tão simplista e fácil, como se um comitê qualquer do capital financeiro tomasse a resolução de implantar em tal ou qual dia a ditadura fascista. Na realidade, o fascismo chega geralmente ao Poder em luta recíproca, às vezes exasperada, com os antigos partidos burgueses ou com determinada parte destes em luta até no seio do próprio campo fascista, que muitas vezes conduz a choques armados, como vimos na Alemanha, Áustria e outros países. Tudo isto, no entanto, não diminui a significação do fato de que, antes da instauração da ditadura fascista, os governos burgueses atravessam habitualmente uma série de etapas preparatórias e realizam uma série de medidas reacionárias que facilitam diretamente o acesso do fascismo ao Poder. Todo aquele que não lutar nestas etapas preparatórias contra as medidas reacionárias da burguesia e contra o fascismo em ascensão não estará em condições de impedir a vitória do fascismo, senão que, pelo contrário, a facilitará”. (Geórgi Dimitrov – “Unidade Operária Contra o Fascismo – 1935).

 

Quando Geórgi Dimitrov pronunciou o seu famoso discurso “Unidade Operária Contra o Fascismo” no XVI Congresso da IC em Moscou (02/07/1935), o dirigente comunista búlgaro era não só um militante experiente, como a principal referência mundial da luta antifascista naquele contexto.

 

Originário da Bulgária, Dimitrov iniciou sua militância aos 20 anos de idade, participando de atividades sindicais. Por conta do prestígio junto aos operários, é eleito deputado pelo parlamento búlgaro em 1915. Associa-se ao posicionamento de Lênin, denunciando o caráter imperialista da I Guerra Mundial, acarretando a acusação de alta traição e sua prisão, onde permanece até 1917.

 

Dois momentos posteriores passariam a associar de maneira definitiva a figura de Geórgi Dimitrov e o movimento antifascista.

 

Em 9 de junho de 1923 o fascismo italiano financia um golpe de Estado na Bulgária, promovido pela extrema-direita e a milícia macedônica. Já em agosto, a direção do Partido Comunista Búlgaro, liderado por Dimitrov e Vasil Kolarov, deliberam por um levante contra o novo governo golpista. Mesmo tendo os planos sido descobertos pelas autoridades, a insurreição ocorreu em 27 de Setembro, acarretando na repressão e assassinato de 30 mil pessoas. A insurreição de setembro de 1923 ficou conhecida como o primeiro levante antifascista da história.

 

O segundo momento marcante ocorre anos depois, quando Dimitrov se translada para a Alemanha, animando o movimento contra a guerra e o fascismo naquele país. Após o incêndio do Reichstag, sede do parlamento alemão, em fevereiro de 1927, o recrudescimento da violência leva à prisão os dirigentes do KPD (Partido Comunista Alemão). Levado ao Tribunal Nazista, Dimitrov assumiu sua defesa, sem advogado, transformando o julgamento numa denúncia política. Defendeu inclusive seus direitos de nacionalidade Búlgaro ante os nazistas. Incapazes de encontrar provas contra os comunista búlgaro, foram obrigados a libertá-lo.

 

Em 1934, é eleito presidente da Internacional Comunista, substituindo  Manuilski. Trata-se de uma mudança substancial na política do movimento comunista mundial quanto ao problema do fascismo.

 

Ainda em 1934, a URSS, presidida por Stálin, subestimava-se o perigo do nazismo. Predominou-se uma linha política esquerdistas que caracterizava a social-democracia  (que efetivamente havia sido a primeira responsável pela derrota da Revolução Alemã) como uma variante do fascismo. Falava-se então num duplo combate em face do fascismo e do “social-fascismo[1]”.

 

A nova guinada do movimento consiste justamente na indicação de um herói da luta antifascista como dirigente da IC. A caracterização do fascismo e a tática da frente única são os temas do discurso proferido no XVI Congresso.       

 

A ANÁLISE DO FASCISMO


Geórgi Dimitrov em 1927

 

Talvez, as passagens mais interessantes para um leitor atual do discurso de Dimitrov correspondem à caracterização do fascismo, tema que ainda hoje gera confusão.

 

Poderíamos começar dizendo o que o fascismo não é.

 

O fascismo não é um acidente histórico. O fascismo não é, tão pouco, uma forma de Poder estatal que esteja por cima de ambas as classes do proletariado ou da burguesia. Igualmente o fascismo não é a pequena burguesia sublevada que se apoderou do poder do Estado. O fascismo não é, tampouco, a expressão política do lumpesinato. O fascismo não é um poder situado acima das classes.

 

Dimitrov é enfático: o fascismo é o próprio poder do capital.

 

Corresponde a uma etapa de ofensiva da burguesia e, como instrumento político, destina-se à destruição do movimento operário.

 

Neste sentido, o fascismo é considerado o pior inimigo da classe operária.

 

“O fascismo chega ao poder como partido de choque contra o movimento revolucionário do proletariado, contra as massas populares em efervescência, porém representa sua subida ao Poder como um movimento ‘revolucionário’ dirigido contra a burguesia, em nome de ‘toda a nação’ e para ‘salvar a nação’. (Recordemos a ‘marcha’ de Mussolini sobre Roma, a ‘marcha de Pilsudski sobre Varsóvia, a ‘revolução’ nacional-socialista de Hitler na Alemanha, etc.). Mas qualquer que seja a máscara com que se disfarce, qualquer que seja a forma em que se apresente, qualquer que seja o caminho por que suba o poder, o fascismo é a mais feroz ofensiva do capital contra as massas trabalhadoras”.

 

Este caráter aparentemente contraditório, esta aparência de ‘revolução anticapitalista’ e, na essência, a defesa dos interesses de rapinagem da burguesia, precisa ser bastante compreendido pelos antifascistas, inclusive os brasileiros em tempos de Bolsonaro.

 

O fascismo busca a adesão das massas com a demagogia e a instigação de profundos preconceitos do povo. O fascismo especula com relação à profunda desilusão das massas em face da democracia burguesa e das instituições. O fascismo explora a fé do povo na revolução inclusive se apropriando no nome de “socialismo”, como no caso do partido nazista. Neste contexto, é inoportuno opor-se ao fascismo defendendo “as instituições” ou “a constituição”.

 

Por outro lado, existe uma total fragilidade do fascismo, quando busca se apoiar no descontentamento do povo.

 

O fascismo significa regressão social – os trabalhadores e camponeses que eventualmente acreditaram nas promessas fascistas virão suas condições de vida deteriorarem-se, sua liberdade tolhida e o recrudescimento da exploração de classe. O fascismo é a ditadura da grande burguesia e por isso se choca necessariamente com as massas.

 

Dimitrov menciona, neste sentido, o “calcanhar de aquiles” do fascismo: a fragilidade de sua base social. Em geral, os fascistas buscam apoio nos setores atrasados do campesinato, atuam no movimento operário inclusive mediante a criação de sindicatos, mobilizam intelectuais e movimento de jovens.   Contudo, com o tempo, vai ficando visível o contraste entre a demagogia anticapitalista e a política de rapina da burguesia defendida pelos fascistas.  

 

Nestes marcos, tornava-se necessária uma virada na tática, com a defesa de uma política de unidade da classe trabalhadora, apostando com todas as fichas no “calcanhar de aquiles” do fascismo: dividir a sua base social e eventualmente ganhá-la para o socialismo.

 

A UNIDADE OPERÁRIA CONTRA O FASCISMO

 

É necessária, portanto, a unidade de luta dos trabalhadores para paralisar a influência dos fascistas sobre os camponeses e os setores médios. Ou seja, estender a influência do proletariado junto aos camponeses, setores médios, intelectuais e estudantes, minando a frágil base social dos fascistas.  

 

Anote-se que a tática da frente única deve ser entendida não como um fim em si mesmo, mas como um forma de contraofensiva para derrotar o fascismo. Não se cogita uma aliança com a burguesia para deter o fascismo, já que a natureza de classe do fascismo era indiscutivelmente burguesa.

 

A unidade de ação prevalece sobre a construção de uma unidade política. E ainda assim, no caso da constituição de um eventual  governo fruto do movimento de frente única vitorioso, este governo não admitiria a colaboração de classes:

 

“Enquanto que os governos social-democratas representam um instrumento da colaboração de classes com a burguesia no interesse da conservação do sistema capitalista, o governo de frente única é um órgão da colaboração da vanguarda revolucionária do proletariado com outros partidos de luta contra o fascismo e a reação. É evidente que se trata de duas coisas radicalmente diferentes”.   

 

A forma de se determinar qual é a melhor tática em dado momento envolve procurar entender se determinada política nos aproxima ou nos distancia do horizonte estratégico. Alianças não deveriam ser pensadas, como frequentemente acontece, como valorosas por si só, como uma expressão artificial de “unidade”, especialmente se desta aliança não se aproxima do objetivo de derrotar o inimigo imediato. Estas questões mais ou menos elementares costumam passar desapercebidas por setores da esquerda brasileira que defendem aliança com a direita liberal, dentro e fora do parlamento, para derrotar Bolsonaro.

 

BALANÇOS

 

“Um dos aspectos mais fracos da luta antifascista de nossos Partidos consiste em que não reagem suficientemente nem em seu devido tempo contra a demagogia do fascismo e ainda hoje continuam tratando levianamente os problemas da luta contra a ideologia fascista. Muitos camaradas não acreditavam em absoluto que uma variedade tão reacionária da ideologia burguesa como a ideologia do fascismo, que em seu absurdo chega com muita frequência até o desvario, fosse capaz de conquistar influência sobre as massas. Foi um grande erro. A avançadíssima putrefação do capitalismo penetra até a própria medula de sua ideologia e de sua cultura, e a situação desesperada das extensas massas do povo predispõe certos setores ao contágio dos detritos ideológicos deste processo de putrefação”.

 

É provável que o fascismo no Brasil ganhe audiência com a crise social e política em curso. A demagogia em torno do problema do Lockdown já mobiliza hoje, no contexto da pandemia, setores médios e até populares, através de atos de rua. A maior parcela da esquerda, neste momento, defende o Lockdown e a não realização de atos de rua.

 

Neste contexto, é necessário retomar este discurso de Dimitrov e reforçar o “calcanhar de aquiles” do fascismo: sua frágil base social. Construir a unidade dos trabalhadores em torno da ação, apresentando reivindicações objetivas. Apostar na unidade dos trabalhadores mediante a organização da luta social. Resgatar a bandeira do Brasil dos fascistas e apresentar a questão nacional nos seus devidos termos. Defender a unidade dentro do movimento sindical. Convencer setores da esquerda do reformismo a travar uma luta consequente contra o fascismo, abandonando as ilusões de colaboração com a burguesia.

 

A esquerda deve se preparar para dirigir o levante social que se aproxima e, em qualquer hipótese, impedir que a demagogia dos fascistas persista sem contestação.  

 

BIBLIOGRAFIA

 

GEORGI DIMITROV - A luta pela unidade da classe operaria contra o fascismo – Acesso em https://www.marxists.org/portugues/dimitrov/1935/fascismo/index.htm

 

JORGE BATISTA - https://averdade.org.br/2016/11/georgi-dimitrov-heroi-da-luta-contra-o-nazifascismo/



[1] A subestimação do perigo fascista em Stálin ainda em 1934 pode ser justificada na medida em que não se sabia então das possibilidades de avanço do fascismo, sua disseminação da Itália e Alemanha. Outro ponto é que a URSS sofria hostilidades de todo o mundo capitalista, principalmente França e Inglaterra, de modo que fazia algum sentido uma “neutralidade” em face das divergências entre os países imperialistas.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Sobre o Levante Vermelho de 1935

 Sobre o Levante Vermelho de 1935: 

Notas Sobre a “Intentona Comunista”.



 Luiz Carlos Prestes, em julgamento pelo Tribunal de Segurança, 1937.

 

“Dominada a cidade, instalava-se o Governo Revolucionário Popular, na residência oficial do governador, composto por um sapateiro, um funcionário público, um estudante, um funcionário dos Correios e um sargento. Esse governo fez circular numerário no Banco do Brasil, retirando-o ante a recusa do gerente em entregá-lo; e se manteve até quarta feira, expandindo o seu domínio por vários municípios próximos. A população da cidade confraternizou com os rebeldes: “Era mais uma festa popular, um carnaval exaltado, do que uma revolução” – escreveu um historiador. Um dos protagonistas do episódio fixou o seu depoimento assim: “O povo de Natal topou a revolução de pura farra. Saquearam o depósito de material do 21º BC e todos passaram a andar fantasiados de soldado. Minha primeira providência como “Ministro” foi decretar que o transporte coletivo seria gratuito. O povo se esbaldou de andar de bonde sem pagar”. (SODRÉ, Nelson Werneck. “A Intentona Comunista de 1935”. Ed. Mercado Aberto.).

 

O levante dirigido pela Ação Nacional Libertadora em Novembro de 1935 ficou conhecido na história como a “Intentona Comunista”. O ensaio de insurreição durou 6 (seis) dias, não teve adesão do proletariado brasileiro. Houve apenas um modesto apoio popular na cidade de Natal.

 

O Levante estourou no dia 23/11 em Natal, no dia 24/11 em Recife e no dia 27/11 no Rio de Janeiro. Na antiga capital estavam Luís Carlos Prestes (presidente de honra da ANL), Olga Benário e “Miranda” (secretário-geral do PCB).

 

São conhecidas as críticas que os historiadores suscitam quanto à denominação do movimento como “intentona”. A palavra tem inequívoco sentido pejorativo, e foi uma forma com que a repressão oficial buscou estigmatizar o levante, dentro da costumeira perspectiva anticomunista. O caráter pejorativo do termo certamente não passou desapercebido pelo historiador marxista Nelson Werneck Sodré: o último capítulo do seu livro sobre o tema se chama “a difamação ideológica” e trata detidamente da campanha contra os rebelados. Uma reação não só mediante o assassinato, a entrega de militantes comunistas para a Gestapo, a tortura, a prisão indiscriminada e a repressão generalizada pela Lei de Segurança Nacional, aprovada em 1935. Mas mediante o discurso anticomunista:

 

“O anticomunismo como doutrina, como princípio, como cerne ideológico tem alimentado, com intencionalidade indesmentível, o acobertamento das maiores e mais infames violências, e não só no Brasil, evidentemente. Todas as vezes que a reação sente a necessidade de apelar para meios extremos, na defesa dos seus extremos, na defesa de seus interesses, apela para o anticomunismo”. (SODRÉ, Nelson Weneck. Ob. Cit.).

 

Ainda assim, o historiador marxista manteve a denominação “Intentona Comunista” como título do seu livro sobre o levante da ANL. Além desta denominação ter prevalecido nos livros escolares, parece-nos que a caricatura, aqui, ajuda a entender o caricaturado. “Intentona” remete a conduta intempestiva e temerária: analisando o levante, verifica-se de plano que se tratou de uma projeção tardia do tenentismo, movimento que vinha em descenso desde a vitória da Aliança Liberal de 1930. Este misto de socialismo e tenentismo é ressaltado na análise de Sodré: ralas conspirações, focos iniciais que deveria deflagrar levantes, expectativas de adesões prometidas que se frustravam, ausência de adesões, sacrifícios daqueles que cumpriam os compromissos. Tudo levando-nos a crer que o “levante” tinha também o seu caráter militarista, dentro do espírito tenentista que o influenciou.

 

Havia um cenário de agitação política no país, especialmente na cúpula do poder, com crises institucionais, mudanças de interventores, nomeações sucessivas de ministros, conflitos entre governadores eleitos e interventores. Contudo, o clima de agitação política foi confundido pelas lideranças revolucionárias – nitidamente Prestes e Miranda – por uma situação revolucionária no Brasil, que não existia. Consta que os dirigentes da IC, que naquele período adotava uma política que variava entre esquerdismo e constituição de frentes amplas antifascistas, manifestaram discordância com a política de levante armado no Brasil. Contudo, prevaleceram as opiniões de Prestes e da direção do PCB.   


Contexto e Organizações Políticas

 

O contexto internacional do período em análise envolve a vitória a Revolução Russa, sua consolidação e o seu isolamento, que deveriam ser desafiados mediante a construção do socialismo na Rússia e a constituição da solidariedade internacional.

 

A crise de 1929, a ascensão do nazi-fascismo e do militarismo engendram a polarização política no país. No caso do Brasil, a crise de 1929 coloca em crise a economia agrário exportadora, inteiramente dependente do mercado externo, e acaba por fortalecer a economia interna, mediante a substituição das exportações e um ascendente desenvolvimento da indústria.

 

A Revolução de 1930 tem como sentido mais essencial de fortalecimento da burguesia – a pausa momentânea da exploração imperialismo possibilita à burguesia brasileira melhor moldar o seu aparato estatal.

 

O movimento que leva a Aliança Liberal ao poder corresponde a uma composição provisória do tenentismo e de dissidências das oligarquias agrárias brasileiras. Esta aliança é provisória: paulatinamente o tenentismo e sua política reformista é alijada em favor das oligarquias. Após a derrota paulista na Revolução Constitucionalista de 1932, já no ano seguinte é colocada em pauta uma nova constituição, de modo que os paulistas, alijados do poder pela Revolução de 1930, reencontram em pouco tempo o seu espaço. O contexto político, ainda assim. é de instabilidade, nitidamente no meio militar. O levante de 1935, neste sentido, foi um levante de dispositivos militares. Não saiu destes marcos estritos no Recife e no Rio de Janeiro.  

 

O Levante e a Repressão

 

“Aceito, finalmente, no PCB, em agosto de 1934, por determinação da IC, Prestes viajou para o Brasil três semanas depois. Miranda conseguira convencer os dirigentes da IC de que existiam aqui condições favoráveis a um levante. Contavam ambos, para a vitória esperada, com o prestígio de Prestes. Seus antigos companheiros, ao seu chamado, formariam com ele. Tudo indica que os dirigentes da IC relutaram em aceitar a proposta de Miranda, reforçada por suas informações triunfalistas, segundo as quais existiam, no Brasil, condições propícias, e o país apresentava uma situação revolucionária. A tais informações, Prestes dava ardorosa adesão.” (SODRÉ, Nelson Wenerck. Op. Cit).

 

A Aliança Nacional Libertada foi fundada publicamente num comício na data de 30/03/1935, no Teatro João Caetano. Naquela ocasião, Prestes, que estava ausente, é  aclamado presidente de honra da organização.

 

O dirigente aceitaria o cargo em manifesto cerca de um mês depois.

 

Na ANL estavam presentes militares, tenentistas, civis, socialistas, democratas, liberais e comunistas. Tratava-se de uma frente ampla incluindo majoritariamente um setor social decepcionado com a incapacidade do movimento de 1930 de resolver os problemas do povo.

 

Pode-se mencionar duas fases da curta existência da ANL: no início um rápido crescimento abrigando os decepcionados, inconformados e descontentes. Os comícios da ANL se sucederam no Rio de Janeiro (13/05/1935), Fortaleza (25/05/1935), Madureira (28/05/1935), Vitória (30/05/1935) e Petrópolis (09/06/1935). Neste processo de expansão, houve choques com a polícia, como em Petrópolis, despertando o alerta das autoridades. Uma segunda fase decorre da ilegalidade da ANL, que acabou levando a organização a adotar posturas esquerdistas, afastando-se paulatinamente do movimento de massas.  A ANL começou como uma frente ampla que foi se estreitando a medida que se radicalizava. O Levante de Novembro de 1935, com a ausência da adesão do proletariado mediante uma greve geral ou mesmo parcial, colocou coroou este isolamento.

 

Quanto ao programa político da ANL, certamente não era estritamente socialista/comunista. Mas era ainda assim um programa avançado, inclusive para os dias de hoje. Defendia-se um governo popular, ampliação das liberdades democráticas, suspensão do pagamento da dívida externa, nacionalização de empresas estrangeiras e entrega dos latifúndios aos trabalhadores do campo.  Pelo menos desde o seu pronunciamento de 1930 contra a Aliança Liberal e, especialmente, a partir de 1931 com a sua adesão ao marxismo, Luís Carlos Prestes já defendia a via armada como via da  tomada de poder no Brasil.

 

Já foi dito que a reação costuma dar corda para que o extremismo de esquerda nela se enforque. No caso, a ilegalidade da ANL e PCB pela Lei de Segurança Nacional (1935) empurraram o movimento para o esquerdismo. Passou-se a uma análise da questão nacional em que a instabilidade política da superestrutura foi interpretada como condições subjetivas da revolução brasileira. A tentativa de insurreição foi rapidamente detida, implicando no fortalecimento da reação: o ano de 1936 foi particularmente trágico com a detenção de milhares de pessoas, assassinatos como o de Victor Allan Barron que foi atirado pela janela de uma sala da delegacia, a tortura até o cometimento da loucura em Harry Berger e a deportação de Olga Bernario para um campo de concentração nazista. Este momento trágico da história brasileira é bem retratado por Graciliano Ramos em seu “Memórias do Cárcere”. O escritor foi detido e levado para diversas prisões, permanecendo posteriormente no RJ, sem nunca ter sido julgado.  

 

É inequívoco o aspecto heroico do Levante de 1935: talvez fora mesmo uma “intentona”, mas certamente não apenas “comunista”, por envolver uma frente política ampla, dos dissidentes tenentistas de 1930 até os militantes do PCB. Contudo, o seu resultado trágico, a facilidade com que foi derrotada,  reforça uma lição elementar do marxismo revolucionário: ligeiros desvios teóricos podem engendrar verdadeiras tragédias políticas.   

 

Sobre o autor

 

Nelson Werneck Sodré foi professor da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, de 1948 e 1950. Foi diretor do Departamento de História do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) de sua fundação até sua extinção, com o golpe de 1964. Foi historiador, militar e militante do PCB.

 

BIBLIOGRAFIA

 

SODRÉ, Nelson Werneck. “A Intentona Comunista de 1935”. Ed. Mercado Aberto.

 

RAMOS, Graciliano. “Memórias do Cárcere”. Ed. Record. 2020. 

terça-feira, 16 de março de 2021

Breves notas sobre Responsabilidade Extracontratual do Estado

 Breves notas sobre Responsabilidade Extracontratual do Estado


 



É possível que familiares de um detento ingressem com ação de reparação por danos morais em face do Estado no caso de o preso ser assassinado nas dependências do presídio? É necessário que estes familiares comprovem o dolo ou a negligência do Estado para fim de obtenção da indenização? O Estado teria o direito de ingressar com uma ação regressiva em face do agente público responsável por um dano em face do particular? É possível ingressar com uma ação reparatória em face do Estado por omissão no cumprimento de um dever legal? Estas são apenas algumas das muitas questões relacionadas ao tema da responsabilidade extracontratual do Estado.

 

Pode-se conceituar a responsabilidade extracontratual do Estado como “a obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis ao agente público”. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. “Direito Administrativo”. Ed. Forense. 33ª Edição).

 

O tema é regido predominantemente pelo Direito Administrativo. Ao contrário do direito privado, em que a responsabilidade civil exige sempre um ato ilícito (contrário à lei), no direito administrativo a responsabilidade pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinadas ônus maior do que o imposto aos demais membros da coletividade.

 

Um exemplo: suponha-se que a prefeitura promove uma obra pública com a construção de um viaduto, beneficiando a coletividade, na medida em que a abertura de novas vias reduzirá o trânsito local. Contudo, as obras implicarão na interdição de uma rua onde se localiza um estacionamento de carros, inviabilizando, pelo prazo de 12 (meses), que eventuais clientes se dirijam ao estabelecimento, implicando em inequívocos prejuízos à empresa. Não seria justo que um único particular arcasse com a totalidade dos prejuízos decorrentes de uma obra pública destinada aos interesses comuns. Neste exemplo, um ato lícito da administração pública poderá engendrar a responsabilidade extracontratual do Estado, com o pagamento de indenização por danos materiais em benefício do particular prejudicado.  

 

Houve uma evolução histórica da teoria da responsabilidade estatal, até o estabelecimento da responsabilidade civil objetiva do Estado, consubstanciada no artigo 37 § 6º da CF/88.

 

No contexto das monarquias absolutistas vigorava a noção de total irresponsabilidade do Estado, sob o princípio de que “o rei não pode errar” (“the king can do no wrong”; “ler oi ne peut mal faire”). Primeiras alterações nas legislações reconhecendo a responsabilidade civil subjetiva do Estado foram estabelecidas nos EUA pelo Federal Tort Claim Act (1946) e na Inglaterra com o Crown Proceeding Act (1947).

 

Nesta primeira etapa, algumas teorias civilistas estabeleciam uma diferenciação entre os atos de império e os atos de gestão. Admitia-se a responsabilidade apenas nos atos de gestão, afastando-se a responsabilidade dos atos de impérios, estes últimos gozando de soberania. O artigo 15 do Código Civil Brasileiro de 1916 retrata esta etapa civilista da responsabilidade extracontratual do estado:

 

CC/16 - Lei nº 3.071 de 01 de Janeiro de 1916 - Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.

 

Hoje as teorias civilistas foram definitivamente superadas pelas teorias publicistas. Quando uma pessoa sofre um ônus maior do que o suportado pelas demais, rompe-se o equilíbrio que necessariamente deve haver entre os encargos sociais; para reestabelecer esse equilíbrio, o Estado deve indenizar o prejudicado, independentemente da demonstração de dolo ou culpa, utilizando-se os recursos do erário.

 

Vigora no país a teoria da responsabilidade extracontratual objetiva do estado.   

 

É objetiva justamente por prescindir de apreciação dos elementos subjetivos da conduta do agente público (dolo ou culpa).

 

Fala-se também em teoria do risco porque parte da ideia de que a atuação estatal envolve um risco de dano, que lhe é inerente.

 

Em regra, a responsabilidade extracontratual pode ser excluída ou atenuada. Pode ser excluída por força maior, culpa da vítima e culpa de terceiros. Nestas situações, rompe-se o nexo-causal já que a conduta ou omissão do agente público deixa de ser a causa do dano.

 

Ademais, fala-se em atenuante da responsabilidade extracontratual no caso de culpa concorrente da vítima.

 

Há ainda situações excepcionais em que se fala em Risco Integral da atividade administrativa e em que não existe sequer a possibilidade de se discutir atenuação e exclusão da responsabilidade extracontratual. É o que ocorre nos casos de danos causados por acidentes nucleares (artigo 21, XXIII, d, CF/88), disciplinados pela Lei 6.453/77; e também na hipótese de danos decorrentes de atos terroristas, atos de guerra ou eventos correlatos, contra aeronaves de empresas aéreas brasileiras, nos termos das Leis 10.309/01 e 10.744/03.

 

Bibliografia:

 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. “Direito Administrativo”. Ed. Forense. 33ª Edição

 

Quadro – “Estudo Para Frei Caneca” – Antônio Parreiras - Óleo sobre tela - 1918